sexta-feira, 8 de março de 2019

" AS MINHAS TRÊS GERAÇÕES DE MULHERES "





Hoje, celebra-se mais um Dia Internacional da Mulher .
Mais uma efeméride "vendida", para obviamente vender ...

Não sei o que é ser mulher !

Sei que há diferenças notórias, substanciais e visíveis, entre os géneros, ou pelo menos, entre o arquétipo de cada um dos géneros.
É teórico que o Homem seja tido como racional, mais distante, pragmático, na colocação prioritária dos seus interesses, centrado funcionalmente, emotivamente mais volúvel, já que o Homem é reconhecido como fundamentalmente "visual" ( como se diz ), nas suas relações afectivas ... e a Mulher, como "emocional" ... menos "cabeça" e mais "coração" !
A mulher de hoje, é multifuncional, e penso que isto lhe foi determinado, pela necessidade vital de se distribuir, com competência, e em simultâneo , por meios familiares, profissionais e sociais.
A mulher é sensitiva ( não é em vão que se fala no seu sexto sentido ) .
É abnegada, esquece e limita-se a si mesma, em função da sua realidade envolvente, e dos que dela precisam, convive e é, com frequência, sustentáculo de dificuldades sérias, na sua própria estrutura familiar.
E supera-se, funcionando como esteio  dessa mesma célula, inventando e reinventando, um "modus vivendi", suportável.
Tende a ser uma boa profissional, de excelência às vezes, embora, estou certa, nunca a família ( mormente os filhos ), seja preterida, em função da profissão.
Porque isso é biológico, e genético.
Como tal, a exigência que faz à sua pessoa, para cumprir esse desiderato, traduz-se num sacrifício, globalmente acrescido, e numa transcendência de si própria .
Quando ama, a mulher dá-se, rende-se, entrega-se com satisfação, e pode mesmo  apenas exigir o mínimo retorno.
E nada do que lhe é pedido  constitui uma carga ou uma impossibilidade.
A mulher chega a ter o mérito, de segurar um amor incondicional  por um homem que não lhe corresponde em idêntica proporção ...
Mas não desiste ... desdobra-se, frustra-se com frequência, dói-se, morre aos poucos ... mas continua lá ( quantas vezes, culpabilizando-se ainda ... estúpida e injustamente ... Esta a única palavra que nos ocorre ... ) !

E chora ... A mulher chora muito ...
Mas chora no seu silêncio, no seu canto ... isola-se p'ra chorar.
Porque, muitas vezes, tira das lágrimas que lhe assomam, risos de fazer de conta ...
Colhe na ausência de esperança, uma poalha de luar  para seguir no seu caminho ...
Pinta na escuridão que desce, sírios estelares, que lhe iluminem o trilho a percorrer ...
Transforma os espinhos em tapetes mansos de musgos e erva verde, fofa e macia, para que, quem venha atrás, sinta o andar atapetado ...
Abre  os braços, como asas protectoras, como ninho, onde os ventos  de borrasca não derrubam os seus ...
Busca no desespero, força, mordendo os lábios até sangrarem, ditando um compasso de espera ao coração, para que ele adormeça e se aquiete ... até que a paz o invada !
É simultaneamente  uma fortaleza inexpugnável  e o aconchego duns braços, doce  e macio, onde acolhe o Homem, enquanto filho, enquanto irmão, enquanto amante, e mesmo enquanto pai, velho e alquebrado, sendo ombro e bengala ... ajudando-o  a  transpor a derradeira  ponte da sua vida !

Nos últimos tempos tem-se assistido a uma escalada alucinada de violência social contra as mulheres.  Desde logo no reduto do seu lar.  Frequentemente, pelas mãos do companheiro escolhido, ou de quem lhe deveria querer bem, protegendo-a, defendendo-a  e amparando-a.
Socialmente, o julgamento, a desprotecção e a irresponsabilidade assumidos  pelas autoridades competentes,  não só não demonstram a eficácia necessária às situações,  como ainda discriminam miseravelmente as vítimas destes processos persecutórios.  Descuram  e tratam de ânimo leve os maus tratos, a violência  e as sevícias indiciadoras de futuras  situações  mais graves  e  ameaçadoras, favorecendo e facilitando a actuação dos agressores, que infeliz e normalmente, acabam  consumando  lamentavelmente, os crimes.
Neste ano de 2019, que vai apenas com três escassos meses incompletos,  já morreram às mãos de carrascos frios e  monstruosos ,  13 mulheres !

Sou  charneira   entre três gerações de mulheres.

Atrás de mim, fica-me a minha mãe que infelizmente já não está entre nós  e  que foi tudo isto ... nos seus noventa e sete  anos de vida.
Geração forjada na dureza da terra que a viu nascer, com a força e a perseverança, que aquele Alentejo ( pouco generoso às vezes ), lhe conferiu !
Foi, até ao fim dos seus dias,  uma combatente, uma resistente, uma sobrevivente ... um exemplo ... uma Mulher !...

Depois de mim, tenho duas outras Mulheres, que na idade que já têm, ombreiam comigo, nos percalços, nas dificuldades, nas alegrias, nos momentos bons, mas também nos menos bons, desta nossa existência !
Já me couberam no cólo, já as guiei pelas mãos, com elas já ri...por elas, já chorei muito !
Continuarão comigo, se o Destino assim o quiser, até que sejam elas que chorem comigo, riam comigo, me alinhem os cabelos prateados dos tempos, me dêem as mãos, para que um dia, em passo titubeante, eu  possa  ainda  chegar  à janela, eu possa ainda, perder-me a olhar o sol, descendo no ocaso !...

Mais à frente está  a Vitória que caminha para os quinze anos e a Teresa que com os seus vinte e um meses ainda não guarda em si qualquer noção de género, na sua curta vida.
Irão  saber, forçosamente, aos poucos e poucos, qual o seu real lugar no Mundo  ...
Irão  perceber em si, um dia, este privilégio não partilhado, único, insubstituível, incomparável, de dar a vida e de dar a sua própria vida, junto ...
O privilégio de ter nascido Mulher !...

À Vitória, particularmente, eu saúdo !
Que ela albergue em si  sempre, um coração bem feminino ! Que nele, ela encontre  uma fonte de generosidade, de amor e transcendência  !
À  Teresa,  saúdo  igualmente, auspiciando  que  na  vida  saiba lutar e defender  o seu lugar e o seu papel, sem esmorecer perante as dificuldades, as injustiças, as adversidades  e  desigualdades  com que infelizmente ainda, a sociedade machista em que vivemos, faz a discriminação gratuita de género.

Eu, bem ... Eu devo ser simplesmente,  um misto destas raízes, um enxerto destes caules, a frutificação, do antes e do depois de mim, nestas formas imperfeitas, de se ser Mulher !...

Anamar

terça-feira, 5 de março de 2019

" NO REINO DO FAZ DE CONTA ..."





Carnaval cinzento, com alguma chuva miúda mas incómoda e aragem desabrida, contrariamente ao tempo que se tem feito sentir nas últimas semanas.  Está mais para quarta-feira de cinzas do que p'ra terça gorda ... O próprio tempo a brincar, ao que parece, ele mesmo, com os foliões !

Nunca gostei desta quadra meio ilógica e aparvalhada.  Desde miúda, fase da vida de riso fácil, folia desejada e inconsequência óbvia, nunca apreciei essa determinação calendarizada, de rir, brincar, disparatar e ser irreverente, só porque "é Carnaval e ninguém leva a mal " !
A busca de nos passarmos por um "outro" que não somos, de nos enfiarmos debaixo de uma pele que não é nossa, de fazermos de conta gratuitamente que agora é a hora de estar feliz e divertido ... nunca foi a "minha praia".
Em criança, inevitavelmente a minha mãe sempre me mascarava.  Era uma questão "institucional".  E sempre, da mesma coisa.  Ou era de sevilhana, ou de minhota ou de camponesa da Serra d'Ossa, em cujas faldas ficava a vila onde havia nascido.  Eram as indumentárias existentes à época, ainda assim, emprestadas por uma madrinha rica que podia dar-se ao luxo de as haver adquirido.
E todos os anos, os Carnavais tinham para mim, portanto, o mesmo "rosto".
Era uma chateação ter de me prestar a tais atribulações de vestimenta, penteado e maquilhagem, só para vir à rua fazer um pequeno desfile.  Não dava para o trabalho.  Acho mesmo, ou melhor, tenho quase a certeza de que a minha mãe se divertia com isso, bem mais do que eu ...

Os anos passaram e foi a minha vez de ser mãe.
Carnaval existe todos os anos, a tradição, incoerentemente parece meter-se dentro de nós, as famigeradas farpelas atravessaram os tempos e continuavam a pé firme ( com alguma picadela de traça na lã das indumentárias ) ... e as minhas filhas, igualmente sem entusiasmo excessivo ... foram as próximas "vítimas" !...

Ainda não existiam lojas de chineses, com toda a panóplia interminável de trajes de tudo e mais umas botas ... a  um  preço  baratinho  baratinho,  fazendo  jus  ao  descartável  da  coisa ( até para que não nos entediemos por repetições enfadonhas ) ... e portanto, a sevilhana, a minhota ou a camponesa da Serra d'Ossa  baixavam ao terreiro, e eram de novo, as opções viáveis.

A minha filha mais velha, desde sempre coquete e vaidosinha, adorava as peripécias.  Não reclamava dos puxões de cabelo a cobrir a palha de aço com que lhe arranjava volume para que a "peineta" não caísse, suportava quase sem pestanejar, a maquilhagem a rigor onde não faltava um sinal postiço e sensual na bochecha, colocava a mantilha com preceito e as castanholas nas mãos, não se agitava muito para não perigar o "boneco", e desfilava com toda a pose e compenetração devidas à circunstância.  E parecia não se enfadar.  Adorava a coisa !
A outra, desde sempre mais maria-rapaz, amofinava-se com tudo aquilo e não descansava enquanto não se desparamentava.
Resumiam-se portanto a curtas e rápidas incursões pelas mascaradas, as tentativas inglórias que eu fazia para que ela se divertisse.
Se divertisse ... achava eu, esquecida que parecia estar dos meus "padecimentos", na curva do tempo  ...
Idas a corsos, desfiles e afins, ocorreram algumas poucas vezes, e ainda assim nunca por iniciativa pessoal.

Hoje, acho que nem sequer já os netos mais velhos se mascaram.  O António, nos seus quase 18 anos, sempre muito contido e formal, penso que só em bébé a mãe o terá levado à certa ...
A Vitória, quase com 15, naquela fase chata e incontornável de uma adolescência espartilhada e controladora, deve achar toda esta transgressão um "non sense" para o que não tem paciência ... aposto ...
Resta o Kiko ... Por acaso não perguntei, mas talvez ele, com os seus onze anos, galhofeiro, super bem disposto e em constante brincadeira ... ele que leva a vida num permanente Entrudo ... talvez ele tenha optado por um qualquer boneco caricatural da sociedade actual, para se travestir. É o seu estilo preferido ...

Agora é a vez da Teresa.  Essa, com vinte e um meses, ainda não disse nem sim nem não ... Mas tanto quanto pude ver, não reclamou ou sequer tentou  tirar  as asas e a saia de uma borboleta linda, com que festejou a quadra, na escolinha.  Espantosamente, nem arrancou da cabeça, como faz impacientemente com os ganchos do cabelo, a bandolete que compunha o traje.  E parecia bem compenetrada do seu papel, rua adiante ...

Bom, isto está mesmo quase a terminar.  Amanhã começa a época cinzenta e descolorida do calendário.  A Quaresma, vivida nos preceitos religiosos, fecha as portas à desbunda, à irreverência e ao "pecado" dos excessos ora cometidos.  Entra-se na penumbra, na reflexão e na penitência.
E a loucura destes três dias em que estranhamente o ser humano se transfigura, se camufla, se omite atrás de uma máscara, ansiando o que não é, não foi e eventualmente nunca será ... a alucinação global, em que mergulhados tudo se nos permitiu, está a findar.
"Se a vida são dois dias e o Carnaval, três", houve que dar vazão aos desvios, aos excessos e às transgressões que se permitiram atrás de um disfarce.

No calor do Rio, ao que vi, a liberdade permitida da quadra, foi instrumento que se usou não só para a festa, a folia e a alegria solta do povo, mas também para homenagens e  protestos.
Felizmente, a manifestação de uma consciência social, a dizer no sambódromo o que não pode ser dito neste momento, a lembrar o que é arbitrário e perseguido, a despertar o que está silencioso e censurado, eclodiu e desceu à Sapucaí e ao mundo, mostrando os desmandos de uma sociedade silenciada, manietada, discriminada e ameaçada !

Em Veneza, o carisma barroco do seu Carnaval, "clean", civilizado, com a habitual "politesse", desfilou para turista ver ... como sempre !

Por cá, as sátiras sociais nos variados Carnavais do país, nos carros alegóricos, nos cabeçudos, matrafonas, zés-pereiras, não pouparam à tripa forra as figuras públicas na berra, passíveis de serem ridicularizadas e denunciadas. As "charges" políticas e sociais não poupam ninguém.
Aqui também, o cariz social  subrepticiamente aproveitado para se dizer o que depois se calará ...


E amanhã, a máscara ... esta ... ( não a de todos os dias ), cairá definitivamente, arrumando-se por mais um ano ... Afinal, foi mais um Carnaval que passou !...




Anamar

domingo, 3 de março de 2019

" SOLILÓQUIO NA MATA "





A melhor aproximação que consegui  à  Natureza ( eu, que vivo no betão, como já disse vezes demais ), é a caminhada que faço pelo meio da mata.
A mata, a bem dizer, é só uma matazinha que remata o concelho de Sintra, aqui nas imediações da Amadora.  Delimita os terrenos de um e outro lado, e por isso é desfrutada pelos munícipes de ambos os concelhos.
Em dias como os de hoje, em que a chuva anunciada pela meteorologia do meu telemóvel deu lugar afinal, a mais um dia de céu azul, sol claro e brisa primaveril, poder caminhar na mata, sente-se como uma bênção, privilégio de estar vivo.
Nesta altura do ano e com uma Primavera que se anuncia por antecipação notória, fruto das temperaturas elevadas que se têm feito sentir, a mata é particularmente convidativa.  O verde é mais radioso do que nunca, a vegetação despida começa a ostentar borbotos promissores pelos caules acima, flores modestas eclodiram por todo o lado, os pássaros, porque já é Março, mês de acasalamentos, trinam, gorjeiam e mostram-se saltitantes de galho em galho, as borboletas rodopiam pelas corolas e os zumbidos das abelhas soam e fazem-me sorrir ...  A  Natureza, uma vez mais não nos defrauda, e o seu ciclo de vida repete-se generoso, sempre !...
Afinal ela é uma permanente jarra de flores frescas ... quando umas morrem nascem outras ... quando não é época dos jacarandás, é tempo das mimosas ... se as madressilvas  não perfumam ainda, as glicínias inebriam ...Nunca a nossa casa deixa de estar florida !
A brisa, nem de mais nem de menos, mais afaga e acaricia do que incomoda.

E depois há o silêncio.  Silêncio daqueles ruídos perturbadores e desagradáveis, que os humanos causam ... as vozes, os carros, as máquinas ... tudo quanto nos agrada dispensar nestas circunstâncias.
E há quase ausência total de gente. Lá se encontra um ou outro, correndo, passeando os cães, ou simplesmente usufruindo do remanso e do ar puro que a mata oferece. Mas poucos ...
E há gatos sem dono que por ali vivem, certamente na maior felicidade do mundo.  Almas caridosas deixam-lhes comida e água, e depois eles têm a pradaria à volta, toda por sua conta.  Têm na dieta os roedores, rastejantes e voadores que por lá proliferam e que lhes desafiam os ímpetos felinos da caça.
Devem ser felizes, gerindo a sua vida livre e despreocupada !

E no silêncio que se "ouve", estou eu comigo mesma, nos monólogos surdos ou mesmo nos monólogos a meia voz, porque não há objectivamente nenhum perigo de me acharem tonta por falar sozinha ...

Hoje, eu pensava como a vida se revela  uma surpresa constante.  É uma história nunca terminada, com voltas e curvas, e esquinas e cotovelos que sempre escondem em jeito de caixinha de surpresas, o que vem adiante ...
O segredo é "bebê-la" aos poucos e poucos, em pequenas doses, sem afobações ou exigências.  Sem expectativas ou ansiedade.   Apenas recebendo-a tal qual nos chega.  E esgotando-a sempre, para que nunca possamos lembrar com lamentação que o não fizemos.
Estou numa fase da vida em que os grandes sonhos já foram sonhados, e concretizados ou não.
Uma fase em que procuro simplesmente viver, momento a momento, com a paz possível, com a percepção clara de que raramente o idealizado se atinge ... como o idealizámos.  Seja connosco, seja com os que nos rodeiam.
E assim, é grato relembrar o que foi, se nos aqueceu o coração.  E não deixar que o que não foi, nos azede a alma  e contamine o espírito.  Tudo foi o que tinha que ser e não mais do que o que tinha que ser.  E não adianta rebelarmo-nos contra essa entidade abstracta que é o destino !
Por isso, tomo-o como colheradas de um xarope cicatrizante, curativo e regenerador.  Sem utopias ou veleidades extemporâneas.
Percebo que deverei andar, se não posso correr.  Que deverei sorrir se não consigo gargalhar.  Que deverei tentar estar bem com o que tenho ... com o que vou tendo.
Porque tenho muito, sem dúvida.  Vou acordando todas as manhãs, vendo com os meus olhos, ouvindo com os meus ouvidos e andando ... caminhando com as minhas próprias pernas, gerindo-as, seja lá qual for o ritmo.
O tempo, agora, é o meu tempo, e devo aceitá-lo como ele é.
Os sonhos, agora, já não são grandes metragens.  Já não me sufocam a garganta ou aceleram o peito, além da conta.  Já não podem vestir-se de utopias inalcançáveis.  São amenos, serenos, lúcidos e dimensionados.  São chuvas frescas no Verão, ou quietude de sombra em canícula castigadora. E por isso devem adoçar-me o coração.  E não, magoar-me o espírito.

E isto será o equilíbrio.  O equilíbrio possível, sem deslumbramentos, presunções ou alienações ...
Isto será  a vida possível, quando o sol talvez  já demande o ocaso ...

Anamar













domingo, 24 de fevereiro de 2019

" UM FUTURO AMIGO DOS IDOSOS ..."




Caminhando pela mata, num domingo primaveril, desocupado e leve, reflectia eu, no silêncio aconchegante do verde que me envolvia, sobre um artigo que li recentemente no Jornal "O Público", respeitante a um tema que inevitavelmente, em situação normal, nos tocará a todos : o destino que o futuro mais ou menos remoto, dará às nossas vidas.

Quando eu ainda leccionava ( numa escola que foi da vida inteira, com um corpo docente praticamente estável, também da vida inteira ), de quando em vez, meio a rir meio a sério, nos intervalos ou nos "furos", em torno de uma mesa ou num dos sofás da sala dos professores, calhava vir, a sacramental conversa de circunstância : "um dia havíamos de ir todas para o mesmo lar.  O que é que acham ?  Ia ser divertido.  Íamos lembrar as histórias  por que passámos, íamos falar dos assuntos que nos interessam, íamos ter tardes intermináveis de tertúlias infindáveis, e serões à lareira, de risos e memórias, de partilhas e cumplicidades.
Cada um, de acordo com as suas capacidades, motivações e gostos, seria uma mais valia para o grupo.  A confiança e a amizade fariam o resto ...
E claro, íamos ter infinitas embirrações, manias, discussões e "caduquices" !!!  Já pensaram como ia ser animado ?  Bem mais animado seguramente, do que o que provavelmente se desenhará no nosso horizonte, de acordo com os figurinos actuais ..."
Ríamos, dizíamos uma outra laracha a propósito, encompridávamos  o pensamento pelos tempos vindouros, como se dessa forma pudéssemos espreitar adiante ... E pronto ... não passava disso mesmo !

É que,  "esse dia" surgia ainda remoto nas nossas vidas.  Era um cenário considerável, mas tão distante na verdade, nas nossas mentes, que não nos causava qualquer apoquentação real !
Afinal ainda faltava tanto para nos aposentarmos, tanto para envelhecermos, tanto para sequer equacionarmos a necessidade de nos colocarmos essa questão !
Éramos jovens, podíamos tudo, atravessávamos a idade de produzir em pleno, éramos profissionais denodados, mães e pais de filhos ainda pequenos, em idade escolar alguns, menorzinhos outros ... e esse assunto vinha e ia com a leveza de uma preocupação que a bem dizer, ainda não o era.
Conformava simplesmente, uma espécie de brincadeira com que nos experimentávamos.

Contudo, o tempo passou.  E como passou rápido !
Alguns de nós também já passaram do mundo dos vivos, e de outros, vamos sabendo com frequência demais para nossa mágoa e tristeza, que se encontram injustamente em vidas precárias, já sem qualidade ou esperança.
E de repente, parece que esquecemos que haveria um dia em que o "tal dia" nos ficaria mesmo mesmo ao virar da esquina.  E chegamos a surpreender-nos ... nem chego a perceber bem porquê !...

E o nosso devir está aí.  O passado, o presente e o que será o futuro, parecem ter-se sentado rapidamente na nossa mesa, parecem ter ocupado um lugarzinho na nossa cabeceira, por cada manhã que despertamos ...
Os filhos estão criados e criam outros filhos. As casas paternas ficaram imensas pelos espaços vazios que albergam.  O nosso tempo individual também se agigantou.  Os projectos são tão relativos quanto o tempo de que teoricamente disporemos.  E finalmente, não poderemos ignorar ou fingir que não percebemos, que o tal dia se aproxima a passos largos.
Há que delineá-lo, então.  O futuro que ainda tivermos, convém que possamos nós mesmos, defini-lo.
Pelo menos, eu penso assim.  O que eu quiser, dentro do que eu puder, exijo que me caiba a mim decidir.

É aí que se prende o artigo que referi e que posto abaixo, da autoria da jornalista Alexandra Campos do jornal "O Público" e que deixo à vossa consideração.

Em Portugal, esta solução para o destino sénior, poderá ainda classificar-se de uma miragem, creio. Contudo, parece começar a dar os primeiros passos, e parece-me também ter a simpatia e a adesão da maioria das pessoas eventualmente abrangíveis, no futuro.
Não acredito que possa vir a considerar-se com expressão social, já na minha geração, infelizmente.  Seria utópico nisso acreditar.
Pesando embora a sensibilização geral favorável a este modelo de futuro geriátrico, esbarra-se objectivamente, como sempre, em todo o tipo de obstáculos materiais, institucionais, políticos, legais, económicos e até culturais, que na verdade, do ponto de vista prático, serão barreiras muito difíceis de ultrapassar num país de parcos recursos e de carências múltiplas aos mais variados níveis.
Levará tempo até que Portugal se torne de facto, um país "amigo dos idosos" !

Mas que seria tão simpático que dele pudéssemos usufruir ... lá isso, seria !!!



ENVELHECIMENTO -    Jornal  "O Público"   - 22 de Fevereiro de 2019

Vamos envelhecer juntos? Cohousing dá os primeiros passos em Portugal

A “habitação colaborativa sénior”, uma “espécie de república”, mas com regras e serviços de apoio partilhados, pode ser uma alternativa aos lares de idosos e à fatalidade de os mais velhos viverem sozinhos.
                                                      Alexandra Campos 


Na Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto apresentaram-se vários modelos de Cohousing 

Kerstin Kärnekull tem 75 anos mas parece ter menos dez. Há um quarto de século que a arquitecta sueca escolheu viver no primeiro projecto de cohousingdo no seu país, uma experiência de habitação “colaborativa” para a “segunda metade da vida”. 
Localizado em Estocolmo, o Kollektivhuset Färdknäppen inclui 43 apartamentos com um a três quartos, uma pequena cozinha e um espaço comum com 350 metros quadrados, onde os amigos se encontram. “Quando envelhecemos, não há nada mais importante do que estar com outras pessoas”, enfatiza.

No Färdknäppen, há turnos para preparar refeições, há turnos para fazer limpezas e há turnos para toda uma série de tarefas. E todos colaboram. É “uma escola de democracia”, sintetiza. Nesta comunidade com 56 pessoas entre os 53 e os 93 anos, cerca de dois terços são mulheres. 
A já longa experiência tem corrido bem. Mesmo aquela ideia feita de que viver em comunidade acaba com a privacidade é um mito, assegura a arquitecta. “Tive um amante durante cinco anos e ninguém percebeu”, graceja.


Kerstin esteve nesta sexta-feira na Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto a descrever, perante uma plateia maioritariamente grisalha, como funciona o seu projecto de cohousing, como evoluiu o conceito — que surgiu na Dinamarca nos anos 70 do século passado, e como esta opção de vida revelou ser a mais acertada no seu caso. “Dizem que se ganha 10 anos por viver num lugar como este”, afirma, jovial.
A arquitecta partilhou a sua experiência na conferência internacional “Cohousing em Portugal — Viver Sustentável”, que foi organizada pela associação Hac.Ora Portugal Senior Cohousing, uma associação sem fins lucrativos fundada em 2018 e que é liderada pelo ex-presidente da Câmara Municipal do Porto Nuno Cardoso.

Uma “espécie de república”

O ex-autarca está convencido de que a “habitação colaborativa sénior”, uma “espécie de república”, mas com regras e serviços de apoio partilhados, é a alternativa aos lares de idosos e à fatalidade de os mais velhos ficarem a viver sozinhos quando não têm retaguarda familiar e não lhes resta outra hipótese. “Já há lares de idosos que são fantásticos do ponto de vista físico. O problema é que a institucionalização faz-se muito tarde e as pessoas chegam muito dependentes. O ambiente acaba, assim, por ser sempre um bocado deprimente. E não há soluções para os séniores mais activos”, lamenta.


Exemplos de habitação partilhada

Em Portugal são poucas as iniciativas conhecidas de cohousing, mas há uma em Águeda, já com meia dúzia de anos, fundada por uma instituição particular de solidariedade social, "Os pioneiros", que, em 2012, criou uma “aldeia sénior”, hoje com 18 idosos, que vivem num aglomerado de pequenas casas, com o apoio de profissionais.

Mas há vários projectos a germinar. A Santa Casa de Misericórdia do Porto (SCMP) tem dois: um que passa pela recuperação e reabilitação de "um antigo bairro destinado a mulheres viúvas" e outro, "um núcleo muito restrito", a instalar num imóvel da instituição, dentro de um ano e meio. 
"Poderá revelar-se uma boa aplicação prática deste modelo e servir para provar à população que é possível", explicou o provedor da SCMP, António Tavares, na conferência desta sexta-feira, no Porto.

Em Lisboa, segundo Paula Marques, vereadora da autarquia, há um projecto com este espírito que já tem dois anos: um equipamento "intergeracional" instalado no Bairro Padre Cruz, que inclui "creches e espaços de acompanhamento de jovens" no rés-do-chão e residências assistidas nos andares de cima, apenas para idosos com autonomia. 
O projecto foi promovido pela Câmara Municipal de Lisboa e é gerido pela Santa Casa da Misericórdia da capital.
No encontro, Guilherme Vilaverde, da Fenache (Federação Nacional das Cooperativas de Habitação Económica), adiantou que já se está, com algumas cooperativas, a idealizar vários projectos, mas é preciso "legislação e financiamento".

Mas se alguém pensa que este é o renascer de comunidades hippies está enganado. “Esse movimento está ultrapassado”, afirma Cardoso. 
No cohousing cada família tem garantido o seu espaço pessoal, mas não existe apenas um modelo. Esta é “uma ideia de liberdade”, cada grupo “vai definir as suas regras”, apesar de também haver projectos de cohousing institucional, até para os mais jovens, diz. 
Tendo em conta o acelerado envelhecimento em Portugal, os idosos são, porém, a prioridade. 
Outros países europeus já entraram há muito tempo na corrida e Espanha está neste momento “a fervilhar de projectos”.

Mas se o cohousing vem “ampliar o leque de oferta habitacional” e contribuir para a “regeneração urbana e para a sustentabilidade ambiental”, ainda carece de enquadramento legal em Portugal, afirma o ex-autarca que foi recebido já pela comissão parlamentar para a lei de bases da habitação, onde quer que este modelo venha a ser contemplado.

Num país de proprietários

Ainda júnior em Portugal, a habitação partilhada já tem longos anos em vários países. 
São muitas as iniciativas de cohousing, como demonstrou Sara Brysch, arquitecta e doutoranda da Co-Lab Research na TU Delft (projecto holandês), que explicou que este conceito é “bastante flexível”. Pode resultar em cooperativas de residentes, em grupos de construção (caso da Alemanha), em soluções de cessão de uso (caso de Espanha).
Também a propriedade dos espaços pode ser privada, colectiva, cooperativa ou então poderá optar-se pelo arrendamento cooperativo (modelo que predomina na Suécia). A ideia é ter casas ou apartamentos independentes (equipados com todos os serviços essenciais de uma habitação, com quartos, casa de banho, cozinha/kitchenette, zona de estar) e um espaço comum partilhado, com sala, cozinha, lavandaria e, eventualmente, quartos para convidados.
A arquitecta deixou claro que o cohousing  “não é uma comuna, não é um condomínio fechado, não é uma cooperativa de construção nem é co-living, porque o modelo mais comercial não inclui a participação dos residentes”. E, frisou, é essencial assegurar a criação de parcerias, financiamento e envolver autarquias.


Em Portugal há um obstáculo: somos um país de proprietários (75% das famílias compraram as casas onde vivem). É uma questão cultural, mas que pode ser ultrapassada. 
Ainda temos energia e este é o modo de vida que nos interessa”, atesta a economista Luísa Bernardo, que seguiu com interesse a conferência. “Nós somos potenciais vendedores das nossas casas”, diz, lembrando a frase de uma mulher que optou por este modelo: “Disse ao meu filho: eu é que vou sair de casa."

Anamar

sexta-feira, 15 de fevereiro de 2019

" ELES ... "




Eles vivem connosco.  Porque nós o quisemos, não que eles se tivessem imposto.
Eles dividem o nosso espaço, partilham-nos as preocupações, escutam-nos os silêncios, acarinham-nos.
Eles olham-nos nos olhos, mesmo quando mais ninguém nos olha nos olhos.  E "conversam" ... dizem-me  tantas coisas ... ao seu modo ...
Eles  buscam-nos  o  colo e o calor, quando  os  filhos  já  o  deixaram, há  muito, e  foram  às vidas ...
E também já me secaram as lágrimas, ou lhes tomaram o sal quando elas escorriam rosto abaixo ...
Esperam-me na porta, quando na fechadura a chave me anuncia.  E não me perguntam de onde ... e porquê ficaram ali, sós.  Esperam-me simplesmente.  E "sorriem" ... ou quase sorriem ...
Ouvem a minha música, partilham do meu sol.  Aceitam as minhas festas, ou os meus ralhetes mal humorados, em dias menos fáceis ...

Eles são os nossos companheiros de percurso.  São os seres que apelidamos, injustamente, de irracionais e com quem dividimos a vida.
Não pedem, não reclamam, não reivindicam.  Têm a generosidade que muitos humanos não têm.
São extensão da nossa família.  Ou pelo menos, devê-lo-iam ser ... sempre !

Já conheci alguns, ao longo dos anos.
As suas histórias cruzaram-se com a minha, até que o destino lhes pôs um ponto final.
Até hoje a sua ausência me aperta o coração.  De todos guardo momentos, ocasiões, memórias ... sempre gratificantes, sempre felizes ... eternas.

É uma angústia quando adoecem.  Não se queixam.  Percebemos que não estão bem pelos sinais que vão deixando, se os soubermos olhar.  São discretos.  Buscam muitas vezes o isolamento.  Escolhem um lugar silencioso e tranquilo para se aninharem, por forma a não perturbarem.
Até na morte têm dignidade.  Uma imensa dignidade !
Foi assim com o Óscar, a Rita, o Nico, o Gaspar ... e todos os outros que passaram por mim.

A sociedade, infelizmente, ainda desprotege brutalmente os nossos bichos.
Como tratá-los como merecem, com os valores astronómicos que nos são exigidos, por cuidados de saúde, por acompanhamento médico, pela simples alimentação ?!...
Mas como negar-lhes também, esses mesmos direitos ?!
A responsabilidade que sobre eles nos cabe, o amor que lhes devotamos e o respeito que lhes é devido, impõem-se-nos.  Afinal eles são, como dizia ... extensão da nossa família !

Fui impelida a escrever este texto, que na verdade  de novo nada traz , ao regressar com o Chico, de mais uma consulta na Faculdade de Medicina Veterinária.  Exames inconclusivos, diagnósticos generalistas ... pode não ser nada ... pode ser tudo ... mais um exame a ser feito ... duzentos euros, o valor ... quando mais do que isso já foi gasto ...
E pergunto-me : "Como poderão tantas pessoas de recursos precários, encarar uma situação destas ?  Como poderão tantos idosos de parcas possibilidades financeiras, acorrer ao tratamento do seu amigo de fim de linha ?...  Às vezes, o único que lhes ficou !... "

Instituições quase sempre a viverem exclusivamente de voluntariado, de ajudas beneméritas de particulares ... gente anónima que por amor e carolice, nas ruas, apoia, protege e defende como pode, são as únicas estruturas que, com todas as dificuldades e carências que conhecemos, ainda vão dando a resposta possível à realidade que nos rodeia.
Partidos políticos ( ridiculamente preocupados com provérbios ... ), talvez devessem tentar implementar uma política real de apoio na saúde, aos companheiros que connosco dividem as vidas.
Isso sim, seria legitimar os seus direitos.

Afinal, eles estão desde sempre, connosco,  no Planeta Terra !...

Anamar

quarta-feira, 13 de fevereiro de 2019

" A PROPÓSITO ... "






O sol acabou de descer no meu horizonte visual  lá longe onde os prédios o desenham, como uma bola de fogo bem iluminada, num laranja aceso de fim de tarde.
Os dias azulam, são claros e luminosos, como se a Primavera já por aqui estivesse.  Do que me lembro, e não sei porquê, sempre Fevereiro assim nos surpreende.
Entretanto no Havai, os ventos sopram a 300 quilómetros por hora, e há neve nos pontos altos. Manifestações de uma Natureza zangada com o Homem, que a manipula e destrói.

Os pássaros, mal a primeira luz da manhã se anuncia, começam os gorjeios de acasalamento no plátano das minhas traseiras.  Oiço-os no silêncio do meu quarto, quando os olhos ainda não se me fizeram ao dia que começa.  É altura da construção ou reparação dos ninhos.  Daqui a pouco começam as posturas, e depois ... o ciclo da vida retoma a marcha.
Dizem-me que já há andorinhas por aí.  O Alentejo tem os postes de alta tensão, ponteados de cegonhas, em ninhos que não chegaram a abandonar, uma vez que as alterações climatéricas parecem não justificar já, a debandada  para outras paragens.
As mimosas douram as ramagens, os folhados breve se encherão dos pequenos bouquets brancos que os adornam generosamente e as azedas cobrem os campos de um amarelo claro e luminoso repleto de vida !

Amanhã é uma vez mais  no calendário recente, dia de S.Valentim.  Dia do amor, da paixão, dos sentimentos exacerbadamente valorizados, numa manobra de marketing consumista, importada artificialmente das estranjas.
O vermelho impera, associado ao calor de fogueiras afectivas e emocionais, como se os sentimentos se medissem por termómetros coloridos.  Os corações, as rosas vermelhas, as roupas íntimas sugestivamente escarlates também, com pormenores de tapa-destapa eróticos ... as caixas de chocolates afrodisíacos, são as peças de um puzzle que tenta vigorar pelo menos pelas vinte e quatro horas que completam o dia catorze de Fevereiro de cada ano ... São acendalhas de uma fogueira que se assopra, no desejo de que o desejo se acenda, custe o que custar ... Só porque sim !!!

Entretanto a violência entre as pessoas, dispara.  As estatísticas denunciam números assustadores de mulheres vítimas, por cada dia que passa.  Provavelmente de homens também.  De crianças, apanhadas no fogo cruzado de relações que se desfazem ... seguramente ...
Essas, nem chegam a entender o porquê ...
E há também a violência psicológica, mais fria e cortante que a física.  Existe no silêncio, funciona na chantagem, na manipulação, na ameaça ... grassa na miséria, na submissão e no medo.  Quando as alternativas de vida escasseiam ...
Alberga o ódio, semeia a solidão e a dor.
É cirúrgica, matreira, falsa, desapercebida ... quase sem rosto ...
Coexiste com o desamor. É cinza de brasas apagadas.  É desmantelo de derrocadas moribundas.
Destrói e mata.

E amanhã, lamentavelmente, é mais um dia de fazer de conta.  Como se os sentimentos nos caíssem no coração, por decreto. Como se a nossa alma se engalanasse, só porque a página do calendário o decidiu ...

Os amores são muitos.
Os verdadeiros, os reais, os sentidos, os que  tocam a sério as fímbrias do nosso ser não carecem de hipocrisias ou justificações vazias, para existirem.  Não precisam de se exibir socialmente. Não têm mês, dia ou hora para ser.  Simplesmente, são ... porque são autênticos, indeléveis e eternos.
Não necessitam de tradução, porque quem os vive tem códigos de entendimento.
Não precisam ser ditos, porque se vêem no olhar e porque se denunciam no calor das palavras que escorrem.
São amores com história.  Aquela que se nos escreveu no peito e que as marés não apagam, porque foram cinzelados a fogo "ad eternum".
São únicos, exclusivos ... raros e um privilégio quando nos acontecem nas vidas !

Bom... sinto-me amarga.  Noto-me em desencanto.
Há largos meses que não escrevo um poema.  E eu gostava de fazer poesia ...
Talvez ela não povoe mesmo já, a minha vida !...

Anamar

terça-feira, 12 de fevereiro de 2019

" LAMPEJOS DE FELICIDADE "






Abrindo o Facebook, e porque é preceito desta aplicação, de quando em vez nos refrescar a memória com "memórias" nossas, postadas anos atrás - textos publicados, fotos partilhadas de eventos que vivemos, comentários de amigos, a propósito ... enfim, aquelas coisinhas que quase sempre nos aquecem o coração e adoçam a alma - surgiram-me fotos de férias  passadas no Brasil em 2015.
Foram duas semanas divididas entre a Amazónia e o Pantanal, culminando um sonho antigo, acalentado ao longo dos anos.  Mais precisa e principalmente, desde que na televisão foi exibida uma novela inesquecível, de que não perdi um só episódio : " Pantanal".

Apesar de ter uma ideia mais ou menos formada portanto, do que seria essa privilegiada região do Brasil, a distância entre a imaginação e a realidade, configurou-se num fascínio, num emaravilhamento, numa felicidade simples, plena e serena, face ao Paraíso que lá me esperava, sem que haja adjectivos sequer que as aproximem.

Bom, mas a razão por que escrevo este meu post, não se prende exactamente com o intuito de descrever o que foram, de facto, esses dias.
Verifiquei e reli outra vez, todos os comentários tecidos por quem visualizou as fotos de então.  Entre eles, saltaram-me aos olhos algumas palavras deixadas pela minha filha mais nova.
Relembrava nelas, com um saudosismo perceptível, os tempos em que a série passava, num enlatado semanal de todos os episódios, aos sábados fim da tarde / noite.  Era ela então adolescente, com dezassete anos.
Como eu, fascinada pelas belezas naturais e pela magia que o Pantanal encerra, era também assídua e entusiasta espectadora.
E como a exibição era longa ... e como não havia na altura possibilidades de rewinds, gravações em box ou outros artifícios que permitissem uma visualização mais ao nosso jeito, carecia assegurarem-se por perto, alguns mantimentos e vitualhas que fizessem daqueles fins de dia, sem outros especiais programas em vista, verdadeiros e indeléveis picnics.
Era uma delícia ... tostinhas no forno com queijo derretido e paio alentejano, chocolate quente, um ou outro docinho ... e mais o que lembrássemos na altura.
Se era Inverno, assistíamos mesmo  na televisão aos pés da cama, no quente dos cobertores.  Era um ritual quase sagrado e muito gostoso !...

E ali ficávamos nós duas, sem pressas, vivendo os sobressaltos com a onça pintada, os receios da sucuri ou da surucucu  traiçoeiras, olhando a garça branca rasando as águas, ou o tuiuiú descendo com a corpulência das asas esticadas.  Ali ficávamos,  deixando-nos levar pelo som do berrante dos peões, no comando das comitivas, na transumância das boiadas, ou simplesmente nadando com a Juma nas águas mansas e caladas, por onde a chalana  melancólica e silenciosa, deslizava ... 

E vivendo, magicamente, através da história contada, a vida simples, livre e despreocupada descrita numa narração que nos transportava no sonho, através dela, ao outro lado do mundo... o Pantanal !...  

Eram sábados sem pressa, eram tempos com tempo para partilha, para diálogo, para rirmos e também para imaginarmos ser possível um dia, quem sabe, nós duas, cumprirmos o desejo de por lá andar também...
Eu, realizei-o exactamente vinte anos depois.
Ela, ao rever as imagens, lembrava e dizia : " o Pantanal ... tempos em que eu era feliz e não sabia" !

A vida também é isto ... pequenos lampejos de momentos felizes ... bocadinhos de bem estar e cumplicidades,  mesmo que nem sequer o tivéssemos suspeitado !!!...

Anamar 

segunda-feira, 4 de fevereiro de 2019

" NÃO SEI BEM PORQUÊ OU PARA QUÊ !... "



As mimosas já se adornam no manto dourado que as envolve.  São uma mancha de luz que ladeia os caminhos. 
Na mata, a única mimosa que a habita, também deverá ter as ramagens de Inverno, generosamente engalanadas com as bagas amarelas como pequenos sóis dependurados.  Irei ver, um dia destes.
É uma época do ano em que o amarelo tem o privilégio de preponderar.  As azedas multiplicam-se e atapetam os campos.  As macelas competem com as margaridas selvagens, e as cantarinas seguramente já treparão as encostas da Aguda .  Não demora, os narcisos festejarão a nova estação que virá ...
É como se o sol descesse à terra e aguarelasse os nossos horizontes.

Ontem fui verificar a caixa do correio da casa da minha mãe.  Não sei bem porquê, ou para quê...
Que carta ou que notícias espero lá encontrar ?!
Fiquei com as chaves, ainda.  Não sei bem porquê ou para quê...
De lá, só retiro publicidade que entope um receptáculo sem vida.  Para ali já ninguém comunica, já não há contas de água, de luz, de telefone, a aguardarem a devida liquidação.  Para ali, já não há comunicação personalizada, só papelada anónima sem destinatários ou receptores que a aguardem.
Retiro tudo, para esvaziar a caixa.  Subo os dois degraus que separam o hall de entrada dos andares térreos.  A porta lá está, silenciosa, cerrada, muda, inerte.  Morta ... também ! O mesmo tapete no chão.  A mesma ausência de gente, a mesma solidão ... o mesmo vazio.
Há tempos atrás, metia a chave à porta e entrava.  Como se quisesse verificar que estava tudo como foi deixado. Que continuava tudo exactamente como ficou.  Que a luz que atravessa a vidraça da cozinha, ainda ilumina da mesma forma o espaço que alcança.  Agora, vazio.  Devoluto.  Frio.  Gélido.  Sozinho.  Absolutamente abandonado. Serenamente abandonado.
Como se quisesse verificar, se dúvidas tivesse, que as flores já lá não estão, que os móveis também não, que não há sons, vozes, risos, passos ou correrias das miúdas.  Como se me esperançasse que, metendo a chave àquela porta, ela se abrisse e lá estivesse a minha mãe, na salinha, com o Gaspar aos pés, com a televisão ligada no programa do "Gordo" ... aguardando a hora de eu passar para as aulas, no último adeus do dia ...
Como se esperasse ... alguma coisa ... alguém ...

Agora, já não consigo fazê-lo.
Subo os dois degraus, é verdade.  Olho para a porta, silente e imperturbável.  O tapete permanece, indiferente. Por ele, contudo, nem eu já sou capaz de passar ...
Repouso o olhar naquela porta, sem precisar mais de entrar, porque sei de cor o que está além dela, centímetro a centímetro, oiço-lhe as vozes, sinto-lhe os cheiros, dia depois de dia do que foi mais de meio século de vida !
Cá fora, bate o sol dourado da tarde no parapeito das janelas ...
"Vamos p'ra dentro ? - dizia-me, quando depois do almoço espreitávamos o vai-vem da avenida, enquanto o sol baixo de Inverno nos presenteava.  " Ainda bate aqui o sol, mãe.  Já vamos !"

Estava lá ontem, que eu sei. Quando fui verificar a caixa do correio ...
Não sei bem porquê ou para quê !...

A vida !... 
Um dia fica assim. Parada. Inerte.  Insensível.
Um dia fica assim ... uma memória que rasga a indiferença dos tempos, uma imagem a sépia, a esbater-se na luminosidade de Fevereiro ... 
A mesma rua, as mesmas janelas ... a mesma porta ... até o mesmo tapete no chão ... ainda.  Tudo igual e tudo espantosamente diferente.  O mesmo sol a bater no parapeito ... Só que o sol nunca se repete ... nada se repete.  A vida segue adiante. As histórias reescrevem-se com outras personagens, outros rostos, outros corações a pulsar ... com outros figurantes ...
A vida segue adiante ... simplesmente !

Anamar

sexta-feira, 1 de fevereiro de 2019

" FLASHES DO QUE ME APETECE ..."



Já anoiteceu. São contudo apenas seis e um quarto de uma tarde sonolenta, de tez meio dourada, de um sol envergonhado que nem foi, nem deixou de ser.
Foi mais um dia de um Janeiro a extinguir-se, um mês decorrido já sobre o Natal, que parece ter sido apenas ontem.
Este silêncio que me aconchega, aninha-me.  É o quarto de sempre, a música de sempre, a janela com vista do alto sobre todo o casario que se estende adiante e lá longe, onde a linha do horizonte se fecha.  Daí, o meu pensamento segue então, cavalgando até onde eu quiser, e até onde eu sei estar tudo o que me apetecer lembrar, tudo o que me trouxer memórias, espaços, emoções e sentires, pessoas, sons, cheiros e cores.
Para lá, além do permitido pelos olhos, há o permitido pelo coração.  E esse, como a mente, não tem limites, barreiras ou muralhas que o confine ou cerceie.

Lá, onde o fraco sol da tarde adormeceu, fica o mar.  E esse, sei-o em cântico de languidez, em ladainha de embalo, em melopeia de adormecimento.
O mar, é o que não começa nem acaba, é o que não tem fim ou princípio, é o que vive para lá dos tempos e os eterniza para além do sempre.
E sempre, é uma palavra que não existe no dicionário dos Homens.  Como nunca.  Nunca, também não sonhamos sequer, o que seja.

E o mar não se define.  Como o Homem, que também não tem definição ou fórmula.
O mar encrespa-se irado. Roça-se de meiguice na calmaria das marés, se são rasas.  Empolga-se e agiganta-se se a lua cresce e se enfuna nas madrugadas.  Pintalga-se em espelho da poalha estelar, se a noite for mansa e escurecida.  Abrilhanta-se em prata, afogueia-se nos pores de sol, azula-se sob céus imaculados e esverdeia-se enraivecido e cavernoso, como olhos de mulher traída ...
O mar ... longe do qual nasci e  junto do qual quero ficar ... quando for ...

Hoje, não tenho sobre o que escrever.  Preciso escrever ... é o que sinto.  Entupo-me por dentro se o não faço.  A cabeça não ajuda, por entorpecida.
Vivo tempos estranhos.  À minha volta, dos que conheço, os problemas, as angústias, as dúvidas e as apreensões instalam-se.  São problemas de saúde, que mesmo nos mais saudáveis começam a anunciar-se.  São problemas existenciais, práticos e objectivos, ou mais disfarçáveis.  Daqueles mesmo que as pessoas carregam, sem que lhes venham ao rosto.  São insatisfações ou incertezas.  São medos ou fobias pelo que aí vem, quando vier e que não sabemos.  São horizontes, que pareciam tão distantes ainda, e que desataram a caminhar na nossa direcção, estreitando os caminhos, aproximando os limites ...
São também os "não problemas".  Desses, eu padeço muito, porque penso demais, acho.
Por vezes invento-os ... acho também.
Pergunto-me pelo tempo.  Pelo que tive, pelo que desperdicei, pelo que terei.  E, já aqui o disse ... tenho uma permanente e estranha sensação de últimas etapas.  É esquisito, eu sei, mas, depois de ter enterrado os meus pais, tios e todos os ascendentes sobrevivos, senti claramente que avancei um passo adiante.  Senti claramente que entrei numa calha de acesso.  Senti claramente que agora fui eu que ocupei os lugares que se esvaziaram na fila, e que serei eu que os esvaziarei de seguida ...

Um destes dias olhei as minhas filhas.
Meia idade, quase jovens ainda ... Quarenta anos,  não serão preocupantes, creio.  E achei que também a elas, o tempo não estava a poupar.
Vi-lhes rostos crispados, cansados, stressados ... com sinais dos primeiros cansaços a sério, das preocupações e dificuldades das existências.
Rostos que ainda ontem tinham luz, olhos que sorriam de despreocupação, silhuetas cuidadas, elegantes, bonitas mesmo ... revelando o desgaste da luta, mostrando o peso das responsabilidades de vidas que se foram fazendo, como se eu não tivesse dado por isso ...
Acho que as "olho / revejo", nostalgicamente, saudosamente, surpresa mesmo, como se os anos não tivessem rodado e eu pudesse espreitar lá atrás ... nos tempos, que agora percebo leves, da sua juventude.  Como se eu me tenha distraído por aí ...
Olho-lhes os primeiros cabelos brancos a espalharem-se, sem se anunciarem sequer ... e emociono-me, sem querer ... Como foi tudo, tão súbito, tão silencioso, tão em bicos ?!...
E vejo os netos, adolescentes, daqui a pouco adultos, daqui a pouco com as cargas que também lhes serão devidas ... e oxalá o sejam ...
E de novo, tudo tão súbito, tudo tão silencioso ... tudo tão em bicos de pés ...

Estranho, tudo isto ...
Qual estranho ?! - dirá quem me ler, atestando-me insanidade real.
Não será tudo, afinal o rumo normal das vidas ?  Não será afinal este, o percurso desejável, expectável e sem demais estranhezas ?!  Não será exactamente assim que se cumprem os itinerários de quase toda a gente ?!
Acredito que sim.  Daí eu falar nos meus "não problemas" ... como se eu, ou alguém pudesse ter algum ascendente sobre o desenrolar inevitável dos tempos ... Como se a minha vontade, o meu sentir, as emoções que experimento, pudessem alterar o desenrolar dos caminhos ...
Parece-me tudo tão irrelevante, tão precário, tão pouco importante ... tão insignificante e sem sentido, como peças de xadrês  atontadas, num tabuleiro incomandável ...
Um piscar de olhos e o ontem já foi ... um suspiro, e o amanhã está quase a ir ...

Fico por aqui, neste "non-sense" que se me impôs, que me ocupou a mente, que me assalta em noites que o sono abandonou ... numa espécie de escrever ao sabor das ideias, numa espécie de libertação dos sentires, sem censura ou filtragem ...
Uma espécie de cansaço ou desencanto ... talvez seja essa a única classificação possível ...

Anamar

sábado, 19 de janeiro de 2019

" TERGIVERSANDO ..."




Um sábado de cinza, no céu uniforme e borrascoso, nas ruas de gente apressada a fugir à eminência da chuva já próxima, e também em mim, pintada por dentro com as cores frias que me rodeiam.
"Ao meio dia ou carrega, ou alivia", dizia a minha mãe, na sua sapiência de mulher velha, espaldada sempre na sabedoria do povo.
E é muito verdade.  Pelo sim pelo não, trouxe comigo o chapéu de chuva, porque eu acho que mais coisa menos coisa, o dia promete ...

Prometo também a mim própria, uma tarde daquelas ...  Daquelas que eu gosto, daquelas que nos últimos largos tempos, não usufruo.  A minha vida deu umas quantas voltas, voltas que nem sempre nos trazem, nas suas curvas, a concretização dos sonhos que idealizámos um dia.
Ou então, somos nós, como seres humanos imperfeitos, insatisfeitos e tumultuados, que acabamos, com o passar dos tempos, por nem sequer saber distinguir ou apreciar tudo aquilo de que dispomos ...

O Homem é assim !  Felizes das pessoas simples, curtas nos desejos, curtas nos anseios ... curtas nas exigências.  Simples nos sonhos, fáceis de contentar nas realizações !
Conseguem ser felizes com pouco ... que dirá com muito !...

A minha mãe era um desses seres.  Sempre se realizou com o que no dia a dia, o destino lhe propiciava.
Sorria por pouco, bastava-se com pouco, nunca "voava" alto de mais.  Coisas muito simples a satisfaziam.  Vivia para fora de si.  Em função dos outros e pelos outros.  Os seus, os da família de perto e de longe.  Não sei mesmo se alguma vez se enxergou, a si própria, com legítimos direitos a ter objectivos, vontades ou projectos.  E era feliz.  Nunca vi a minha mãe angustiada, insatisfeita ou sequer, triste !

Acredito residir aí, o segredo das coisas.
Quem se centra em si mesmo, quem reduz os horizontes ao seu mundo, forçosamente curto e egocêntrico, não consegue ver muito mais longe.  As dores são as suas, as insatisfações são as próprias, as "injustiças" da vida parecem sempre assentar-nos na perfeição.
Infelizmente, não puxei à minha mãe.  Não tenho o seu desapego, não aprendi a sua generosidade, não pratico a sua transcendência.
Não sou feliz, como acredito que quase sempre ela o foi.

Mas também sei que a "felicidade" é a maior utopia que o ser humano criou.  Lutamos por ela, negando perceber o alcance da entidade abstracta que ela é.
Talvez nos enganemos intencionalmente. Porque afinal, enquanto existe um horizonte, uma meta ou uma fasquia, encontramos razões para prosseguir, arregimentamos forças para nos ultrapassarmos e bengalas para nos levantarmos, por cada vez que sucumbimos.
Sem projectos, vontades ou objectivos, somos um pequeno barco de papel, à deriva, no sabor da corrente.

E por isso o Homem, todos os dias reescreve ou redefine  o seu próprio destino.  E por isso, a cada manhã, procura retocar o colorido do seu dia.  Para que ele não se torne neste cinzento sem princípio ou fim, apenas denunciador de borrasca à vista.
Pinta-o das cores da esperança, ilumina-o com os reflexos do acreditar, insufla-o com a energia emanada da sua própria alma.
E nada nem ninguém tem o direito de lhe roubar o enredo dessa história, ou negar a veracidade dos sonhos que desenha, porque eles são o único argumento do seu próprio filme !...
E prossegue ... assim prossegue !

Chove  agora copiosamente.  O dia fechou totalmente, e o escuro do firmamento não permite visualizar muito mais para lá.  Um pássaro desgarrado voa sozinho pelos céus fora.  Hoje, nem as gaivotas se atreveram a deixar o conforto dos ninhos, nas arribas, lá longe !...

Frente à minha janela sobranceira ao casario que se empoleira mais abaixo, agora com a tarde a caminhar já a passos largos para o seu fim, mimo-me no silêncio deste quarto, onde apenas a música ao meu lado, me embala o pensamento errante, na aragem fria que corre lá fora.
Este é o meu ninho, o meu refúgio e o meu canto !

Anamar

segunda-feira, 14 de janeiro de 2019

" DUAS ROSAS AMARELAS ... "




O sol descia a passos largos rumo à linha do horizonte.  Afinal, estamos em Janeiro e dentro de uma hora será a hora do repouso do rei.
Eram quatro e meia de uma tarde lindíssima, com um céu absolutamente translúcido, de um azul intenso e uma luminosidade penetrante.
As sombras já se projectavam longas no chão, uma brisa fresca corria ... e o mar continuava batendo lá em baixo, nos rochedos e no areal aos pés da falésia.
A vegetação rasteira, de carrasquinhos, camarinhas, canaviais, cravos romanos e azedas já em floração, revestiam a encosta, atapetavam os declives e forravam as escarpas.
Estranhamente, não planavam gaivotas sobre as arribas. 

Havia silêncio. Um silêncio perturbadoramente doce de chão adormecido.  Só o mar, em avanços e recuos, oscilante entre marés, mantinha o seu vai e vem de eternidade.
Eu estava e não estava por ali.  Na minha mão, duas rosas amarelas, de luz, de encaminhamento, de saudade ...

O pórtico lá estava.  O afloramento rochoso que ali se ergue, por entre a vegetação brava e rasteira, jamais permitirá esquecimento, dúvida ou hesitação.
Aquela passagem mágica entre terra e mar, aquela conexão simbólica entre o terreno e o etéreo, entre o fim e o princípio, entre o tudo e o nada, entre o som e o silêncio ... ali continua a pé firme, e continuará a desafiar as vidas, os tempos e os amanhãs ...
Aqueles amanhãs não divisáveis das curvas dos caminhos, das estradas dos homens, aquelas vidas que se vão fazendo no desfiar de gerações que se sucedem, aqueles tempos que não começam nem acabam, simplesmente porque o Homem com eles e neles se confunde ... até ao infinito !

Não foi premeditado. Não foi agendado.  Não foi culto de nada.
Foi necessidade.  Foi busca. 
Fui reencontrar o colo dos meus pais.  Fui procurar o regaço protector da minha mãe.  Fui ouvi-los, sentindo-os apenas.  Fui sussurrar-lhes da minha orfandade, sabendo que estão por ali, naquela poeira do caminho, naquela seiva dos caules despontados, naquela aragem que os levará pelos céus fora, para as águas que não regateiam destino, que abraçam e envolvem a Terra, que nunca começam nem nunca acabam ... até ao fim dos tempos !

Nove meses desde que a minha mãe me deixou.  Nove meses, o tempo que me albergou no seu ser, até me tornar gente... Os primeiros nove meses de um vazio e de uma solidão, que nada nem ninguém, nunca preencherão ...
Sentei-me nas rochas, perdi o olhar naquela imensidão sem horizonte que a limite, ouvi os silêncios, escutei as ondas, percebi o vento que passava, abençoei aquele sol dourado que descia ...
Espetei as rosas, por entre os carrasquinhos, e deixei-as iluminadas pelos últimos raios de uma tarde que cessava ... e regressei ... desalentada, sem forças ou vontade ...

Um dia, também eu estarei por ali !...

Anamar

quinta-feira, 10 de janeiro de 2019

" A FRONTEIRA DIFUSA "




O ser humano é um ser profundamente complexo.  Da vertente física à vertente emocional e psicológica, o emaranhado atinge tais dimensões, que nem o próprio indivíduo se pode vangloriar de se conhecer a si mesmo, quiçá gerir-se nas mais diversas situações.
Os vectores confluentes atingem tais proporções de disparidade, que transformam essa complexidade inevitável, em algo ciclopicamente inalcançável.

Além da genética, que irremissivelmente  acompanha o ADN de cada um, os factores pessoais, sociais, familiares, morais e éticos, são responsáveis pelo puzzle que se cria drasticamente, maioritariamente à nossa revelia, .
Desde que nascemos e começámos a tomar consciência do nosso "eu" multifacetado e hermético, que o nosso trabalho de construção pessoal se inicia de uma forma mais ou menos agressiva e / ou harmoniosa, por forma a inserir o indivíduo na realidade que habita.  Inicia-se todo um ajuste de integração pessoal, mais ou menos fácil, mais ou menos doloroso, dependendo  do enquadramento no qual ele deve viver.
As exigências pessoais, familiares, sociais, profissionais, éticas, morais e todas as que tendem à assimilação pelos nossos pares, no mundo em que vivemos, com a menor turbulência possível, submetem-nos a um trabalho interior exaustivo, constante e desperto em permanência.

O Homem confronta-se com a necessidade de corresponder satisfatoriamente, nas relações pessoais e em toda a interacção com os grupos com que diariamente priva.
Deve responder perante si próprio, munindo-se de todas as ferramentas necessárias para os diversos desafios, sejam individuais, sejam com terceiros.  E não é absolutamente fácil, agilizar todos os recursos de que pode e deve dispor.
Vai enfrentar os factores endógenos, mas também todos os exógenos, canalizados pela realidade que o cerca.  E são das mais variadas origens.

Deve responder adequadamente na família, em todas as relações afectivas com parceiros, pais, irmãos, filhos ... gerindo-as, após gerir-se emocionalmente de forma sapiente e equilibrada.
Exigem-se-lhe por isso, padrões de equilíbrio, objectividade, determinação, afectividade, firmeza, diálogo e toda uma panóplia de outros valores expectáveis, e nos quais a família espera rever-se.

Deve responder a nível social com padrões de comportamento exemplares, determinados e enquadrados, de acordo com as regras instituídas pelas sociedades que habita.
São padrões inevitável e ancestralmente normalizados, quase sempre reféns de valores, de molduras éticas e morais, incontornáveis, e dos quais o Homem não pode abstrair ou distanciar-se.
A vertente profissional é também, e acentuadamente nos tempos actuais, determinante da conduta humana.  A competição a qualquer preço, o arrivismo, o oportunismo, as injustiças, a desonestidade e os processos menos transparentes, por um lado ... a desenfreada necessidade de obtenção de competências, como exigência de valorização, crescimento e progressão  ( como deverá ser ), por outro ... associadas às dificuldades objectivas de uma sociedade agressiva, desumanizada e gerida por valores de ter e não de ser ... empurram o ser humano para situações de stress, angústia, ansiedade, dúvidas e frustrações às quais nem sempre tem condições reais e emocionais de resposta.
Adoece-se o corpo e adoece-se a alma !

Deve responder à luz da ética que lhe impõe valores de justiça, igualdade e liberdade, respeitando-se e aos seus pares.  Estes, são valores universais !  Evitam a discriminação e o preconceito.
Aliás, falar de ética é falar de valores.  É sobretudo falar de valores colectivos. Valores sociais e culturais que foram construídos e sedimentados.
Os valores morais são, como sabemos, os conceitos, juízos e pensamentos tidos como certos ou errados, numa sociedade.  São-nos  transmitidos nos primeiros anos de vida, através do convívio familiar.
Com o passar do tempo, aperfeiçoamo-los, a partir das observações e experiências que a vida social nos impõe.
Divergem de sociedade para sociedade e de grupo social para grupo social, alicerçam-se na cultura, tradição, quotidiano e educação de um determinado povo.
Os valores éticos são mais abrangentes.  Focam-se nas características compreendidas como essenciais, para o melhor modo de viver ou agir socialmente, dum modo geral.

Há ainda valores religiosos condicionantes do ser e do estar.  Não vou, contudo, debruçar-me nesta vertente.

O ser humano é um ser profundamente complexo ... comecei por dizer.
A mente humana é um mecanismo inexpugnável !
Parece óbvio, à luz deste exaustivo e intrincado labirinto que expus.  Assim, difícil e quase impossível será, com a pressão que diariamente nos assalta,  com o bombardeamento a que somos sujeitos, o alcance e manutenção de uma sanidade mental satisfatória.
O Homem é extremamente frágil, e consequentemente, cada vez mais difusa parece ser a fronteira entre a dita "normalidade" e o "outro lado" !...

Anamar

segunda-feira, 7 de janeiro de 2019

" A PASSAR UMA CHUVA ... "




Os pássaros já gorgeiam lá fora.
O céu bem limpo, de um azul translúcido, reflecte um sol claro e luminoso, de beleza ímpar, como só o é, o sol de Inverno.
Os dias, reiteradamente secos, com uma ausência total de chuva, lembram o início de uma Primavera que ainda está longe de se anunciar.

Gosto destes dias mansos.
Um ano novo começou.  Mais uma maratona de trezentos e sessenta e cinco dias a reescreverem-se, se iniciou outra vez, com a normalidade de sempre, da mesma forma de sempre, com as expectativas de sempre.  A vida vai rolando, o paradigma vai-se repetindo, o tempo disponibiliza-se em cada vinte e quatro horas que sucessivamente se oferecem. Sem pressas.
As mesmas preocupações, problemas velhos tentando travestir-se de novos, sonhos antigos procurando  concretizações, esperanças mansamente adiadas.  Tudo calmo, tudo sem afobação, com a exacta noção de que, como se diz no Brasil, estamos aqui, simplesmente a "passar uma chuva "...

Talvez sejam os anos que já vivi, que me permitem olhar desta forma o que me rodeia. Com esta bonomia, sem exigência ou insatisfação.
Já não crio filhos, já não luto por emprego, já não tenho fasquias profissionais a alcançar, já não se me colocam desafios de afirmação social em nenhuma área ... porque neste momento bastam-me a "sombra e água fresca", no desenrolar dos meus dias.
Digamos que beneficio, sim, dos dividendos da plantação feita ao longo da vida.
As lutas pessoais, travadas inevitavelmente nos percursos de cada um, amainaram ou cessaram mesmo.  Somos o que somos, e nada mais temos que provar a ninguém !

Sinto-me como se caminhasse numa vereda serpenteante serra fora, no verde cálido da vegetação sonolenta.  Tudo amodorrado, meio entorpecido, silencioso ... Tão adormecido, que às vezes desconforta !
Sinto estes dias, estranhos.
Eu sei que vivemos a ressaca das festividades que terminaram ontem, no Dia de Reis.
Foi um tempo de emoções, foi um tempo de reflexões, foi um tempo de balanços, de deve e haver no trilho das existências, em que não conseguimos furtar-nos às avaliações, às recordações, às saudades.
Para mim, como já o referi vezes sem conta, foram particularmente dias difíceis.  Foi o primeiro ano em que a ausência física da minha mãe, se tornou real.  A sua cadeira à mesa, já estava vazia há alguns, poucos anos, mas a sua caminha quente, ainda lhe dava berço e conforto.  E estava ali, à distância de um beijo, de um carinho, de algumas palavras.
Este ano, o destino já lhe havia determinado outra morada, e o vazio cru e sentido, pairou.
Paira sempre, a cada momento, mas não me largou nestes inevitáveis dias.

Não sei se por isso, se também por isso, ando a pensar muito na morte.  Na morte e no sentido da vida.  Neste nosso estar aqui, a "passar uma chuva " ... algo sazonal, precário, efémero ...
Tal como a existência humana, tal como o lapso temporal que nos é destinado viver !
Rápido e curto como as chuvas que vêm e subitamente se vão, deixando a terra sumariamente molhada ... para secar logo depois, apagando os sinais da sua passagem ...

Não sei por que estes pensamentos me assaltam ... mas assaltam !
Até me assustam um pouco, pelo que sinto.  Parece que vivo como que a terminar tarefas.  Parece que não me vale a pena já, iniciar nada.  Só terminar o que comecei, para não deixar pendências.

"Deixar" ... repare-se ... "deixar" ...
Deixar, é pensamento de quem parte, de quem vai para algum lado.
Dou por mim a pensar que a colcha da cama já não vale a pena ser substituída, que já não vale a pena renovar decorações, por algumas se arrastarem pelas décadas, que depois do Chico e do Jonas, os meus gatos de seis anos, não haverá mais gatos novos a entrar em minha casa ... porque não haverá tempo para os proteger até ao fim ... E assim por diante ...
Vivo uma sensação de manutenção e só manutenção ... como se se tratasse apenas de pontas penduradas.  Aquelas pontas que só esperam remate, numa costura !

Olho a minha casa, divisão por divisão.  Sei-lhe as sombras e o sol que a penetra.  Escuto-lhe os silêncios, perscruto-lhe os ruídos familiares.  E vejo-me fora dela e dentro dela, quando for ... quando tiver que ser.  E vejo-me a perambular por ali e a vê-la, quando já não a puder ver.
Os gatos já não estarão, não haverá fruta nas fruteiras, nem roupa no estendal.  Tudo estará criteriosamente nos sítios do costume, os estores estarão na posição do costume, os raios de sol e as sombras serão as de sempre, nas horas de sempre.
Haverá apenas uma poalha ténue, dos tempos, sobre os móveis adormecidos.  A poalha que sempre é eterna e que sobrevive ... porque não é viva, simplesmente.
E eu gostaria que tudo assim fosse.  Embora  isso fosse absolutamente indiferente !

E lembro Pessoa.  E lembro a sua aceitação nunca interrogativa nem questionável ... Aprecio o seu pragmatismo, o seu desassombro e o seu desapego desprendido.  Real ... duramente real !

Eu ... eu devo ser pretensiosa ... ou tonta, porque me confundo, porque me dou importância.  Uma importância que não tenho.  Que ninguém tem.
Porque ainda me interrogo e doo, me indigno e espanto, ao olhar a vida indiferente, encolhendo os ombros, ainda  que um só dos seus grãos se tenha perdido, ainda que uma só das suas folhas se tenha desprendido das hastes ...  ainda que o equilíbrio, de alguma forma, se tenha rompido ...
O sol continuará a nascer e a por-se todos os dias em todos os recantos do mundo. As luas cheias chegarão a cada quatro luas. Virá o frio do Inverno quando findarem os calores da estiagem, a Natureza renascerá, reinventar-se-à  ...  Os brotos das Primaveras irão continuar a engalanar as matas, onde os pássaros irão acasalar.  As marés subirão e descerão "ad eternum", e os rochedos que as sabem, vão continuar a escutá-las.  O vento soprará, a chuva tombará, mansa ou bravia ... e tudo, exactamente tudo continuará da mesma forma, com uma simplicidade absoluta ... como Pessoa diz ...

Mesmo que eu não entenda !...


"QUANDO VIER A PRIMAVERA "


Quando vier a Primavera,
se eu já estiver morto,
as flores florirão da mesma maneira
e as árvores não serão menos verdes que na Primavera passada.
A realidade não precisa de mim.

Sinto uma alegria enorme

ao pensar que a minha morte não tem importância nenhuma.

Se soubesse que amanhã morria

e a Primavera era depois de amanhã,
morreria contente, porque ela era depois de amanhã.
Se esse é o seu tempo, quando havia ela de vir senão no seu tempo ?
Gosto que tudo seja real e que tudo seja certo ;
E gosto porque assim seria, mesmo que eu não gostasse.
Por isso, se morrer agora, morro contente,
porque tudo é real e tudo está certo.

Podem rezar latim sobre o meu caixão, se quiserem.

Se quiserem, podem dançar e cantar à roda dele.
não tenho preferências para quando já não puder ter preferências.
O que for, quando for, é que será o que é.


                                                                Alberto Caeiro  in  "Poemas Inconjuntos "

Anamar