segunda-feira, 10 de setembro de 2012

" SONHOS PROMETEDORES "


SONHOS  PROMETEDORES

" Tenho mais pena dos que sonham o provável, o legítimo e o próximo, do que dos que devaneiam sobre o longínquo e o estranho.

Os que sonham grandemente, ou são doidos e acreditam no que sonham e são felizes, ou são devaneadores simples, para quem o devaneio é uma música da alma, que os embala sem lhes dizer nada.

Mas o que sonha o possível tem a possibilidade real da verdadeira desilusão.

Não me pode pesar muito o ter deixado de ser imperador romano, mas pode doer-me o nunca ter sequer falado à costureira que, cerca das nove horas, volta sempre a esquina da direita.

O sonho que nos promete o impossível já nisso nos priva dele, mas o sonho que nos promete o possível intromete-se com a própria vida e delega nela a sua solução.
Um vive exclusivo e independente ;  o outro submisso das contingências do que acontece. "

                                                  Fernando Pessoa


O " Mestre " sempre soube das coisas todas ...  Não vi quem mais entendesse da alma humana !

Os sonhos ... Tanto  os abordei  já  por aqui !  Os sonhos que povoam os nossos dias e as nossas noites, que povoam as nossas vidas .

Sonhar "alto", sonhar razoável, sonhar lógico, dentro das lógicas das vidas de cada um ...
E quer uns quer outros a desfazerem-se, a desmancharem-se como as nuvens lá no alto se desmancham, por cada segundo que passa, como as construções na areia vão ruindo bem na nossa frente, impotentes, por cada subida da maré !
Até os castelos fortificados, aqueles que atravessaram a História, de grandes rochedos, no topo dos montes, vão deixando rolar encosta abaixo, uma e outra das suas pedras ancestrais ;   até as falésias que nasceram com a Terra, não vão morrer com ela, porque vão morrendo todos os dias um bocadinho ...

O sonho é inerente ao Homem ... o "sonho comanda a Vida " - diz Gedeão ...o sonho é o que nos faz levantar por cada manhã, "sonhando" que algo preenchedor nos vai dar sentido àquele dia ;  
é  mola impulsionadora nos momentos difíceis e desalentados.

Então, qualquer sonho serve ... os possíveis e os impossíveis, embora uns possam transformar-se nos outros e vice-versa, e muitas vezes somos simplesmente nós que o fazemos.
Na verdade, por vezes depende apenas de nós, tornar algo improvável em realização objectiva, mercê do acreditar muito, e do esforço que desenvolvamos para isso.
Outras vezes, ao contrário, algo que parecia tão possível nas nossas vidas, e alimentou o nosso ser longamente, vira uma impossibilidade absoluta ...

Esses são os sonhos, como diz Pessoa, que "cobram" à vida a sua concretização ou não, e esses são talvez os únicos que nos ferem verdadeiramente, e nos cortam por dentro.
Os outros, são baralhos de cartas que conseguimos pôr em pé, e que injustamente se desmoronaram,  ou são construções de puzzles que erguemos, e como crianças nos deliciaram, nos fizeram sorrir e nos deixaram brincar ...
E caem por terra ...  Como se isso não fosse lógico e previsível !!!...

Arregalamos os olhos, abanamos a cabeça, e como um menino p'ra quem acabou a brincadeira, encolhemos os ombros e ... continuamos a brincar ... simplesmente !...
Não doem muito esses sonhos !
Talvez apenas nos tenham mantido " crianças ", durante algum tempo ;  e as crianças são fadas para serem bruxas no instante seguinte, são elas próprias e os amigos "imaginários" no mesmo momento, e com a inerente ingenuidade que só se tem nessa fase da vida, acreditam mesmo que o são, e que podem ser tudo o que quiserem ser ...
Por isso também não se defraudam, são imunes à decepção ...

Mas as crianças tornam-se adultos, e os adultos, excepto os saudavelmente loucos, apostam pouco em sonhos de fadas e duendes, constroem ( por defesa ),  cada vez menos castelos de areia na beira-mar, menos torres com os "legos" da sua infância, menos paredes de cartas a segurarem edifícios irreais ...  porque a Vida os obrigou a poisar como garça cansada, a quem resta a babugem das ondas, para a busca de alimento ...

Deixaram de saber ver o Mundo de cima, desaprenderam de ser meninos, desinvestiram no crer e quase no desejar ;  ou então, como eu, passam-se definitivamente para o mundo dos loucos, mundo confortável, sem peias ou regras, mundo onde eu posso sempre ser e crer no que quiser, quando e onde quiser, porque tenho um estatuto que me deixa ser a águia dos penhascos, a cabra montanheira, a borboleta que voeja livre de flor em flor, sem saber quão são escassas as horas que a vida lhe concede para o fazer ...

Por isso, sou e quero continuar a ser uma irremediável devaneadora, com a certeza de que com os meus sonhos,  " músicas da alma e embalo do coração ",  serei certamente feliz, ainda que tudo não passe só de mais e mais SONHOS !!!...

Anamar

sábado, 8 de setembro de 2012

" NÃO ACREDITO !... "



" Não chores por ter acabado, dá graças por ter existido ... "

Frase dita, redita, repetida, demagógica, bonita de dizer, sonante ... frase feita, afinal !...
Como todas as frases feitas, encerra efectivamente um princípio válido, uma ideia defensável, por ser algo desejável, uma máxima de vida .
A maior parte das vezes, tão só !...

Tudo que existiu e deixou memórias, foi porque constituíu alguma coisa que nos valeu a pena, foi porque marcou a nossa vida, de uma forma positiva ou negativa.
Mas se choramos porque terminou ... certamente positiva, gratificante, marcante, porque nos aqueceu o coração, a ponto de não querermos nunca que tivesse terminado, e o seu fim nos penalizou profundamente.

A mágoa deixada sabe a um fim de festa, à última colher de um doce que adorámos, ao último acorde daquela sonata que nos toca o espírito, à última rosa daquela  roseira perfumada do caminho ... à última andorinha daquela Primavera que finalizou !
Não é fácil não chorar pelo que termina, se o que termina foi isto !!!

Agradecer que tenha existido ... ser grato a alguém ou a alguma coisa ( nem que seja apenas a designios do destino, ou circunstâncias da vida ), acredito que sempre o faremos, porque nos representou e representará uma fatia dessa vida, que é parte da  nossa história, e essa é feita desses episódios bons e  maus, enriquecedores ou destrutivos ... mas episódios !

Mas muitas vezes ao olharmos para trás, e se o fizermos demoradamente, como quem passa uma tarde a olhar para uma fotografia, a nostalgia dominará seguramente o nosso coração, porque dessa fotografia começa a saltar tudo o que escaparia a um simples olhar, e das nossas memórias no tempo, também ...

Essa fotografia marca uma época, e nessa época, um dia.
Marca um dia, e nesse dia, uma determinada hora, que passamos a lembrar cada vez com maior nitidez.

Essa fotografia vai marcar um local, um sítio que foi nosso, por horas, por minutos, por segundos que valeram vidas.
E nunca mais, olhando para ela, teremos dúvidas sobre esse lugar, e  o  que  esse  lugar  guardou  de  nós, e o  que  nós  guardámos  desse  lugar ...

A luz também emana  da imagem :  o sol, ou a ausência dele ;  as nuvens, feito farrapinhos de algodão presas nas carrasquinhas da mata, ou um céu imaculadamente azul, límpido, transparente ...

E o  cheiro ...  Garanto-vos que aquela foto tem cheiros.  Cheiros de flores ou cheiros de mata, cheiros de maresia ou cheiros de terra molhada ...

E tem cor, muita cor ;  o multicolorido do que está ( esteve ) connosco, quando a fotografia foi tirada, e testemunhou o rubor da nossa face feliz, ou a palidez do nosso rosto, se em sofrimento.
O horizonte, do laranja ao fogo, num pôr-de-sol esplendoroso.  Ou indefinido, se a cerração se abatia sobre tudo, nesse dia ... também não nos falhará na memória.
Sabemos seguramente como era o horizonte longínquo, que tínhamos a emoldurar aquilo que o nosso olhar alcançava ...

E tem som, essa fotografia tem arquivados em si, todos os sons do nosso universo de então.
Tem o canto dos pássaros, ou tem o gorgolejar da água mansa de um regato, tem a rebentação de ondas alterosas nos rochedos e tem o sussurrar do vento nas ramagens ...
E tem o som de todas as palavras que se disseram então, porque as vamos lembrar seguramente ... e tem o tic-tac das batidas dos corações de quem lá estava, também seguramente ...

Essa fotografia vai fazer-nos sentir o calor das mãos que se deram, dos braços que se entrelaçaram, dos beijos que se trocaram, até o calor da emoção que nos dominava.
Ou então vai fazer-nos sentir o gélido no coração, de uma palavra que feriu, de uma desilusão que perpassou, de uma mágoa que se abateu ...
Vai fazer-nos doer bem dentro do peito, pelo quebrar da ilusão de então, como claras em castelo que desmancharam, e se reduziram a líquido ...
Vai  fazer-nos  perguntar  a nós mesmos,  "Porquê ?  Porquê  ruíu o investimento  e ficaram só memórias doídas ??..."
Essa fotografia aquece-nos a alma, ou gela-nos o espírito !

Assim as nossas memórias, quando fazemos a "reprise" do que passou ...

Darmos graças por ter acontecido ... por certo !...
Não chorar por ter acabado ... não acredito !!!...

Anamar

quinta-feira, 6 de setembro de 2012

" QUE CANSAÇO !... "



Precisava escrever.
Aliás era urgente que escrevesse, porque está a faltar-me o ar.  O ar no coração.
Não sei explicar, mas sinto uma cobra constritora a envolver-me o coração e a tirar-me o ar ... devagar,  gradualmente, segundo a segundo, lentamente, como quem goza o que faz ...
Um nó, talvez um nó explique melhor.  Um nó  com laçada a apertar devagarzinho, sadicamente, doloroso, maquiavélico, que me está a tornar os olhos húmidos ...

À minha volta o café de sempre, provavelmente as pessoas de sempre, provavelmente as conversas de sempre, provavelmente a normalidade de sempre, excepto eu, cada vez mais anormal, mais inconsequente e ilógica no que sinto, na forma como me pauto, no arrastar dos meus dias.

Que cansaço ... bolas, que cansaço !

Por que há-de ser sempre assim comigo ?  Por que hei-de eu ser diferente das pessoas comuns ?  Por que hei-de eu sangrar, por que hei-de eu sofrer até me doer, mas doer de dor mesmo, na alma ??!!

A alma dói ?  Será que a alma dói ?  Mas ... onde está essa bendita alma alojada, se o peso que eu tenho é no peito, e o rio que ameaça correr, está nos olhos ??!!...

Em fundo, como uma espécie de "ponto" numa peça de teatro, oiço a voz da minha  filha, pragmática, objectiva, segura, realista, a questionar-me como sempre o faz, do porquê  de toda esta anormalidade de vida e personalística, se na verdade eu não tenho motivos reais ...
Se na verdade eu tenho saúde, eu subsisto e mais que subsisto, vivo razoavelmente, dentro de tudo o que nos rodeia, se eu sou simplesmente uma utópica, uma exigente sei lá do quê ... uma tonta, afinal ... se na verdade eu devia agradecer também sei lá a quem, tudo o que tenho demais ( e se calhar devia ... ) !!!

Mas ninguém está aqui "dentro", e portanto ninguém sente.
Os médicos iriam reduzir tudo aos chavões habituais, de ansiedade,  angústia, desvios de personalidade, desequilíbrios, tendências compulsivamente depressivas ... e patati e patata ...
Tudo espremido, as pessoas comuns simplificariam, e diriam . " Que ganda pancada ! " ... " Esta não é certa ... não tem os parafusos todos no sítio ..." e etc, etc.
Já p'ra não dizerem "doente" ... porque as pessoas reduzem tudo a doenças .  Doenças do corpo, doenças da alma, doenças ...
E os médicos curam tudo com químicos ... ou melhor, não curam, " mascaram " ...  Os médicos são mestres na grande arte de " mascarar " tudo.
As dores ( as outras ), mascaram-se com analgésicos, as alergias com anti-histamínicos,  a  falta de sono, com soníferos, as depressões com anti-depressivos e ansiolíticos ... em última análise, a loucura, com manicómios !!

Mas eu é que sei  ( não sabendo ), o que sinto !
Este estar sem estar em lado nenhum, esta tristeza e infelicidade de coisa incompleta, de árvore a que arrancaram uma pernada, de arco-íris a que roubaram uma das sete cores, de dia de Verão a que apagaram o sol, de pássaro amputado nas asas ... de coração todo partidinho em picadora de alta rotação !!!

Porra ... desculpem ... devia  pôr o "ozinho" no canto, mas não ponho ... sei lá ... quero lá saber ... Hoje estou assim !!!
As contenções dentro de mim acabaram ; o parecer bem ou mal, adequado ou não, não me molesta  ;  o parecer sem ser, não me faz sentido mais ;  o ter que "encarneirar" no rebanho, violenta-me.
Não  me  enquadro,  parece  que  cada  vez  me  enquadro  menos  nos contextos sociais, de costumes,  dos  "politicamente correcto ",  do " não tens idade para ... ",  " não se te apropria ... " !
Estou cansada !...

Fui espartilhada antes, durante e depois ??!!
Será que tive que atravessar gerações e épocas em que fui forjada para obedecer a padrões, figurinos e esquemas ?   Em que tinha que caber em " molduras " instituídas ??!!...
E tenho que continuar nos mesmos moldes e medidas ??
E sempre tenho " sombras " que me " medem ", me " emparedam ",  me " espartilham "??
Estou cansada !!...

Nada encaixa na minha vida !
Parece um tecido esfarrapado, sem conserto, parece uma renda esburacada, parece um puzzle vandalizado, parece um alfabeto em que anarquizaram a ordem das letras !!!
Logo eu, que sou aquele animal em que colocam a cabeçada e a sacode, o arnês e lhe foge, lhe dão o medicamento e o cospe !...
Logo eu, que vivo em permanente dialéctica com a vida, em permanente conflito e dúvida com as realidades, em permanente discussão comigo própria, em permanente desajuste com o espaço, o tempo e o Mundo !!...

Precisava escrever, precisava e preciso ...

Fui escrevendo sem escrever ...  Fui apenas largando pensamentos, frases, sentires a esmo,  ao correr desta cabeça que parou de pensar, e deixou apenas a mão e a caneta a caminharem ...

Precisava ter aberto, aliás, escancarado as comportas aqui de dentro, para ver se respirava melhor ;  precisava ser desconstruída e construída de novo ... mas isso já não vai acontecer nesta vida, seguramente ... talvez na próxima  reincarnação !!!...


Anamar

terça-feira, 4 de setembro de 2012

" FOI TEMPO ... "



Foi tempo ...
tempo das macieiras florirem,
foi tempo das tâmaras tombarem, amarelecidas nos cachos ...
e das margaridas silvestres  terem  pétalas  rosa,  brancas  e  amarelas ...
das violetas da Serra morrerem, porque foram arrancadas da Serra,
das mimosas perderem o ouro com que se vestiam, e as madressilvas, o cheiro com que se perfumavam ...

Simplesmente porque já foi tempo !...

Foi tempo em que eu sabia as tuas mãos,
cada centímetro do teu corpo e a tua gargalhada ...
Sabia o teu cheiro e o teu calor,
e o desenho que fazias na minha cama ...

E até sabia se rias ou se choravas por dentro,
só por ouvir a tua voz !

Foi tempo em que as rochas eram grutas,
e as árvores, nichos ...
Mas o alcantilado da arriba, onde o vento era livre, o sol perseguia a sombra das gaivotas ...sempre !
Nunca se escondia ...
Era Mundo aberto para outros Mundos ...

Foi tempo de relógio a correr rápido, depois mais devagar,
e mais devagar ainda ... até parar ...
E foi aí que deixou de ser tempo !...

Foi tempo de pôres-de-sol vermelhos, com braseiro aceso,
igual ao braseiro que ficou no buraco do coração ...

Foi tempo de rir, depois foi tempo de calar, e depois foi tempo de chorar,
porque foi tempo de acreditar, de esperar e de desesperar ...

E por que é que o tempo tem que ser sempre assim?!

Um  tempo  que  escurece  cedo,  com  a  mania  que  é  quase  Inverno ??!!...

E de repente o areal fica vazio ... e até as pedras tombam, para que não lembrem locais ...

Odeio o tempo das encruzilhadas,
o tempo dos caminhos tortuosos e confusos,
que sempre vão ter a caminhos que não são caminhos, porque não têm princípio nem fim !

Odeio o tempo dos cansaços e da desesperança,
porque são mortes anunciadas ...
E odeio os silêncios porque as palavras secaram ...
E eu preciso de palavras, para viver ...

Mas até para viver é preciso haver tempo ...
E eu acho que para mim,
simplesmaente ... JÁ  FOI  TEMPO !!!...



Anamar

segunda-feira, 3 de setembro de 2012

" SALVOU-SE A LUA CHEIA "



Já aqui falei, não há muito tempo, do mecanismo enigmático e inexplicável dos sonhos.

Alguns parecem divertir-se a surpreenderem-nos com o ilógico do seu conteúdo ( isto se eles devessem ter alguma lógica ), outros, vão definitivamente buscar inquietações, estados de alma, angústias que nos assaltam, mas na maioria das vezes o contexto em que essa perturbação se apresenta, é dum confusionismo total, com assomos de "non senses" absolutos ...
Outros ainda, são a resposta nítida e sem dúvidas, de uma forma explícita mesmo, a qualquer coisa que vimos, que lemos, que pensámos, muitas vezes ao adormecer.
Foi exactamente este, e lembro bem, o tipo de sonho com que labutei esta noite.

Já ontem durante o dia havia pensado que hoje, dia 3 de Setembro, o primeiro dia útil do mês, é também o limite do período de férias da generalidade dos docentes, o que significa que o dia de hoje é o dia de apresentações nas escolas, para início de mais um ano escolar, pelo menos o início das actividades preparatórias do mesmo.

É um dia de fim de férias, que sempre traz a nostalgia do términus de um período que deverá ter sido de repouso devido, de lazer, de ausência de horários e preocupações laborais, ou seja, um período do desligar das realidades, normalmente pesadas, que vivenciamos todo o ano.
Por essa razão, ao longo da vida, mesmo ainda quando era estudante, os anos "mediam-se" com princípio e fim, coincidentes com o início e o fim do ano escolar, e não com os início e fim do normal ano civil.
Penso que se calhar acaba por ser um pouco assim, em todas as famílias com elementos ligados ao ensino, sejam estudantes ou professores.
Isso acaba por se "infiltrar" e colar às realidades familiares, efectivamente.

Por isso, este dia sempre foi marcante, com um misto de sentimentos e emoções, até contraditórios, na minha vida.
Por um lado, uma sensação desagradável pelo fim compulsivo de uma época descontraída e com menos responsabilidades, que foram as férias, depois alguma ansiedade do desconhecido que me esperava por cada ano iniciante ... que turmas, que alunos, que novidades o ano me destinaria ?!...
Depois, havia o sentimento sempre gratificante do reencontro com os colegas mais queridos ( aqueles que o coração sorria só por revê-los ), o contar das férias, o partilhar de informações sobre "novidades" que normalmente o Ministério da Educação sempre primou por pôr cá fora estrategicamente durante o mês de Agosto, em que as pessoas estão desmobilizadas, e a troca de opiniões sobre as mesmas ... e enfim, "novidades"também pessoais, se as houvesse.

E é  espantoso que dois anos depois, e em que já me sinto a anos-luz de tudo isto, ainda assim, involuntariamente, experiencio de alguma forma, toda esta mescla de sentimentos, e por que não dizê-lo ... sobretudo de algum saudosismo deste reencontro afectivo e sempre carinhoso, com caras e corações que me eram queridos.

Ontem à noite, no Facebook, li também depoimentos de algumas colegas que referiam exactamente o dia de hoje que as esperava, e a apreensão adivinhada mas já sentida, do futuro próximo, nas escolas.

No átrio do meu prédio, cruzei-me também com uma miúda, igualmente docente já há vários anos ( e digo "miúda", porque beira a idade da minha filha mais velha ), que "derrubada" ( é o termo ), desalentada, quase desesperada, por se sentir injustiçada e encurralada sem grandes perspectivas à frente,  me disse que pura e simplesmente não havia ficado colocada.  ( As colocações saíram nesta sexta-feira passada ).
Divorciada, com dois filhos a cargo, em idade escolar, "senti" em mim mesma, a situação e ... bem ... e fiquei sem "nada" para lhe dizer, porque de facto não há nada que se consiga dizer, sobre a insegurança, o desgaste, a angústia da incerteza, na verdade o desespero  que será por certo, ter que viver do Fundo de Desemprego, e manter-se em permanência ( quase ao dia ), atenta a novos concursos que vão saindo, para que  os não falhe, e possa concorrer a tempo de novas tentativas, nunca sabendo se continuarão a ser infrutíferas, ou não ;
ainda que venha a ter a sorte de conseguir, entre os milhares de pessoas em idêntica situação, uma colocação, onde será ( perto, longe de casa ? ), com toda a logística a gerir, de crianças a estudar, e a viverem em tempo integral com a mãe !...

As pessoas informadas, e nem sequer necessitam ser muito atentas, conhecem, pela comunicação social, como se apresenta a situação de milhares de docentes neste país, até mesmo a existência de imensos professores com vínculo ao quadro, com "horário zero", ou seja, sem horas que lhes sejam distribuídas.
O número de turmas reduziu, porque demograficamente a população em idade escolar diminuíu abissalmente, o número mínimo e máximo de alunos por turma foi alargado, o que prevê redução dessas mesmas turmas, e porque a legislação sucessivamente implementada pelo Ministério, a nível do ensino, é anedótica, para não dizer profundamente dramática ...

Para além do êxodo de todos os docentes, que com mais ou menos penalização, preferiram partir ( que foi o meu caso ), provocando mais uma verdadeira sangria de competências neste país, há a situação dos que "entalados" em meio de carreira, nada mais puderam fazer que ficar.
Permaneceram, a exaurir-se, num remar contra marés e ventos adversos, com consequentes situações de desgaste físico e mental, num "esticar" de resistência quase para lá do humano, numa luta de, no meio do turbilhão, conseguirem ainda assim, manterem-se "à tona" ... dando o seu melhor, em prol das reais e mais importantes  vítimas  de tudo isto, os jovens deste país, a prepararem também eles, sem grandes horizontes e certezas, os seus futuros !!!...

Ontem, pela internet, e retirado, creio, de um espaço que se diz "de liberdade de expressão" - " O Cão Danado ", chegou-me também ao conhecimento este texto, que aqui deixo  ( como homenagem de solidariedade a estas estóicas e abnegadas personagens, verdadeiros "bombeiros" na área da educação ), e que não é mais que um relato real e fiel, do "filme de terror" que muitas pessoas estão a viver neste momento em Portugal ... e que hoje, encetam mais um episódio das suas vidas ...

Escusado será dizer-vos, qual foi o tema do sonho que me massacrou por esta madrugada adiante ... em que uma lua cheia linda, clara, espectacularmente brilhante, foi a única nota dissonante, positiva e animadora, que me iluminou a alma  !!!...



 "Amanhã os professores com colocação apresentam-se nas escolas por este país fora para um novo ano letivo.

Cada professor (colocado ou não) enfrentará o dia de amanhã com um estado de espírito diferente:

- uns apresentam-se nas escolas como sempre o fizeram, ainda sem consciência da “nova” escola que os espera;

- outros apresentam-se após terem passado pelo “limbo” durante o verão sem saber se iam ser “repescados” ou não;

- alguns apresentam-se à espera da desejada aposentação após o dever cumprido durante toda uma carreira;

- enquanto uns se apresentam para saber que tipo de trabalho vão desenvolver (num ano em que o “mais com menos” imperará), outros apresentam-se sem serviço letivo atribuído e sem conhecer que tipo de funções irão realizar no agrupamento, ao lado de colegas com 24 horas letivas;

- muitos apresentam-se amanhã no Centro de Emprego sem certezas quanto ao seu futuro profissional;

- uns continuarão em casa a candidatar-se a ofertas de escola, esperando uma colocação por essa via ou pela Bolsa de Recrutamento;

- e outros tentarão conseguir emprego noutra área, talvez até fora do país.

A todos, independentemente da situação de cada um, este novo ano letivo trará com certeza um novo paradigma, uma escola diferente daquela que conhecíamos.

E perante isto o que fará cada um de nós? "



Anamar

domingo, 2 de setembro de 2012

" ADEUS " ...


Este post pode dividir-se em três partes :  um preâmbulo, da pessoa amiga que  me enviou a poesia,  mais uma  obra prima que é a poesia de Eugénio de Andrade ... ( linda, sensível, triste ... talvez realista, como são quase todas as por ele escritas ), e um epílogo, que esse sim, é meu !...

Já disse um adeus assim sentido a alguém?
Já alguém lhe disse um adeus assim sentido?
Já disse, sem dizer, um adeus assim sentido a alguém?
Já deixou alguém na dúvida de lhe ter dito, sem dizer, um adeus assim sentido?
Já ficou na dúvida se alguém lhe disse, sem dizer, um adeus assim sentido?



"Adeus"


Já gastámos as palavras pela rua, meu amor

e o que nos ficou não chega

para afastar o frio de quatro paredes.

Gastámos tudo menos o silêncio.

Gastámos os olhos com o sal das lágrimas,

gastámos as mãos à força de as apertarmos,

gastámos o relógio e as pedras das esquinas

em esperas inúteis.


Meto as mãos nas algibeiras

e não encontro nada.


Antigamente tínhamos tanto para dar um ao outro!

Era como se todas as coisas fossem minhas:

quanto mais te dava mais tinha para te dar.

Às vezes tu dizias: os teus olhos são peixes verdes!

E eu acreditava.

Acreditava,

porque ao teu lado

todas as coisas eram possíveis.

Mas isso era no tempo dos segredos.

Era no tempo em que o teu corpo era um aquário.

Era no tempo em que os meus olhos

eram peixes verdes.

Hoje são apenas os meus olhos.

É pouco, mas é verdade,

uns olhos como todos os outros.

Já gastámos as palavras.

Quando agora digo: meu amor...,

já se não passa absolutamente nada.

E no entanto, antes das palavras gastas,

tenho a certeza

de que todas as coisas estremeciam

só de murmurar o teu nome

no silêncio do meu coração.


Não temos já nada para dar.

Dentro de ti

Não há nada que me peça água.

O passado é inútil como um trapo.

E já te disse: as palavras estão gastas.


Adeus.      

                  Eugénio de Andrade


O único epílogo que posso postar neste poema, com o qual me identifico, me mexeu, me emocionou .... resume-se a uma só palavra :  "JÁ"...

Poderia talvez acrescentar : "infelizmente" .... porque um adeus, só por si, seja em que circunstâncias, momento, ou causa que  o determine, for,  é seguramente um momento extremamente triste, de sofrimento e solidão, na vida do Homem !...


  Anamar

sexta-feira, 31 de agosto de 2012

" POEMA DE AMOR "



Ama quem te saiba ouvir e entender a tua linguagem ...

Ama quem saiba rir contigo, e quem saiba também secar-te as lágrimas quando caírem.

Ama quem saiba passar contigo tardes infindáveis, serões sem horas, a conversar de tudo, por tudo e por nada, e o nada é importante, e é tudo ... porque o conversaste ...

Ama quem se deixa embalar na mesma música que tu ...

Quem se emociona e saiba extasiar-se, só porque o sol vai adormecer no horizonte laranja, lá longe ...

Ama quem adore a beleza de todas as flores, mas aprecie a singeleza das silvestres, daquelas que nascem nas pedras, nos muros, nos troncos, e não foram semeadas por ninguém, e não são regadas  por ninguém, que não a Natureza, mãe de todas elas ...

Escolhe quem goste de dançar contigo na chuva , saiba perder-se na sua melopeia embaladora, e saiba escutar o mar pelas madrugadas, em todas as marés ...

Ama quem, como tu, ame todos os animais, tenha compaixão por todos eles, e lhes conheça o verdadeiro valor, dedicação e afecto ...

Ama quem deixe o sonho voar livre, junto com aquela gaivota que voa de asas esticadas, na brisa da tarde, até lá onde a vista não divisa mais ...

Ama quem gosta dos espaços sem horizontes que os limitem ;   mas também do alcantilado das serras, das falésias, das escarpas ... das pedras sem história, por terem uma história que não finda nunca ...

Ama quem saiba dar-te as mãos, entrelaçando forte os dedos, como se com isso quisesse mostrar-te que segura o Mundo para ti ...

E também quem saiba simplesmente silenciar contigo, perscrutando apenas as batidas de corações,  em  simultâneo ...

Fica com quem saiba sempre olhar a lua cheia, da tua varanda, e acredite que nela há olhos que se encontram, e corações que se juntam ...

Prende  só  quem  souber  que  estás  a  prendê-lo  com  o  teu  olhar  ( porque  o  lê  e  o  conhece ) ...
... e não  com  amarras  ou  algemas !...

E guarda dentro de ti, quem souber os mistérios e os segredos do teu corpo, porque os tem guardados dentro do seu ... Mais ninguém !!!

Ama quem gosta de brincar na areia, como criança outra vez, e quem fica feliz e te ache linda, só porque o vento ousa despentear o teu cabelo, e isso te faz lembrar as mãos sábias que muitas vezes já o despentearam ...

Ama quem saiba estreitar-te ao peito, e o peito seja quente, da fogueira que o incendeia, só porque tu estás perto !   E quem deixe repousar a tua cabeça cansada, no seu regaço doce, como barco em porto de abrigo ...

Ama  quem  saiba sonhar  longe, ainda  que sejam sonhos infantis e pouco prováveis ... mas sonha !...
Ama quem acredita que esses sonhos deixarão de ser sonhos, e um dia, já velhinhos, vão transformar-se em realidades à luz da lareira acesa ...

Não precisas sonhar o belo, o sublime, o irreal, o utópico, o que é mentira ... porque isso passa, e as perfeições  e  as obras de arte, só existem, mortas, nos museus, em telas pintadas ou estátuas esculpidas ...

Mas não esqueças ... ama ... sobretudo ama, quem tenha força, coragem, determinação, para sempre, em qualquer momento, lutar por ti, sofrer por ti, querer o teu ser junto de si, e que jamais seja capaz de esquecer ou abandonar os sonhos sonhados e partilhados um dia, lá atrás, pelos dois !!!...



Anamar

quinta-feira, 30 de agosto de 2012

" A ESTRELA CADENTE "



A noite estava completamente escura.
No pico da encosta, lá, donde se divisa o Mundo, viam-se longe alguma luzes das últimas casas da aldeia, via-se a luz do farol, que varria sincopadamente e em ritmo certo, 360º de espaço à sua volta ( por certo era uma luz aconchegante e tranquilizadora, para quem vinha dos lados do mar ), e viam-se as constelações no céu de breu.
Era o privilégio e a maravilha que sempre a extasiavam, quando subia ao cimo daquele cume, onde só ali havia escuridão suficiente para ver, admirar e "contar" as estrelas.

Quando era miúda, nas férias passadas na aldeia, era vulgar o avô levá-la a passear após o jantar, quando já corria aquela fresca abençoada, na canícula do Alentejo.
Sempre iam até ao campo, e subiam àquele pico, que afinal era logo ali.
A iluminação precária e pobre da povoação, desaparecia totalmente logo no virar da primeira esquina, e a escuridão espalhava-se e envolvia tudo em seu redor.

Os grilos e as cigarras "desgarravam" sem se cansar ; os chocalhos dos rebanhos, que no Verão não recolhem aos estábulos, soavam de quando em quando nos pastos, e a voz sincopada do avô, uma voz calma, doce e sapiente, sem pressas, contava-lhe histórias ...
Histórias não daquelas que se lêem nos livros, de fadas, coelhinhos e lobos ferozes ... mas histórias de vidas, histórias de gente, histórias reais, em linguagem infantil, que não esquecera até hoje.

Havia uma cumplicidade imensa entre os dois, uma partilha de saberes e de emoções.
Ambos ensinavam, e ambos aprendiam um do outro, porque os adultos ensinam, mas aprendem sempre muito com as crianças.

Se mais não tivesse sido ( e foi muito mais ), o repositório destas memórias e deste afecto que se partilharam, perdurava quase cinquenta anos depois ( e por certo, por toda a vida que ela ainda vivesse ) ;
ficara indelével, gravado, ajudara à sua formação como pessoa, como um adulto íntegro.
A transmissão dessa sabedoria, que nenhum livro, nenhum filme, jamais conseguem fazer, é afinal a memória dum povo, é a sabedoria das gerações, é a experiência de vidas, é  o  legado  das  tradições,  é  a  história da  Humanidade que  passa  através dos séculos ...

A primeira "estrela" que descobriam no céu, era Vénus, que o avô lhe dissera chamar-se a "estrela do boeiro".
Vénus era um planeta "mascarado" de estrela, e por isso não "piscava", como pisca a luz das estrelas "à séria".
Era do "boieiro", porque subia no céu ao cair do dia, exactamente quando o gado recolhia aos estábulos.
"O sol vai dormir, quando Vénus se levanta" - dizia-lhe o avô.

Depois era a brincadeira de qual dos dois descobria primeiro, no céu escuro, a Estrela Polar, a última estrela da cauda da  Ursa Menor ; e a Ursa Menor  era encontrada a partir da Ursa Maior, um "quadrado" desenhado por quatro estrelas, e bem mais fácil de encontrar.
Multiplicando por cinco a distância entre as "guardas" ( duas das estrelas dos vértices desse quadrado ), íamos então encontrar a Ursa Menor, e daí à Estrela Polar, era um pulinho ...
Lá estava ela, bem mais brilhante que as outras, mais visível ... parecia maior !
O avô explicara-lhe que o tamanho com que as viam, tinha a ver com a distância a que elas se encontravam de nós, e contava-lhe que naquele preciso momento, poderiam estar a ver a luz de estrelas que já haviam morrido há muito, luz que levara muito, muito tempo a chegar à Terra ...

Isso era um mistério insondável e mágico para a menina ...
Como era possível ver-se uma luz que brilhara numa estrela que já não existia, se ela só veria a luz do farol, se o faroleiro não se esquecesse de o ligar ??!!...

O avô contara-lhe também, como muitas e muitas gerações se haviam orientado pela Estrela Polar, que sempre indicava a direcção do norte.
Daí, à bússola e aos pontos cardeais, era outro pulinho de pardal ...
E as histórias continuavam ...

-"Avô, e só existem estas constelações?  Porque eu não vejo mais "desenhos" feitos no céu !!! - inquiria Isabelinha.

E aí, vinha o hemisfério norte e o hemisfério sul ( as duas meias laranjas ), a cassiopeia, o orion, o cruzeiro do sul ... e daí vinham os pólos, e o equador, e a forma da Terra e de como ela se movia e rodava em torno do Sol, a estrela que todos os dias nos aquece, e que, quando ela também morresse, a Terra  morreria  junto !
Contou-lhe dos dias e das noites, e como a essa hora, em terras distantes, as pessoas estavam a começar o seu dia ...
E contou-lhe também, que há muitos anos atrás, um senhor chamado Galileu ( um cientista que estudava muitas coisas ), fora condenado e preso, por ter afirmado que a Terra girava em torno do sol, o que nessa época da História, foi considerado uma blasfémia e uma heresia, porque o que os Homens viam diariamente, era o Sol a levantar-se e a pôr-se ; portanto, quem "andava" era o Sol e não a Terra, e Galileu não passaria de um trapaceiro, e de um impostor aldrabão ...

- "Como os homens eram ignorantes, avô !! ....
E  a  forma  da Terra, como descobriram que era uma "bola" ??

Veio então a história do horizonte. O avô chamava a atenção de Isabel, de como, do alto daquele cume onde se sentavam, a menina podia ver uma linha curva e não recta, a limitar tudo o que os rodeava, tal qual como na praia, olhando o mar, lá ao fundo ...
Apanhava do chão uma pedrinha esférica, e mostrava-lhe como afinal era lógica a conclusão !...

Nas noites em que a lua cheia se pavoneava no firmamento, obviamente que as "fases" eram questionadas.
Até hoje se lembrava como o avô lhas ensinara tão intuitivamente, arranjando uma laranja, uma uva e a luz de uma vela ... que ele dizia fazer de conta serem a Terra, a Lua e o Sol, respectivamente.
E contara-lhe um segredo :  "Olha, Isabelinha, para saberes sempre em que quarto está a lua, lembra-te que ela é "mentirosa" !...   Quando desenha um "C" no céu, está em quarto decrescente, e quando forma um "D", está em quarto crescente ...   Assim, nunca te enganas !..."

- "Avô, e aquelas manchas que a gente consegue ver tão bem na Lua ... o que são ??"

E os temas nunca terminavam, e variavam de noite para noite.
Sempre a partir de palavras adequadas à sua idade, sempre de uma forma bem simples, aprendeu muito do que não esqueceu pela vida fora ...
Histórias da vida no campo, das sementeiras, das colheitas, das mondas, da ceifa ... das estações do ano ...
Histórias da gente pobre da sua terra, quando a pobreza era muita, e a açorda de pão "dormido", quase só o  que  havia  para  pôr  na  mesa !...
Histórias das chuvas, das geadas e das neves, que há muitos anos atrás, contava o avô, num Inverno muito rigoroso, pintaram de branco a sua aldeia !...
Histórias dos meninos que não podiam estudar, porque os pais não tinham dinheiro que o permitisse, e mal aprendiam a ler, a escrever e a contar, abandonavam a escola, porque havia que ajudar no sustento da casa, trabalhando muitas vezes acima do que uma criança poderia fazer ...
Contava-lhe que na escola escreviam numa ardósia, que era uma pedra de lousa, com um giz branco ...
Contava-lhe que a sacola da escola, era feita em casa, de burel, um tecido bem resistente, para que durasse para todas as crianças da família, sem se estragar ...
E que eram poucos os meninos que tinham calçado, e por isso, a maior parte andava descalça, até nos Invernos mais gelados !
E quando lhes era comprado um par de botas, na feira, estas eram cardadas, e levavam "protectores" nas biqueiras, para que não se estragassem facilmente ...
E depois havia também que explicar o que eram "cardas", e o que eram "protectores", porque felizmente Isabel nunca os vira !...

Passadas mais de cinco décadas, Isabel ficaria ali, uma outra vez, no cume da encosta, lá donde se divisa o Mundo ... certamente até de manhã ... e ainda assim não lembraria a globalidade de todo o tesouro inestimável, que por certo, sem se aperceber, na sua pouca / muita cultura, o avô lhe transmitiu em menina ...

Deu por si meio adormentada nessas memórias, deu por si a ver as luzes distantes e pobres do casario da aldeia ( não havia mudado grande coisa ), e deu por si a ver o varrimento da luz do farol, que não se havia cansado até então ...
Mas deu também por si, inconscientemente, ao olhar o céu e ao ver uma estrela cadente ( aquelas que o avô lhe  dissera que tinham  sempre  muita  pressa  de  caminhar ), a  pedir,  como  em  menina,  três desejos ...   " porque se os pedires, a estrelinha, na sua corrida pelo céu, vai depressa buscar-tos " - dizia-lhe ele ...

Que saudade desse tempo, que saudade da figura do ancião que tanto amou, sempre venerou, e nunca esqueceu ...  que saudade de si, em menina !...
Hoje, na sua vida, na sua realidade, na mulher que ela era, pensou que lhe bastaria pedir UM só desejo ... se a estrela cadente fosse capaz de lho trazer !!!...

Anamar

terça-feira, 28 de agosto de 2012

" QUANTO TEMPO ?... "




Estes inícios de dia são o meu "luxo" diário .
Este pedaço de tempo, em que no café habitual, na mesa do cantinho, onde normalmente tenho sossego, posso escrever, ler, utilizar o portátil, ouvir sempre a indispensável música ( para estrategicamente abafar o som ambiente ) ... é o meu "recreio" !

Em primeiro lugar, ainda é manhã, e "vejo" o dia com olhos auspiciosos, até com alguma euforia. Quase sempre nem percebo bem porquê.  É engraçado, mas parece que recebo sempre cada manhã, como se me esperasse algo bom, como se recebe um hóspede desejado.
Tenho algum entusiasmo dentro de mim, como se fosse viver ao longo desse dia, alguma coisa boa e feliz ... como se fosse iniciar algum capítulo de vida ... e os inícios do que quer que seja, são normalmente assim !...
Por isso, este é o meu melhor período das vinte e quatro horas disponíveis, nesta "tranche" !...

À medida que o dia avança, eu avanço com ele, e como ele vai caindo, eu também vou caindo com ele.
A minha "curva" de humor é consequentemente descendente, e por isso, quando ele atinge o ocaso, eu também me fecho por dentro.
Aliás, é um período que me apavora ...
O lusco-fusco, o pôr-do-sol, a despedida da luz, a transição entre o dia e a noite, representam-me uma espécie de período de passagem entre vida e morte, uma espécie de despedida de qualquer coisa, se calhar uma despedida das esperanças acalentadas, tão só !
Não consigo explicar melhor, mas esse é o espírito que me domina.  São momentos de desânimo, de um cansaço abismal, de uma sensação de solidão e abandono, atrozes.

É também uma hora em que me confino ao meu quarto, terminadas as tarefas do dia.
No meu quarto existe tudo o que me faz falta.  Podia mesmo "habitar" exclusivamente aqui.  Tenho uma cama onde muitas vezes me deito, não porque tenha sono, mas porque não sinto razão para estar em pé.  Tenho o computador, tenho a televisão, tenho música, tenho um sofá de leitura ... e tenho uma janela virada ao pôr-do-sol em Sintra, lá longe !...
Já contei que me "roubaram" o Palácio da Pena, que divisava claramente do alto do meu sétimo andar, ao construirem há uns anos, um edifício ( mais um ), perturbador da paisagem.

Caminhamos para uma época do ano que me "remexe" particularmente.
O Outono, com a diminuição do tempo de exposição solar, o despir da Natureza para o sono que se avizinha, as noites demasiado longas, dias demasiado curtos e normalmente cinzentos e escuros, e de acordo com a previsibilidade, a perspectiva de que por um destes dias a chuva comece a espreitar, deixa-me ainda mais angustiada, mais indiferente ao que me circunda, menos reactiva perante as realidades.
Como se sabe, esta época do "cair da folha", assim chamada, propicia a depressão, potencia o desânimo, estimula o isolamento entre as pessoas.
Na Natureza tudo se recolhe. "Varre-se a casa", renova-se o velho, para que na estação seguinte, comecem "em surdina", a gerar-se os borbotos que na Primavera dispararão em folhas e flores ; os troncos estão por isso despidos.
As folhas naturalmente amarelecem, como o cabelo embranquece, no nosso próprio Outono também ... e caem arrastadas pelo vento, que começará a soprar.
Muitos animais recolhem-se para o longo sono invernil, outros emigram, em busca do sol e de amenidades necessárias à vida.
Instala-se uma letargia natural, que parece "suspender" a vida por uns tempos ...

E eu também sinto a minha, não suspensa, mas inerte ... sem estímulo, sem objectivo, comatosa ...
Tudo o que me magoa se agiganta e desproporciona, em relação à ausência de força anímica, de esperança e coragem, que sinto dentro de mim.
São dias em que acordo já "anoitecida" ... são dias sem horizontes, são dias de túneis sem luz .  São dias de um vazio que dói fisicamente ...

Este tema não traz nada de novo que toda a gente não conheça já, de que eu própria não tenha já falado, provavelmente vezes sem conta, porque efectivamente é recorrente dentro de mim, povoa-me a mente, perturba-me o espírito.

Hoje fui indo, deixando-me levar nesta torrente de palavras, nesta enxurrada de emoções, e deixei-me escorrer, como uma levada incontida ... sei lá porquê ?!...
Porque é assim ... porque raramente programo ... porque escrevo em aleatoriedade total ... porque este é o avesso do "direito" que exibo para os outros, é a contra-capa de um livro, cuja capa raramente se vê, ou poucos conhecem, é a "coroa" de uma "cara" da moeda que escondo, porque ninguém a tem que conhecer, ou sequer suportar ...

As células sociais são cada vez mais estanques, mais insensíveis, mais imbiocadas em si mesmas ;  o indiferentismo, o anonimato, o desconhecimento, proliferam entre as pessoas, sobretudo nas grandes metrópoles.
A ausência de valores ancestrais, está posta em causa, mais que nunca ;  os próprios laços familiares e afectivos estão feridos, como sabemos, mercê de muitos e variados vectores ;  a disponibilidade dos corações e dos espíritos, é curta, porque como costumamos dizer, "cada um tem a sua vida", numa estrutura social autista e egocêntrica, do "salve-se quem puder" !!!...

E esta é a triste, mas real verdade, é o quadro despido de artificialismos, é a realidade nua, crua, mas objectiva.
Todos a conhecemos, mas felizmente, talvez por defesa, não pensamos muito nela, senão, pergunto-me, por quanto tempo, em juízo perfeito, mente sã e crítica, suportaríamos viver assim ???!!!...

Anamar

domingo, 26 de agosto de 2012

" AS CICATRIZES DA ALMA "



Hoje é um daqueles dias em que precisava escrever e não consigo ...

Acordei assim já, às nove da manhã.  Obriguei-me a ficar na cama, no dorme não dorme, e acabei por levantar-me às dez e muito.
Lembro que o estado de espírito que me acompanhou toda a noite, foi depressivo, magoado, cansado, desistente.
Senti isso ao levantar-me por uma ou duas vezes a meio da noite, inventando leite, inventando água, indo ver como estava o céu, pela janela da cozinha, tentando adivinhar se a metereologia acertara, prevendo para hoje um dia cheio de sol ...

Lembro que sonhei com o meu pai, e é incrível como nos sonhos conseguimos ver com clareza o rosto das pessoas que já nos deixaram há muito, e quando bem acordados, por esforço que façamos, há rostos, até de vivos, que não visualizamos, por mais que nos concentremos e esforcemos.

Estranho mecanismo este, dos níveis de consciência ou não, dos humanos.
Não sei !  Não sei sequer se a explicação dos sonhos é devidamente conhecida.
Normalmente dizemos que levamos para os sonhos as preocupações da vida real, que nos assaltam, como uma espécie de prolongamento onírico da realidade consciente.
O que é facto, é que por vezes, muitas, desencavamos situações, pessoas, seres que não obedecem a nenhuma lógica, naquele "timing" da vida ; 
outras ainda, passamos "filmes" desconexos e estapafúrdios, que umas vezes nos animam, outras nos "lixam" as noites.
Parece que há noites em que os "diabos" estão verdadeiramente endemoninhados lá onde quer que  estejam, outras em que parecem querer confortar-nos, permitindo-nos matar saudades, rever, reviver tantas coisas a que de facto já não temos acesso, porque o tempo passou, simplesmente ...

Hoje mais um domingo, na minha e em todas as vidas ...

Hoje estou cansada por tantos domingos que já vivi, por quantos terei ainda que viver ...
Hoje parece que arrasto grilhetas nos pés.   Tenho a sensação que se as lágrimas descessem de enxurrada, vencendo este dique de comportas fechadas cavado do coração à garganta, talvez aliviasse.
Mas não consigo ...  Não verto uma lágrima há que tempos.  Estou seca nos olhos, não no coração !
Esse, chora, chora, queixa-se, abana-me, como quem diz :  " estou aqui ... vê se me tratas melhor " !...

E é uma sensação de impotência, de não valer a pena, um desacreditar em tudo e todos, crescente ;  é uma mágoa, uma espécie de luto estranho, que parece sempre estar semeado dentro de mim, e germina em permanência.
Não tem sequer períodos de pousio.  E se os tem, os tais intervalos felizes em que cada vez acredito e aposto menos, são efémeros, curtos e inevitavelmente adivinham e abrem caminho ao que vem depois, que é a "factura" sempre incomensuravelmente pesada, que me derruba !

Falei em "luto" ...  de facto penso que na vida se fazem muitas formas de luto.
Lutos de pessoas, lutos de locais, lutos de memórias, lutos de afectos.
A supressão ou a privação de algo que nos foi significativo ou querido, de forma natural ou não, desencadeia forçosamente um luto na alma e no coração.

E as pessoas fazem tanto mais lutos, quanto mais sentem amarguras por isto e por aquilo, que é como quem diz, quanto mais sensíveis são, quanto menos resistências anímicas possuem, quanto menos traquejo de vida têm, quanto maior ingenuidade as caracteriza, e por isso menor capacidade de se defenderem perante as circunstâncias.

E cada luto nunca é inócuo.  Cada luto, por ser uma experiência traumatizante, sempre nos deixa "de menos", ou seja, nunca ficamos os mesmos depois dela nos atingir.
Por ser uma chaga aberta, implica a consequente cicatrização, e cicatriz após cicatriz, o nosso "eu" sofre mutações profundas, irreversíveis, muitas delas devastadoras, quase todas aliás, tanto maiores quanto mais envolvência tiverem implicado do melhor de nós, de muito de nós, de tudo o que pudemos e não pudemos investir ... e mais, do que investimos de coração, sem armas de defesa, porque as não tivemos !

É quase monstruoso, diria, o aproveitamento em benefício pessoal, da boa fé, da entrega, da confiança de alguém ...  É uma "traição" moral, uma "fraude" emocional, uma dor sem tamanho, porque a sentimos como um logro, uma injustiça, dos quais  não tivemos inteligência para nos subtrair ...

E não deixa de ser curioso que não tenhamos aprendido, ou tenhamos aprendido muito pouco, por cada "tornado" que nos deita por terra.  
É ilógico, não faz sentido, em tese não deveria / poderia ser assim.
Deveríamos crescer, maturar, ou pelo menos ganhar "armas", de experiência para experiência ...
Mas não, ou pelo menos, EU, não !...

Por isso costumo concluir que a minha inteligência emocional deixa muito a desejar, está infantilizada, ou a minha memória é curta demais ... porque até os alunos com menores capacidades, acabam por aprender, nem que seja simplesmente por repetência !...
"Casa roubada, trancas na porta" ... "gato escaldado, de água fria tem medo "... "à primeira todos caem, à segunda só os burros "... e tantos, tantos dizeres populares, que todos conhecemos, e por o serem, são imbuídos da sabedoria dos tempos, e todos apontam no mesmo sentido !...

Assim, acredito já não ter conserto possível ...
A racionalidade, na realidade parece não querer nada comigo !!!
Morrerei seguramente assim ...
Até lá, vou coleccionando as tais cicatrizes, que masoquistamente pareço gostar de ostentar, e que nenhuma "plástica" ( como já tenho dito ), conseguirá jamais apagar !!!...


Anamar

sexta-feira, 24 de agosto de 2012

" A CASA DE MADEIRA "


Aquela casa fora o sonho da vida de Marta.
Uma casa simples, quase uma cabana, em madeira por dentro e por fora, aproveitando a tanta que existia por ali.
Térrea, um quarto, e uma sala ampla, essa sim, que privilegiara em tamanho.
Era virada ao sol poente ; escassos metros apenas, a separavam do mar, aquele mar que era um mar de brincar, porque nunca batia, sempre só brincava no areal.
Aproveitava a frescura concedida pela sombra do coqueiral, uns palmos de relva à frente, onde cabiam duas espreguiçadeiras, uma rede para horas de sonhos e recordações, e nada mais, além do que a Natureza generosa oferecia ... e era muito ... era demais !...

Tinha como companheiros os cães vadios que viviam pela praia, e eram amigos fiéis nas caminhadas diárias ;  tinha a garça que aos primeiros alvores do dia, debicava na rebentação, e tinha a família de "carpinteiros" que fizeram ninho num tronco de coqueiro já moribundo.
Marta era muitas vezes despertada para o dia que começava, pelo seu ritmo cadenciado, a picarem a madeira envelhecida.
Muitas madrugadas eram eles que a situavam no tempo e no espaço, naquele meio tempo em que ainda não sabemos bem que estamos vivos.

Porque muitas noites sonhava que estava em Portugal, sonhava que vivia a vida que deixara, sonhava com os que haviam partido de muitas formas, e também com os que lá estavam, e nunca esquecia.
Era o recuo no tempo permitido pelo sono, pelo entorpecimento e pela magia que ele tem, de nos transportar onde quer ... "Pena que não seja onde nós queremos" - pensava Marta muitas vezes.
Se isso fosse possível, quantas viagens no tempo e na vida, ela faria, quantas histórias, quantas vidas, quantos amores, quantos locais ela revisitaria ??!!...

A casa em Portugal estava fechada ... ( Portugal já não tinha mais para lhe contar, já não havia mais sonhos cabíveis nessa realidade ;  esgotara-os todos, até à exaustão, vivera todos os possíveis ;  e quando as esperanças, os desejos e  as  paixões começaram  a  ceder, deixando  lugar  apenas  a  mágoa,  desilusão,  vazio e recordações  -  essas sim, quase todas doces ... mas recordações, apenas ), decidiu cerrar janelas e porta, e partir, acreditando ir encontrar pelo menos paz, numa vida que seria o avesso total da que vivera até então.

Sonhou ter uma vida despojada, no meio da Natureza, num lugar que tivesse o sol, o mar e o céu, que sempre adorou e havia procurado ao longo dos tempos, nas viagens que ia fazendo ;
um lugar que tivesse os cheiros, as flores e os frutos que rebentavam sem pedir licença, que tivesse todos os pássaros do Mundo, que tivesse os sons do silêncio, e a areia branca e doce para pisar, e se envolver, como em lençóis de cetim ...

Consigo transportou o que achou realmente importante : os livros mais determinantes na sua vida, a música, sem a qual não viveria, papel e caneta ( porque continuava fiel aos registos à antiga ), o computador, como porta aberta ao Mundo, como veículo de ligação aos seus, lá longe, como arquivo do que ia escrevendo, aleatoriamente, sempre aleatoriamente como o fizera toda a vida, o mínimo indispensável de roupa e objectos pessoais com valor afectivo ( calções, t-shirts, "pareos" e trajes de praia, chapéu e chinelos, era mais do que suficiente ), e depois, um monte imenso de fotografias particularmente significativas, com registos de momentos, de vivências, de acontecimentos relevantes na sua existência ... e uma arca pesadíssima ( porque pesava o Mundo ), de recordações, as mais insondáveis, das mais remotas às mais recentes, das que a faziam sorrir sozinha, e das que a faziam chorar também sozinha ...

E nada mais ...

Fizera questão que o recheio da casa fosse o mais simples possível também.
Um estrado em madeira, rés-vés ao chão, com um colchão e uma rede mosquiteira por cima, era a cama ; os móveis eram artesanalmente construídos em madeira, com troncos e alvenaria ; jarras com flores, que não eram mais que garrafas trazidas pelas marés, e catadas na praia ;  estantes de livros feitas com tijolos e prateleiras em madeiras velhas e pouco trabalhadas ( algumas, antigas viajantes dos mares ) ,  tecidos manufacturados na região, a alindar das janelas às cobertas, dos tapetes no chão às almofadas espalhadas em desalinho ...  conchas, búzios, pinturas dos artistas locais, aqui e ali ;  alguns esboços feitos por si, de rostos que pertenciam à sua história, e da paisagem que desfrutava da sua rede no coqueiral ...

Sentia-se  rica ...   Rica  e  abençoada,  sem  dúvida  muito  abençoada !...

Aquele dia, era um "daqueles" ...

Marta tinha alguns rituais que precisava cumprir, que lhe estavam sob a pele, dentro do coração e do espírito.  Rituais só seus, que só ela entendia os seus "como" e "porquês" ...

Nesses dias vestia-se como para uma festa ;  alindava o rosto, perfumava o corpo e a alma.
Espalhava velas pela sala, a esmo, tornando-a à sua luz mortiça, intimista e mágica ...
Punha a mesa com dois pratos frente a frente, dois copos, frente a frente, uma garrafa de bom vinho tinto  ( comprado expressamente para o momento, já que o do seu Alentejo estava lá tão longe ... ),  a taça das azeitonas ... metia no forno as tostinhas de fatias finas de pão, chouriço e queijo, a gratinar ... e colocava Énya na aparelhagem, baixo e docemente ...

Numa bandeja, dois cálices e uma garrafa de Amarula, bem fresca, abria a refeição.
No pequeno frigorífico, a mousse de maracujá que preparara na véspera, aguardava.
Duas ou três flores de hibisco ( as flores de um dia ), ladeavam os pratos.

Sentava-se então, como quem espera ...

De facto Marta esperava, esperava que as recordações descessem, a envolvessem, a aquecessem no coração gelado, apesar do calor que se sentia ...
Nessas noites recuava no tempo e na vida ... nessas noites voltava lá atrás, escancarava o baú das memórias, chamava à sala os mortos-vivos que nunca a tinham abandonado, e dançava livre e alucinadamente com eles, entre uma ópera de Mozart e os acordes de "Amarantine" ... entre Vangelis e Sting ...

Cá fora a noite descera, há muito.
O mar prateava à luz de uma imensa lua cheia, que atravessava a folhagem  despenteada dos coqueiros ;  os insectos e as aves que nunca se calam dia e noite, faziam coro com o beijar da maré rasa na areia ...

Se alguém passasse à beira-mar, veria o vulto de uma mulher vestida de branco, de cabelos soltos, descalça, a dançar, louca, aparentemente louca ...

Dizia-se que nessas noites, na casa de madeira do coqueiral, onde vivia aquela enigmática mulher portuguesa, desciam espíritos ausentes e distantes ...
E havia mesmo quem garantisse, que os vira a dançar com ela, à luz das velas, das estrelas e da lua !!!...



Anamar 

quinta-feira, 23 de agosto de 2012

" O PRIMEIRO PASSO "

 

Mónica estava sentada no banco improvisado, no alto da arriba, sobranceiro ao mar.
Dali via o céu, via o agitar constante das ondas, via o areal, algumas aves planando na brisa, contra um céu laranja-salmonado, divino ... e via o sol a descer, a descer devagarzinho, rumo ao ocaso.

Via, mas não via ...

Mónica sentia-se inerte, morta, anestesiada.  Os seus olhos olhavam apenas, não mais ;  perdiam-se longe, e com eles arrastavam o seu pensamento.
O olhar, por assim dizer, opacizara-se, e o sangue, poderia afiançar, interrompera o percurso.
A única sensação que tinha bem nítida, era um aperto de profundo mau estar no peito, lá no lugar onde garentem estar o coração, que se estendia à garganta e a fazia sentir com um nó, que lhe dificultava a respiração !
Aliás, a Mónica, naquele momento, faltava o ar e faltava o chão.
De repente, haviam-lho tirado, como a um tapete de debaixo dos pés.
As mãos também lhas haviam soltado, largando-a num equilíbrio instável de vida.
Parecia estar numa travessia sobre um abismo, procurando tão somente sobreviver ... alcançar a outra margem, atingir um qualquer lugar seguro !

De repente, as coisas à sua volta pareciam desenquadradas,  retiradas de contexto,  como fotografias a que tivessem tirado as molduras.
Pareciam sem sentido, sem lógica, sem razão ... pareciam desarticuladas, como que arrancadas dos lugares certos, e misturadas "contra-natura", como peças de um puzzle, que depois de armado, caíra ao chão ...
Dir-se-ia que alguém tinha andado a divertir-se, a baralhar todas as pedras de um dominó já jogado ...

Esta catalepsia que a parara no tempo e no espaçp, cheirava à solidão e ao abandono de uma antecâmara de morte, porque afinal há muitas formas de se matar e de se morrer ...
À sua frente tinha o tal caos, entre o que aconteceu e o que virá a acontecer, em que não se entendia, e onde não se sabia mexer.
À sua frente tinha o antes e o depois, tinha a bonança e a tempestade, tinha a luz e a escuridão, e pronto, estava tonta no rodopio alucinado da sua cabeça, como se tivesse sido jogada no rápido de um rio, ou derrubada pela rebentação sucessiva de mar forte ... como se os miolos se guerreassem e a fizessem sentir perdidamente ébria !...

Mónica estava numa estrada sem direcção, sem sinais, sem mapa ... sem GPS ... Tanto lhe fazia ir adiante ou recuar ; tanto lhe fazia procurar caminho, ou deixar-se petrificar ali  mesmo, para todo o sempre ;  a indiferença, uma indiferença total a tudo, mantinha-a ausente.

Havia feito um interregno de vida ... sentia ...
E o pior é que não encontrava forças, nem para se debater, nem para se rebelar, nem para se indignar, nem tão pouco para chorar ...  Estava seca por dentro !...

Cada caminhada começa com um passo, cada castelo começa com uma pedra ...
Mónica sabia-o.  E sabia também que hoje era o primeiro passo, de uma caminhada para a qual estava sem força  e  sem ânimo ...

Não entendia por que estava naquele trilho, não percebia por que chegara àquela encruzilhada, àquele caminho labiríntico e escuro, como as veredas nas matas, que deixamos de reconhecer depois de as percorrer, tão parecidas se tornam !...

Havia luz, muita luz no início da marcha, que ela lembrava-se bem !
Era uma estrada, estreita é verdade, de terra batida como são as estradas no meio do campo, tinha pedras como todas têm também, mas ficava no topo de uma ravina, com a vegetação rasteira bem florida a ladeá-la, com os pinhais de pinheiro manso marítimo, em fundo, algumas mimosas douradas de aroma inebriante, com muito sol, céu sempre azul, com brisa fresca no rosto, desalinhando-lhe os cabelos, como gostava.
E mar, muito mar cá em baixo, no seu vai-vém, no arrendado imaculado da espuma com que se desfazia nos rochedos, com as aves que sempre pertencem ao mar, ali por cima, em voos dormentes, sem pressas, como quem se extasia, tal como ela, com o mundo cá por baixo !...

Mónica  fora  forjada em  terras sem mar,  mas  também sem horizontes ;  terras de grandes planícies a perder de vista, terras de solidão, abandono e silêncios.
Ela própria tinha esse mesmo espírito de solidão, de isolamento e de silêncio !
Cultivava o ensimesmamento, a introversão, o intimismo.
Não falava muito de si.  Preferia sentir apenas, e "conversava" consigo mesma, todos os minutos dos dias e das noites também.

Contudo a sua alma e o seu coração eram rebeldes, soltos, saltavam as cercas, rompiam as correntes, e Mónica tornava-se mulher de grandes espaços, de espaços sem limites, sem horizontes, sem "sentidos proibidos", sem muros ...
Ela achava que era uma espécie de compensação que não se explica, a completar o seu "Eu", como pessoa.

E por tudo isso, Mónica morreria em encruzilhadas, em caminhos labirínticos e escuros, em percursos delimitados e sem saída ... em estradas sem direcção ...

E por tudo isso, buscava o mar por companhia, a amplidão dos espaços largos, o céu por aconchego, os campos para berço.
A liberdade sentida, aliás como tudo o que sempre sentia na vida, era por excesso, era por arrebatamento, era em "TODO" ... tinha que a embriagar, para valer ...
Era a resposta do seu ser ao confinamento, ao pequeno, ao curto ...   Nunca podia ser por metade !...

E por tudo isso se sentara  naquele banco  improvisado,  no alto daquela arriba, sobranceiro ao mar, naquele pôr-de-sol em céu laranja-salmonado ...

Percebia que naquele momento, tinha que dar outra vez na sua vida, um primeiro passo, antes que anoitecesse, o mar adormecesse, e as luas e as estrelas subissem no céu ...

... porque ela sabia bem que cada caminhada começa sempre com um primeiro passo ... cada castelo, com uma primeira pedra !!!...



Anamar

quarta-feira, 22 de agosto de 2012

" QUANDO A NOITE É COMPANHIA "


A minha noite terminou às quatro.
Às cinco ainda eu rebolava na cama, na remota esperança de conciliar o sono, que mostrava claramente ter-se ausentado em definitivo.

Na luz coada do meu quarto, aquela que passa pelas frinchas das persianas que há muito optei por sempre deixar abertas, mantive-me quieta, atenta, olhando e sentindo a noite que passava ...

Aprendi a amar a noite, a saber escutá-la, perscrutá-la, sentir o seu pulsar.
A noite tem os seus sons, tem a sua paz e o seu silêncio audível, que se vai desvanecendo à medida que a madrugada sobe e o dia se aproxima.
Não há dúvida que a noite tem uma magia, a magia do aparente "adormecimento de vida", que apura todas as sensações, todas as emoções, aclara o discernimento e o espírito.
Na madrugada potenciam-se todas as formas de sentir, de pensar, de reflectir.  Fica tudo mais claro, mais objectivo, mais real, mais verdadeiro.

E depois há a solidão da noite ... uma solidão compartilhada com muita outra gente, que não sabemos, mas sentimos.
Gente que perambula pela casa, gente que lê, gente que ouve música, gente que vê televisão, gente que chora ... gente que procura nas letras o encontro consigo mesmo !

 E paira uma quietude quase religiosa, que não queremos desrespeitar ... paira o silêncio recolhido dos claustros das catedrais, que é silêncio, mas é som, é cor, é luz, é vida própria, sacralizada, que sabemos que não podemos perturbar, sequer tocar, violar ... porque estragamos !
E por isso fica assim este mistério silencioso, gostoso, de interioridade, de intimismo, de encontro ...
Fica esta frescura de corpo e de alma, este desnudar do nosso "eu", como se a noite fosse um espelho límpido e claro, onde toda a genuinidade, toda a real dimensão do ser humano, se reflectisse com nitidez, sem mentira, e onde não cabe nenhum artificialismo, nenhum "faz de conta", nenhum "estar" e "ser" convencionado.
A noite é nudez total, é verdade absoluta ...  Somos nós, confrontados connosco mesmos.

A resistência do ser humano, embora limitada, tem uma dimensão surpreendente !
Sempre pensamos que não suportamos isto ou aquilo, que isto ou aquilo é que definitivamente não superaremos, e acabamos ultrapassando, mesmo o inultrapassável !
Acho que não é mais que um mecanismo inato de sobrevivência.
Acho que é uma defesa, desencadeada à revelia do nosso consciente.
Todos afinal estamos artilhados com "armas" desconhecidas, as quais, de uma forma natural ou forçada, somos obrigados a esgrimir.

Viver em cada dia, é um brutal desafio que apela à inteligência, à sagacidade, à determinação, à capacidade lutadora e ao esforço disciplinado, que formos capazes de imprimir às nossas vivências e desempenhos.
O desejo ou a necessidade de superação deve prevalecer, a esperança tem que ser "regada" para que floresça, o acreditar deve ser "trabalhado", para não sossobrarmos.
E depois, são as regras primárias de mera sobrevivência, automatizadas, instituídas, comuns ao reino animal, que afloram exactamente para isso, para que se ultrapassem as sucessivas metas, para que se pulem obstáculos, para que simplesmente se sobreviva na "selva" !!!

Este deverá ser o perfil do Homem, que dizem, ocupa o topo da pirâmide de todas as espécies ...

E com isto, são mais de seis da manhã.  Havia programado o despertador para as seis e meia, porque vou passar o meu dia na praia, para sair deste quarto, desta casa, desta terra, e carregar baterias junto ao mar !

Adoro chegar à praia quando está absolutamente vazia, porque aí, é a minha pequenez confrontada com a imensidão da Natureza ;  adoro sentir-me, como já aqui disse, "dona da praia", no sentido de me miscigenar, de me fundir, de mergulhar no mundo à minha volta !
Adoro respirar a brisa fresca que sempre corre a essa hora ;  adoro pisar rijo, na areia molhada da maré da noite ;  adoro ouvir o marulhar das ondas na rebentação, o grasnido estridente das gaivotas no areal, e o seu bater de asas, quando debandam e enchem o céu !

É quando sinto, que é uma benção, de facto, ter acordado mais um dia ( ainda que às quatro ), é quando me sinto criança outra vez, é quando me sinto uma resistente ou uma sobrevivente, apesar dos pesares ... é quando dou graças à VIDA, exactamente por isso ... por estar viva !!!...

Anamar