quinta-feira, 13 de setembro de 2018

" LÁGRIMAS ... "




Choro pouco, ou melhor, quase nunca choro.
Ainda que os olhos se me marejem uma que outra vez, ainda assim mais por emoção do que por mágoa ... chorar mesmo, aquela coisa de abrir as comportas e deixar correr ... há muito que não experimento.

Quando o meu pai partiu, há vinte e seis anos, no que foi o primeiro grande desgosto da minha vida, lembro-me que acreditava não resistir.  E chorei, chorei muito, chorei de mais ... e fui chorando até que a dor aliviou um pouco.
E era um chorar profundamente sentido, porque era um chorar de laceração de alma, de esfacelamento de coração ... num esquartejamento da que eu era, com um misto de impotência, de sensação de irremediável injustiça, de incompreensão quase, do que a vida me estava a fazer ...
Como se não devesse ser expectável, nos já noventa anos do meu pai !...

Sempre acreditei que por todas as razões, quando fosse a vez da minha mãe me deixar, o choque seria de tal ordem brutal, que seria muito, muito difícil p'ra mim suportá-lo.   E que obviamente, de novo eu iria debulhar-me em lágrimas incontroláveis.
Afinal, a minha mãe sempre foi muito mais próxima de mim que o meu pai, vivemos uma vida totalmente partilhada e cúmplice, sempre foi uma mãe presente, dedicada, direi mesmo que abnegada.
Era extremamente carinhosa com todos nós, sempre nos colocou acima dos seus próprios interesses, disponível e generosa ... já por aqui o referi demasiadas vezes.

Pois bem, agora que aconteceu, como que sequei por dentro !
Dei por mim numa paz e numa aceitação, quase num agradecimento mudo, pelo desenlace.  Talvez incompreensivelmente, poucas lágrimas verti.  Dentro de mim, pairava uma serenidade, um carinho e ternura tais, que a contemplei longamente, por todo o tempo em que parecia dormir, pela última vez, fisicamente perto de mim.
E com uma tranquilidade, como se pressentisse que ela sabia exactamente o que ali estava a passar-se, e quisesse transmitir-me isso mesmo.
Quase não chorei, portanto.

Ao longo da vida atravessei outros desgostos, outras mágoas, dores igualmente profundas, embora de cariz diferente.
Também nessas circunstâncias constato que a minha capacidade de chorar - não de me emocionar - tem vindo em decréscimo, à medida que o tempo passa e a vida se faz.
Não é fácil neste momento, ainda que compungida com muitas situações, ainda que amarfanhada com muitas outras, ainda que enternecida quantas vezes, por outras ... que eu deixe escorrer as lágrimas soltas pelo meu rosto !

E pergunto-me : o que se passa comigo ?
Será  que  o  tempo  e  tudo o que  ele  sempre  nos acarreta,  me  endureceu ?  Me insensibilizou ?  Me roubou a capacidade de sentir, me roubou a ingenuidade perante a vida, e o deslumbramento com que sempre a olhava ?
Será que o tempo me couraçou, por incapacidade de acreditar já, em muito do que há anos atrás, eu ainda acreditava ? Será que estou a perder a capacidade de sonhar e talvez também de apostar, para não me ferir ou apenas molestar ?
E daí, por defesa, ter-me-ei revestido de uma carapaça personalística que me levanta muros face ao que me rodeia ?!...

Pois ... não sei !
Sei que me sinto árida por dentro, vezes de mais.
Sei que me sinto mais pobre, na minha incapacidade emocional.
Sei que me flagro com muita frequência com uma postura dura, intolerante  e exigente em excesso.  Sem grande margem de compreensão, de compaixão, aceitação, disponibilidade  e bonomia para com o mundo.

E nada disto é gratificante, nada disto seguramente me fará feliz, nem me aliviará a alma ...

Talvez se eu chorasse mais ... Quem sabe ???...

Anamar

segunda-feira, 10 de setembro de 2018

" PARTIR ... "



O tempo de Outono que se avizinha, é propício a uma boa faxina.

A minha mãe, nos seus afãs de limpeza, chegava a esta altura do ano, e aí estava ela na revolução absoluta da casa.  Eram as cortinas, eram os cristais, eram os "amarelos", como dizia ... Divisão por divisão, tudo lhe passava pelas mãos, na habitual "limpeza grande de Outono".
Eu perguntava-me como explicar aquela alegria incontida, aquela felicidade absoluta, quando concretizava a agenda distribuída pelos vários dias.  "Hoje foi o meu quarto ... está tudo limpinho !  Amanhã cedo, será a cristaleira "...
E sorria  muito, por ver a sua casa impecavelmente asseada.  E não entendia a minha consternação, por não conseguir sequer alcançar a compreensão desse estado de espírito.
Afinal, trocar uma boa madrugada de descanso, pela lavagem criteriosa de todo o recheio da cristaleira, era para mim um "non sense", absolutamente inexplicável !... 😄😄😄

Não fui dada a prendas domésticas.  Faço o que urge fazer-se, sem nenhuma realização ou gosto.
Tenho a casa arrumada, ordenada, limpa, com a ajuda de colaboradores, claro.  Não mais !
Fanatismo não faz parte dos meus códigos, nem nesta nem em nenhuma outra matéria.

Verdade seja que a minha mãe também não precisava de "outro" tipo de arrumações, na sua vida.
Era uma pessoa mansa, em paz, sem ambições ou ansiedades.
As suas preocupações, além de ser rigorosa e criteriosamente cuidadosa com a sua subsistência, detentora exclusivamente de uma pensão de sobrevivência miserável e mínima,  ( por forma a nunca constituir um "peso" para mim, como dizia ) ... as suas preocupações, digo, eram as inerentes às netas, ao sucesso nas suas vidas, às dificuldades, se as tinham, ao futuro dos bisnetos, à saúde ou à ausência dela, quando acontecia ... pouco mais.

Nunca a minha mãe ansiou nada além disto.  Nunca ansiou além do que a vida lhe ia dando.  Menos ainda, insatisfação foi palavra do seu vocabulário.  Nunca viveu crises existenciais, nunca se digladiou ou exigiu que os seus dias, alguma vez fossem diferentes.
Teve o que teve, foi uma pessoa frugal e simples na sua existência.  Penso  que ela nunca achou que talvez fosse merecedora que o destino lhe propiciasse um pouco mais ... ou um pouco diferente.
E assim viveu, eu diria que seguramente feliz, até aos 97 anos !

Afirmava eu no início deste post, que o Outono que ora se avizinha, é propício a uma boa faxina ...

Não falo, obviamente, dessas ânsias de limpeza  exteriores a mim.
Falo deste fervilhar de insatisfação, esta intranquilidade de alma que me atormenta, esta inércia que me toma e que parece carecer duma boa sacudidela.  Falo deste arrastar de tempos incaracterísticos e já outonais que me assolam, deste cansaço e saturação de amanheceres repetidos e sem brisas frescas a descerem-me ao travesseiro.
Falo desta desarrumação mental e deste bloqueio que me domina e me tolhe, me adormece e me narcotiza numa letargia mortalmente cansativa.
Estou como um amigo que em conversa me dizia : "Preciso de urgentemente virar a vida de ponta a cabeça.  Preciso mudar tudo.  Estou exausto !"

Eu estou exactamente assim.
Sinto em mim o cansaço de um lodaçal, o esforço do caminhar em terreno pantanoso, o desânimo de horizontes sem cor ou novidade.  O igual assusta-me.  O repetido angustia-me.  As rotinas de vida não me dizem nada.
Preciso virar páginas, sacudir pós interiores ... despendurar a vida da corda da roupa onde balança, balança e donde não se solta, numa modorra doentia ...
Preciso de viver, bem ou mal, mas "viver", e as vidas iguaizinhas, sem história, sobressaltos, desejos e sonhos, incomodam-me mortalmente. Matam-me aos poucos.
Sou uma eterna e inveterada sonhadora.  Sou uma adolescente envelhecida pelos anos.  Sou uma utópica romântica com ímpetos transgressores sempre, ao "instituído", ao "adequado", ao "expectável".
Sou um espírito inquieto e turbulento, que questiona, que se impacienta, que anseia ... que não se doma ...
Porque o que vive dentro de mim é enorme, é excessivo, é grande de mais para se espartilhar, para se acomodar, para se encaixilhar ... para se aprisionar !...

Deixar tudo para trás ... virar tudo do avesso ... e partir, partir por aí, por outras estradas, outras veredas, buscando outros céus, outro azul de mares que nunca são os mesmos, embrulhando-me noutra aragem, escutando silêncios de alma, cúmplices, ou acordes das matas distantes ...

Partir ... partir talvez fosse a solução !

Anamar

domingo, 9 de setembro de 2018

" UM BANHO DE SAÚDE "




Quem tem a Natureza à porta, às vezes desconhece a mais valia de que dispõe.
Quem vive no betão impessoal e descolorido, sabe-o bem.  O mergulhar nas potencialidades que a Natureza  nos prodigaliza, ali ao virar da esquina, é quase sempre um banho vitamínico para a alma e para o corpo.

Amanheci e estive ao longo do dia com um "calundu" daqueles ... Cansaço de fases da vida ... ressaca da "esfrega" a que fui sujeita ontem, como aqui contei ... noite mal dormida também por isso ...  ?? Sei lá ... talvez tudo e talvez nada .
O que é facto é que passei o dia naquele enrolo improdutivo e indeciso, sem iniciativa para nada.  Uma modorra chata e desmotivante que não faz, nem deixa fazer.
E o domingo a escoar-se, e de útil ... népia !  Ao menos que tivesse dormido, o que nem sequer foi o caso.

Há muito, demasiado tempo, que banira as caminhadas da minha realidade.  Sei lá ... nem sei quanto.
A situação da minha mãe até ao fim da sua vida, foi de tal maneira limitativa, absorvente e destrutiva, que me tirava toda a disponibilidade temporal, mas sobretudo toda a vontade e espírito anímico para o efeito.
Sou comodista por excelência, extremamente avessa ao exercício físico, e como tal, ginásios ou prática de outros desportos representam  uma dificuldade acrescida, que me desanima e afasta.
Caminhar ... e caminhar na mata, era a única actividade que tolerava sem grande esforço, direi mesmo, com algum gosto.

Havia deixado de o fazer, como disse.

Mas com o avanço de uma tarde sem história que teimava em se arrastar, com um sentimento de inutilidade e bloqueio psíquico, desgastante ... e sem vontade útil de outras iniciativas, escutei o desafio de um amigo que há largo tempo já, me "alfineta", confrontando-me com a perda dos meus bons hábitos de vida : "Margarida, tu eras tão persistente e agora estás preguiçosa.  O exercício é fundamental para a saúde. A tua vida é demasiado sedentária ..."  e etc, etc, etc.
E o mais grave é que é exactamente verdade !

Desta forma meio safadinha, mexeu-me nos brios, e ... ala que se faz tarde ! Uniforme de treino, ténis, mochila às costas com água, as chaves e o telemóvel e aí fui eu ... ou melhor, aí fomos nós, porque uma caminhada com companhia, é bem mais gratificante e bem menos castigadora do que fazê-la em protesto, refilando só comigo mesma ... 😄😄😄
Às vezes é só preciso um empurrãozinho ...

Uma tarde pouco quente com uma brisa fresquinha a correr, o silêncio das veredas, os aloendros em flor, o trinado dos pássaros e o verde bem reconfortante, esperaram-me na mata de sempre.
Receava o cansaço por excesso de destreino, mas a hora e meia passou agradavelmente rápida, por entre conversa, risos e algumas confidências ... ou não fôssemos nós amigos de há já muitos anos.

E pronto, deixei por lá o "calundu" que me massacrava os miolos, esvaziei a cabeça de alguma coisa do que ma perturbava, e concretizei o primeiro episódio do que espero venha a ter continuidade : a realização persistente, disciplinada e esforçada, da manutenção saudável da minha qualidade de vida !

Afinal, p'ra grandes males ... grandes remédios !...

Anamar

sábado, 8 de setembro de 2018

" NÃO SE AGUENTA !!! "



 
                                                      CONHECEM ???!!!!!  😠😠😠😠


Estou preocupada comigo mesma.
Ou então atravesso uma crise de intolerância, insuportabilidade, atingida que foi a cota de fúria, ainda a "festa" não começou ...

Eu explico :  atravessamos o famigerado mês das não menos famigeradas festividades do município onde resido.  Terça-feira próxima, comemora-se mesmo, o "dia da cidade", com o inerente feriado municipal.
Moro na zona central  e as traseiras do meu prédio, formam, conjuntamente com outros, uma espécie de praceta fechada.
Sendo logradouro privado da Câmara, este simulacro de quintalão,  é recentemente aproveitado para os programas de ar livre das festividades, quer se trate de espectáculos de rua com ou sem qualidade.
Como um espaço praticamente confinado, no meio de paredes pertencentes a prédios de sete andares ou mais, concentra em si toda a sonoridade emitida.
Palco instalado, pseudo-criação de café-concerto, mesas e cadeiras para comes e bebes.
Desde cedo, aliás desde ontem, a instalação desta necessária panóplia de infra-estruturas, mais a aparelhagem sonora, toda a instrumentação que se impõe, as colunas de som, e obviamente a bateria tinindo de afinada ... aqui foi colocada.
É claro que estando numa terra circundada por bairros de residentes muito particulares, a bateria é determinante e imprescindível.
A música  é, fundamental ou exclusivamente, metálica. Grupos "rap", absolutamente desconhecidos acredito que não só para mim, lançam incessante e insanamente para o ar, decibéis insultuosos de temas de uma qualidade que não lembra "ao careca" ...
A praceta, como referi, ajuda à coisa, funcionando como caixa de ressonância.
Pois bem, a previsão de começo oficial da desbunda é agora às 18h.  Mas receando perder um bom lugar, já temos gente instalada a pé firme, nas mesas lá em baixo.
Um bom lugar, ou direi mesmo, que um croquetezito, se os houver, já que se anunciava em complemento, "street food" ... vejam como se é fino, nestas paragens ... 💃 "oh yeah" !!!
Tudo depende da boa vontade camarária.

Vivo num sétimo andar.  Estou portanto no que se pode chamar,  de "tribuna vip".
Já fechei tudo o que podia fechar. Tentei tampões de silicone, esquecidos desde os tempos das natações. Já procurei o outro lado da casa, oposto a este.
Em vão !
Os cães dos terraços aqui à volta, estão solidários comigo, pois não entendem esta espécie de sismo, que nos abana as paredes.  E ladram furiosamente.
Os meus gatos, igualmente incrédulos, procuraram o único sítio disponível que lhes parece protector. Fugiram para debaixo da cama.  Logicamente, em vão !
Ainda não perdi a esperança de que a minha vizinha do quarto andar, com cento e um anos, seja desta vez que se fina...

Estou com uma crise de profundo mau feitio, com uma vontade assassina de fazer um bombardeamento rasante, que exterminasse a "festa" de vez !...
Tenho uma dor de cabeça dos infernos, e só me apetece gritar cá de cima que vão todos para a "puta que os pariu" !
Por que raio é coisa assente, que queiramos ou não, temos que participar do pesadelo???
Só porque há que lavar a cara, neste mês de Setembro, a uma Câmara omissa, negligente e demissionária das devidas obrigações básicas para com os munícipes, no resto do ano ?!

Por que não, acontecimentos culturais reconhecidamente qualificados?
Por que não, um bom concerto ao ar livre aqui debaixo do plátano, neste fim de Verão?
Por que não, um bailado ( já não exijo com o critério dos que ocorrem no "Ao Largo "... ) ?!
Por que não, serem convidadas figuras da área da música, de valer realmente a pena ?!
Por que razão veio, por exemplo, a Teresa Salgueiro a um único espectáculo, ainda assim a portas fechadas ?!  Com entradas pagas, claro, porque para as franquear, a Câmara parece então não possuir verba ...

Estou farta desta bimbalhice bacoca, para calar a boca a suburbanos pouco exigentes. Gente que papa e engole qualquer coisita.
Estou farta de agendas camarárias recheadas à "trouxe-mouxe", subalternizando o grau de interesse, acredito que da maioria das pessoas, e contribuindo para a sua incultura.

Bom, espero resistir.
Entretanto, antes que mate alguém, estou a fazer uma concentração mental  muito particular, apelando à comiseração dos elementos da Natureza, quais índios da Amazónia, com a sua "dança da chuva"...

Como seria abençoada uma boa bátega de água, neste contexto !!!

Anamar

quarta-feira, 5 de setembro de 2018

" O SONHO COMANDA A VIDA ... DIZEM ... "





Escrevo pouco.  Já o referi vezes sem conta.
Neste momento acho que estou tão crítica face ao que escrevo, que cada texto resulta num parto tão difícil, que custa a fazer-se.
Atravesso uma crise de criatividade, julgo, mas sobretudo, por cada escrito que escrevinho, sopeso vezes de mais da oportunidade de o fazer, do interesse ou do valor do mesmo.  E como sou demasiado perfeccionista em tudo na minha vida, acabo concluindo da inutilidade de o produzir.

Nada de novo poderia envolver as minhas palavras, pois como se sabe, já absolutamente tudo foi inventado.
Claro que qualquer tema ou assunto é sempre passível de ser abordado das mais variadas formas.
A visão de cada um.  Mas o interesse devido à minha possível, é forçosamente irrelevante e irrisório, desnecessário e redundante, face à proliferação de autores, de gente capaz e abalizada ... em suma, de gente "autorizada" no domínio das letras e da cultura, neste país !

Depois ainda, eu escrevo primordialmente numa libertação de alma, num aliviar de comportas emocionais, quase sempre.  É uma escrita intimista e personalista que caracteriza este meu espaço. Uma verborreia com pouco de pragmática, uma abordagem dos temas invariavelmente indissociável do meu "eu" interior, sendo que é sempre "ele" e a sua "saúde" real, que ditam o espírito das minhas letras ...
E isso, é obviamente domínio pessoal, de interesse ou consideração precários, por parte de quem aqui eventualmente desce a lê-las.

Tenho um amigo que descobriu recentemente as virtualidades da escrita.  O quão importante é, tantas e tantas vezes, libertar para o papel o que nos vai na alma, o que nos assalta a mente, as interrogações que nos colocamos, as dúvidas e as inquietudes que nos assolam.
Podermos "conversar" com nós mesmos, através das palavras que alinhamos, sem outro intuito ou objectivo além de olharmos como se olha num espelho a nossa imagem, de uma forma descomprometida, ou como se observa no porta-retratos o nosso rosto ali representado ... de fora para dentro, com algum distanciamento, é efectivamente uma forma de nos sentirmos vivos, e um privilégio ... acho..

Admiro muito o que escreve.  Tem uma forma de se expressar "naïf", sem pretensões de estilo, de conteúdo ou forma.  Sem preocupações de correcção ortográfica, inclusive.
Alinha tudo o que quer dizer, ao sabor do desalinho do seu próprio pensamento ... sem demais preocupações.
Escreve tal qual é, tal qual pensa, tal qual age na vida.  É uma escorrência com a impulsividade ditada apenas pelas próprias convicções, sentimentos e opiniões. Duma forma liberta, sem peias ... vernácula.
Solta as memórias ao vento, conforme o povoam.  Não tem inibições, censuras ou  medos.
Escreve com uma genuinidade absoluta.  Lembra uma criança a fazê-lo.  Tem a simplicidade de Aleixo na expressão, e um discurso  muitas vezes, absolutamente ternurento, porque ditado pelo coração que tem no peito, bem subido ... pertinho da boca !

Escreve sobre tudo e sobre nada.
Tem uma criatividade inesgotável, e as suas histórias, contadas na primeira pessoa, ou através de outras personagens heterónimas, são quase sempre deliciosas.
É um homem vivido, com muita estrada palmilhada lá para trás.  Com incursões por muitos mundos, cruzou a sua vida com muitas outras ... e de todas tem um episódio para contar.
É dotado de uma sensibilidade à flor da pele.  Tem uma curiosidade de menino que descobre a vida, e uma mescla de bonomia e irreverência face à mesma ... muitas vezes.
Ingenuidade também ... como criança grande, esperançosa e crente,  que não cresceu.

Invejo-lhe a riqueza de ideias.  O manancial de vivências. Invejo-lhe a liberdade de expressão.  Invejo-lhe mesmo a "inconsciência" com que o faz ...

Duvido que alguma vez envelheça.  Duvido que algum dia reconsidere caminhos, mesmo podendo ser prejudicado quantas vezes, por palmilhar os escolhidos.

Desejo que mantenha e nunca deixe apagar dentro de si, a chama infantil que o norteia.
Desejo que nunca desista, mesmo que um dia perceba que tudo foram histórias ...
Porque afinal, quem escreve, é sempre, em última análise,  um privilegiado contador das mesmas ...

E porque, simplesmente ...

                "o sonho comanda a vida, e o mundo pula e avança, como bola colorida entre as mãos de uma criança" !...

Anamar

segunda-feira, 3 de setembro de 2018

" QUEM SABE ?!..."






Ando meio baratinada com tudo.  Sinto-me profundamente insatisfeita, sem referências reais, conturbada na mente e na alma que é um lugar muito especial, mais p'ra lá mais p'ra cá, que pressinto, mas não sei bem onde fica ...

Muito, muito desarticulada, desconfortável, desentendida comigo mesma.
Sinto falta de me reencontrar, se é que alguma vez o estive.  Sinto-me direito e avesso duma personalidade em que ambas as faces não colam, acertando o puzzle.
E acho que este calcorrear de estrada sem sentido, estrada que parece levar a lugar nenhum, este estado de caminheiro no deserto, este sentimento de peregrino sedento e sem nascente por perto ... me deixa assim, como dizia, baratinada com tudo !  E cansada também ... muito mesmo!

E pergunto-me, como pode alguém ser um poço tão profundo de incoerências e contradições, como eu sou ?!
Questiono-me por que na verdade estou e não estou, sou e não sou, vivo e não vivo ... tudo ao mesmo tempo, em tempo real ?!
Por que é a minha existência uma zona de turbulência permanente, numa navegação a muitos pés de altitude ?!
Por que pareço mexer-me, quase sempre, numa área meio difusa, pouco gratificante e indefinida ?!
Defeito congénito, concluo.  Algo para que ainda não inventaram conserto, acredito.

E por tudo isto, invento de estar bem com o que não tenho, desvalorizando o que tenho, como uma barata tonta, vivendo o sofrimento de perú em véspera de Natal.
E nada disto é justo, se é que nesta vida se consegue aferir, com correcção, da justeza das coisas que vivemos.
Uma coisa é certa ... que tudo isto é uma canseira desmedida, lá isso é ! E um processo desgastante e destruidor, sobretudo quando além de nós, não conseguimos subtrair ao mesmo, outras pessoas mais ou menos envolvidas.

Lembro com muita saudade muitas viagens que fiz, há anos atrás, sozinha, entregue a mim própria, numa catarse de vida que de algum modo me renovava.
Lembro aquela frase feita, mas lógica e acredito que verídica, que diz : "se algo de bom acontecer, viaje para comemorar ... se algo de mal acontecer, viaje para esquecer ... se nada acontecer, viaje p'ra fazer acontecer ..."  que me parece quase perfeita !

Sabemos contudo que, embora tenha muito de autêntico toda esta sequência de afirmações, também não é exactamente assim. Também não é liminar e simplistamente assim ...
Obviamente que nada encontramos se não o levarmos dentro de nós ... E refiro-me à expectativa utópica de que, longe do que nos molesta, teremos reunidas as condições, como num passe de mágica, de que tudo o que é negativo se varre do nosso espírito ...
De facto, tudo viaja connosco sempre.  Apenas, em contextos mais propícios e felizes, estaremos em condições de tudo enxergar com outros olhos, e mais tranquilidade teremos, maior distanciamento provavelmente,  para descobrir soluções outras ...
Também, se não estivermos equilibrados e abertos a que melhores momentos adornem as nossas vidas, não será de novo, por varinhas de condão, que tudo irá processar-se.
Uma coisa eu tenho que aceitar como verdade irrefutável : sempre, numa viagem acontece alguma coisa.  É impossível que vamos e venhamos, com as nossas vidas e os nossos corações  iguais.
Uma viagem é SEMPRE, e indiscutivelmente, uma mais valia de enriquecimento, de conhecimento, de experiência, de aprendizagem.
Mesmo quando nem tudo nos corre forçosamente de forma perfeita.
Em última análise, uma viagem é um repositório de memórias, novidades, sonhos,  jamais "deletáveis" nas nossas vidas.  É sempre uma aventura única, irrepetível e inesquecível !

Também é determinante, e é absolutamente incontestável, haver uma diferença nítida entre viajar-se só ou acompanhado.
Já viajei bastante  acompanhada, em contextos diferentes, com pessoas diferentes.
Já viajei bastante, só. 
O balanço que faço de todas essas situações é que, ou a companhia é próxima da "perfeição" no nosso quadro emocional, afectivo, de linguagem, de interesses, gostos, e obviamente sonhos ... ou ... eu diria, fica-nos, se não tudo estragado,  um prejuízo decepcionante, desanimador e frustrante das mais legítimas expectativas e "castelos" que tenhamos construído em torno dessa viagem, seguramente.
E um amargo instalado faz-nos sentir que talvez tenha sido, de alguma forma, uma perda de tempo e oportunidade ... e foi pena !!!
E nada mais revoltante que desperdiçar todo o  capital humano, de recursos materiais e de investimento de coração e alma, numa canoa que veio a mostrar-se furada ...

E repito ... foi pena !!!



Anamar

sexta-feira, 31 de agosto de 2018

" DESÍGNIO CUMPRIDO ..."




E Agosto finou-se com temperaturas imperativas de que não devemos esquecer ser ainda Verão.
Apesar de na passada semana os dias haverem refrescado, o que nos aliviou dos mais de 40º C dos últimos tempos, voltámos de novo a ler trinta e muitos, nos termómetros.

É verdade, que na generalidade os locais costeiros já cerraram as portadas das suas casas de veraneio.  É verdade, que as escolas inauguram o próximo ano lectivo oficialmente, já nesta próxima segunda feira ... mas o lisboeta foi em força por o pezinho de molho, queimando assim, talvez os últimos cartuchos de 2018.
Isto, na verdadeira acepção do tradicionalismo do conceito de férias a sério, como desde sempre se gozaram.
Os meses ditos fortes do Verão, terminaram e Setembro já traz consigo um cheirinho à próxima estação.  Tudo em velocidade de cruzeiro ... como é a passagem do tempo nas nossas vidas !...

Lisboa, pejada de turistas, a rebentar pelas costuras ou a deitar pelo "ladrão" ... como preferirmos, é  desde hoje, uma cidade mais pobre
E sei de quem sentiria um desgosto a sério, por causa disso mesmo.
A quase centenária Pastelaria Suiça, localizada na Praça D.Pedro IV, o nosso Rossio, encerrou em definitivo as suas portas, terminando um ciclo de vida que não foi possível salvar, iniciado em 1922.

Foi um "ex-libri" da cidade, como sabemos.  Foi um ícone incontornável, geração após geração, ao longo das décadas.

O meu pai enquanto viveu, adoptou este espaço, afectivamente.
Poderíamos dizer que era figura "residente" do mesmo.
Todos os dias lá ia tomar a sua sopa, o folhado, o esquimó, o chocolate quente, o café ...
Todos os dias, mal franqueava a entrada, já no balcão se pedia familiarmente : "Sai uma canja para o sr. Coelho !..."
Dia após dia, mês após mês ... ano, depois de ano ...

O meu pai morreu com noventa anos e manteve até muito perto da sua partida, a qualidade de vida que lhe permitia ainda, quase diariamente, por lá passar.
Nascido em 1902, era um homem da cidade, onde detinha um Armazém de Ferragens. Era um cosmopolita, com Lisboa no coração.
Lá me comprava os mimos que eu adorava :  iguarias de chocolate, as amêndoas de licor se Páscoa era, fiambre especialmente cortado bem fino, quando ainda não era um género comum nas lojas, os esquimós, bolo com chocolate e chantilly que me levavam água à boca, miolo de pinhão a peso, caixinhas com línguas de veado especialmente queimadinhas ... e muito mais.

Após o seu passamento, algum tempo depois, fui com a minha mãe tomar um chá à Suiça.
Alguns empregados, reconhecendo-me, inquiriram sobre o que era feito do sr. Coelho, já que há muito deixara de frequentar o estabelecimento.
Sorri e disse-lhes perante os seus ares incrédulos e espantados : " O meu pai faleceu !  E já agora ... o meu pai não se chamava Coelho !"

Esse segredo duma vida, nunca ele havia contado !!!...  Por que o faria ???!!!



Anamar

quarta-feira, 29 de agosto de 2018

" DE COSTAS VOLTADAS "




Nada há de mais complicado, dúbio e difícil do que a comunicação entre os seres humanos.
De tal forma que quando duas pessoas conseguem alcançar um código de entendimento perfeito, ou pelo menos satisfatório, poderão considerar que alcançaram um estado de graça invulgar, uma benesse do destino ... uma bênção mesmo !

Inversamente, nada há de mais desesperadoramente frustrante, que a incapacidade de comunicação porque entre o emissor e o receptor se gerou um curto-circuito inultrapassável.
A sensação de nos explicarmos de todas as formas, de nos desnudarmos até ao âmago na ânsia de nos fazermos entender, de usarmos de toda a transparência e lisura nas mensagens emitidas ... e depois percebermos que tudo foi em vão, que à nossa frente temos um muro intencionalmente intransponível, que o receptor joga à defesa porque criou na sua mente um processo de intenções, uma postura persecutória em que à partida já antecipara definitivamente a sua leitura, a sua interpretação e inabalável julgamento ... essa sensação, dizia, leva-nos liminarmente "ao tapete", por impotência, desespero, raiva e sobretudo um inesgotável cansaço !

É decepcionante, porque representa uma frustração, um esforço inglório e uma injustiça imensa.
Uma sensação, de em vão pregarmos no deserto ... porque o que eu disse, está longe de ser o que ele "ouviu" ...
E em última análise criam-se condições irreversíveis de abandono do diálogo ou da tentativa dele, cria-se uma impossibilidade dolorosa de consonância, instalando-se de permeio um mix de sentimentos destrutivos, uma panóplia de maus estares, animosidades, raivas e iras ...
E fica uma situação mal resolvida "ad eternum"!

Quase sempre pessoas próximas afastam-se, desistem, deitam por terra tudo o que havia sido construído entre si, e os interlocutores viram-se as costas, duma forma magoada, provavelmente para o resto da vida !
E é triste, mas abandona-se frequentemente a mesa de diálogo, porque conclui-se que as palavras, as frases, as ideias, os sentimentos que tão importantes foram, esvaziaram-se, perderam o significado, deixaram de ser inteligíveis pelas partes.
E por defesa ... desiste-se.

E se isto ocorre, infelizmente com demasiada frequência, nas relações próximas, se ocorre entre pais e filhos, entre irmãos, entre amigos, entre amores ... com pessoas entre as quais coexistiam laços afectivos e familiares muito, muito fortes ... que esperaremos então da comunicação entre povos, nações, gente anónima ?!

Por isso, cada vez mais, o diálogo de surdos criado, não leva a lado nenhum, a tentativa de entendimento, de acordo, de debate ... de paz ... é desperdiçada, esgotada e finalmente abandonada...

O ser humano parece ensurdecer, cegar, incapacitar-se ... parece de repente desconhecer, ignorar, afastar, desvalorizar o seu interlocutor  ... e a comunicação talvez privilegiada antanho, deixa de o ser.
E daí em diante, serão seguramente desconhecidos e mais estranhos ainda, aqueles que ora se encaram !... 

Anamar   

terça-feira, 28 de agosto de 2018

" PINGOS "





O Verão está a ir.  Chegámos  à  "rentrée".  A estação vira, os dias estão a amanhecer nublados e mais frescos com alguns pingos esparsos, de surpresa.
O Outono espreita ... ainda longe, mas espreita.
São dias estranhos, nostálgicos, estes ... São dias de fim e recomeço ... para os que recomeçam. Quando recomeçam ...

As aulas da miudagem anunciam-se já já, na próxima semana.
A luminosidade dourada, doce e espreguiçada do Verão, dos dias sem horas ou compromissos, já foi.

Costumava ser um tempo de azáfama.  Havia no ar, aquela urgência "de fazer cócegas"... Compra de livros e material escolar, chegada dos novos horários e consequentes ajustes nas rotinas.
Ansiávamos o reinício, lamentávamos o fim do lazer ... numa contradição típica do ser humano.
Reviam-se os locais e as pessoas, falava-se das férias ora terminadas, planificava-se a vida. Porque havia uma vida futura já a seguir.
Agora, alguns anos volvidos, os tempos têm rostos descaracterizados e existe um vazio instalado. Desconfortável e silente.
Parece que terminámos uma faxina, que arrumámos tudo nos lugares, parece que de repente, a nossa "casa" da alma ficou devoluta, sem préstimo ... Não somos mais precisos, e pronto, não temos mais nada por fazer.
A não ser ir estando por aqui ... pegando Verão com Inverno, Primavera com Outono, sem grandes metas ou fasquias. Num recolhimento meio agradável,  meio estranho ... melancólico seguramente ...

Hoje, as memórias caem-me no colo.
São memórias de pessoas, de locais, de momentos.  Memórias de instantes vividos, de palavras ditas, de sorrisos trocados ... memórias de afectos.
Todos...todos os afectos que fizeram história na minha vida.  Porque se eu amei alguém, algum lugar, se acalentei um sonho bom por um instante que fosse ... esse alguém, esse lugar, esse sonho ficarão comigo ao longo da minha existência ... sempre !

Hoje, apetece-me o silêncio de um areal vazio.  Apetece-me a voz da brisa passante pelo meu rosto.  Apetece-me o grasnar ocioso das aves marinhas rasantes da babugem.
Hoje, apetece-me um colo que eu queira.   Apetece-me a conversa jogada fora, nos córregos desenhados pelas encostas das ravinas.
Hoje, apetece-me a paz das clareiras verdes da mata e a música orquestrada do regato que corre.  Apetece-me tão somente a voz dos pássaros empoleirados nas ramagens, ou o sussurrar leve do besouro que se faz à flor oferecida ...
Hoje, tenho saudades não sei do quê, porquê, de tudo e de nada, talvez.
E talvez só tenha mesmo, saudades de mim ... De me achar, algures por aí... de me encontrar pelas esquinas dobradas, pelas ruas pisadas ... nas praias desertas ...
Ou apenas rever-me no tempo em que me empoleirava nas nuvens, amarinhava ao arco-íris, namorava a lua cheia e dormia abraçada ao sol, quando ele partia e dormia também na cama das estrelas ...
Hoje, a cor do dia é a minha cor.
O betão que me cerca sufoca ainda mais o ar precário que respiro.  O cinzento lá fora convida ao recolhimento aqui dentro.  E dormiria, se não tivesse que acordar ...
Os pingos de chuva, grossos e generosos que já caíram, chamam ao reencontro com a Natureza, na época em que ela se prepara para a dormência gostosa da estação da letargia e do silêncio, que se aproxima ...
Nem Énya consegue levar-me aos limites celestiais da sua voz cristalina ...

Aqui, hoje, não se operam mesmo milagres ...

Anamar

domingo, 26 de agosto de 2018

" PRAIA DAS MAÇÃS - curiosidades "


 
                                    "Praia das Maçãs" -  José Malhoa  ( 1918 )

Estive bem pertinho da Praia das Maçãs, local que por muitas razões me é particularmente querido.
Realizava-se hoje a procissão anual em honra de Nª. Senhora da Praia, com a pompa e circunstância que lhe é inerente, segundo me informaram.
Pasmo, como já decorreu um ano desde que, no Agosto passado, escrevi aqui neste meu espaço, um texto a propósito.  O tempo, efectivamente é inalcançável !

Pois hoje, de novo, a Senhora foi a banhos, como eu referia há um ano atrás, tentando descrever para os que não conhecem, tal efeméride, mantendo-se a tradição local das gentes destas paragens.
Não vou portanto repetir aquilo que recheou o meu post de 2017.

Vou antes abordar aqui, algumas referências históricas ligadas a esta estância balnear, composta por praia e povoação epónima, da freguesia de Colares do Município de Sintra, que reporto de bem curiosas.
Foi e é a Praia das Maçãs eternizada por vários motivos.
Além de ser zona arqueológica de notoriedade assinalável  e reconhecida, de que também já falei em posts anteriores, ela está indelevelmente associada a uma figura incontornável na área cultural portuguesa, no domínio da pintura : José Malhoa.

Fazendo parte do primeiro aglomerado da Praia das Maçãs, denominada ao tempo de Villa Nova da Praia das Maçãs, o chalet Villa Guida, a casa do sacerdote António Matias del Campo ( um dos primeiros habitantes da Praia ) e a capelinha de Nossa Senhora da Praia construída por Alfredo Keil em 1889, também a Taberna de Manuel Prego, é  um marco histórico muito interessante.
Construída por Manuel Dias Prego, há muito que desapareceu, existindo hoje nesse local um edifício moderno de vista para a praia ( Rua de Nossa Senhora da Praia ).
Terá sido exactamente nesse local que Malhoa pintou em 1918 o seu famoso quadro "Praia das Maçãs", hoje espólio do Museu do Chiado em Lisboa.

Decorre de informação local, que onde se erigia a Taberna de Manuel Prego, foi posteriormente construído o edifício onde veio a funcionar o Hotel Royal, exactamente a meio da rua que acompanha lateralmente o areal da Praia das Maçãs.
Também no acervo da Câmara Municipal de Sintra existem fotos onde, por cima da porta da Taberna se pode ver inscrita a data de 1889, contemporânea da construção da Villa Guida e da casa do Padre António Matias del Campo, como referi.

Ao que parece, o negócio do Prego era florescente à época, a ponto do mesmo ocupar um terreno adjacente, baldio, com mesas e bancos, que foi coberto, para o sombrear, com o caramanchão  patente no quadro de Malhoa.
Viria a solicitar licença para utilização desse terreno, o que veio a verificar-se posteriormente, dado que o mesmo pertencia à edilidade.
Antes da construção da Taberna em tijolo, sabe-se contudo, que já Manuel Prego detinha uma construção mais rudimentar, na praia, onde exercia o seu negócio.
Existe  um testemunho disso mesmo, num artigo publicado a 7 de Junho de 1896 no jornal "Correio de Sintra", onde se pode ler :

" Não há memória de nunca ter arribado à Praia das Maçãs ( Colares ), barco pequeno ou grande, com o mar manso ou bravo ;  pois arribou no dia 28 ( Maio ? ) um barquito remado por uns intrépidos rapazes d'Arosa, soltando um em terra para fornecer-se dumas garrafitas de vinho em casa do Prego ! "

Enfim, memórias idas, lembradas hoje, duma forma gratificante, quando uma outra vez a Praia das Maçãs se adornou para receber condignamente a passagem da sua padroeira, pelas ruas do povoado até à praia.
As pétalas das flores sempre tombam dos céus, o sol sempre brilha no firmamento, os andores, a irmandade, o povo anónimo desceram à rua ... a música, os cânticos e as rezas voltaram a ecoar no azul transparente de mais um quente dia de Verão ...

Só Manuel Prego e a sua tasca não existem mais ... Keil, também não ... e Malhoa, se por aqui estivesse, imortalizaria uma vez mais, sob a frescura do caramanchão, frente a um copo de Colares, a passagem da procissão da Senhora da Praia ... tenho a certeza !...


Nota :  Documentação recolhida em textos afins provenientes de várias fontes, na Internet.

Anamar

quinta-feira, 23 de agosto de 2018

" P'RA SEMPRE ... "




" P'ra sempre" é tempo demais ...

Ao longo das nossas vidas vamos conhecendo tantos "p'ra sempres" que arrepia.
Há contudo aqueles que desejamos não venha a ser bem assim, depois há aqueles p'ra sempres que quereríamos que fosse exactamente assim, e os outros, que sabemos serem inevitavelmente assim !

Ontem esbarrei-me num deles, hoje num outro, sendo que sou escolada em tantos outros pelos quais lutaria de bom grado, com a força e com a alma para que o fossem mesmo ... até ao fim dos meus dias.
Estes, são os p'ra sempres de felicidade, de paz, de alegria, de fé e esperança na concretização dos sonhos sonhados.
São estes que nos levam a querer amar para sempre, a crer em futuros para sempre, a ter força para nos erguermos por cada manhã que nasce, sentindo que vale a pena continuar a seguir os trilhos ... por mais áspero que seja o caminho ...
São "p'ra sempres" abençoados, porque são bálsamos e não martírios ...

Há depois situações nas nossas vidas que se mostram irresolúveis, incompreensivelmente insolúveis.
Situações inexplicáveis muitas vezes, que desembocam em becos sem saída e resvalam a olhos vistos para "p'ra sempres" que não desejaríamos, que nos destroem, que nos mortificam progressivamente, que nos matam ...
E que suspeitamos vir a carregar inevitavelmente, além mesmo do nosso fim.
São "p'ra sempres" dolorosos, que como uma doença incurável vão minando, vão incapacitando, vão destruindo as linguagens, os laços, criando muros em vez de pontes, lançando em fossos escuros e fétidos o essencial, na valorização do acessório ... Em suma, colocando-nos costas com costas !...

E as pessoas vão-se insensibilizando, endurecendo, sangrando da dureza dos golpes, de uma forma contra-natura mesmo ... mortalmente feridas, inevitável, irremediavelmente estranhas ... para sempre !
Sem sentido, sem lógica, sem razão, quase sempre ... num absurdo e numa teimosia autista, que levará ao tarde de mais ... quando acordarmos ...
Contudo, não conseguimos encontrar a fórmula mágica, de bom senso, de bonomia, de razoabilidade, de amor, que pacificasse o turbilhão que nos assalta o coração e a alma... que revertesse esse "p'ra sempre", num "p'ra sempre" de esperança e paz ...
Seguramente não quereríamos que esses "p'ra sempres" maculassem as nossas vidas...

Finalmente, e sem remédio, há os "p'ra sempres" definitivos.  Aqueles  que,  como  numa  curva  cega de  estrada  sem  retorno, nos  confrontam  com  finais  que  o  tempo e  a  existência  ditaram ...

Entrei naquela casa no Verão de 63.  A vida fez-se ... foi-se fazendo, episódio a episódio, escrita pela pena dos destinos de cada um ...
Hoje foi o dia de a deixar, com um vazio mortal dentro de mim. Foi o dia de percorrer uma e outra vez, divisão a divisão, visualizando por cada uma o filme das histórias que ali foram vividas.
Olhar as paredes vazias, os espaços devolutos e reerguer e arrumar de novo os móveis, reabilitar as cortinas, rependurar os quadros.
Foi a vez de escutar no silêncio, de novo, as batidas do relógio de pêndulo que preguiçava na parede.
Foi o momento de olhar o meu pai, ainda sentado no sofá, a ler o Diário de Lisboa, de sentir o eco da correria das miúdas em torno da mesa, no assalto às iguarias do frigorífico ...
Foi a vez de rever a minha mãe no lugar de sempre, a fazer o ponto cruz interminável, com o Gaspar aos pés ... companheiro de todas as horas.  "Só lhe falta falar" ...
Ou de a ouvir, na janela das traseiras ... "até amanhã ... boas aulas !..." ... afastando a roupa dependurada no estendal, para que a vista me alcançasse até que eu desaparecesse na esquina ...

Pedaços e pedaços de mim, ficaram lá, hoje, neste meu perambular sem rumo, neste meu regresso ao passado, ao ontem, num retorno a um "nunca mais" sem remédio ou solução...
Deram-me o privilégio doído de ser eu a fechar a porta, pela última vez ... antes de passar para outras mãos as chaves que detivemos por cinquenta e quatro anos ... e que "nunca mais" farão parte da nossa "estória" !...

Para sempre e nunca mais são, de facto,  tempo demais para a curta existência humana !...

Anamar

segunda-feira, 20 de agosto de 2018

" PORQUE HOJE É O DIA ... "





Hoje é "aquele dia" !...
O Kiko, o puto mais novo dos meus três primeiros netos, aniversaria.  Como epílogo daquela odisseia que já referi vezes sem conta, de ter três nascidos neste famigerado mês de Agosto, abrangendo mãe e dois dos filhos, o Kiko fez-se à pista, há exactamente 11 anos.
Era um dia tão quente quanto hoje e vejo-me sentada na sala de espera do hospital, plena hora de almoço, à espera que o rapaz se resolvesse .
Resolveu-se para felicidade de todos, pois este menino é, de facto, uma bênção nas nossas vidas.

Já falei tanto dele que não é possível ter um pingo de originalidade naquilo que possa escrever ...

Se o quiséssemos definir, diríamos que já nasceu a sorrir, que já trazia no coração um saco repleto de doçura, que a boa disposição, a alegria e a meiguice, são a sua imagem de marca.
O Kiko vive rodeado de uma infinitude de amigos.  De crianças a adultos, toda a gente adopta o Kiko ... simplesmente porque o Kiko adopta afinal toda a gente.
É um miúdo safo, extrovertido ... totalmente desenrascado !  Stress é palavra que não conhece, em nenhuma circunstância !...
É o que na escola resolve todas as questões que lhe surgem, sem perturbações.  O que sem nenhuma ajuda em casa, enfrenta os desafios que se lhe apresentam, enfim ... a autonomia também faz parte da sua personalidade.
É disponível, generoso e solidário.
Aprendeu desde sempre, que a partilha, a divisão de tarefas, a entreajuda, são sinónimo de uma vida mais equilibrada, simples e feliz.
Fechou o pelotão dos três. Nasceu mais solto, desinibido, descarado e com um diabrete à solta dentro de si.

Longe fisicamente, telefonei-lhe há pouco, para o felicitar.
Não posso dar-lhe hoje, nem receber dele aquele abracinho doce com que me envolve quando nos vemos ...
Perguntei-lhe então, como se sentia com tanta idade ... Gargalhou ... simplesmente ...

Esse é o Kiko, o meu "menino light" !...

Por isso, Kiko, desejo-te um dia supimpa, ainda mais cheio de emoções fortes, peripécias giras e boa disposição, como são todos aqueles em que estás por perto !
Aqui de longe envio-te beijinhos com todo o meu amor ... e não esqueças de guardar uma fatia de bolo p'ra mim, que sou "aquela coisa" ... tu sabes ! 😄😄💕




Anamar

domingo, 19 de agosto de 2018

" DICOTOMIA "





"  O amor eterno é o amor impossível.
Os amores possíveis começam a morrer no dia em que se concretizam "

                                        Eça de Queiroz

Dei-me com esta frase do Eça, algures ...

Li, reli, parei para reavaliar ... reflecti ... fiz rewinds na vida e concluí da certitude da mesma.
Eça, objectivo, pragmático, conciso, experiente e sabedor sabe do que fala.  Revela-se afinal, um profundo conhecedor da alma humana !

Aparentemente pareceria um contrassenso.  Afinal, o Homem, ao longo da vida, debate-se, em vão,  pelo alcance inatingível de um amor eterno.  Sofre porque o não tem, sonha tê-lo, porque tendo-o estaria completo e eternamente feliz, acredita piamente.
E digladia-se com uma infelicidade atroz, porque na sua vida afectiva parece haver uma impossibilidade em agarrá-lo.  Uma incapacidade mesmo, em pressenti-lo.
Na verdade, nada há de mais certo na existência do ser humano, que a impermanência de tudo o que o rodeia.  Nada há de mais real que a incerteza das metas atingidas.  Tudo é precário, incerto, duvidoso, inseguro ... sempre.
Só que essa realidade se configura  num estímulo e desafio para a mente humana, é mesmo essa insegurança, insatisfação e inalcance que acrescentam a pitada de tempero, adrenalina e sabor aos amores ditos "impossíveis" !
E assim, estes, sem solução possível, amores improváveis, se tornam nos amores verdadeiros, amores de valer a pena, amores sem bafio, amores com cores flamejantes, sempre novos e dispostos.
Eles redescobrem-se por cada dia, reinventam-se em novas roupagens, eles não se entediam, são desejados a cada momento como amores acabadinhos de nascer.
São eles que aceleram as batidas do coração, tiram o fôlego, nos conduzem à gaiatice dos tempos da ingenuidade, do sonho e da fantasia.

Os outros ... aqueles que afinal conhecemos, acabamos experienciando e vivendo, aqueles que nos foram desafios aureolados de todas as virtudes, adequações, enquadramentos e soluções dos nossos desequilíbrios afectivos, não passam de amores corriqueiros, amores sem sobressaltos, amores "chapa três" ... trôpegas tentativas de desenhar o mundo, soluções  de  vida  em  tosco,  irrespirável  e  desesperado  esboço  do  avistamento  da  felicidade !...
Em suma ... amores possíveis e moribundos desde o primeiro instante !...

Afinal o Homem sempre quer o que não tem e mata o que tem.  Sempre busca o sol, apagando para isso, as estrelas no firmamento !
A utopia e a incoerência fazem parte da nossa alma imperfeita e insatisfeita, alma em turbulência e inquietude.

Ainda assim ... deixem-me com os amores impossíveis, pois seguramente sempre serão " eternos e infinitos  enquanto durarem !..."

Anamar

" ESTAR FELIZ ... "





" Você é aquilo que ninguém vê
Uma colecção de histórias,
memórias, dores, tragédias,
sucessos, desaires, sentimentos e pensamentos.
Definir-se é limitar-se.
Você é um eterno parêntesis em aberto,
enquanto a sua eternidade durar "

                                               Machado de Assis


Tarde insuportável de calor, neste Agosto que continuou um Julho metereologicamente meio atípico.
Presenteou-nos sim, e Agosto também, com tormentas semeando perdas e desgostos.
Os fogos em escala dantesca voltaram a grassar  aqui e lá fora, as intempéries, as cheias, os sismos ... as temperaturas impensáveis derretendo calotes polares, tudo quanto foi anormal de se viver, se tem vivido, numa Natureza que pisca incessantemente o semáforo vermelho a gente incrédula que acha que talvez ainda não seja bem assim ...
O falado "ponto de retorno" a atingir-se a passos largos, e o Homem, cego, surdo e mudo !...

Tenho vindo aqui pouco.
Desta feita, falta de tempo mesmo.  Falta de "assento" como costumo dizer, têm-mo impedido.
Mas sem esta catarse necessária, não sou bem eu. Sinto-me esportulada de uma parte de mim.  Incompleta.  Inquieta.
A razão ?  Várias, sendo que o términus do desfazer da casa dos meus pais, seguindo-se de uma sanha meio alucinada de radicalmente por a minha também mais organizada, são os motivos principais.
De quando em vez parece eclodir-nos uma urgência absoluta de "limpeza", arrumação, faxina inadiável, numa busca de renovação, alteração e mudança ... como se com esse desiderato, a verdadeira renovação, o verdadeiro retirar do balofo, a verdadeira assepsia alcançasse, visasse  especialmente, o nosso eu interior, cansado, bafiento, desencantado, rotinado de mais ... cinzento !...
São as fases de dobragem de esquinas.  De busca de caminhos airosos, verdejantes e floridos !...

Nesse espírito deitei mãos à obra, procurando que, junto com o supérfluo, o desnecessário, o excedente cansativo e oneroso, também fossem os meus sentimentos mais negativos e pesados, o meu desconforto, a desesperança que teima em instalar-se vezes de mais, a aparente ausência de horizontes ... Fi-lo sem demais preocupações, interrogações, dúvidas angustiantes, ansiedades ... medos ...
Procurei alienar as incertezas, as apreensões doentias, as definições demasiado enquadradas e previsíveis, que coartam, espartilham, fecham os túneis do acreditar, a graça da surpresa ... e simplesmente deixei-me ir vivendo, um dia depois do outro, saboreando cada momento.  Os de paz e felicidade, os menos auspiciosos e escuros ... os sonhados e os que me caem na almofada por cada manhã em que acordo ... só porque valem a pena ser vividos, e eu continuo viva por aqui !

A vida afinal é tudo isso.  É este mix de "colecção de histórias, memórias, dores, tragédias,
sucessos e desaires, sentimentos e pensamentos" ... na busca da nossa essência, na procura do que fomos, do que somos, por que o fomos ... por que o somos ... sem nos enjeitarmos, sem nos repudiarmos, sem sermos excessivos algozes das nossas imperfeições, acreditando sempre !
Sem buscarmos definições "essencialmente correctas" e censuradas do que talvez esperem de nós, bastando-nos que nos encaixemos no que nos realiza e faz feliz, com uma auto-aceitação e bonomia de paz, tranquilidade e equilíbrio ...

Não busco de facto, figurinos, sequer me preocupo com juízos excessivos ... Cada vez menos o faço.  Vivo, simplesmente com a coerência que consigo, nunca abdicando de sonhar ... mantendo-me um  " parêntesis em aberto enquanto a minha eternidade durar " ... e procuro "estar feliz" ... não, "ser feliz", porque isso, não existe !...

Anamar

quarta-feira, 8 de agosto de 2018

" NADA MAIS ... "



Como é difícil remexer no passado !
Como é complicado entreabrir frestas nas janelas das nossas vidas !...
Como é penoso enfrentar as  arcas dos tempos ... quando achamos que elas estavam seladas "ad eternum " !...

Penso que talvez tudo se prenda simplesmente, ao facto de através disso nos revermos lá atrás, nos reencontrarmos nas esquinas dos destinos, outra vez.
Ou simultaneamente, pela nostalgia de nos parecer, ilusoriamente, recuperar o que fomos, a juventude que se esfumou, os sonhos que construímos.  Em suma, um confronto imposto, conosco mesmos.
E normalmente a distanciação sempre é implacável e mostra-nos sem dó nem piedade, os erros então cometidos, as omissões de que não nos demos conta, o desperdício dos momentos que não usufruímos em pleno.
E como um filme visto num écran longínquo, tudo aquilo é e não é nosso.  Os protagonistas são, mas não são os que foram ... e as imagens desenrolam-se-nos com perda de qualidade, numa dimensão que nada tem a ver já, com a "alta definição" com que foram colhidas ... Como se as visualizássemos por entremeio de neblina ...

Cai-se então numa dolência doída, porque o tempo ... ai o tempo, mostra bem quem na verdade manda !

E gera-se um misto de sentires, de emoções, de memórias que desfilam e não se controlam.  Um misto de desejos e vontades gostosas que se atropelam, desafiantes ...
São diabinhos à solta que injustamente nos atormentam o coração e a alma, e vemo-nos à mesa do café, frente a frente com pedaços de estórias que pertencem afinal à nossa história e por nós foram escritos.
E como num cadinho de reacção adormecida, de repente, tudo se incendeia à revelia e sem respeito !...
Como num mar que era de maré baixa ... tudo se altera e galopa sobre os rochedos, indómito e alteroso ... ameaçador, numa avalanche sem tamanho ou contenção !...
Como numa dormência gostosa interrompida abruptamente, o sono agita-se, o corpo convulsiona-se e o desconforto instala-se !...

Porque também há a paz da monotonia, da rotina ... do instituído.  Do assimilado e incorporado.
A  paz  do  silêncio  dos  tempos.  A  paz  do  que  há  muito  jaz  numa  curva  da  estrada ... Intocado !
E se essa paz balançar, um conflito emocional abate-se e sacode-nos, como se a terra tremesse ou a onda aterradora a galgasse, inevitavelmente desprotegida e impotente ... mostrando-nos a precariedade do esquecimento das coisas.
A fragilidade dos fiapos de vida, urdidos e julgados arquivados na poeira da existência ... era isso mesmo ... uma fragilidade a sucumbir ! Apenas ...

Só que ... após o abanão que experimentámos, tudo se retoma.  A realidade da vida que se faz todos os dias repõe o figurino, indiferente, outra vez ... A perturbação conserta-se ...
Acordamos ... de novo, para o aqui e agora ...

E foi só isso mesmo ... uma fresta que se abriu na janela do destino, a tampa de uma arca que indiscretamente deixou à vista o conteúdo religiosamente guardado, como um tesouro que houvesse sido violado por momentos ...
Só isso mesmo ... e nada mais !

Anamar

segunda-feira, 6 de agosto de 2018

" POR QUE RAIO TIVEMOS QUE CRESCER ??!! "


Estranhíssimo este sol que se põe lá ao fundo, num céu pesado, sem nuvens, mas longe de ser límpido.
Aliás, mostra-se com um semblante esfumado que lembra aquele céu de incêndios.
Entretanto  a  "fogueira"  acende-se  por  todo  o  país,  com  as  temperaturas  a  roçarem os 46 ºC ...

Todos ficamos imprestáveis, neste ar irrespirável.  O cansaço toma-nos conta e nem as ventoínhas nem os duches frios sucessivos, aplacam esta sensação de desconforto.
As noites não refrescam, não se dorme, e erguemo-nos na manhã seguinte, totalmente partidos, espapaçados, como se tivéssemos sido açoitados durante a noite.  Mais cansados ainda do que antes de dormir ... como se isso fosse possível !
Sonha-se com uma sombra fresca, sofre-se à míngua de uma aragem ...

Os animais sofrem também ... e muito !  Os meus gatos, sobretudo o que transporta às costas um manto invejável de pelo, não encontra poiso, arrasta-se pelo chão de mármore, dorme na frescura possível do poliban e estica-se indiferente a tudo, parecendo moribundo na apatia que ostenta.
Tenta resistir ... como todos nós !
Entretanto, nas notícias, fomos confrontados com uma tempestade que se abateu ontem ao fim da tarde, sobre certas zonas do Algarve.  Intempestivamente ! Imprevisivelmente !

Temos o planeta em desnorte total.  Assustadoramente a sofrer desmandos da Natureza, que vão afectando de forma acentuada, os seres vivos que lhes ficam à mercê ...

Talvez devido a tudo isto também, me sinta demasiado cansada.  Este calor mata-me, definitivamente !

O tempo está como a vida ... tudo incerto, tudo imprevisto, tudo anormal ... tudo meio louco !
Na minha meninice e juventude, tanto quanto lembro, as coisas tinham nomes ... Primavera era Primavera, Verão chegava na hora certa e tinha a cara do costume ... o Inverno sempre nos trazia o friozinho gostoso, a convidar a gorros luvas e cachecóis, o fumo das castanhas assadas a soltar-se dos carrinhos e as alamedas dos jardins, totalmente forradas com as folhas molhadas, que já eram ...
E por aí adiante.
Por isso sempre sabíamos com o que contar, sem demais surpresas ou ansiedades.  Acho que os dias corriam mais ou menos mansos, sem outros sobressaltos.
Os dias viviam-se ao ritmo dos dias.  O hoje era  vivido hoje, sem pressas ou ansiedades, o ontem ainda não deixava aquelas marcas mortais que nunca mais se apagam ... e o amanhã, sempre nos aparecia como uma rosa fresca que desabrochasse ao romper da alvorada ... doce, sorridente, cheia de promessas ...
Os amores eram generosos, embaladores e leves.
Viviam-se e sorviam-se ao sabor do sonho.  Em jeito de presente de laço e fita, deixado nos sapatinhos da nossa imaginação, nos tempos em que era Natal todos os dias ...
As imagens das nossas histórias eram sempre coloridas ... porque eram exactamente isso ... imagens das nossas histórias ...
E estas sempre tinham finais felizes ...
A vida tinha muito do açúcar e do arroz doce com que as avós e as mães nos resgatavam dos pequenos desgostinhos ...
Não havia despedidas, nem perdas, nem separações.
Tudo parecia ser para sempre, simples, certo, sem as complicações da gente grande ...
E quando as lágrimas desciam ... porque às vezes também acontecia ... era garantido, que dormida a cabeça no travesseiro, a madrugada era azul  à certa, enfeitada de arco-íris, estrelas esfregando os olhos de ensonadas, e cantos dos pássaros da alvorada ...

E assim se fazia a vida ... com a ingenuidade e a bonomia dos anos que então tínhamos !...
Mal sabíamos da turbulência que nos esperaria a muitos mil pés de altitude ... mal imaginávamos da tormenta de mar alteroso que se iria encapelar diante de nós ...

Afinal ... por que raio tivemos que crescer ??!!...

Anamar

quinta-feira, 2 de agosto de 2018

" NÃO PODERIA SER INDOLOR ... "






Tempos loucos estes, que o planeta atravessa, e com ele, nós todos, perguntando-nos porquê?
Por que estaremos todos, de uma forma absurda e irracional, a pagar uma factura desmedida do que não fizemos?
Por que razão continua esta Terra a ser regida por loucos e irresponsáveis, que colocam exclusivamente interesses materiais, pessoais e outros, escusos e inomináveis, em relação aos quais, o cidadão comum é total e irremediavelmente impotente ?!

É que atravessamos em Portugal, país de clima mediterrânico e temperado, generoso e abençoado por excelência, temperaturas que subiram em muitos lugares a valores da ordem dos 45ºC !...
O ar é irrespirável, a insalubridade deste estado de coisas restringe a capacidade de se  levar a vida adiante com o mínimo de normalidade, já que nada disto é normal ...
Não nos mexemos.  Arrastamo-nos.
O torpor sonolento que nos invade, reduz aos mínimos toda a actividade.  Não temos parança em lugar nenhum, já que em todos se sufoca.
E por essa Europa fora,  tudo se passa mais ou menos da mesma forma.  Temperaturas igualmente absurdas em locais que não as experienciam nunca. Gelos em fusão nos pólos.  Avalanches, cheias e furacões inesperados.  Fogos devastadores e incontroláveis, semeando desgraça e dor ...
Em suma, um planeta a morrer às mãos dos seus próprios habitantes ... muito antes do que os estudos científicos vaticinavam ... Muito antes dos alucinados imbecis à solta, perceberem que nada disto é ficção científica, infelizmente ! ...
Não é de loucos ?!

Eu estou em "modo hibernação" ... a bem dizer.
Redução de toda a entropia aos mínimos, para poupança de energia.
Os miolos a funcionarem p'raí a cinquenta por cento, só.  Uma "lanzeira" que só vista !...
Resolvi, ainda assim, levar a cabo tarefas de arrumação que urgiam ... Parece-me auto-flagelo ... será ?!
Com o encerramento da casa dos meus pais, com a dissolução do seu recheio para que a mesma possa ser entregue à proprietária, uma infinitude de coisas inalienáveis, "caíu" na minha, já de si cheia que nem um ovo.
Um verdadeiro drama, olhar para tudo aquilo e ser incapaz de definir prioridades.  Uma angústia dos infernos, decidir o que ascende ainda assim a espaços nobres na minha casa, o que "ascende", na verdadeira acepção da palavra, à arrecadação no terraço do prédio ... ou o que descende directo ao contentor do lixo ...
Um drama, até conseguir consensos de alma !...

E num misto de angústia, irritação e  impotência, culminadas por uma sanha de "para grandes males, grandes remédios" ... na busca desesperada de soluções de espaços ... resolvi tomar uma opção irrevogável que fora adiada anos e anos, na espera de melhores dias, paciência e complacência, que haveria um dia de chegar ... eu achava. 
Assim, resolvi enfrentar com determinação e coragem, todo o espólio a que fizera largos anos " olhos de carneiro mal morto" ... os dossiers, as pastas com a preparação de aulas, os infinitos testes de avaliação varrendo todos os curricula, as micas para retroprojecção, as fichas de revisão de matérias dadas, esquemas e mais esquemas em acetato, na busca da simplificação e da clareza ... em suma ... toda a história da minha vida profissional, as centenas e centenas de páginas, manuscritas, impressas, fotocopiadas ... num ápice repousaram no "papelão" mais próximo de casa ...
Inapelavelmente ... numa tentativa de operação indolor ... num esforço de distanciamento e relativização das coisas ... despojando-as, como ando a treinar o meu coração e a mente há alguns meses, de emoções, de afectos, de nostalgias e mágoas ... despindo-as de todo um conteúdo imbuído de sentimentos e memórias ...

E assim, a frio ... apesar dos 42ºC lá fora ... consegui dar descanso eterno a toda uma "vida" ... a minha, que se estendeu a bem mais de trinta anos de história ...

Esvaziei o armário, arranjei espaço devoluto ... limpei o "lixo" adiado ... quilos e quilos de Química e de Física , metros e metros de informação e trabalho ... toneladas de esperança, sonho e aposta ... juventude, dedicação, entrega e esforço ...

E esvaziei-me por dentro ... também ...
Nunca supus que doesse tanto !...

Anamar

" TEMPOS ... "




Há um tempo para tudo, na vida.
Há um tempo para viver e um tempo para morrer.  Um tempo para estar e um tempo para partir.

Acredito verdadeiramente nisto.  Sinto exactamente isto.
E acho que efectivamente o ser humano é tão insignificante nesta imensidão onde um dia germinou, que é inócuo o seu estar e o seu ir.
Percebo cada vez mais a precariedade da existência e a insignificância do grão de areia que somos, na engrenagem gigante a que pertencemos.

Com a partida da minha mãe, com a ausência da sua figura física nos meus dias, consciencializo mais e mais estas verdades.
Dizem que o tempo resolve e que a terra esbate as faltas.  Penso que simplesmente nos habituamos a novas realidades, a novos contextos para a nossa vida.
A saudade é imensa, mas é uma saudade da minha mãe de toda a vida e não da minha mãe dos últimos anos.
Essa, foi uma figura estranha e desconhecida que aconteceu, de que tive que cuidar, que tive que amar, proteger e ajudar.
Essa, foi alguém que conduzi pela mão no trilho árido e agreste que foram os seus últimos longos dias, em passos titubeantes, cada vez mais imprecisos e incertos.
Essa, foi uma personagem que a vida, injustamente foi arrastando e arrastou tempo de mais, com um sofrimento que parecia cirúrgica e ironicamente escolhido, com uma forma que diríamos, desumana, maquiavélica, usurpando-a dia a dia, crescentemente, das capacidades que faziam e sempre fizeram dela, uma grande mulher !
Como uma folha morta largada na correnteza, o destino foi-a jogando sem rumo ou norte, impiedosamente, contra as penedias do leito, numa maldade sem tamanho !...

Já aqui referi vezes sem conta, em muitos posts que fui escrevendo em jeito de alívio, neste calvário dos últimos quatro anos, que  a começar pela dependência móbil que a confinou a uma cadeira de rodas, à degeneração mental progressiva que a afastou totalmente de nós e de toda a realidade circundante ... o ser humano que ela foi, tornou-se numa figura patética, irreconhecível e dolorosamente triste.
A mãe, a minha mãe que eu adorei por toda uma vida, filha única que fui, com uma dedicação e um amor extremos talvez por isso mesmo, esfumou-se no espaço e no tempo ... e partiu ... finalmente em paz !

E estranhamente, ou talvez não, foi paz que eu senti exactamente, desde então.

E quando, em conversa, um amigo me dizia noutro dia, pensar que eu levaria mais tempo a recuperar-me do choque da sua partida ... eu reflecti sobre a frase, e entendi-me claramente...
É que há um tempo para tudo, na vida.  Há um tempo para viver e um tempo para morrer.  Um tempo para estar e um tempo para partir ...

E a minha mãe esgotara seguramente o "seu tempo" por aqui ...

Anamar

segunda-feira, 23 de julho de 2018

" VOANDO COM ELAS ..."



Pelas seis da manhã já aí andam.
Elas, as pegas rabudas, os melros, as rolas, as andorinhas ...
Mas são elas que me acordam.  As gaivotas.  Muitas, planantes, ao sabor do vento que aqui é muito, quase sempre.
Não se inquietam no bater de asas.  Deixam-se embalar no baile que se faz lá por cima.  E grasnam, em gritos estridentes de marinhagem.

Acordo e fico quieta.  Sorrio para dentro.

Acho que as gaivotas não pertencem bem a este cenário arrumadinho, de Natureza plastificada.
Sei que estou no Algarve e que o mar aqui é rei.  Aliás, vejo-o a cada esquina ou recanto. Azul intenso, rematando um céu sem mácula.  Ponteado a vezes, por uma ou outra vela branca ...
Sei que estou num condomínio para privilegiados, para uso turístico ou para consumo interno ... de quem pode, bem entendido.
E obviamente todo o contexto tem que ser perfeito ... e é-o, de facto !
Flores, muitas flores cuidadosamente tratadas, de todas as cores, rochas dispostas aparentemente ao acaso, que o não é, relva bem cuidada, árvores e trepadeiras multicores aqui e ali, com intencionalidade ... fazem deste espaço, como de muitos idênticos, oásis para utentes exigentes.
Aqui, claro, praticamente todos falam outras línguas.  Provêm de países não bafejados por este clima abençoado, esta envolvência pródiga e generosa, que é a nossa.
São ingleses e alemães na maioria, gente de uma estranja de névoas, de céus cinzentos e dias escuros.
Gente fria e distante, bem ao contrário deste sul de uma Europa namoradeira de África, que empresta calor, emoção e paixão ao sangue dos que aqui nasceram.

Como dizia, o mar está por perto.  É o coração desta terra, e é dono destes areais.
E  se  o  mar  está ao virar de cada esquina, é expectável  que  as  gaivotas  também  o  estejam ( ainda que eu não ache tão lógico assim ... )
A menos que elas, já mercenárias, sejam também pássaro decorativo para "camone" consumir  (rsrsrs ) ...
Porque, gaivota para mim, é pertença de escarpas, falésias, arribas selvagens.  É pertença de costa bravia, de areais desertos, de ondas que tripudiam, no incessante vai-vem, dos rochedos que massacram ...
Gaivota é pássaro de liberdade total e absoluta, de horizontes sem limites, pássaro de silêncios ... pássaro de maresias, de marulho suave ou agreste ... de solidão e memória ...

E por isso elas me levam ...

Libertam-me deste "caixilho civilizado", e conseguem transportar-me daqui para bem longe.  Lá, onde eu vejo tudo isto, onde eu sinto tudo isto ... onde a Natureza é talhada à séria ...

Junto de mim, Énya solta os acordes da música da sua Irlanda rude, inóspita e selvagem.  Uma Irlanda  de  costas  impiedosas,  abruptas,  açoitadas  por  mares  encrespados  e  alterosos ...
Costas  envoltas  na  magia do indomado, do autêntico, das  neblinas  cerradas  e  misteriosas ...
E lembro " A filha de Ryan", um filme de há muitos anos.  Icónico na sétima arte, inesquecível ... fantástico ...  Visto e revisto ... Arquivado, sempre ...

Será por tudo isto que me sinto nostálgica ?!...

Anamar

" NÃO ADIANTA ... "



A gente adona-se dos lugares, de acordo com o que neles vive.
Sempre digo "a minha casa", "a minha rua", "a minha janela" ... mas também digo "o meu mar", "a minha serra", "as minhas praias", "a minha gaivota" ... "os meus horizontes" ... só porque eles são "aqueles" que têm história minha.
Minha, do princípio ao fim.  Mesmo que já não tenham.  Estão lá, mais ou menos intocados, vertendo momentos pelos poros.
Afinal, tudo passa por emoções.  Emoções reais que vêm do domínio da pele, dos olhos, do coração ... e se fixam como numa película, na mente, para toda a vida.

E é só isto.  Simplesmente isto ... não mais !

O que verdadeiramente não foi emocionalmente nosso, nunca se tornará nossa propriedade de afecto.
Poderá ser excelente, extraordinário, maravilhoso.  Mas não "nosso" !

As emoções sufocantes, as vivências de tirar fôlego, os "coups de foudre" que nos cegam o discernimento, nos aceleram o coração e nos emudecem a voz, acontecem apenas algumas vezes na vida.  Vivem-se apenas em momentos predestinados.  Mágicos.  Privilegiados.
E esses momentos são aqueles que fixam os "nossos lugares" em nós.  Para sempre !
São códigos emocionais inalienáveis e intransmissíveis.
E são poucos.  Apenas alguns.  Contudo indeléveis, eternos, incomparáveis ... insubstituíveis !

E nada disto se explica.
Como quase tudo o que pertence ao domínio do subconsciente, do sentido, do vivido na alma, não adianta tentar alterar, ou acreditar que será diferente.

Passei por muitos sítios ao longo dos tempos.  Como seguramente toda a gente.
Pisei muito chão, olhei muito mar, escutei muitos pássaros.  Deslumbrei-me com nasceres e pores de sol, sorvi todos os cheiros possíveis, bebi todas as cores de todas as flores que estavam lá e mais aquelas que eu inventei.  Perdi-me na luz mansa do horizonte e embalei-me na aragem cálida perpassante.  Vi a transparência das águas, reflectida em olhos meus e guardei silêncios de palavras não ditas, porque não era preciso ...
Toquei pele, mergulhei em corpos escaldantes, rebolei-me na areia quente do destino ou sombreei-me na mata tão inexpugnável quanto a minha alma ...
E tudo isso foi vida.  Ou melhor ... apenas isso é que foi Vida !!!...

A gente adona-se dos lugares, como se adona dos momentos, das memórias, dos retalhos de tempo que conseguimos guardar.  Apenas quando, e só, o coração o determina !
Tudo o mais são parcelas de história, que tentamos rechear como a vida se nos oferece, que tentamos escrever o mais harmoniosamente que podemos ... quando podemos ...
Contudo, nunca com a singularidade do irrepetível, do único ... do verdadeiramente nosso ... do tactuado para sempre !!!

Anamar