sábado, 20 de fevereiro de 2016

" A MINHA QUARESMA "





O Carnaval passou.  No calendário religioso, entrou-se na Quaresma.

Tive formação católica desde menina.  Tradicionalmente, também os meus pais, ou melhor, a minha mãe, cumpriram os preceitos em relação a mim.
O meu pai sempre foi ateu convicto, a minha mãe, "crente", não praticante, contudo.
Como timoneira quase absoluta da nossa curta família, decidiu que eu seria baptizada, que eu assistiria a missas dominicais, e que oportunamente, chegada a idade, eu frequentaria a catequese. Decidiu que mais tarde faria a Primeira Comunhão, o Crisma e a Profissão de Fé.
O meu pai "resistiu" inicialmente ao meu baptismo, que só se concretizou quando eu já tinha 4 anos de idade.
Depois, capitulou e distanciou-se desse percurso.

E eu, sem ser perguntada, lá fui !!!

No liceu, ao tempo, as aulas de Religião e Moral eram integrantes do currículo, e ministradas por um padre.
Em Évora recordo o Padre Manso ... enjoativo que só !...

Pelos 16, 17 anos, atravessei uma crise de misticismo.  Em plena idade "do armário", em plena e difícil adolescência, com problemas existenciais da mais variada ordem a atormentarem-me, com dúvidas, angústias e inseguranças a perturbarem-me, muito só ( porque filha única, em educação excessivamente castradora ), voltei-me perturbadoramente para a Igreja.
Nela encontrava refúgio, respostas, caminhos, ou ... julgava encontrá-los !
Passei a assistir  diariamente à missa, passei a ser de confissões e comunhões com excesso de regularidade ...

Na minha paróquia estava ao tempo, um padre muito novo, muito bonito, muito dinâmico e com um ascendente notável sobre os jovens, que facilmente mobilizava e arregimentava para as iniciativas que implementava.
Tinha uma linguagem vanguardista ... próxima.  Introduziu a missa acompanhada com cânticos à viola, que ele próprio tocava, com adesão e participação óbvia, dos mais novos.  As confissões tornaram-se "conversas" tidas cara a cara ( se o quiséssemos ), na sacristia, o que as tornava menos penalizantes,  obviamente ...
E tinha uma voz perfeitamente arrebatadora e celestial ... que nos transportava, ao cantar, a um qualquer céu que eu não sabia muito bem onde se encontrava !...

E andei por ali uns tempos, oscilando entre estados de alma atormentados  ( que sempre achava pecaminosos, maculados, culpabilizantes ), e a redenção que os Sacramentos da Igreja me repunha, readmitindo-me na essência e pureza do Seu seio, mercê da adequada penitência.
Oscilava, seguramente ... com precária convicção !...

Aos 19 anos, conheci e casei com um homem convictamente agnóstico.  Claro, que apenas no Civil ...
Posteriormente, as minhas duas filhas também não foram baptizadas.
Escolha nossa, na circunstância.  Nada impositivo, coerência de alma, apenas.
Mais tarde, em consciência, teriam total liberdade de escolher sê-lo, na religião católica ou em qualquer outra ... Ou não o serem, simplesmente !...
Afastei-me totalmente da Igreja.
Já então pusera em causa muitas orientações inaceitáveis que perduram até hoje, um conservadorismo absurdo e bafiento,  e um desconhecimento e distanciamento cómodos das realidades objectivas e das dificuldades com que o ser humano se confronta e se debate diariamente .
E não se vislumbrava sequer, por perto, nenhum Papa Francisco !...

Os anos avançaram, a maturidade e o conhecimento também.
A observação, a capacidade de análise, de crítica e de opção, evoluíram.
Procurei-me isenta nas escolhas, livre nas decisões, avisada na observância dos dogmas, dona dos meus caminhos.

Hoje,  no meu laicismo assumido, não professo nenhuma corrente religiosa.  Digo-me agnóstica, porque não nego ... desconheço !
E tenho comigo outras convicções, talvez mais alicerçadas na formação científica que me tem forjado ao longo da vida.

Mas continuo a entrar nas igrejas.
Continuo a admirá-las arquitectonicamente, do ponto de vista histórico, cultural, monumental.
Continuo a sentir-me bem no seu interior, a buscar a paz do seu silêncio, a quietude das suas pedras, a beleza dos seus altares de talha, o cheiro das velas tremeluzentes que se consomem, o eco dos seus claustros, a vetustez das suas imagens compungidas ...
Hoje, só assisto a serviços religiosos, por imposições sociais.
Mas continuo a emocionar-me com a luz coada por frestas e vitrais, com a sonoridade esvoaçante dos seus silêncios profundos .
Hoje, quando entro, silencio, recolho-me ... resguardo-me em mim mesma.
Ocupo  o último banco, onde me sento e fico.  E espero ...  O quê ?  Não sei !...
Talvez já só respostas humanas dentro de mim, e não respostas divinas, às minhas inquietações, às minhas inseguranças e às minhas interrogações .
Procuro a serenidade necessária ao tumulto da existência.
Procuro conciliação comigo e com o mundo.  Falo-me e questiono-me e busco equilibrar-me nas raivas, nos amores, nas decepções e no tumulto de todas as emoções terrenas que me assolam e me dominam ...  De certo modo, ali busco fazer a minha Quaresma interior ...

Quase sempre saio mais leve, mais alinhada, mais reforçada.
O diálogo silencioso comigo terçado, é uma pacificação da alma, é um reforço energético para o espírito, é um encontro ... é um êxtase.

Afinal experimento-o também, da mesma forma, frente ao mar incessante, calmo ou tormentoso ...
Experimento-o também quando olho o firmamento azul, intensamente límpido e lavado, inundado por um sol luminoso e branco ... como hoje ...
Experimento-o quando a brisa gélida de um Inverno promissor de Primavera, que nos trespassa e talvez nos afague, nos convida a festejar, a glorificar a Natureza,  e sobretudo a bendizer o privilégio de estarmos vivos !!!...

Anamar

quinta-feira, 11 de fevereiro de 2016

NAS HORAS DOS SILÊNCIOS ... "BE"




O caminho de se ser, é ínvio, pedregoso, dissimulado na beleza da "paisagem" ...
O Homem percorre-o tacteando, colocando com prudência um pé depois do outro, de mansinho, devagarzinho, apalpando, perscrutando ... sentindo cada pedra do caminho, receando cada volta de estrada, cada neblina que se abate na floresta, tomando a medida exacta de cada curva e de cada precipício ...

A gente cresce, esfola os joelhos, perde o sono na dúvida do destino, entontece de rodar em rotundas sem saídas satisfatórias ...
Erra de estrada vezes sem conta, sofre complexidades, magoa-se, desajusta-se à roupagem que carrega.
Avança e recua. Engana e corrige ... ou não ...
E se não ... volta tudo ao princípio.

E continua, calcorreando o que se lhe desenrola, ajoujado ao carrego ...
E interroga-se, e castiga-se, quase se flagela às vezes, e quer desistir, para logo depois se levantar e inevitavelmente seguir ... num esforço continuado de sobrevivência ...

O caminho de se ser, vai-se conquistando dia a dia, vai-se descobrindo hora a hora, vai-se percebendo hoje, para se saber amanhã ...
Jornada lenta, cuidadosa, avisada, na busca do lugar, do nosso sítio, do nosso chão ...

E por cada queda, e por cada vez que se vai ao tapete, novo ânimo é necessário reunir para nos reerguermos e continuarmos.
A aprendizagem vai-se fazendo, adquire-se um "know-how" fundamental, uma segurança maior, um esclarecimento sabedor que nos transmite uma paz e uma tranquilidade nas escolhas, e uma assertividade nas nossas decisões.
Passamos a usar a lucidez e a serenidade possíveis, frente às dificuldades.  Procuramos ajustar as posturas, procuramos dimensionar as respostas, procuramos relativizar as ansiedades.
Doseamos, ou tentamos dosear as emoções, discernindo o que queremos, mas definindo claramente o que não queremos, face à vida.
Desdramatizamos, porque o certo e o errado, passam a ter uma medida humana .
Analisamos, mas julgamos menos.
Afobamo-nos com conta peso e medida, deixando que as pulsações acelerem, só por boas e justas causas ...
Importamo-nos menos.
De repente, o estatuto que atingimos confere-nos um ritmo apropriado, e as vivências saboreiam-se, usufruem-se, deleitam-nos ... sem pressas.

E sentimos o gosto de viver.
E deliciamo-nos outra vez, com as cores dos dias.
Ao mesmo tempo, adquirimos uma imunidade muito própria aos dislates de alguns.  Sorrimos com bonomia, às maldades do mundo.  Aceitamos finalmente, as tréguas que o caminho de se ser, nos prodigaliza !...

Retomamos o gosto das pequenas coisas :  sorvemos de novo, o prazer simples de um dia de sol ou de um dia de chuva...  O calor de uma lareira que crepita, nas horas dos silêncios ...  O eco da serra nos caminhos incógnitos ... A melopeia sonolenta do mar,  em dias de calmaria ... ou o seu bramido imperativo, em dias de tempestade ...
Gostamos de uma boa conversa. Mas amamos igualmente o silêncio que nos reencontra, nos nossos corações ...
Reaprendemos o gosto da romã ... o cheiro da roseira brava ...

E simplesmente vivemos ... Vivemos, inspirando até ao âmago, este enamoramento generoso que a vida nos permite, com a maturidade dos anos, com a tolerância sábia, aprendida  na  canseira do que ficou para trás ... com a esperança alvoroçada do que virá adiante ...

Porque o caminho de se ser, faz-se, como qualquer caminho ... Simplesmente ... CAMINHANDO !...


Anamar

domingo, 7 de fevereiro de 2016

" CARNAVAL"




"E depois de tudo, o que é uma mentira? 

Apenas a verdade mascarada." ♡♡

Lord Byron




Esta inexplicável coisa de querer ser
por baixo do disfarce, alguém diferente
Brincar de ser feliz, e de parecer
que se sente o que de facto não se sente ...
Esta absurda utopia colectiva,
esta avalanche de loucura breve e tonta,
finge-nos vivermos em três dias
sonhada vida de fazer de conta !...
E a histeria que do triste faz alegre,
e do pateta uma sumidade,
inventa histórias, cria fantasias ,
e da mentira constrói estranha verdade !...
O grotesco e efémero desvario
que cola em despudor um rosto ao teu,
que te dá a ilusão do poderio
que a máscara inventada, prometeu ...
por momentos te faz acreditar
que és aquele que afinal não alcanças...
E nesta miragem que é fugaz,
vives um sonho infantil de crianças !...
Mas o tempo voa e a vida acorda ...
Amanhã já é depois ... e o tudo é nada !
O traje cai por terra, o palco fecha ...
porque tudo não foi mais que uma imensa MASCARADA !!!...

Anamar

segunda-feira, 18 de janeiro de 2016

" AS GUARDIÃS "




" Em Janeiro vai e sobe àquele outeiro.  Se vires terrear põe-te a chorar.  Se vires verdejar, põe-te a cantar "

E verdejava !
O Alentejo estava coberto de um veludo lindo e esperançoso.  O gado pastoreava, relaxado, colhendo o sol luminoso da manhã.
Era uma cama fofa e adormecida, a que os olhos abrangiam, naquela terra sem limites nem horizontes.
As azedas aguarelavam os campos, como se o sol houvesse pincelado a terra.  O resto ficava por conta do ouro das macelas, do pintalgado dos rebanhos e das manadas preguiçosas, adormentadas no calor tímido de Inverno.  Poucas flores, ainda ...
As garças boieiras, as pegas, os grous, as abetardas, uma ou outra rapina planando alto, glorificavam o dia, e os chocalhos ecoavam na planície.  Imperava o silêncio misericordioso.
Até a brisa passava pé ante pé, para não perturbar tanta perfeição !

Abro o primeiro sorriso, quando as vejo.
No cimo de um poste de alta tensão, olham sobranceiras, a planície, aos seus pés.
Estas guardiãs do Alentejo ainda vão ter que me explicar o que fazem por aqui, fora de época, neste Janeiro frio e chuvoso.

A cegonha é senhora da charneca ... Ela é dona da planície ...
Como eu, ela é fiel e retorna, sempre retorna ao lugar onde nasceu, onde as raízes a prendem ...
O mesmo poste, a mesma árvore, a mesma chaminé de tijolo erguida lá longe ... o mesmo telhado de monte  abandonado ... as mesmas penedias junto à albufeira ...
Desta vez não tiveram pressa de partir, parece.
Foram ficando, de mansinho, como que esquecidas de outros rumos, de outros céus ... de outros destinos !...

Curiosamente hoje, o Alentejo foi uma vez mais, hospitaleiro.
Recepcionou-me  com  um dia primaveril, com céu radioso, azul e limpo, e um sol doce a envolver-me ...  Parecendo  dar-me  as  boas  vindas.   Seguramente  a  dar-me  as  boas  vindas !

Tanto já escrevi sobre o Alentejo, e sempre tanto tenho para dizer ...
Esta terra, afinal, é "aquela" terra ...
É o meu chão, é o meu ar, é a minha paz e repouso ... Iguais aos que cá deixei há muitos anos.
Calcorrear as suas ruas, nunca é exaustivo.  Perder-me nas mesmas igrejas, nunca é fastidioso.  Olhar os mesmos sítios, é simplesmente voltar a casa.  Dobrar as mesmas esquinas, é um gostoso chamado ao passado, ao meu passado que retorna ...
E depois, é como se fosse um reencontro com todos os que me precederam no caminho, e que estão por lá ... que eu sei !
A Évora de então, sempre se faz presente, como colo de família que não renega, como berço de sonos embaladores, como abraço de mãe a filhos saudosos !

E é sempre um privilégio voltar.
Voltar e perceber que tudo está lá, nos mesmos lugares, intocado.  Simplesmente como uma arca de enxoval que se desvenda, com as mesmas rendas, os mesmos brocados, a mesma alfazema de perfume, a genuinidade do mesmo linho ... apenas amarelecido pelo tempo !...

Évora sempre me acolhe.  O Alentejo sempre me abençoa !...

Há um recado impresso em cada esquina, há um memorial em cada parede adormecida, há uma história reescrita em cada sopro de vento !  Uma espécie de saudação ao  regresso  do  filho  pródigo, uma  espécie  de  brinde  aos  afectos, uma  espécie  de  elegia  às  memórias  idas ...
É sem dúvida uma doce viagem no tempo.  Um retorno a "muitos tempos", uma busca nas tatuagens que os anos teimam, em vão, esbater nas vidas !...
A estrada segue a direito, a planura não ergue fronteiras.  Além daquele outeiro, há mais chão, mais sonho, mais vida ... Não há mais fim ...

E o Alentejo desenrola-se infinitamente aos meus olhos.
Finalmente o coração aquieta-se, e eu sinto-me em paz !...




Anamar

quarta-feira, 13 de janeiro de 2016

" AVULSAS ... "




A tarde caíu melancolicamente lá p'ras mesmas bandas ...
Talvez um pouco mais para a esquerda, lembrando que é Inverno e o sol anda mais baixo.  Sim, porque hoje ele apareceu, aqueceu e iluminou, embora tímido, embora "envergonhado", como "soi dizer-se".
Envergonhado ? Por que se envergonharia o sol, se sempre aparece, mesmo depois do cinzento dos dias, da negrura da vida ?
Por que deveria envergonhar-se, se a chuva deu tréguas e a placidez de uma tarde, eu diria outonal, nos aquietou a alma ?!...

Ao meu lado, Vangelis, tão aconchegante quanto a tarde que desceu ... embala.  Embala e transporta o pensamento para lá de um horizonte que recusa fechar-me o sonho.
Na ramagem do plátano despido, um pássaro em viagem de regresso, mostra uma silhueta já negra, recortada no escurecimento do céu ... E lança na aragem, as últimas notas do dia.

No Facebook, ainda aberta, a página da Mané ... colega, conterrânea, amiga  de  meninice, do Liceu, naquele berço que não me sai da alma ... lá longe, no Alentejo  ...
Aberta  ainda... porque ironicamente, a vida não lhe deu tempo de fechá-la, seguramente ...
Tão cedo se foi, tão cedo partiu, que a porta ficou entreaberta ...

Ironicamente também, porque estava destinado, parece,  que muita vida haveria de correr desde então, e que só nos "encontraríamos" tantos anos depois, que já não houvesse  tempo  de  nos encontrarmos ...
Assim ... para trocarmos  apenas  aquele  abraço !...

Fica a memória.  Sempre nos sobram as memórias, as recordações ... a saudade.  Que é o que fica, depois de tudo o que parte !
A precariedade da vida, que poucas vezes aceitamos considerar ... como "imortais" que quase nos julgamos ...

E depois, é simplesmente assim : uma tarde que cai  melancólica,  num dia de Outono, feito presente em tempos de Inverno ... Vangelis que nos transporta pelo éter, além do momento, na perenidade do ser ... um pássaro nocturno que despede o dia ... Évora, lá longe, com um céu escuro  pontilhado de estrelas, no recorte da Sé, no interior do nosso  coração  ... e frio, aquele frio gélido que nos percorre as veias e nos garante o chão que pisamos, como nosso ... além da eternidade !...

Anamar

segunda-feira, 11 de janeiro de 2016

" HOW CAN I GO ON ?... "



" A saudade é uma tatuagem na alma ... Só nos livramos dela, perdendo um pedaço de nós " ... diz Mia Couto.

A saudade é uma raíz que se afunda, é um espinho que se encrava, sobre o qual a pele se refaz, cobrindo-o, fazendo de conta que não existe mais.
Mas ele continua lá ...
Vai sumindo à vista, mas não dorme nas profundezas do terreno encontrado.
E enquista.  Forma um corpo estranho com o qual temos que conviver, dolorosamente ...
Buscam-se panaceias para atenuar o incómodo, usam-se mezinhas para aplacar a dor.  Mas não adianta, ele continua lá ...
Acordamos com ele e dormimos com ele !

Assim é a saudade.
Tem dias em que dói mais, tem noites em que não nos dá tréguas.  Como um fantasma, deambula, vai, vem, judia da nossa angústia ... mas instala-se ... como o espinho !  Implacavelmente !

É uma tatuagem, de facto.  Extirpá-la, se fosse possível, arrancar-nos-ia um pedaço.  Amputar-nos-ia na alma, a nossa essência enquanto seres humanos !
Mas acredito que não.
A saudade persiste.  Mesmo o tempo, a arma poderosa que aparentemente tudo resolve, a não arranca de dentro de nós.
Então, tentamos sobreviver-lhe.  Fingimos até para nós mesmos, que a ultrapassámos e encontramos  mil justificações para a erradicar do nosso coração ... procuramos argumentos objectivos, pragmáticos, racionais, que justifiquem não sofrê-la ...

Mas como  um ladrão de emboscada, salta sempre quando menos esperamos, da primeira esquina, e impõe-se-nos, invade-nos, devassa-nos e retira-nos a esperança de viver.
Como uma recidiva de doença grave, é cada vez mais agressiva, cada vez mais destrutiva, espantosamente agigantada, como que reforçada pela incubação dentro de nós ...

Como continuar adiante ?
Como readquirir a normalidade possível ?
Como reaprender, uma e outra vez, a caminhar ?
Como fazer de conta uma e outra vez, que nos tornaremos imunes à devastação, ou que iremos inteligentemente saber viver com ela, geri-la nas nossas emoções, exorcizá-la, sobreviver-lhe, tomando nós as rédeas dos sentimentos ?!
Como acreditamos que finalmente temos dentro de nós,  argumentos de vida mais e mais poderosos, válidos e determinantes ?!
Como se os sentimentos admitissem regras, disciplina ou canga !!!

E os anos passam e vulnerabilizam-nos em escalada.
E em vez de nos termos tornado hábeis e ardilosos, prevenidos e couraçados face às intempéries ... não !
Parece sim que ficamos mais desprotegidos, mais expostos, menos defendidos ... menos capazes de a enfrentar.
A experiência, afinal, não nos ajuda, a inteligência também não, as manhas dos caminhos nunca servem para a vez seguinte ... e o cansaço, o cansaço real, esse, não se compadece nunca !...

E aos "trancos e barrancos", como um puzzle a que faltam inexoravelmente peças, vamos indo ...
ou confundindo-nos, pensando que vamos ... sem que afinal nunca abandonemos o mesmo lugar ... simplesmente !...

Anamar

terça-feira, 5 de janeiro de 2016

" AINDA HAVERÁ PRIMAVERAS ! "






As festas terminaram, felizmente !
Esta coisa de terem que se viver por calendário, sejam ou não adversas as condições momentâneas de cada um, de alguma forma, irrita-me.
Mas tudo bem, passaram, e aquele desiderato que se ouve cada vez mais na boca das pessoas ... "oxalá chegue Janeiro, rápido", atingiu-se.
A "síndrome das festas" que parece já ser fenómeno com autoridade comprovada, estará ultrapassada.

A vida segue, desenrola-se dia após dia.  O tempo atmosférico não está lá essas coisas ... e desenvolve-se um inevitável clima introspectivo, de análise e maturação, que se prende com tudo e com nada, com o que nos rodeia e acontece, com esta apregoada época de balanço ...
De facto, rigorosamente como os saldos, também em época certa e segura, lá vem essa onda de "balança" ... essa onda de balança e de balanço, em que somos atirados, queiramos ou não, para alguma reflexão mais pausada, lenta, degustada, ao ritmo da pausa que o tempo das festas nos concedeu.

E reflectimos ...
Eu reflicto ... sobre como cheguei aqui, sobre a que sou aqui e agora, moldada, definida, caldeada em tudo o que tem rodeado a minha existência nos últimos tempos.
Sim, porque eu considero que "os últimos tempos", têm de facto sido, p'ra mim, uma bigorna de crescimento, uma bitola de aferição de limites, de capacidades, de resistência. Uma prova com barreira de fogo !
É hora de me perguntar o porquê de ver a vida, hoje, com outros olhos.
É hora de parar e testar o meu grau de exigência real, com tudo e com todos.
É hora de definir claramente para mim própria, o que quero, o que recuso, no que aposto, o que exijo.
E é hora de perceber que o tempo urge ... e que é hora de ser "hora" ...

Não dá p'ra cair no marasmo, aparentemente cómodo. Não dá p'ra me indiferentizar mais, perante o que me resta no caminho.
Chega de rodar em rotunda, chega de encolher de ombros, chega de indecisões no percurso.
Seja qual for, tem que ser escolhido um ... claro, aberto, franco.
Um caminho com luz, desimpedido de silvas que me tolham os passos, sem excessos de vegetação que o cerrem, um caminho objectivo, sem hesitações ... decidido ...
Porque é "inverno", o tempo urge, e não se compadece com  perdas pelas veredas ...

Hoje pressinto-me uma pessoa mais dura, mais amarga, menos esperançosa.
Hoje sinto-me com tolerância zero face a muitas situações com que me confronto. Que sou obrigada a decidir. Que sou impelida a escolher.
Sinto que talvez já não seja qualquer vendaval que me derruba. Porque escolei as intempéries ... muito !
E de alguma forma encasulei-me numa carapaça, que foi obrigada a ser mais e mais, resistente.
Hoje, já poucas coisas me surpreendem. Menos ainda, me rasteiram !
Cresci. Tardiamente talvez. Demasiado tardiamente !
E todo o crescimento se acompanha de dores. Dores no corpo, mas sobretudo na alma e no coração !
Dores de amputação ... algumas.   Irreversíveis ... outras.
Dores de desilusões e decepções ... em cima de expectativas e sonhos.
Dores de perdas e dores de saudade.   De tanta coisa ... mas sobretudo saudade da inocência que ficou na curva da estrada, saudade dos investimentos esperançosos apostados em dias de amanhã ... saudades sobretudo da pessoa que eu fui ... Uma criança num corpo e numa alma de mulher !

Desajeitadamente, cheguei aqui.
Hoje, não sei exactamente o que AINDA quero.  Mas sei claramente o que JÁ não quero !
Hoje sei o que me devo, por uma questão de isenção e justiça,  p'ra comigo mesma !
Hoje sei que não tenho o direito de maltratar-me.  Não tenho o direito de me julgar com severidade excessiva, além daquela com que a Vida já me julga !
Sei que se me empenhar, desbravarei caminhos.
Sei que se acreditar, ainda terei Primaveras à minha espera. Penso que talvez o mereça !...

Hoje,  sei que tenho direito a ser AINDA feliz !...

Anamar

segunda-feira, 4 de janeiro de 2016

" IN MEMORIAM "



Já no seu finzinho,  2015 reservar-me-ia uma inesquecível surpresa.
Assim, do nada, caminhávamos já para a consoada, e mercê das virtualidades das tecnologias que por vezes nos adoçam a vida, chamaram-me de novo à "turma" ...
Eu explico ...

A Rita Laranjeira, um dos poucos nomes que ainda me fazia sentido na memória recuada, alguém de quem tenho fotos num álbum em casa dos meus pais, minha parceira, colega de turma e amiga escolhida então, pelos meus 12 / 13 anos no Liceu Nacional de Évora ... "encontrou-me" por aqui !

Saí de Évora ainda não tinha 13 anos.
Nessa minha cidade de coração, fiz a primária e ingressei no Liceu, que frequentei até ao fim do 3º ano.
Os meus pais rumaram então a Lisboa, e claro, o meu destino abandonou o Alentejo.
Abandonou fisicamente apenas, porque na alma e no coração, sempre continuei ligada a esse chão.
Essas pedras, essas sombras, esse céu que paira sobre Évora e todas as recordações que persistiram, da minha meninice e início da adolescência, continuaram presas à cidade que me viu crescer ... apesar dos laços familiares, por lá, serem inexistentes.
De facto, sempre que rumo ao Alentejo, os "meus sítios" são romagem obrigatória para que aquiete o espírito, numa viagem eternamente gratificante de recolhimento e afecto !
E sempre me emociono, deambulando por ali ... buscando o eco dos meus passos nas calçadas, nas arcadas, nas travessas e alcárcovas ... Não tem jeito !...

Foi como se um baú tivesse então sido reaberto ...
A poeira foi dissipando, as lembranças aclarando aos poucos, os nomes associados a rostos difusos, corporizando-os vagamente ...
E como numa busca espeleológica, fui desencantando pedaços, fragmentos, histórias, peças de um puzzle que foi retomando forma e conteúdo.
E fiquei extremamente feliz !
Não era uma viagem no tempo, mas foi uma viagem na minha história !

Agora, a Rita associou-me a este vosso / nosso Grupo, dos Antigos Alunos do Liceu Nacional de Évora,  de que não quero mais perder-me.
Farei questão que ele me redima no caminho transcurso, farei questão que ele reabilite os afectos esparsos, farei questão que ele me conduza outra vez à "família" ...

Foi também, através dele, que tomei conhecimento de algo muito triste.  Alguma coisa que me parece um pouco "contranatura" ... um pouco "surreal" ... injusta ... quase incompreensível ...
A Mané, a Mané Rocha à época, curiosamente um dos nomes que me permaneceram, um rosto que com algum detalhe me ficou na mente ... foi embora !
Partiu antes da hora ! Deixou, antes de tempo, o lugar vazio na sala de aula !
Na sala, e nos claustros, e na fonte de pedra onde corríamos no jogo desvairado do agarra, e no campo de jogos, onde o "mata" nos afogueava os rostos e nos transpirava a alma ... até que a sineta tocava ...
A Mané, aquela menina de olhos grandes, de franja desenhada, de faces sempre coradas, foi colega escolhida, uma amiguinha de coração, fraternalmente eleita por mim ... nesses recuados tempos ...
Integrava aqueles que se escolhem, porque se escolhem ... porque é assim ... porque a vida tem razões que desconhecemos ...
Busquei os seus olhos na fotografia aqui exibida, já que a franja e a cor do rosto também haviam partido ... a destempo, sei-o bem !

Resta-me esperar que esteja onde estiver, a Mané esteja em paz !
Resta-me endereçar um abraço de profundo pesar, a toda a família da Mané Rocha, sendo certo que ela permanecerá para sempre nos corações de todos nós !...

Anamar

quinta-feira, 31 de dezembro de 2015

" A VIRADA "




A esta hora, o ano já virou na Nova Zelândia e na Austrália.
Vem vindo por aí fora, de fuso horário em fuso horário, a virar páginas do calendário, a acrescentar mais um risquinho na contagem das vidas ...

As pessoas afobam-se, aceleram nesta recta final, parecendo querer agarrar não sei o quê ... antes que acabe e não cheguem a horas ...  Parecendo querer AINDA fazer, o que não fizeram ao longo do ano que agora termina.
Espalham-se votos pelo ar, saudações e desejos aos conhecidos, mas também aos desconhecidos, numa bonomia especial e própria da época.
O ser humano está mais tocado nas emoções, nos sentimentos, e o melhor de si, está logo ali ao pé da boca !
Há uma espécie de redenção interior, uma espécie de beatitude nos corações, e uma expectativa qualquer que não se controla, mas que se percebe ...

Por que acreditamos nós, que num qualquer passe de mágica, o tempo, de repente, fica complacente, fica um bom amigo e nos vai dar uma "mãozinha" daqui para a frente ?!
Por que achamos nós, que nesta repentina necessidade de balanço, de correcção, de planificação ... nesta ânsia de melhoria e de mudança, tudo se vai agora resolver de vez ... porque vem um Ano Novo ?!
Por que sentimos uma necessidade urgente de faxina, de arrumação  na mente e nas vidas ... em carácter irrevogável ?!
Por que queremos atabalhoadamente definir metas, estabelecer objectivos, que agora sim, temos a certeza, vamos cumprir ?!...

Porque a esperança, mesmo para os menos convictos, nunca abandona o Homem nesta sua caminhada !
É ela, que  lado a lado com o sonho, o empurra adiante, lhe ilumina a estrada, lhe acende a existência !...

E o Homem vira criança outra vez, com a virada do ano !
Afinal, ganhou um brinquedo especial ... Ganhou de uma vez só, mais 365 oportunidades novas !...

Hoje, é  inevitável que se recue e se reveja o "filme" da senda já percorrida.
É inevitável que alguma nostalgia desça ...
Que o que já foi e quem já foi, nos assomem  de novo à porta ...
É natural que  as lágrimas corram ... de saudade, de tristeza ... até mesmo de cansaço.  É natural !

Mas é muito importante que se reúna a paz possível, a tranquilidade necessária, para avaliarmos e valorizarmos com maturidade e compreensão, tudo o que já nos foi dado viver, todas as oportunidades boas e más que nos caíram nas mãos, todas as adversidades mas também toda a felicidade, mesmo curta,  que também experienciámos .
Que tenhamos benevolência para connosco mesmos, pela forma às vezes errada como encaminhámos os nossos momentos, como gerimos as nossas opções ...
Que tenhamos tolerância e isenção no nosso próprio julgamento ...
Que percebamos sem excessiva punição e sem arrependimento, a incapacidade ou a falta de força que manifestámos muitas vezes, incapazes de fazer escolhas mais assertivas ... de ir mais além ...
Que não nos julguemos por aquilo que não fomos capazes de fazer, mas nos regozijemos por aquilo que fizemos ...
Que não nos apontemos nem amarguremos  por tudo o que encarámos como "fraqueza", falta de coragem, imperfeição ...
Porque certamente em cada momento, teremos feito aquilo e apenas aquilo de que fomos capazes, aquilo que acreditámos como certo, aquilo que respeitou as nossas convicções e as nossas tentativas de acerto ...
Percebamo-nos simplesmente como humanos ... incompletos, imperfeitos, frágeis !...

E sobretudo sintamo-nos agradecidos à Vida, por todos os ensinamentos, todos os fogachos de felicidade que tivemos o privilégio de viver ...
Agradecidos por termos passado por ela, experimentando nos nossos corações, sentimentos ímpares, como o amor, a amizade, a paixão, a ternura, a alegria, a dádiva ...
Agradecidos por todos os que, cruzando os nossos caminhos, nos acrescentaram pedaços na nossa construção, enquanto seres humanos ...

E NUNCA chorarmos pelo que passou ... mas sorrirmos SEMPRE por ter acontecido !!! ....

FELIZ  2016 !

Anamar

domingo, 27 de dezembro de 2015

" O MEU SONHO DE GAIVOTA "





Olhei-a.
Ela parecia apenas dormir por entre a aragem.  As asas  esticadas, o corpo esguio magistralmente delineado, projectava-lhe a cabeça adiante.  Os olhos miudinhos e sagazes, auscultavam um possível caminho.
Haveria caminho para uma gaivota sobre a cidade ?...

Voltei a olhá-la e ela dançava por entre as chaminés, por cima dos telhados, absorta, distante ... mas sobranceira.
Indiferente ... eu diria, indiferente !
Tenho a certeza que no descolorido do casario, aquela gaivota vislumbrava azul.  Porque sem azul, uma gaivota está amputada no coração !

Lá de cima, no seu voo rasante e ronceiro, seguramente ela cheirava a maresia, adivinhava as falésias, escutava o vaivém da maré, e via o azul ... o azul infinito do marzão sem fundo e sem limite.
Via o azul de um céu de cristal, que só o é, lá, onde o oceano feito amante presente, beija e beija e beija, a terra que lhe estende os braços ...
Havia de sentir a areia fofa, onde o mar rendilha as franjas, havia de perceber a brisa salgada que embrulha as rochas, as algas e todos os seres viventes.
E teria saudades ...

Era uma gaivota solitária, uma gaivota que carregava silêncio.
Uma espécie de andorinha fora da Primavera.
Uma espécie de sopro que não abandonou os lábios.
Uma espécie de sorriso traído pelas lágrimas ...
Era uma gaivota sem liberdade nas asas, sem alegria na alma.  Porque ela tinha alma, que eu sei !

Vagueava, como se vagueia sem norte ou rumo.  Baloiçava, como cambaleia quem já não tem destino ou sorte.  Ia sempre adiante, entre curvas e volteios, entre paredes e cinzento ... como quem busca sem buscar nada.  Como quem tenta esperançar-se, desesperançado.

Segui-a, enquanto a vista deu, enquanto a distância deixou ... enquanto os muros, os becos e os telhados o permitiram.
Queria ter ido com ela ...
Porque também eu sou um fruto fora de época, uma flor dependurada de caule ressequido.
Também eu tenho saudades de lá.
Das águas de infinito onde o sol se deita, onde a lua se espreguiça com lascívia de prata, num leito de veludo ponteado a estrelas.
Queria ter a determinação e a indiferença do seu voo ziguezagueante por cima das copas inventadas, aqui, nesta terra de tristeza !...

O meu olhar perdeu-se na distância impiedosa.
E eu fiquei mais melancólica, no cinzento desta tarde de Inverno indefinido, como sonho não acabado de sonhar, como beijo não acabado de saborear, como amor não consumado no viver !...

Anamar

sexta-feira, 25 de dezembro de 2015

" HOJE ... MAS "




Hoje

Queria escrever-te duas linhas
Queria dar-te emoções que foram minhas
e torná-las nossas, como antigamente ...

Mas

As emoções secaram no meu peito,
As palavras esqueceram qual o jeito
do passado voltar a ser presente ...

Hoje

Queria dar-te as minhas mãos pelo caminho
Envolver-te num abraço de carinho
Colher p'ra ti, outra vez, aquela flor ...

Voltar a ser o teu porto de abrigo
Dar-te um colo, um ninho, um ombro amigo,
Sussurrar-te ao ouvido, o meu amor ...

Hoje

Queria lembrar-te tantas histórias que conheço,
os sonhos como rendas que entreteço,
quais canções de embalo e de ninar ...

Mas

Ficaste naquela curva da estrada
Perdeste o norte da caminhada,
e esqueceste qual o rumo p'ra voltar ...

Hoje

Somos donos dos silêncios que detemos
Somos escravos das palavras que dizemos,
quais pássaros fugidios ... alvoroçadas ...
Como folha arrastada  pelo vento
carrego  comigo este lamento
e com ele, trespasso a madrugada !

Anamar

sexta-feira, 11 de dezembro de 2015

" COMO UM PRESENTE DE NATAL ... "






Liceu Nacional de Évora - MEMÓRIAS


As gaivotas voavam em bando  bem  aqui por cima.
A tarde estava cinzenta, emborrascada, desalinhada.   Elas também.
Parecia não se chocarem  nos céus, apenas por acaso, num remelexo indisciplinado, acompanhado de grasnidos cortantes.
Tinham pressa, as gaivotas, uma estranha pressa de recreio de criançada.  Uma aparente hora de ponta lá pelo alto.
Perdi-me por ali, quieta, apenas olhando e pensando, do alto do meu sétimo andar : como o tempo nos foge !  Como corre célere, dobra esquinas, voa nas rectas, desaparece no nevoeiro, escapa-nos na vida !...

Hoje experimentei viver uma espécie de milagre.  Um milagre de Natal, seguramente !
É certo que os milagres têm tamanhos, talvez.  Talvez tenham graus, julgamos ... mas não deixam de ser milagres !

E entrar na máquina do tempo, recuar mais de meio século, abrir cortinas e espreitar ...
Desencaixotar imagens, reabilitar rostos, desempilhar emoções, faxinar a poeira dos anos como quem abre uma arrecadação de conteúdo meio esquecido, como quem viola um baú arquivado que não cogitávamos arejar ...
Esgaravatar em lembranças algo difusas já, em memórias meio empalidecidas, rebuscar histórias que nos fogem, e querer agarrá-las com desespero, antes que se esvaiam de vez, só de pirraça ...
Virar menina outra vez , pegar na pasta, vestir a bata, calcorrear as ruas, procurando nas calçadas o eco dos meus passos de então ...
Esperar de novo que o sino interrompa as brincadeiras, o jogo do "mata" e do agarra,  no encaminhamento da meninada para as salas ( será que ainda toca ? ... )
Olhar o sr. Francisco , miudinho, mexidinho, pelos claustros ... afobado, no uniforme de botoadura dourada ...

... requer uma robustez de coração, e uma estrutura de alma que não lembra ao Diabo !  ( rsrsrs )

Pois foi o que me aconteceu neste dia cinzento, de gaivotas em algarviada nos céus aqui por cima.

Quando as tecnologias da actualidade  ( que invadem, quantas vezes abusivamente as nossas casas e devassam as nossas vidas além da conta ), resolveram surpreender-me e me deixaram bem no colo, um "embrulho de Natal", com laço de fita e tudo, com estrelinhas em piscadela, recheado de surpresas e emoções, de sorrisos e de afectos resguardados nas memórias, conservados nos tempos, partilhados nos corações, arquivados na vida  ... eu fiquei pasma, enquanto o sorriso enternecido e a lágrima emocionada se atropelavam, na pressa de romper  !...

Sensação de contornos difíceis de definir... Surpresa, alegria, ternura ... saudade !
Sim ... saudade, o sentimento maior de todos eles, sem sombra de dúvida !...

Bem haja a quem tenazmente me "procurou" ao longo dos tempos !





Anamar

terça-feira, 1 de dezembro de 2015

" WHEN WINTER COMES ..."




Assistir ao declínio de um pai ou de uma mãe, é assistir à pré-figuração do seu próprio fim.
Não se descreve.  Sente-se.  Vive-se !
É um processo de uma violência sem tamanho, no misto de emoções, de estados de alma, de interrogações, de culpas, de dúvidas, de impotências e de medos que nos assaltam e nos atormentam, dia após dia.

Cair-nos nos braços aquela "criança" engelhada, encarquilhada, aquele ser tão indefeso quanto um dia o teremos sido... aquele ser cujos olhos opacizados,  pouco já  exprimem além de ausência, tristeza e indiferença ...

Cair-nos no colo alguém que quase nos volta a caber nele, naquela figura fetal  e desarticulada, esquálida e esfíngica, de ossos cobertos por pele ressequida ... naquelas pernas imprestáveis, naqueles braços que mal nos envolvem o pescoço, naquelas mãos que atontadamente atiram beijinhos para todos e para ninguém, para tudo e para nada ... para um  infinito, quiçá finito na memória que já não tem ...

Escutarmos aquelas palavras desconexas, aquelas frases sem significado, discursos sem linhas de lógica ... encararmos posturas que não reconhecemos, identificamos e jamais lembramos no percurso daquela alma ...

Confrontarmos aquela fragilidade, aquela completa dependência, aquela folha de papel pregueado que o destino amassou e jogou para uma cadeira, que nem consegue mover ...

... são realidades em que mergulhamos, com que convivemos e que temos que aceitar, embora com revolta, embora sem que o percebamos, embora o achemos monstruoso, aviltante e injusto !
Embora seja uma gigantesca maré que avança e avança e avança, bem por cima da nossa cabeça e do nosso coração, com toda a força destrutiva  da sua agressividade, em dor e em desespero .

Uma mãe e um pai foram sempre as figuras maiores das nossas vidas.
Foram sempre os seres ímpares em quem nos revimos, que ansiávamos alcançar, que desejávamos seguir.
Foram sempre as imagens que o espelho da vida  nos devolvia, como referências, como poço de valores, como repositório de ensinamentos e princípios.
Eram figuras agigantadas, intocáveis, quase inquestionáveis. Eram muralhas e fortalezas inexpugnáveis aos nossos olhos.
Uma espécie de "deuses" confinados à condição humana.
Eram entidades que nos pareciam imbatíveis, irretocáveis, inatingíveis ...
E por isso, "imortais", perenes, imunes, invencíveis por todas as intempéries da vida, inclusive a morte, que não ousamos sequer questionar, quando ainda somos crianças.
Talvez por defesa ...
E recusamos sempre nas nossas mentes, esse pesadelo, esse sossobrar, essa finitude do percurso, afastando para tão longe quanto podemos, esse fantasma que sempre pensamos futuro e distante ...

Até que um dia, aquele pai e aquela mãe, se reduzem de repente ao seu real "tamanho", se remetem de repente, à sua pequenez de barro moldado, à sua dimensão de vulnerabilidade irremediável...
E caem-nos, bem nos nossos braços, que nada podem fazer, além  de segurá-los, ampará-los, aquietá-los no seu calor ... talvez embalá-los numa canção de ninar  ...

E surpreendemo-nos, e sempre somos apanhados desprevenidos e incrédulos, chamados que somos então, à dolorosa condição de pais dos nossos pais, na condução dos seus dias finais, no aconchego dos nossos corações ...

E simultaneamente também, bem na nossa frente, como uma imagem desfocada reflectida num espelho - para que o não esqueçamos - estamos nós mesmos, enfrentando um Inverno que se aproxima a passo estugado, com um frio gélido e paralisante, que ameaça descer ... ali, no virar da esquina !...

Anamar

quarta-feira, 18 de novembro de 2015

" COMO UMA CONDENAÇÃO "





Cortavam a relva na praceta.
Os sons da rua chegavam-me ao sétimo andar, pela fresta da janela entreaberta, para que o resto deste sol de Outono ainda luminoso e quente ( neste "intermezzo" de regra, de meio de Novembro ), me pudesse inundar a sala.
Breve chegarão os dias escuros, a chuva tamborilará na cobertura do terraço ou escorrerá pelas vidraças.  Breve Dezembro, breve Natal, breve um novo ano ...
E o pingue-pingue do calendário a jorrar dias, datas, anos, numa determinação impiedosa e tirana, sempre irredutível !

O tempo !...

Este tempo que não existe, a empurrar-nos adiante, implacável, na fila imparável em que nos seguimos ...
É uma fila silenciosa, de gentes silenciosas e submissas, em que ninguém ousa contrariar a "ordem normal" .
É uma fila cinzenta, de gentes descoloridas e cinzentas também, que carregam consigo o peso absurdo das memórias ... só das memórias.  Essa, a bagagem que transportamos, enquanto não somos atraiçoados ...
Fernanda Montenegro diz : " Não quero perder a minha memória, porque EU sou a minha memória "!...

A memória ... a nossa identidade, o que nos correlaciona, nos situa, nos refere.
E tão precária, tão a prazo, tão injustamente brincalhona, sempre a olhar-nos com ar de escárnio.
Senhora absoluta dos destinos, algoz de vida, manipuladora da existência ...
Joga de esconde-esconde, trapaceia vezes de mais, ludibria as vontades, desorienta o caminho !
Qual bússola descomandada, qual farol desactivado e imprestável, qual norte sem norte, a memória aliada ao tempo, cria mecanismos e circuitos viciados que conduzem o ser humano a estradas sem luz, a rotundas entontecidas, a túneis escuros sem saída !...

O desgaste físico do Homem, perturba-me, mas entendo que este, como máquina complexa que é, tem associada  a si um prazo de validade.  A deterioração das peças que a constituem parece uma inerência evidente a qualquer mecanismo de utilização permanente.
As engrenagens emperram, os rolamentos enferrujam, os amortecedores tornam-se ineficazes, o envelhecimento instala-se ...
O coração da máquina e os veios de transmissão bloqueiam.
Parece objectivo, compreensível, aceitável ... inevitavelmente !

Agora, a degenerescência do seu centro de comando, a delapidação do seu património essencial, a falência da matriz diferenciadora enquanto ser espiritual, emocional e sensorial que é,  a perda da sua herança pessoal única e intransmissível, a desestruturação do seu arquivo referencial no tempo e no espaço ... são dolorosas, injustas e violentas facécias do percurso a ser trilhado pelo ser humano, com que nos  confrontamos, que não consigo entender, aceitar, sequer conviver pacificamente ...
... provação a que ninguém deveria ser condenado a  sujeitar-se um dia !...

Anamar

segunda-feira, 9 de novembro de 2015

" UMA CARÍCIA NO PEITO "




E o S.Martinho que não nos falha !...

Se há santo em que tenho obrigação de acreditar, é mesmo nele !
Ano após ano, por mais "entruviscada" que esteja a situação, por maiores negaças e caras feias que o céu, as nuvens e o sol nos venham fazendo ... é inevitável.  Tudo dá a volta, e este "break" climatérico sempre se instala.
Os dias azulam outra vez, a temperatura ameniza, a Natureza deslumbra-nos de novo com o seu traje de gala ...
E de repente apetece passear pelos caminhos, ora cobertos de folhagem dourada como os dias que fazem ...

São envolventes.  Amanhecem transparentes  e diáfanos.  Juram permanecer sempre assim até que a noite suba.  Têm um sol ímpar.  É particular, distinto, indizível !
É um sol que fecha definitivamente a porta às estações luminosas e amenas que já foram, e abre as portadas às sombras, à interioridade, à penumbra dos dias curtos, agrestes, cinzentos e entristecidos que hão-de chegar ...

É um sol que não se define.  Só se sente!...
Porque não há vocábulos no léxico, que nos digam com perfeição, como ele é, de verdade !
Lembra um colo, lembra a doçura de um cachecol em dias frios ... a fofura de um novelo de lã !...
Tem a cumplicidade de um beijo longo, tem a envolvência e a segurança de uns braços queridos ...
Penetra e entranha, numa devassidão consentida ...
Aquece as fímbrias da alma e adoça o coração, com generosidade ...
Dá-se, sem perguntar !...

E depois, tem o brilho resplandecente das auras santificadas, em capelas penumbrentas.
Pinta-se no arco-íris, com tonalidades insuspeitas, e que nenhuma paleta conhece ...
É claro, luminoso ... afaga.  É um sol de despedida e de carícia, que oferece o melhor de si antes de partir ... para que se retenha na memória ...
Tem  o  cheiro  das  castanhas  que  estalam  no  assador,  e  o  alaranjado  dos  diospiros  maduros ...
Tem o calor macio que aquece os velhos silenciosos dos bancos do largo ... adormentados, com a "pirisca" esquecida no canto dos lábios ... inverno à espreita, na esquina da vida !
Tem impregnados em si, os acordes de Chopin, que ecoam em sonatas embaladoras, por claustros imaginados ...

É um sol fugaz, um sol em trânsito, um restante sol de privilégio.
Breve partirá e deixará o sabor  promitente de um regresso futuro ... para quem estiver ainda por aqui !...

Será exactamente quando o S.Martinho voltar a despojar-se da sua capa protectora, e com metade dela, cobrir outro pedinte do caminho ...
Exactamente quando os dias azularem de novo, quando as alamedas se atapetarem saudosamente,  de folhas douradas ...
Exactamente quando "tudo der a volta" ... e nos deitar p'ra dormir ...
Exactamente quando  regressar o tempo das castanhas e a prova do vinho novo ...

Exactamente quando  voltar a ser  Novembro outra vez !!!...




Anamar

sábado, 7 de novembro de 2015

" UM IRRELEVANTE POEMA DE AMOR " - Irrelevante ... como quase todos !...







Os mistérios da minha cama
guarda-os em segredo, o mar
Nas rendas da maré baixa
vens de barco a navegar ...
E o meu corpo que te espera
que te anseia e adivinha,
fecha os olhos e adormece
quando em teu peito se aninha ...
O vento sopra baixinho,
seja nortada ou suão,
promessas do teu amor,
na concha da minha mão...
os gemidos da savana
e o silêncio da caatinga ...
Adoça-me o coração
a água fresca da moringa
que trazes p'ra me prendar ...
quando vens na maré baixa
dentro de mim, naufragar ...
Eram vales e planícies
eram grutas, eram montes ...
foram estradas e caminhos
foram florestas e fontes,
que sabias ... percorrias
pé ante pé, com vagar ...
os mistérios da minha cama
guarda-os em segredo, o mar !...
E ...  amor, vejo os teus olhos
na água pura das nascentes ...
e o fogo do teu olhar,
no vermelho dos poentes
que me foge, que adormece,
que me morre a cada dia ...
Não partas de mim, amor ...
Não me mates de agonia !...

Anamar

quarta-feira, 4 de novembro de 2015

" OS VELHOS TAMBÉM SE ABATEM "





Sendo que este meu espaço também é informativo, divulgador, cultural, deixo hoje aqui um texto extraordinário, brilhante mesmo,  de Pedro Ferro, alentejano, jornalista e professor, que é totalmente meritório de ser partilhado, mormente com o público do Alentejo, interessado nas suas gentes, tradições, costumes, cultura e sentires.
Ele retrata com total e impressionante fidelidade , uma realidade que nós, os que vivemos o Alentejo no coração e na alma, conhecemos claramente.

A divulgação deste texto, prende-se a uma justa homenagem que Francisco Martins Ramos, também ele alentejano  e  professor catedrático de Antropologia da Universidade de Évora, lhe prestou.

Aqui vai  :

" Os velhos também se abatem "

"Os velhos alentejanos dão muito jeito.  São indispensáveis a cronistas com défice de imaginação e a fotógrafos artísticos carentes de reconhecimento.  Ficam bem nos desdobráveis turísticos : dão vida a uma paisagem desolada ; salientam, pelo contraste sombrio, os recantos caiados onde acoitam a pasmaceira.  A certos turistas da cidade satisfazem a fome acéfala de exotismo : são uma espécie rara em ambiente natural - como o tartaranhão caçador ou a abetarda.

Fazem um jeitão às alcateias políticas de todos os quadrantes e matizes - sobretudo quando, prazenteiramente, o país vai às urnas, como diria Eça.  Não há velhos mais fotografados, nem mais falados.  Não há velhos mais usados.
Sem eles o Alentejo talvez não passasse de um acidente geográfico, como um dia ironizou o então presidente de Câmara Francisco Felgueiras.  Com estes velhos, o Alentejo é um Parque Jurássico de matriz spielberguiana.

Mas estes velhos têm um único e gravíssimo defeito : não podem ser conservados em azeite.
Quando morrem, perde-se o molde.  É lamentável.  O Alentejo não tornará a ter velhos assim.
Povoam paragens de camioneta.  Pasmam de tédio pelos largos.  Contam "casos".  Lembram "partes".  Remoem "passagens".  Histórias que nenhuma História há-de escrever.  Mastigam um tempo que só a eles pertence e onde se instalam numa cápsula do passado.
Os velhos farejam no ar o crescimento das searas.  Adivinham nas viragens do vento o tempo que vai fazer.  Sentem o Suão e a geada nos ossos.  Têm os olhos cansados e pontadas no coração.  Sabem que a morte não tarda : " Eu sou devedor à terra / a terra me está devendo / a terra paga-me em vida / eu pago à terra em morrendo " - dizem quando se põem a cantar.

Chupam cigarros enrolados à mão.  Cigarros grosseiros como tochas, enrugados como pernadas de sobro.  Sopram um fumo negro, pesado, gordo como um chouriço espanhol, capaz de ser talhado a riscos de navalhinha petisqueira.
Os velhos ficam horas a fio com o mesmo cigarro colado ao canto dos beiços : pedacinhos de mortalha de papel, como esfarrapados pendões de paz, acenam-lhe dos lábios sempre que os queixos se mexem em bocejos cavernosos.

São velhos : sabem de cor e salteado todas as manhas da planície e das covas das azinhagas.  Isso autoriza-os a serem opiniosos.
Ficam envinagrados se os netos os tratam por tu - é camaradagem a que se não habituam, preferindo o respeitoso tratamento de "vossemecê".  Franzem os sobrolhos quando vêem as netas beijar os namorados e dizem "tomara que casem" - só para que não tenham de assistir a tanta falta de vergonha.
Mas ficam babados com as mini-saias e dói-lhes a alma e o resto, de já não terem a tal idade.
Lá na sua ideia, estão convictos de que os moços de agora não passam de uns "bananas" - uns "empalermados" sem nervo, nem heroísmo para apanhar, ali ao alcance da mão, o que no tempo deles tinha de ser conquistado a golpes manhosos, escuridão e alguma cumplicidade : " Ficávamos sentados no chão. / Imóveis. / Só as famílias puxavam cadeiras para as portas. / E conversavam coisas antigas e misteriosas. / ( ... ) Decerto / foi numa noite dessas / que eu pus os dedos sobre o teu peito / e senti os teus seios nascerem debaixo das minhas mãos ", Manuel da Fonseca.

Os velhos dormitam no barbeiro.  Quando despertam tornam ao largo, ao abrigo caiado da parede, à paragem da carreira.  Um pouco antes do sol-posto marcham-se a caminho de casa em busca da ceia e da amaga, a deita.
Lá em casa, os velhos ainda fazem menos do que quando estão aos cantos a apanhar o "olhinho do sol ".  Acham que já fizeram tudo o que tinham a fazer : nem o chapéu tiram da cabeça. Jantam com ele puxado para a nuca, com a soberba de um rei coroado pelo Papa.  Limpam a boca às costas da mão.  E, se as mulheres os contrariam, vão-se deitar sem comer - por caturrice, só para lhes afirmarem que, em 40 e tal anos de casamento, continuam a ser eles os homens lá de casa.
O único gesto a que os velhos se permitem, depois de engolida a ceia, é fechar e devolver à algibeira a navalhinha de lâmina gasta e afiada.  A mesma com que cortaram o moreno pão de trigo às sopas miúdas.

Os velhos são mestres de escárnio e da má-língua.  São "escarneadores" e sabem fingir como ninguém uma incredubilidade que não têm.  Na verdade são cépticos fundamentalistas : à televisão dão o benefício da dúvida, mas dizerem-lhes que o homem foi à lua, é estarem a "mangar" com eles.
São rudes.  Casmurros como mulas.  Venenosos.  Irónicos.  Ásperos como toiros eriçados de picos.  Amargos como piorno.
São frágeis como colmos de trigo.  Ternos como a água dos açudes.  Graves como os abismos da terra.  Altivos como faias.  Solitários como águias.  Sábios como poucos - a perpetuar um tempo e uma geografia da memória que fatalmente lhes escapa das mãos de barro seco.
São o próprio tempo das palavras.  O tempo grande : herdade semeada de outros tempos, sem raízes para no tempo ficar.
Com a razão dos anos que têm, os velhos cospem nas calçadas todo o desprezo pelos tempos modernos.  E quando ficam viúvos, sem trambelho para as coisas domésticas, penduram-se na trave da cozinha.

Afinal, do Alentejo, não são os novos que desaparecem.  Os velhos também se abatem.  Ao efectivo. "

"Público" - 28 de Novembro de 1993

Anamar

sexta-feira, 30 de outubro de 2015

" AQUELA CASA"




Ir àquela casa, é um pesadelo.
Ir àquela casa é uma violência sem tamanho.
É como o devassar de um local meio mítico, meio sagrado ... inviolável !  Ir lá, é perturbar demasiado as memórias, as imagens, os espaços... É mexer com o que foi, mas também com o que é ...

E no entanto, por ali continuam ainda todos !
Eu bem os vejo, mal meto a chave à porta, mal penetro na penumbra de fim de tarde, mal confronto o cheiro a silêncio e a solidão ...
Andam todos por ali, apesar do desalinho, apesar da poeira, apesar das gavetas e dos armários esventrados, apesar do bafio crescer e se insinuar pelas frestas.
Andam todos por ali, e reclamam o direito ao sossego e à paz.  Eu ... bem, eu entro quase pé ante-pé, quase me assusto com a minha própria sombra, quase não ouso respirar ...

Porque, na cozinha a minha mãe ultima o almoço.
Na mesa já posta que aguarda, o meu pai sentado de fente p'ra quem entra, dá a direita à minha mãe, que ma dará, que a darei às minhas duas filhas.
O cheirinho apetitoso dos bifes de cebolada, sobe do frigir da sertã.  A salada de frutas refresca-se no frigorífico,
A Cláudia usa o guardanapo de quadrados azuis ... e a Catarina usa o guardanapo de quadrados vermelhos. Diferentes só na cor, p'ra não haver confusão.
As farófias em segredo, só se anunciarão no fim ... Isto, se as meninas fizerem jus a merecê-las.

Vamos chegando, vamos dando as novidades das manhãs de aulas.
A televisão, na sala, anuncia o telejornal da uma.  O avô insiste no lavar das mãos, às pestinhas que tentam fazer-se esquecidas.
Todos os dias discutem, todos os dias brigam, todos os dias correm em maratonas malucas à volta da mesa, no espaço exíguo que periga as jarras da Vista Alegre sobre o aparador.  Nunca ninguém percebeu por que o avô tanto se amofina com o partir eminente daquelas jarras ... Horríveis, dos nossos pontos de vista !
Todos os dias se trazem à mesa os testes recebidos nessas manhãs e todos os dias, se havia ralhetes a propósito, a água-benta do avô, era o primeiro socorro a acudir aos apertos de ocasião ...

Depois, um dia, o avô foi embora.
Foi o fechar da primeira porta naquela casa.

A avó já não punha a mesa senão em ocasiões especiais, as farófias e a salada de frutas deixaram de ter lugar de privilégio.
A meninada cresceu. As aulas já não ocupavam as manhãs.  Eu passava por lá à noitinha, antes das sete, no caminho da escola.
A minha mãe estava à janela de trás, para me dar as boas noites, antes de se deitar, daí a pouco.
O Gaspar empoleirava-se com ela  no parapeito, e festejava-me até ao dia seguinte.
Eu dobrava a esquina, num último adeus ... e seguia, a tempo ainda de ouvir o correr da persiana, na janela daquele rés-do-chão.

E tudo se repetia, dia após dia, mês após mês ... ano após ano !
E tudo se repetia na paz possível da memória dos ausentes, na vida dos presentes ...
E  tudo  se  repetia, como  se  nada  nunca  pudesse  mudar ... Como  se  não  houvesse  amanhã !...

Passou tempo, muito tempo !

Hoje, eu meto a chave à porta de mansinho, p'ra não assustar os que por ali andam.
Rego as flores que restam, e elas continuam a florir.  Sento-me nos sofás e olho o nada e o tudo daqueles vultos que perambulam.  Aquieto-me para poder ouvir as suas vozes.  Concentro-me e vejo os olhos verdes, miudinhos do meu pai, como duas pequenas ranhuras no rosto esquálido e seco.
Já não lhe lembro a expressão, com definição aceitável ...  Recorro às fotografias para que mo tragam, porque o tempo é impiedoso e carrasco !
A voz ... essa, julgo escutar com nitidez. E as mãos ... é verdade ... as mãos eu "vejo" ... como então !
O cheiro da casa ainda me perturba.  Não é o frio e bafiento, de hoje.  É aquele que ficou nas ranhuras, nos interstícios, nas almofadas, nos roupeiros ...
E os espelhos, quando os olho, devolvem-me tudo. Com absoluta lealdade e fidelidade !

Hoje, a persiana de trás, não me aguarda, subida, pelas sete horas.
Também, há muito que a roupa não se dependura dos estendais.  O Gaspar ... ui ... esse já partiu há tempo e tempo !
Os olhinhos verdes e piscos que me fogem quase sempre, estão para lá, para a terra do sempre ...
As aulas já não me esperam, nem esperam mais as pestinhas, que cresceram, e têm outros pestinhas, que não pertencem a este filme ...
A Nossa Senhora de Fátima, não obstante,  permanece empoleirada na peanha, na cabeceira da cama  ainda  feita ... De longe, acho que continua a ser interpelada e agradecida !...

Ir àquela casa, é um pesadelo.
Ir àquela casa é uma violência sem tamanho.
É como o devassar de um local meio mítico, meio sagrado ... inviolável !  Ir lá, é perturbar demasiado as memórias, as imagens, os espaços...

Até porque as portas ... todas ... em definitivo, estão prestes a cerrar-se !!!...

Anamar

quarta-feira, 28 de outubro de 2015

" AS DORES DE CRESCIMENTO "



Faz muito tempo que não consigo escrever.
Pareço uma ramada seca, vazia que estou, de ideias, de emoções e de reais sentires.
Uma ramada frágil que oscila à ventania, que verga acima e abaixo, descomandada, enrodilhada, açoitada com despudor.
Uma haste atontada, sem vontade, que se deixa ir, entorpecida ... de raiz no solo e folhas decrépitas.
É a raiz que ainda existe, que a aguenta, que ainda a firma, apesar do despautério do temporal.

Acho que estar numa ressaca, seja isto !
Vaguear entre uma mente parada, adormentada ... uma mente que se recusa sequer a pensar, exaurida e sem força ... e torrentes de pensamentos desarticulados que se atropelam, em desordem súbita, num vórtice incontrolável, como caudal impetuoso que assusta e intimida.  Que provoca uma vertigem violenta, que alucina e nauseia ...

O "olho do furacão", a cratera do vulcão, o remoinho ciclópico da tempestade ... é isto, onde estou sentada !...

Tempos bem difíceis estes, embora se diga que reais problemas, são os de saúde !
São-no, de facto.  Seguramente os mais complicados de enfrentar, resolver e ultrapassar.
Para tudo o mais, há remédio, ainda que no fim, de nós só restem cacos !...

No meio desta tormenta que me parece infinita, no meio desta luta com muitos contornos e muitas frentes, no meio deste desnorte sofrido ... como em tudo na vida, sabe-se  que nem tudo é totalmente negro ou totalmente branco.
Nem tudo é totalmente mau ou totalmente bom.
E os períodos de provação  mais não são do que períodos de crescimento pessoal, de maturação, de aprendizagem, de reflexão profunda ... de sofrimento ... talvez redentor ...
Não sei !
Mais não são, muitas vezes, do que ondas agigantadas e devastadoras, que varrendo as nossas vidas, testam muito de nós.
Avaliam da nossa capacidade de resiliência, da nossa determinação, da nossa envergadura na luta e na superação ...
São barómetros da nossa força interior, da nossa convicção em valores e princípios que defendemos e em que acreditamos ...
São parâmetros analíticos sobre a nossa fibra enquanto seres humanos, aferidores de quão pacientes e lutadores conseguimos ser, da nossa persuasão e coragem ... da força da nossa esperança, das nossas auto-estima e confiança na busca de caminhos, de rumos e saídas com luz, em percursos frequentemente demasiado escuros ...

E se lhes sobrevivermos, e se não soçobrarmos entretanto,  seguramente experimentaremos um advento de vida, um fortalecimento da nossa identidade, e  a  regeneração gratificante, perante nós mesmos, do respeito pela imagem com que nos vemos.
Alcançaremos um convívio pacífico, com o ser tão imperfeito e frágil que sempre somos, restituindo-lhe  o equilíbrio e a tranquilidade tão fundamentais e determinantes à  sua  existência ...

... porque tudo isto, afinal, são as "dores de crescimento" que nos estão destinadas no caminho !...

Anamar

sexta-feira, 16 de outubro de 2015

" A LINGUAGEM SECRETA "




Não sei quanto tempo mais, a minha mãe viverá.
Não sei por quanto tempo, ainda, beneficiarei do seu cólo ...

Hoje, as pernas descarnadas semi-esquecidas, a figurinha frágil de passarinho, a mente que oscila entre o certo e o errado, o real e o irreal, já não abrigam grande coisa.  Já não fazem regaço de embalar ... porque não podem.
Hoje,  a  minha  mãe  aninha-me  no  coração.  Esse,  cresceu  na  proporção  do  mingar  do  corpo ...

É a esse ninho que nunca ma faltou, é a esses ouvidos que nunca ensurdeceram para mim, é a essas mãos que continuam sábias no acariciar, que recorro, onde continuo a buscar arrego ... ainda que não me perceba direito, que não me escute com clareza, que não saiba nem sonhe, tudo o que tenho aqui dentro.

Ainda que os seus horizontes sejam agora os limites daquela sala dividida com estranhos, agora "amigos" ... ainda que a televisão lhe conte ininterruptamente, histórias cá de fora, do mundo que deixou, ainda que acorde de manhã sem ter por perto os rostos familiares que gostaria ... tem aqueles que já se tornaram extensão dos outros.  Dos que estão agora um pouco mais longe fisicamente, porém ali, ao lado, no afecto e no espírito ...

A minha mãe teve um período demasiado longo e sofrido, de corte com a realidade.  Um período em que deixou de estar no meio de nós.  Um período em que a sua única ponte  era, ou com os que a deixaram há muitos, muitos anos, ou com aqueles que espera "encontrar" no futuro.
Então, aquela minha mãe, não era mais a minha mãe !

E ela sabia-o.  Sempre o soube.
Nos lampejos de lucidez que tinha no meio daquela bruma cerrada da mente, dizia-me em desespero : " Filha, a tua mãe já cá não está há muito " !
E era um grito lancinante e um sofrimento atroz, que me aterrorizava e me deixava sem chão e sem ar, olhar e ver à minha frente, uma desconhecida, um lamentável equívoco do destino, uma injusta e patética pirraça da vida ...

E de facto, a minha mãe havia "partido" mesmo ...

Mas como sempre foi teimosa, obstinada, determinada, e sempre lutou contra todas as marés adversas no seu caminho ... como nunca foi mulher de "entregar os pontos" e sempre driblou o que parecia irreversível ... "regressou" ...

Hoje, ali onde divide os dias com os seus parceiros de percurso, parece a menina que no infantário escolhe amigos, partilha brincadeiras, conta e ouve histórias, sorri e parodeia com todos ( e são quase todos mesmo ) que se aproximam do seu rosto aberto, sorridente e disponível.
Um rosto que se ilumina à nossa chegada ... aqueles que ela guarda no mais fundo de si.

E percebo como é aconchegante, preenchedor, IMENSO ... pegar-lhe de novo nas mãos secas de carnes, onde apenas as veias desenham rios, beijar-lhe de novo a face "plissadinha", olhar-lhe sem pressa os olhinhos "piscos" ... ou simplesmente ... e é TUDO... absorver a linguagem silenciosa da sua alma, os recados mudos do seu peito, deixar-me tocar pelos fios invisíveis do seu amor, sorver a generosidade escorrente do seu coração, ler a mensagem eloquente e terna do seu olhar, sentir-me embalada nos seus braços outra vez ... e dizer-lhe tão somente, sem falar, com todo o tempo do mundo : " Mãe, estamos aqui !...  Continuamos aqui ... ainda ... OBRIGADA !... "

Anamar