quinta-feira, 24 de julho de 2008

MAIS HISTÓRIAS DO MEU PERCURSO - "O HALL DE ENTRADA"

Estava eu hoje no hall de entrada do meu prédio, quando a D. Preciosa desceu.
A D. Preciosa é a minha vizinha do 5º andar, vizinha de há longos anos, de toda uma vida, porque a D. Preciosa é das antigas, logo, das assimiladas no coração...
Eu digo "das antigas", porque quando vim viver para o meu apartamento, há já muitos anos, os restantes condóminos estreavam também as respectivas habitações e logo ali, naquela proximidade, se constituiu uma "família" de pessoas que sem se pertencerem, iam dividir o mesmo "barco", iam partilhar vivências próximas, iam criar laços...os tais laços que foram "de coração".

O edifício é relativamente pequeno, com dois apartamentos por piso, mais uma porteira que também remonta às origens...a D. Leonilde, perita em "apagar" sempre, generosamente, todos os "fogos" do nosso prédio.
É por isso herança nossa.

O prédio habitou-se na generalidade por casais novos, recém- constituídos, com filhos ainda em "borboto" ou com filhos ainda "em projecto"...o meu caso, que já contemplava uma filha de dez meses, na altura.

E os anos passaram e dividimos os problemas, as despesas, as arrecadações, o martelar de obras às oito da matina de quando em vez, as infiltrações, as avarias dos elevadores...mas também o percurso escolar ou profissional de filhos, a oferta de botinhas ou chupetas para os que nasciam...de coroas de flores para os que partiam...as espreitadelas, ou mesmo a visita de felicitações às primeiras noivas que saíram do meu prédio... (a nossa miudagem a crescer...).
Enfim, tudo o inerente a quem convive partilhadamente... e ainda, aos poucos e poucos, o desgosto pelo "desertar" de alguns...

Olhava eu hoje a D. Preciosa e fazia a minha contabilidade : já vai para mais de dez, aqueles que natural ou de uma forma mais ou menos "contra-natura", sumiram da "folha de presenças"...
Acidentes, doenças inesperadas, traiçoeiras e prematuras...divórcios...mas também velhice...anos...a criarem "deserções" forçadas.
Hoje o prédio já é em parte ocupado por uma "fauna" que nada tem a ver com aqueles que dividiram bom e mau, alegrias e lágrimas...Gente meio "difusa" que não fala já muito bem a linguagem dos "resistentes"...
Os nossos filhos já foram..já não ocupam mais, o número dois daquela praceta...

Começou a chegar a revoada dos netos...
Dos primeiros carrinhos de bébé, chegou-se às batas de escola...e por cá vamos ficando, a assistir de camarote ao seu crescimento, primeiras gracinhas, as histórias sempre adocicadas na boca de avós, confidenciadas por norma, exactamente no hall de entrada.

Verifiquei que a D.Preciosa, senhora que sempre foi pequenina, deve estar talvez...nem com metro e meio. A D. Preciosa está a "encolher"...se calhar não só ela!!...
Está quase cega e por isso tacteava, há pouco, "afanosamente", a fechadura da caixa do correio. Já desce à rua pelo braço de uma empregada (o marido já "foi" há muito) e anda bem devagarzinho, à procura, pé ante pé, das pedras da calçada...
Continua a "tentar" maquilhar-se...Apenas, claro, triste e grotescamente, o risco que lhe desenha as sobrancelhas não acerta...o baton dos lábios, cresce dos contornos.
Conheço prédios sem carisma, prédios sem alma, prédios sem coração...
O meu, tem sido amputado de alguns membros, é verdade, mas eu creio que continuará a pé firme p'ro que der e vier, naquela praceta...a tal, onde a D.Madalena e o seu caniche, espreitam diariamente o sol....lembram??


Anamar

4 comentários:

Unknown disse...

Exactamente. E cada vez mais nos sentimos sozinhos p.ex numa população de 7 X 5 aptº = 35 habitações. Tudo se altera, a pressão e a difusão da cultura do individualismo é muito grande.
A concepção de vida das pessoas, é per si individualista, não havendo valores a partilhar.
A cultura dominante é o individual e não o colectivo; alguém teve a culpa...
Boa Noite

anamar disse...

Pois é Filipe, na grande generalidade destas "colmeias humanas" ninguém conhece ninguém, é cada um por si e salve-se quem puder...
Sinais destes tempos tristes, sem valores ou afectos a considerar!
Um abraço
Anamar

Anónimo disse...

Que sorte a tua Anamar em viveres nesse prédio, nessa praceta, onde ainda existem verdadeiramente laços de vizinhança com "Donas Preciosas",caniches a passearem as donas, etc...
Eu não tenho nada disso. Só reuniões fastidiosas de condóminos em que falta sempre algum Porque não paga as quotas, por ex)...
Na minha infância soube o que era viver em vizilhança e, hoje até tenho saudades dos tempos em que mostrava a língua à porteira, que sabia, espreitava afincadamente pelo ralo da porta...
Outros tempos, outras formas de estar.
JKS
Lenaspace

anamar disse...

Olá Lenaspace
Felizmente de quando em vez, "miraculosamente" ainda há "ilhas" destas...
Mas repara, eu já destrinço entre os vizinhos "dinossáricos" (34 anos) e os outros...
Nota-se bem a diferença, digo-te...
Sinais dos tempos como dizes!
Beijinhos
Anamar