quarta-feira, 22 de agosto de 2012

" QUANDO A NOITE É COMPANHIA "


A minha noite terminou às quatro.
Às cinco ainda eu rebolava na cama, na remota esperança de conciliar o sono, que mostrava claramente ter-se ausentado em definitivo.

Na luz coada do meu quarto, aquela que passa pelas frinchas das persianas que há muito optei por sempre deixar abertas, mantive-me quieta, atenta, olhando e sentindo a noite que passava ...

Aprendi a amar a noite, a saber escutá-la, perscrutá-la, sentir o seu pulsar.
A noite tem os seus sons, tem a sua paz e o seu silêncio audível, que se vai desvanecendo à medida que a madrugada sobe e o dia se aproxima.
Não há dúvida que a noite tem uma magia, a magia do aparente "adormecimento de vida", que apura todas as sensações, todas as emoções, aclara o discernimento e o espírito.
Na madrugada potenciam-se todas as formas de sentir, de pensar, de reflectir.  Fica tudo mais claro, mais objectivo, mais real, mais verdadeiro.

E depois há a solidão da noite ... uma solidão compartilhada com muita outra gente, que não sabemos, mas sentimos.
Gente que perambula pela casa, gente que lê, gente que ouve música, gente que vê televisão, gente que chora ... gente que procura nas letras o encontro consigo mesmo !

 E paira uma quietude quase religiosa, que não queremos desrespeitar ... paira o silêncio recolhido dos claustros das catedrais, que é silêncio, mas é som, é cor, é luz, é vida própria, sacralizada, que sabemos que não podemos perturbar, sequer tocar, violar ... porque estragamos !
E por isso fica assim este mistério silencioso, gostoso, de interioridade, de intimismo, de encontro ...
Fica esta frescura de corpo e de alma, este desnudar do nosso "eu", como se a noite fosse um espelho límpido e claro, onde toda a genuinidade, toda a real dimensão do ser humano, se reflectisse com nitidez, sem mentira, e onde não cabe nenhum artificialismo, nenhum "faz de conta", nenhum "estar" e "ser" convencionado.
A noite é nudez total, é verdade absoluta ...  Somos nós, confrontados connosco mesmos.

A resistência do ser humano, embora limitada, tem uma dimensão surpreendente !
Sempre pensamos que não suportamos isto ou aquilo, que isto ou aquilo é que definitivamente não superaremos, e acabamos ultrapassando, mesmo o inultrapassável !
Acho que não é mais que um mecanismo inato de sobrevivência.
Acho que é uma defesa, desencadeada à revelia do nosso consciente.
Todos afinal estamos artilhados com "armas" desconhecidas, as quais, de uma forma natural ou forçada, somos obrigados a esgrimir.

Viver em cada dia, é um brutal desafio que apela à inteligência, à sagacidade, à determinação, à capacidade lutadora e ao esforço disciplinado, que formos capazes de imprimir às nossas vivências e desempenhos.
O desejo ou a necessidade de superação deve prevalecer, a esperança tem que ser "regada" para que floresça, o acreditar deve ser "trabalhado", para não sossobrarmos.
E depois, são as regras primárias de mera sobrevivência, automatizadas, instituídas, comuns ao reino animal, que afloram exactamente para isso, para que se ultrapassem as sucessivas metas, para que se pulem obstáculos, para que simplesmente se sobreviva na "selva" !!!

Este deverá ser o perfil do Homem, que dizem, ocupa o topo da pirâmide de todas as espécies ...

E com isto, são mais de seis da manhã.  Havia programado o despertador para as seis e meia, porque vou passar o meu dia na praia, para sair deste quarto, desta casa, desta terra, e carregar baterias junto ao mar !

Adoro chegar à praia quando está absolutamente vazia, porque aí, é a minha pequenez confrontada com a imensidão da Natureza ;  adoro sentir-me, como já aqui disse, "dona da praia", no sentido de me miscigenar, de me fundir, de mergulhar no mundo à minha volta !
Adoro respirar a brisa fresca que sempre corre a essa hora ;  adoro pisar rijo, na areia molhada da maré da noite ;  adoro ouvir o marulhar das ondas na rebentação, o grasnido estridente das gaivotas no areal, e o seu bater de asas, quando debandam e enchem o céu !

É quando sinto, que é uma benção, de facto, ter acordado mais um dia ( ainda que às quatro ), é quando me sinto criança outra vez, é quando me sinto uma resistente ou uma sobrevivente, apesar dos pesares ... é quando dou graças à VIDA, exactamente por isso ... por estar viva !!!...

Anamar 

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