segunda-feira, 28 de julho de 2008

"EL VINO PUEDE SACAR COSAS QUE EL HOMBRE SE CALLA"...






Isabella voava a muitos pés de altitude, algures sobre os Alpes...

A viagem já decorria há algum tempo, mas ela, totalmente desligada do relógio, do local, das pessoas, continuava absorta, meio adormecida, meio entorpecida nos seus pensamentos.
Revia a sua vida nos últimos anos, retroespectivava o que ela fora globalmente...

Rumava à Itália, à Toscânia da sua juventude, ao verde dos campos, aos prados, às vinhas, à grandiosidade de Florença ou Siena, ao intimismo de Livorno.

Precisava limpar o sangue e a alma, precisava limpar o coração, precisava renovar a mente, se fosse capaz.
Precisava rever amigos, dividir com eles serões sem tempo, jogar "conversa fora" sem pressas, com a inconsequência de quem saboreia uma vida em que quer voltar a acreditar (como um doente milagrosamente saído de um período comatoso de doença quase incurável).
Precisava voltar ao aconchego genuíno do "ninho"...
Desejava ansiosamente mergulhar no calor dos corações, frente a calores de fogueiras acesas, saboreando sem culpas um cálice de Chianti pelas madrugadas...



Saíra de Itália quatro anos antes, atrás de um grande amor. Um amor fulminante, que lhe merecera tudo, um amor com o romantismo de quem o vive adolescentemente pela primeira vez.

Certo que a correspondência não era igual, certo que a partilha e a entrega eram mais unilaterais, certo até que o afecto não era totalmente gratificante...
Mas ela amava por dois, dava por dois, via por dois pares de olhos, acreditava no que precisava, para viver.
Um amor no fio da navalha, uma relação ciclópica, fatal, louca, de abismo...

Mas para Isabella, mulher adulta em coração de criança, mulher de um tudo ou nada, não valia a pena questionar-se, não valia a pena confrontar-se, porque uma coisa afinal ela nunca perdera: a lucidez, a objectividade, a análise correcta de tudo...
Apenas negava esse "tudo".

Experienciava algo duma intensidade que a assustava mas necessitava para viver, sem muito sentido, quase doentio talvez...raiando o grotesco de uma anulação crescente.

E foi vivendo como pôde, num país estranho, uma relação que aos poucos e poucos se tornava ainda mais hermética, ilógica para a sua compreensão, uma relação de parâmetros duvidosos e injustos.
Calou dores, aquietou penas, sufocou dúvidas e desconfianças, esmagou sofreres, engoliu lágrimas e lágrimas...

Quando as forças lhe faltavam, não era Chianti da sua Itália que a mitigava, que a adormecia, que a anestesiava, que a "travestia" de outra pessoa, em que esquecendo toda a angústia, se transformava...





Não era Chianti, mas era qualquer outra doce "morfina", que de novo a tornava aparentemente alegre, exuberante, feliz, solta, louca (como quando se conheceram), capaz de tudo para não perder o tão pouco que possuía.

Quando os pés de novo assentavam na terra real, quando a cabeça saía do doce torpor da inconsciência do "milagre" operado, o mundo desabava-lhe então em cima...
Aí a dor era mais dor, o confronto com a pessoa em que se tornara e com a vida que detinha, era devastador; o julgamento sobre si própria, absolutamente
destruidor!

Mas ainda assim, "karmicamente", como num hipnotismo que lhe retirava as forças, a decisão e o querer (qual libélula rodopiante entontecida e cega em torno de uma luz na noite escura), procurava que as horas felizes apagassem as outras, deixando-se mergulhar até ao inaceitável, quase indiferente, incapaz, como quem não encara o sofrimento e masoquistamente se precipita para o abismo...
Aquela paixão arrebatadora e destrutiva ao mesmo tempo, era o que a fazia viver...

Até àquele dia...

Nesse dia fatídico (ou libertador?), à frente dos seus olhos tudo ficou final e inapelavelmente claro.
Isabella afinal só recebera pedaços de amor, dividido que sempre o havia sido por outros "alguéns", por outras vidas, por outras camas, por outros corpos...

Um "raio" atravessou-a, fulminou-a, toldou-lhe a vista...matou-a subitamente...
A paixão, o amor, toda a nobreza dos sentimentos acalentados ludibriadamente...lhe caíram aos pés...
O mundo rodopiou num vórtice, que lhe parou o cérebro e lhe trouxe vómitos de fel à garganta...

Naquele momento, aquela mulher sucumbiu para a vida.
O sentido de injustiça, ódio, manipulação... a dor do punhal de uma traição ignóbil (como o são todas as traições), o sentir-se cruel e ingenuamente usada, o buraco imenso que se lhe abriu aos pés e a fez vacilar...tomaram-na e aterrorizaram-na, face a um futuro que não acreditava mais poder já existir.

O seu Chianti, nesse dia teria de ser a misericórdia que a "salvasse"...

E o seu Chianti, não degustado, saboreado, usufruído...mas engolido de um trago, sorvido, despejado para dentro de si num desespero louco e incontrolável, num sofrimento sem medida, foi de facto a "tábua" a que deitou mão, na eminência do naufrágio que já sentia na pele...

A madrugada encontrou-a gelada, inerte no chão de mármore, donde já não conseguira erguer-se.
Junto de si, apenas estilhaços do último copo e a garrafa totalmente vazia...


Isabella voava a muitos pés de altitude algures sobre os Alpes...

Isabella era uma mulher destruída...





Anamar

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