sexta-feira, 24 de agosto de 2012

" A CASA DE MADEIRA "


Aquela casa fora o sonho da vida de Marta.
Uma casa simples, quase uma cabana, em madeira por dentro e por fora, aproveitando a tanta que existia por ali.
Térrea, um quarto, e uma sala ampla, essa sim, que privilegiara em tamanho.
Era virada ao sol poente ; escassos metros apenas, a separavam do mar, aquele mar que era um mar de brincar, porque nunca batia, sempre só brincava no areal.
Aproveitava a frescura concedida pela sombra do coqueiral, uns palmos de relva à frente, onde cabiam duas espreguiçadeiras, uma rede para horas de sonhos e recordações, e nada mais, além do que a Natureza generosa oferecia ... e era muito ... era demais !...

Tinha como companheiros os cães vadios que viviam pela praia, e eram amigos fiéis nas caminhadas diárias ;  tinha a garça que aos primeiros alvores do dia, debicava na rebentação, e tinha a família de "carpinteiros" que fizeram ninho num tronco de coqueiro já moribundo.
Marta era muitas vezes despertada para o dia que começava, pelo seu ritmo cadenciado, a picarem a madeira envelhecida.
Muitas madrugadas eram eles que a situavam no tempo e no espaço, naquele meio tempo em que ainda não sabemos bem que estamos vivos.

Porque muitas noites sonhava que estava em Portugal, sonhava que vivia a vida que deixara, sonhava com os que haviam partido de muitas formas, e também com os que lá estavam, e nunca esquecia.
Era o recuo no tempo permitido pelo sono, pelo entorpecimento e pela magia que ele tem, de nos transportar onde quer ... "Pena que não seja onde nós queremos" - pensava Marta muitas vezes.
Se isso fosse possível, quantas viagens no tempo e na vida, ela faria, quantas histórias, quantas vidas, quantos amores, quantos locais ela revisitaria ??!!...

A casa em Portugal estava fechada ... ( Portugal já não tinha mais para lhe contar, já não havia mais sonhos cabíveis nessa realidade ;  esgotara-os todos, até à exaustão, vivera todos os possíveis ;  e quando as esperanças, os desejos e  as  paixões começaram  a  ceder, deixando  lugar  apenas  a  mágoa,  desilusão,  vazio e recordações  -  essas sim, quase todas doces ... mas recordações, apenas ), decidiu cerrar janelas e porta, e partir, acreditando ir encontrar pelo menos paz, numa vida que seria o avesso total da que vivera até então.

Sonhou ter uma vida despojada, no meio da Natureza, num lugar que tivesse o sol, o mar e o céu, que sempre adorou e havia procurado ao longo dos tempos, nas viagens que ia fazendo ;
um lugar que tivesse os cheiros, as flores e os frutos que rebentavam sem pedir licença, que tivesse todos os pássaros do Mundo, que tivesse os sons do silêncio, e a areia branca e doce para pisar, e se envolver, como em lençóis de cetim ...

Consigo transportou o que achou realmente importante : os livros mais determinantes na sua vida, a música, sem a qual não viveria, papel e caneta ( porque continuava fiel aos registos à antiga ), o computador, como porta aberta ao Mundo, como veículo de ligação aos seus, lá longe, como arquivo do que ia escrevendo, aleatoriamente, sempre aleatoriamente como o fizera toda a vida, o mínimo indispensável de roupa e objectos pessoais com valor afectivo ( calções, t-shirts, "pareos" e trajes de praia, chapéu e chinelos, era mais do que suficiente ), e depois, um monte imenso de fotografias particularmente significativas, com registos de momentos, de vivências, de acontecimentos relevantes na sua existência ... e uma arca pesadíssima ( porque pesava o Mundo ), de recordações, as mais insondáveis, das mais remotas às mais recentes, das que a faziam sorrir sozinha, e das que a faziam chorar também sozinha ...

E nada mais ...

Fizera questão que o recheio da casa fosse o mais simples possível também.
Um estrado em madeira, rés-vés ao chão, com um colchão e uma rede mosquiteira por cima, era a cama ; os móveis eram artesanalmente construídos em madeira, com troncos e alvenaria ; jarras com flores, que não eram mais que garrafas trazidas pelas marés, e catadas na praia ;  estantes de livros feitas com tijolos e prateleiras em madeiras velhas e pouco trabalhadas ( algumas, antigas viajantes dos mares ) ,  tecidos manufacturados na região, a alindar das janelas às cobertas, dos tapetes no chão às almofadas espalhadas em desalinho ...  conchas, búzios, pinturas dos artistas locais, aqui e ali ;  alguns esboços feitos por si, de rostos que pertenciam à sua história, e da paisagem que desfrutava da sua rede no coqueiral ...

Sentia-se  rica ...   Rica  e  abençoada,  sem  dúvida  muito  abençoada !...

Aquele dia, era um "daqueles" ...

Marta tinha alguns rituais que precisava cumprir, que lhe estavam sob a pele, dentro do coração e do espírito.  Rituais só seus, que só ela entendia os seus "como" e "porquês" ...

Nesses dias vestia-se como para uma festa ;  alindava o rosto, perfumava o corpo e a alma.
Espalhava velas pela sala, a esmo, tornando-a à sua luz mortiça, intimista e mágica ...
Punha a mesa com dois pratos frente a frente, dois copos, frente a frente, uma garrafa de bom vinho tinto  ( comprado expressamente para o momento, já que o do seu Alentejo estava lá tão longe ... ),  a taça das azeitonas ... metia no forno as tostinhas de fatias finas de pão, chouriço e queijo, a gratinar ... e colocava Énya na aparelhagem, baixo e docemente ...

Numa bandeja, dois cálices e uma garrafa de Amarula, bem fresca, abria a refeição.
No pequeno frigorífico, a mousse de maracujá que preparara na véspera, aguardava.
Duas ou três flores de hibisco ( as flores de um dia ), ladeavam os pratos.

Sentava-se então, como quem espera ...

De facto Marta esperava, esperava que as recordações descessem, a envolvessem, a aquecessem no coração gelado, apesar do calor que se sentia ...
Nessas noites recuava no tempo e na vida ... nessas noites voltava lá atrás, escancarava o baú das memórias, chamava à sala os mortos-vivos que nunca a tinham abandonado, e dançava livre e alucinadamente com eles, entre uma ópera de Mozart e os acordes de "Amarantine" ... entre Vangelis e Sting ...

Cá fora a noite descera, há muito.
O mar prateava à luz de uma imensa lua cheia, que atravessava a folhagem  despenteada dos coqueiros ;  os insectos e as aves que nunca se calam dia e noite, faziam coro com o beijar da maré rasa na areia ...

Se alguém passasse à beira-mar, veria o vulto de uma mulher vestida de branco, de cabelos soltos, descalça, a dançar, louca, aparentemente louca ...

Dizia-se que nessas noites, na casa de madeira do coqueiral, onde vivia aquela enigmática mulher portuguesa, desciam espíritos ausentes e distantes ...
E havia mesmo quem garantisse, que os vira a dançar com ela, à luz das velas, das estrelas e da lua !!!...



Anamar 

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