quinta-feira, 30 de agosto de 2012

" A ESTRELA CADENTE "



A noite estava completamente escura.
No pico da encosta, lá, donde se divisa o Mundo, viam-se longe alguma luzes das últimas casas da aldeia, via-se a luz do farol, que varria sincopadamente e em ritmo certo, 360º de espaço à sua volta ( por certo era uma luz aconchegante e tranquilizadora, para quem vinha dos lados do mar ), e viam-se as constelações no céu de breu.
Era o privilégio e a maravilha que sempre a extasiavam, quando subia ao cimo daquele cume, onde só ali havia escuridão suficiente para ver, admirar e "contar" as estrelas.

Quando era miúda, nas férias passadas na aldeia, era vulgar o avô levá-la a passear após o jantar, quando já corria aquela fresca abençoada, na canícula do Alentejo.
Sempre iam até ao campo, e subiam àquele pico, que afinal era logo ali.
A iluminação precária e pobre da povoação, desaparecia totalmente logo no virar da primeira esquina, e a escuridão espalhava-se e envolvia tudo em seu redor.

Os grilos e as cigarras "desgarravam" sem se cansar ; os chocalhos dos rebanhos, que no Verão não recolhem aos estábulos, soavam de quando em quando nos pastos, e a voz sincopada do avô, uma voz calma, doce e sapiente, sem pressas, contava-lhe histórias ...
Histórias não daquelas que se lêem nos livros, de fadas, coelhinhos e lobos ferozes ... mas histórias de vidas, histórias de gente, histórias reais, em linguagem infantil, que não esquecera até hoje.

Havia uma cumplicidade imensa entre os dois, uma partilha de saberes e de emoções.
Ambos ensinavam, e ambos aprendiam um do outro, porque os adultos ensinam, mas aprendem sempre muito com as crianças.

Se mais não tivesse sido ( e foi muito mais ), o repositório destas memórias e deste afecto que se partilharam, perdurava quase cinquenta anos depois ( e por certo, por toda a vida que ela ainda vivesse ) ;
ficara indelével, gravado, ajudara à sua formação como pessoa, como um adulto íntegro.
A transmissão dessa sabedoria, que nenhum livro, nenhum filme, jamais conseguem fazer, é afinal a memória dum povo, é a sabedoria das gerações, é a experiência de vidas, é  o  legado  das  tradições,  é  a  história da  Humanidade que  passa  através dos séculos ...

A primeira "estrela" que descobriam no céu, era Vénus, que o avô lhe dissera chamar-se a "estrela do boeiro".
Vénus era um planeta "mascarado" de estrela, e por isso não "piscava", como pisca a luz das estrelas "à séria".
Era do "boieiro", porque subia no céu ao cair do dia, exactamente quando o gado recolhia aos estábulos.
"O sol vai dormir, quando Vénus se levanta" - dizia-lhe o avô.

Depois era a brincadeira de qual dos dois descobria primeiro, no céu escuro, a Estrela Polar, a última estrela da cauda da  Ursa Menor ; e a Ursa Menor  era encontrada a partir da Ursa Maior, um "quadrado" desenhado por quatro estrelas, e bem mais fácil de encontrar.
Multiplicando por cinco a distância entre as "guardas" ( duas das estrelas dos vértices desse quadrado ), íamos então encontrar a Ursa Menor, e daí à Estrela Polar, era um pulinho ...
Lá estava ela, bem mais brilhante que as outras, mais visível ... parecia maior !
O avô explicara-lhe que o tamanho com que as viam, tinha a ver com a distância a que elas se encontravam de nós, e contava-lhe que naquele preciso momento, poderiam estar a ver a luz de estrelas que já haviam morrido há muito, luz que levara muito, muito tempo a chegar à Terra ...

Isso era um mistério insondável e mágico para a menina ...
Como era possível ver-se uma luz que brilhara numa estrela que já não existia, se ela só veria a luz do farol, se o faroleiro não se esquecesse de o ligar ??!!...

O avô contara-lhe também, como muitas e muitas gerações se haviam orientado pela Estrela Polar, que sempre indicava a direcção do norte.
Daí, à bússola e aos pontos cardeais, era outro pulinho de pardal ...
E as histórias continuavam ...

-"Avô, e só existem estas constelações?  Porque eu não vejo mais "desenhos" feitos no céu !!! - inquiria Isabelinha.

E aí, vinha o hemisfério norte e o hemisfério sul ( as duas meias laranjas ), a cassiopeia, o orion, o cruzeiro do sul ... e daí vinham os pólos, e o equador, e a forma da Terra e de como ela se movia e rodava em torno do Sol, a estrela que todos os dias nos aquece, e que, quando ela também morresse, a Terra  morreria  junto !
Contou-lhe dos dias e das noites, e como a essa hora, em terras distantes, as pessoas estavam a começar o seu dia ...
E contou-lhe também, que há muitos anos atrás, um senhor chamado Galileu ( um cientista que estudava muitas coisas ), fora condenado e preso, por ter afirmado que a Terra girava em torno do sol, o que nessa época da História, foi considerado uma blasfémia e uma heresia, porque o que os Homens viam diariamente, era o Sol a levantar-se e a pôr-se ; portanto, quem "andava" era o Sol e não a Terra, e Galileu não passaria de um trapaceiro, e de um impostor aldrabão ...

- "Como os homens eram ignorantes, avô !! ....
E  a  forma  da Terra, como descobriram que era uma "bola" ??

Veio então a história do horizonte. O avô chamava a atenção de Isabel, de como, do alto daquele cume onde se sentavam, a menina podia ver uma linha curva e não recta, a limitar tudo o que os rodeava, tal qual como na praia, olhando o mar, lá ao fundo ...
Apanhava do chão uma pedrinha esférica, e mostrava-lhe como afinal era lógica a conclusão !...

Nas noites em que a lua cheia se pavoneava no firmamento, obviamente que as "fases" eram questionadas.
Até hoje se lembrava como o avô lhas ensinara tão intuitivamente, arranjando uma laranja, uma uva e a luz de uma vela ... que ele dizia fazer de conta serem a Terra, a Lua e o Sol, respectivamente.
E contara-lhe um segredo :  "Olha, Isabelinha, para saberes sempre em que quarto está a lua, lembra-te que ela é "mentirosa" !...   Quando desenha um "C" no céu, está em quarto decrescente, e quando forma um "D", está em quarto crescente ...   Assim, nunca te enganas !..."

- "Avô, e aquelas manchas que a gente consegue ver tão bem na Lua ... o que são ??"

E os temas nunca terminavam, e variavam de noite para noite.
Sempre a partir de palavras adequadas à sua idade, sempre de uma forma bem simples, aprendeu muito do que não esqueceu pela vida fora ...
Histórias da vida no campo, das sementeiras, das colheitas, das mondas, da ceifa ... das estações do ano ...
Histórias da gente pobre da sua terra, quando a pobreza era muita, e a açorda de pão "dormido", quase só o  que  havia  para  pôr  na  mesa !...
Histórias das chuvas, das geadas e das neves, que há muitos anos atrás, contava o avô, num Inverno muito rigoroso, pintaram de branco a sua aldeia !...
Histórias dos meninos que não podiam estudar, porque os pais não tinham dinheiro que o permitisse, e mal aprendiam a ler, a escrever e a contar, abandonavam a escola, porque havia que ajudar no sustento da casa, trabalhando muitas vezes acima do que uma criança poderia fazer ...
Contava-lhe que na escola escreviam numa ardósia, que era uma pedra de lousa, com um giz branco ...
Contava-lhe que a sacola da escola, era feita em casa, de burel, um tecido bem resistente, para que durasse para todas as crianças da família, sem se estragar ...
E que eram poucos os meninos que tinham calçado, e por isso, a maior parte andava descalça, até nos Invernos mais gelados !
E quando lhes era comprado um par de botas, na feira, estas eram cardadas, e levavam "protectores" nas biqueiras, para que não se estragassem facilmente ...
E depois havia também que explicar o que eram "cardas", e o que eram "protectores", porque felizmente Isabel nunca os vira !...

Passadas mais de cinco décadas, Isabel ficaria ali, uma outra vez, no cume da encosta, lá donde se divisa o Mundo ... certamente até de manhã ... e ainda assim não lembraria a globalidade de todo o tesouro inestimável, que por certo, sem se aperceber, na sua pouca / muita cultura, o avô lhe transmitiu em menina ...

Deu por si meio adormentada nessas memórias, deu por si a ver as luzes distantes e pobres do casario da aldeia ( não havia mudado grande coisa ), e deu por si a ver o varrimento da luz do farol, que não se havia cansado até então ...
Mas deu também por si, inconscientemente, ao olhar o céu e ao ver uma estrela cadente ( aquelas que o avô lhe  dissera que tinham  sempre  muita  pressa  de  caminhar ), a  pedir,  como  em  menina,  três desejos ...   " porque se os pedires, a estrelinha, na sua corrida pelo céu, vai depressa buscar-tos " - dizia-lhe ele ...

Que saudade desse tempo, que saudade da figura do ancião que tanto amou, sempre venerou, e nunca esqueceu ...  que saudade de si, em menina !...
Hoje, na sua vida, na sua realidade, na mulher que ela era, pensou que lhe bastaria pedir UM só desejo ... se a estrela cadente fosse capaz de lho trazer !!!...

Anamar

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