domingo, 11 de agosto de 2019

" REALIDADE "






A vida, leva a vida a sofrer de desencontros.  A sofrer de destempos, de desocasiões, de momentos furados ...
Em jovens, quando estamos cheios de gás, de fé e de convicções ... quando temos a garra de alcançar entre as mãos, o mundo todo ( porque tudo parece possível ), pela nossa imaturidade, ingenuidade e incapacidade, não podemos dar o passo ... porque a perna ainda é curta !
As limitações que se nos colocam, as exigências familiares, sociais, as dificuldades e as desilusões que nos vão começando a sombrear o caminho, como nuvem que nos escurecesse a alma, tratam de refrear-nos essa ânsia de vida, de poder e de sonho ... Reduzem-nos a "caixa de velocidades" ...
São  inerentes aos verdes anos, a utopia, a inconsciência doce, alguma irresponsabilidade natural.

É uma fase da vida em que, aberta a malfadada porta da adultícia, que ironicamente ansiamos que se abra, a realidade nos cai em cima ...
A vida, a bendita da vida com que nos têm enchido os ouvidos na doçura da nossa adolescência ... a vida real, dura, exigente, impiedosa e  intolerante, saca-nos  cá  p'ra  fora do bem  bom, e diz-nos : "anda ... faz-te à estrada !  Agora é mesmo a sério !..."
Entramos na montanha russa.  Temos todos os sonhos do mundo ... ainda ... Não temos capacidades de os viver !
Estamos aí, na luta, errando, acertando, escalando as montanhas, saltando os precipícios, e tacteando ... passo a passo, na exigência de uma sobrevivência digna e gratificante.
Temos sonhos, força, juventude ... e ausência de tempo para os concretizar ...

Os anos seguem, desenrolam-se mais ou menos pacificamente. Atingimos seguramente algum estatuto social, graças ao esforço desenvolvido. Ocupamos um lugar, somos respeitados, amarinhamos a pulso a encosta da pirâmide, na certeza de que havemos de chegar ao topo.  Porque afinal, os sonhos ainda não nos abandonaram. Longe disso !  São-no mais maduros, mais realistas, mais assertivos.
Constituímos famílias, às vezes precárias porque as escolhas não caíram no bilhete premiado ... e continuamos.
Economicamente sentimo-nos confortáveis.  Segurança é uma palavra que começa a incorporar o nosso léxico de vida.  Realizações, também.  Saem-nos do corpo e da alma. A competição é desenfreada, monstruosa, é dura, é intolerante e incomplacente. Profissionalmente tornamo-nos um pouco "workholics" ... Não há escolha. O mérito virá da competência !

Não há, é tempo ... Acreditamos que apenas "ainda" ... porque haveremos de chegar lá !
Haveremos de poder usufruir daqueles paraísos com que as agências de viagens nos enchem os olhos.  E com a pessoa certa ao nosso lado !
Haveremos de realizar aquele sonho maluco que nunca ninguém entendeu ... mas que era nosso !...  Haveremos seguramente de ter tempo.  Por ora, temos que continuar a escalada ... Os putos estão a crescer, as necessidades a aumentar, as responsabilidades, também.  Terá de ser adiante.  Por agora, ainda não dá !

E a vida anda ... inapelavelmente.
Os cabelos começam a branquear-nos as cabeças. As crianças já são pequenos adultos à nossa volta. Deixámos o Corsa lá atrás, e já andamos de Audi 4, porque é mais seguro.  Somos respeitados, ou talvez o devêssemos ser, se tivermos em conta os joelhos escalavrados e as solas dos sapatos que gastámos.  Pensamos que estamos a cumprir o nosso desígnio.  Procuramos dar exemplos de equidade, justiça, honestidade, seriedade, respeito e todos aqueles que agora não me ocorrem ...
Temos a casa de fim de semana, vamos na segunda ou terceira relação, porque as anteriores ou se desfasaram no tempo, ou as vidas não nos deram margem de as viver em pleno, em verdade.
Os amores seguiram, quantas vezes, trilhos distintos, deixando para trás as juras que ainda ontem fizéramos ...

Mas a vida que leva a vida a sofrer de desencontros, de destempos, de desocasiões e de momentos furados, começa a opacizar-nos a mente e a vontade.  E os sonhos tão sonhados, almejados, e acreditados, já não encontram forças em nós, para os buscar lá atrás, e viver ...
O tempo que era ... já foi !...
Perdemos a frescura, a ingenuidade e a fé ... A oportunidade já não é oportunidade de coisa nenhuma, porque as cores da paleta com que agora se pintam os nossos dias, esmaeceram-se ... de cansaço !
Se calhar, a vontade já não tem a garra de agarrar mais nada nesta vida, entre as mãos ... As ilusões, que o foram no tempo em que não havia tempo nem condições de as agarrar, cansaram ...

Hoje, se alongarmos o pensamento para o que ficou, percebemos claramente os encontros e desencontros com que a vida e os anos brincaram connosco !

Amargo, este meu texto ???!!!
Infelizmente,  penso  que  não.  É tão só um quadro a preto e branco da história da nossa estrada ... julgo !
É, como lhe chamei, simplesmente ... REALIDADE !...

Anamar

sábado, 10 de agosto de 2019

" E HOJE, FOI !..."



Passei há pouco nas traseiras da casa onde os meus pais viveram cinquenta e muitos anos, onde eu vivi uma parte significativa da minha vida.

Eu sabia que seria exactamente assim ... e hoje foi !

A minha mãe partiu há relativamente pouco tempo.  A casa, que era alugada, foi inevitavelmente entregue  à senhoria.  Entretanto encerrou para obras, bem depois.  Fecharam-se as persianas, as portas, e tudo adormeceu por lá ...
Eu sabia que nela voltaria a viver gente.  Eu sabia que um dia os estores seriam subidos.  Eu sabia que as vidraças se abririam e que nos estendais, outra roupa voaria na aragem ...
Eu sabia ...

Sempre pensei, quando pela tardinha, no acesso às aulas ela me esperava na janela, com o seu inseparável Gaspar ao lado, debruçado no parapeito, feito gente ... para me dar dois dedos de conversa com que o dia encerraria, e o adeus final até que eu me afastasse e dobrasse a esquina ... sempre pensei, dizia, que um dia, que nessa altura me parecia infinitamente distante ainda, nunca mais nada disso ocorreria, e que apenas na memória do meu coração, essas imagens desfilariam com absoluta nitidez .

E então eu pensava : O que sentirei nesse dia ?  Como reagirei nesse dia ?  Como será confrontar-me com uma evidência expectável, mas assustadora dentro de mim ?

E depois ... procurava rapidamente afastar esses pensamentos, como se, afastando-os, afastasse toda e qualquer hipótese da sua confirmação.  E seguia para o liceu ...

Hoje, assim do nada, passando no carro e alongando como sempre o olhar para as janelas, levei como que um soco no estômago, e de imediato as lágrimas me turvaram o olhar ...
Lá estava outra roupa voejando na brisa da tarde ...
Tal  qual  eu  imaginara. Tal qual  eu  o antecipara,  sem  o  querer,  no  meu  espírito ... anos  atrás ...

Mas ela também estava lá, que eu vi. O cabelo branquinho, a capinha de malha azul nas costas, nos dias mais frios, o Gaspar de olhos perspicazes e vivaços, com os bigodes respeitáveis na branquidão do pêlo, abanando o rabo pela felicidade da festa que eu sempre lhe fazia ... estavam tão, mas tão nítidos, que passei a vê-los a eles ... e não àquela roupa que parecia querer meter-se onde não lhe era devido ...
E senti uma espécie de traição do destino.  Uma espécie de usurpação e invasão do alheio.  Uma espécie de coisa inaceitável ... intolerável, mesmo ...
Afinal, aquela casa, era aquela casa.  Tinha as cores, os cheiros e as vozes que por lá ficaram. Nunca poderia ser de outrém !  Nunca poderá ser de outrém !

Eles é que não sabem ... mas na hora do sossego, quando parece haver silêncio naquele espaço, é tudo mentira ... Estão os meus pais sentados em torno da mesa, está a correria das minhas filhas recém-chegadas das escolas ... está o cheirinho dos joaquinzinhos bem fritos com o arroz de tomate convenientemente malandrinho ... estão as farófias fresquinhas no frigorífico, estão os sons das vozes, de todos, as gargalhadas e os ralhetes, numa miscelânea bem audível ... Os móveis estão arrumados, as plantas, na cozinha, viçosas de  bem  cuidadas,  as  molduras com as fotografias  de eventos  felizes  espalhadas  nas  cómodas ...

Porque aquela casa, era aquela casa ... e são as pessoas e as histórias ... são as alegrias e os sofrimentos, é o tempo que desenha as vidas, que faz as casas ...
E aquela, era NOSSA !...




Anamar

quinta-feira, 8 de agosto de 2019

" NOVOS TEMPOS ... NOVOS FORMATOS !..."





UM AMOR EM DUAS CASAS. QUANDO OS CASAIS DECIDEM VIVER SEPARADOS
30/07/2019


Não é um modelo de relação novo, mas parece ser cada vez mais frequente. É adotado por casais de todas as idades, pelas mais variadas razões, que vão desde a vontade de manter o espaço e a independência de cada um ao medo de envolver os filhos em novas relações. Quais as vantagens deste sistema? E as desvantagens? Dois psicólogos e terapeutas familiares explicam.
Texto de Joana Capucho

Duzentos metros. É esta a distância que separa a casa de Paulo, de 40 anos, da casa de Dina, de 41, com quem namora há 13. “Não foi uma decisão consciente, mas foi um culminar de circunstâncias. Sempre fomos os dois bastante independentes”, explica ao DN o designer.
O casal, que preferiu não ser fotografado, vive na baixa do Porto, onde conseguiram arrendar as duas casas numa altura em que os preços eram “normais”. “Neste momento, conseguir casa para os dois seria muito complicado. Como trabalhamos muito em casa, precisamos de espaço, mas nenhuma das nossas habitações tem condições para vivermos juntos”, diz. Além disso, Paulo tem gatos e Dina tem alergia a animais. Por tudo isto, não existem planos para viverem juntos – o que não quer dizer que um dia não venha a acontecer.
“Passamos mais tempo juntos do que muitos casais que vivem juntos. Quanto estamos, estamos realmente juntos”, diz Paulo.
Estão juntos quase todos os dias e falam com frequência ao telefone. “Passamos mais tempo juntos do que muitos casais que vivem juntos. Quanto estamos, estamos realmente juntos”, conta Paulo, destacando que passa várias noites e fins de semana em casa da namorada. Sem obrigatoriedade.

Este modelo de relação não é novo, mas parece estar a crescer. De acordo com a investigação científica, cerca de 10% dos adultos no Reino Unido fazem atualmente aquilo a que os sociólogos chamam living apart together (LAT). Já no Canadá, 1,5 milhões de pessoas com idades compreendidas entre os 25 e os 64 anos afirma ter uma relação, mas viver num sítio diferente do parceiro – houve um crescimento de 3% em dez anos. Um fenómeno que também é comum em países como EUA, Austrália, Bélgica e Holanda.

“Existem algumas variações, como dormir em quartos separados ou em duas camas, mas a evolução da sociedade, marcada pelo individualismo e por condições económicas mais favoráveis, promove este tipo de relações”

Paulo Vitória, terapeuta familiar, diz que “a experiência clínica e a evolução social e económica indicam que este tipo de realidade é cada vez mais comum”. Por cá, não há dados científicos que permitam comprovar esta perceção, mas, “de acordo com o PORDATA, entre 1999 e 2018, ou seja, em 20 anos, a quantidade de pessoas que declara viver sozinha (agregados domésticos unipessoais) quase duplicou” – passou de 502 mil pessoas para 938 mil.
Não se sabe, no entanto, quantos destes portugueses têm uma relação estável, mas Paulo Vitória acredita que, embora esta forma de viver as relações exista há algum tempo, “será agora mais frequente”.
“Existem algumas variações, como dormir em quartos separados ou em duas camas. Mas a evolução da sociedade em que vivemos, marcada pelo individualismo e por condições económicas mais favoráveis, promove este tipo de relações”, refere o professor da Faculdade de Medicina da Universidade da Beira Interior.
Outro motivo importante, diz o terapeuta familiar Paulo Vitória, é que, desta forma, as pessoas conseguem manter por mais tempo a relação de namoro. “O casamento é uma crise. Viver a dois nunca foi fácil.”
O individualismo é, no seu entender, uma das razões pelas quais os casais optam por este modelo de relação. “Muitas pessoas usam esta alternativa para definirem melhor as suas fronteiras individuais. Duas pessoas que têm uma relação não é a mesma coisa que um casal. As fronteiras individuais estão assim melhor definidas e as fronteiras com as famílias de origem de cada elemento do casal ficam mas fáceis de definir”, explica.
Outro motivo importante, diz o terapeuta familiar, é que, desta forma, as pessoas conseguem manter por mais tempo a relação de namoro. “O casamento é uma crise. Viver a dois nunca foi fácil e será ainda mais difícil numa sociedade cada vez mais marcada pelo individualismo. É passar de momentos em conjunto em que a disponibilidade para o outro é quase total para uma partilha do quotidiano. Algumas pessoas já têm experiência desta crise e preferem não passar por ela de novo.

Claro que as condições económicas são também um fator que pesa. Alguns casais vivem juntos para enfrentar em conjunto as despesas do dia a dia e os custos fixos da vida em comum”, afirma.

“Todos temos os nossos dias, nem sempre bem dispostos. Todos precisamos estar sozinhos, eu pelo menos preciso. E considero que vivendo sozinha consigo conciliar melhor tudo”.
Paula, 45 anos, nunca casou, mas já partilhou casa com dois namorados – uma experiência que espera não repetir. “Quando me separei pela segunda vez jurei que nunca mais iria morar com alguém, amorosamente falando. Passados muitos anos é possível que esse “nunca” possa não ser definitivo. Mas o facto é que tenho uma relação séria há alguns anos e não sinto essa necessidade”, conta.
Vê o namorado todos os dias e dormem juntos ao fim de semana. De resto, cada um fica na sua casa. “Todos temos os nossos dias, os nossos momentos, nem sempre bem dispostos. Todos precisamos estar sozinhos, eu pelo menos preciso. E considero que vivendo sozinha consigo conciliar melhor tudo. Estou nesta relação porque quero, não porque me sinta obrigada a isso”, salienta.
No tempo que está sozinha, Paula tem liberdade para fazer o que lhe apetece, “sem outras obrigações” e isso dá-lhe tempo “para sentir saudades e evitar o desgaste a que uma relação marital fica submetida na maioria dos casos”. Tem, assim, um compromisso sério e passa muito tempo com o namorado, mas “não aturam o pior um do outro, nem há a obrigação de estar na companhia um do outro só porque sim”. Quando estão é porque é isso que realmente querem.
O medo de envolver os filhos

Para Catarina Mexia, psicóloga e terapeuta familiar, os motivos para optar por este sistema variam consoante as idades. Nos casais mais jovens, prendem-se com a dificuldade de a pessoa abdicar do seu próprio espaço, mas, nas pessoas de meia-idade com filhos e histórico de relações que falharam, estão relacionados com o facto de “as pessoas não quererem submeter os filhos a uma nova relação que envolve coabitação e por vezes conviver com os filhos do outro”.

Em consultório, Catarina Mexia acompanha um casal – ela tem 62 anos e ele tem 65 – que escolheu viver desta forma. São viúvos, já não vivem com os filhos, mas não querem partilhar a mesma casa.
“Existe a noção que ambos têm a sua vida, que existe muita coisa em comum, que são um forte apoio um para o outro, mas pensam que viver juntos vai ser fonte de tensão e problemas”, explica. Procuraram a terapia para resolver questões relacionadas com a comunicação, que, sendo importante em qualquer relação, é especialmente importante nestas, em que há muito contacto que não é feito de forma presencial, o que pode gerar mais problemas.
Duas casas e contas a dobrar: pode pensar-se que este é um tipo de relação mais frequente entre a classe alta. Contudo, assegura Catarina Mexia, esta opção é “cada vez mais transversal” a todas as classes.

A forma como estes casais vivem o dia-a-dia varia, mas, de acordo com a terapeuta, “na maior parte das vezes não estão juntos todos os dias”. “É quase como um namoro, mas existe um compromisso sério. Evitam a rotina, que muitas vezes arrefece as relações”.
Quando há filhos, é comum a pessoa que passa menos tempo com as crianças ir adormecê-las, deitá-las e aparecer de manhã para tomar o pequeno-almoço. “Podem passar dois ou três dias juntos e os fins de semana, mas não há uma obrigatoriedade. Estão juntos quando se sentem bem. A relação é baseada no afeto e não na imposição das regras sociais”.
Duas casas e contas a dobrar: pode pensar-se que este é um tipo de relação mais frequente entre a classe alta.

Recorde-se, por exemplo, o caso do cineasta Tim Burton e da atriz britânica Helena Bonham Carter, que viviam em casas separadas, ligadas por um túnel. Tiveram uma relação de 13 anos e dois filhos. Antes de se separarem, Woddy Allen e Mia Farrow também viviam desta forma. Contudo, assegura Catarina Mexia, esta opção é “cada vez mais transversal” a todas as classes.
Entre as principais vantagens da separação física, Paulo Vitória destaca “viver mais tempo a leveza de uma relação tipo namoro em vez do peso de uma relação conjugal onde se partilha o quotidiano e se reduz a disponibilidade para o outro e a relação”.

Embora já exista mais abertura relativamente a este tema, a terapeuta familiar diz que “a sociedade empurra as pessoas para relações de coabitação”.
Ressalvando que os dois casais que acompanha que seguem este modelo não colocam de lado a hipótese de um dia virem a ter uma relação tradicional, Catarina Mexia diz que, regra geral, estas relações “não sofrem o desgaste da rotina e as pessoas investem mais nos momentos em que vão estar juntas”.
Por outro lado, frisa, “a intimidade e a qualidade da comunicação têm de estar muito afinadas para suportar a distância e a pressão social”. Embora já exista mais abertura relativamente a este tema, a terapeuta familiar diz que “a sociedade empurra as pessoas para relações de coabitação”.

Para Paulo, existem também vantagens no que diz respeito aos hábitos e rotinas dos elementos do casal. “Eu sou noctívago e a Dina prefere as manhãs. Quando as pessoas vivem juntas, o relógio biológico pode interferir na relação”, diz. Por outro lado, quando existem chatices, existe tempo e espaço “para espairecer”, embora isso nem sempre seja positivo, ressalva. Uma coisa é certa: “A relação tem de ser sólida para resultar assim. E a comunicação e a confiança são essenciais”.
Este modelo não funciona para todo o tipo de casais. “Precisam de ser pessoas bem estruturadas e de ter segurança financeira e psicológica.

No que diz respeito aos desafios, o psicólogo Paulo Vitória considera que a separação física pode resultar num “compromisso menos vincado que pode reduzir a duração da relação e reduzir a possibilidade de uma evolução da relação conjugal no sentido da parentalidade, ou seja, de ter filhos em comum”.
Este modelo não funciona para todo o tipo de casais. “Precisam de ser pessoas bem estruturadas e de ter segurança financeira e psicológica. As pessoas têm de estar seguras de si”, diz Catarina Mexia. Se os elementos do casal estão formatados para ter uma relação tradicional, este sistema poderia resultar em fracasso.
No entanto, diz a especialista, não existirá à partida um fator de insucesso nestas relações.

Nem se pode considerar que são melhores ou piores do que as consideradas tradicionais. “São diferentes”.


Este texto, repescado no Facebook e publicado no DN- Life,  da autoria de Joana Capucho, vem ao encontro, eu diria que integralmente, daquilo que defendo sobre a questão abordada.

Há muito que perfilho esta convicção, sendo que reconheço a sua maior vulgarização e adesão, nos tempos actuais.
Divorciei-me há largos anos, depois de um casamento longuíssimo.  Mais de trinta anos.  E recordo que a primeira coisa que me jurei, foi que, pudesse eu ter o futuro sentimental que tivesse, jamais viveria em coabitação com quem quer que fosse, por mais apaixonada que me encontrasse.
E eu era, de algum modo, ainda jovem, nessa altura.  E o meu divórcio nem sequer foi traumatizante ou desgastante, pelo menos para mim.
Não teve acontecimentos rocambolescos, não se verificaram agressões de nenhuma ordem e tudo se desenvolveu com cordialidade e civismo.

Contudo, já então, eu conhecia claramente o desgaste que a vida em comum pode causar numa relação, quiçá nos sentimentos dos envolvidos.
A saturação das rotinas é "mortal" em qualquer circunstância, e dificilmente se sobrevive a elas.
Acordar, com ou sem vontade, com o mesmo rosto ao lado, aguentar em permanência as manias, os hábitos, as boas e más disposições com que diariamente a vida nos brinda ... é dose !
Não há paixão que não estiole, não há amor que se aguente.

Tenho para mim, que uma relação com algum individualismo assumido, com a distância necessária e suficiente para cada um usufruir do seu espaço, da sua intimidade, do direito aos seus tempos ... até mesmo os de solidão ( que são absolutamente indispensáveis ao ser humano ), não significa menor afecto, ou interesse, mas sim até uma preocupação, de preservação da mesma, ao contrário do que possa parecer.
E essa questão torna-se muito mais premente, quando os anos avançam e não há mais espaço para relações hollywoodescas ou com o romantismo e a ingenuidade de tempos idos.

Por vezes as pessoas estão juntas simplesmente por um entendimento comum de interesses de ambos os lados, sejam eles financeiros, de mero companheirismo, amizade, partilha de algumas coisas, ou entreajuda...
Muitas vezes, é somente esta, a base do relacionamento e nada mais .
A ligação é portanto do interesse comum.
Ainda assim, considero que este modelo, é o mais vantajoso e respeitador das vontades individuais.

Talvez esteja a ser pragmática e fria demais.  Mas se aquilo que aproxima as pessoas tem como móbil o alcance de um certo e doseado equilíbrio, a assumpção  de uma vida mais facilitada para ambos ... tudo bem. Porquê, não ?!             
Estas pessoas têm uma ligação, não sendo contudo, um casal, no conceito tradicional e convencional do mesmo.  Não são propriamente valores sentimentais que mantêm as pessoas na vida uma da outra.  São interesses e vontades objectivas que ambos aceitam como de mais valia para cada um de per si.
Digamos que a este formato subjaz alguma "negociação" de parte a parte, duma forma pacífica.

De alguma forma, estas duas visões e abordagens diferentes das coisas, são de certo modo cabíveis no tema em análise, embora se trate, claramente, de vertentes distintas.
São contudo realidades quotidianas com que convivemos no nosso dia a dia.  Sinal dos tempos, sinal da evolução das mentalidades, sinal de inteligência do homem / mulher face à premência das vicissitudes da vida e forma de as contornar / ultrapassar !

Anamar

domingo, 4 de agosto de 2019

" NA RENTRÉE "








Regressei de fora há quase duas semanas.  O tempo desliza à velocidade da luz !
Por aqui, o dia a dia repete-se.  Quem de cá não saíu, manteve obviamente, as rotinas.  Agora, café abre, café fecha, boas férias, boas férias, desejam-se as pessoas.  Afinal, tradicionalmente Agosto continuará a ser por excelência o mês escolhido pelos portugueses, para gozo de férias.
Os que estão, não foram e não irão, falam inevitavelmente das mesmas coisas ... política, que agora também está no defeso, futebol ... em época baixa com algumas competições avulsas sem interesse de maior, e claro ... doenças, porque as maleitas chegam em força a partir dos sessenta .
Depois ... desgraças ...  Acontecem todos os dias e a comunicação social, em especial alguma, adora e vive delas ...
É a faceta masoquista do ser humano !...

Existe uma espécie de hibernação por aqui.

Mala guardada, roupas tratadas e arrumadas, retoma dos hábitos de sempre ... Sinto-me como que "desempregada" ...

Por enquanto os meus sonhos, nocturnos, pelo menos, mantêm-se por lá, pelos sítios por onde andei.
Revivo o mar doce de quente, revejo a costa emoldurada pelo coqueiral, pelos pássaros e pela brisa que acaricia, revisito as caminhadas às seis da manhã, quilómetro a quilómetro, com os pés beijados pela maré espreguiçada e sonolenta.
Revejo o azul  turquesa e transparente, ora mais verde, ora mais intenso no azul que ostenta, ora prateado, escurecido se há nuvens encasteladas em abóboda brincando de fantasminhas, ou dourado e em fogo, se o sol nele se projecta, nos nasceres e nos pores.

Tudo está fresco e recente, as fotos estão-me nas mãos, e aquela "comichão" na sola dos pés que me empurraria para qualquer destino, é uma doença crónica.  Decididamente, eu padeço da síndrome das malas às costas ...  😃😃😃

Agora entrou Agosto, e com ele, esta modorra de um Verão meio descaracterizado que em termos meteorológicos ainda não se afirmou.
Vento e mais vento, dias frescos e enfarruscados ...  Bons para a minha caminhada.
Retomei-a esta semana, depois de uma de descanso, em que tentei por em ordem os pés que chegaram tremendamente inchados da viagem longa.
A circulação sanguínea, deficitária na imobilidade de um avião em horas e horas de voo, a isso leva !
Tromboflebites são um risco nestas circunstâncias, mas, faço de conta que não vejo, menos ainda valorizo.
Acho que também nisto, sou como o meu pai.  Não queria nada com médicos, como dizia.
Quando partiu, com noventa anos feitos, a sua secretária guardava no fundo das gavetas, medicamentos aviados e nunca tomados !  Era endiabrado, o meu pai !!!
Era um ser livre.  Talvez o mais livre que atravessou a minha vida.  Tinha uma faceta de menino desobediente e refilão.  Não passava cartão a convenções e obrigatoriedades.  Geria e regulamentava por si, a sua própria vida ...
Procurei, e penso que de alguma forma alcancei este estádio, também para mim própria.  Deixei de dar satisfações a terceiros, organizo-me ao meu jeito e modo, e tenho um pouco o lema de ... "quem gosta, gosta ... quem não gosta ... temos pena " ... como "soi dizer-se" !

Entretanto,  Agosto é "aquele" mês ... Três dos meus, aniversariam.  Mãe e filho no mesmo dia, completam respectivamente 46 e 18 anos.  O  "caçula" dessa equipa, uma semana depois, atinge os 12.
O António ... "vejo-o" de fraldas, bamboleando-se  ao som da "Joana come a papa" em fins de semana em casa de avós ... já fez o acesso ao Superior.  Ganhará o estatuto de universitário e prepara-se para tirar a carta de condução ...
Incrível, como isto é possível !  Como é que o rapaz cresceu desta forma, e eu nem dei por isso ?!...
A menorzinha, de outro "team", nos seus recentes dois aninhos, tudo fala, tudo conversa, numa alegria só, como criança livre, feliz, desinibida e sociável que é !

E como não estar eu própria,  feliz também ?...
Tenho saúde, tenho amigos, tenho uma família com as imperfeições e dificuldades maiores ou menores de todas as famílias ... vejo-os crescer, fazerem-se gente, sem demais atribulações.  Amo os que me amam.  Vivo cada dia de "per si" ... pois já percebi que quem sofre de véspera, é o perú do Natal ... 😌
Sonho ... continuo a sonhar, e tenho que acreditar que o melhor dia será sempre o de amanhã ...
Tenho muitas saudades dos meus pais ... sobretudo da minha mãe que ainda há pouco partiu.  Mas tenho a certeza que por onde quer que ela ande, também estará feliz.  Teve uma vida longa e realizada ao seu modo, e sentir-se-à orgulhosa, seguramente, ao espreitar cá para baixo  ( ? ), por todos os que por cá deixou ...
Porque afinal, todos não somos mais do que sementes da árvore que ela foi !...






Anamar

" ETERNAMENTE GRATA "


Amigos

Assinalo mais um momento importante neste meu espaço : a ultrapassagem de mais de 70000 acessos aos meus escritos.
Como muito já repeti, este meu blogue é um espaço lúdico que ME dou, mas que partilho com muitos de vós.
Comecei-o absolutamente por acaso, no passado ano de 2008, e ele tem sido, mais ou menos assiduamente, companheiro de jornada em todos os momentos da minha vida.
Escrevo-o aleatoriamente, com temas quase sempre particulares e intimistas, que não tenho nenhum pejo de expor e repartir convosco.  Afinal, a grande maioria dos que me lêem, não me conhecem, embora alguns possam achar que sim.
Nele e com ele, tenho atravessado muitos altos e baixos na minha vida.  Momentos bons, momentos de festa, e momentos menos bons ... momentos de dor e sofrimento.  Afinal e tão só, como toda a gente neste mundo...

Sei que muitos acedem por gosto, muitos nele se revêem, outros acedem por hábito ... outros, por curiosidade ... e  outros,  porque  julgam  controlar  um  pouco  a  minha vida,  por  aqui !...  👀  👀
Aprecio e adoro essa pachorra !  Afinal é reveladora de muita coisa !
Só que ... talvez lhes saia muitas vezes ao lado !....  ihihih
Desculpem este meu sarcasmo e ironia. É que eu também tenho de quando em vez, uma faceta de "nat" ...

Esclareço ... na minha recente viagem a Myanmar, conheci, na cultura e na religião deste povo, estas entidades ou divindades, melhor dizendo. E adorei-os !
Os "nats" são por assim dizer, almas penadas, espíritos inquietos que ainda não encontraram lugar de paz, que perambulam por aí, para normalmente infernizarem a vida dos mortais.  São espíritos inquietos, truculentos, endiabrados ... quais meninos pirracentos, que se divertem a fazer tropelias.
Se forem "mimados" pelos mortais que assombram, tudo bem, favorecem-lhes as vidas e até os protegem.  Se não ... estão tramados ... de tudo farão para lhes trocar as voltas !.... ihihih
Incontestavelmente, seres bem "simpáticos" !.... 😃😃

Esclarecidos ???
Afinal, também me divirto no meu blogue !...

Bom, sem pretender alongar-me, este meu post tem o objectivo único de obviamente demonstrar a minha gratidão a todos ... mas todos mesmo, duma maneira geral, que embora na "sombra" desse lado e ainda que sem comentarem, são presenças sentidas e companhias muito, muito importantes para mim !....  OBRIGADA !

E até aos 80000 !!!

Anamar

segunda-feira, 29 de julho de 2019

" QUANDO DESCONHECEMOS OS FILHOS ... "




Acabei de estar a almoçar, com uma das minhas filhas.
Acabei de estar com esta, como poderia ser com a outra.  Juraria não ser diferente, esta sensação amarga e doída que experimento neste momento.  Um misto de mágoa, de tristeza, de desconforto, de frustração ... de raiva, mesmo !

A gente põe os filhos no mundo e chega à conclusão que deu vida a crias que nada têm a ver connosco.
E uma sensação de impotência, de revolta, de incredulidade, de estupefação também, tomam-nos conta.   De repente percebemos que temos à nossa frente seres com outras linguagens, com outras verdades, que vivem noutras realidades, que valorizam outras coisas.
De repente, percebemos que andámos a perder tempo nas nossas vidas lá atrás.  Que tantas vezes hipotecámos, por conta, as nossas vidas lá atrás ...
Como se tudo aquilo que quisemos ensinar e transmitir, tivesse caído em saco roto.  Como se tudo, valesse nada !!!...

Dou por mim a achar que passaram por nós, eras temporais de afastamento.  Dou por mim a perceber que anos-luz de distância se instalaram entre mim e elas.
E o que tenho à minha frente, são duas estranhas, que não sei, não conheço, não entendo.  Duas pessoas que não me conhecem, não me entendem, não me sentem.

O mesmo sangue nas veias ?!  O que é isso ? - pergunto-me.

Tenho vivido equivocada.  Julguei que talvez tivesse feito o meu melhor, à luz dos parâmetros que me formavam, em termos dos valores recebidos, da educação adquirida, sentimentos enquadrados.
Julguei.  Mas, certamente, não foi nada disso !

Interrogo-me e culpabilizo-me.  Errei onde ?  Falhei quando ? Será que me distraí ?  Será que me omiti ?  Será que me fechei sobre mim mesma, e achei que tratando das fraldas, dos sarampos, das amigdalites, das dores de barriga, dos deveres escolares, da transmissão de ensinamentos e princípios norteadores que tomei como fundamentais e determinantes, bastaria ?!
Será que fui egoísta ao ponto de desvalorizar talvez, o fundamental ?
De defraudar mesmo, as suas expectativas ... e não me apercebi ?!
Será que dialoguei pouco, que sentei pouco no colo ?  Que acalmei pouco os pesadelos e não escutei os sonhos ?
Será que acariciei de menos, que fechei ouvidos ao que se calhar, pretendiam dizer-me ?
Será que fui dura em excesso, exigente demais ...
Será que dei pouco amor ... ?
Será que deixei que a vida, sempre a vida, com todos os seus tropeços me tirasse do foco, me endurecesse, me enconchasse sobre mim mesma e me tirasse espaço afectivo no coração, para elas ?!

Oiço muito disto, à minha volta.
Sei que há muitos pais e mães que sofrem hoje, por todas as mazelas deixadas ao longo das vidas.  Por culpas que se atribuem, por feridas abertas e não saradas, que parecem mesmo infeccionar-se mais, com o correr do tempo.
Mas também conheço casos de sucesso absoluto, em que filhos e netos, totalmente entrosados, vivem no sétimo céu.
As pessoas respeitam-se, conversam pacificamente, não desconversam ... entendem-se, não se agridem, divergem mas nem por isso se desvalorizam, entreajudam-se ... fazem-se presentes sempre ... em todas as circunstâncias ... partilham momentos bons e momentos menos bons no dia a dia.
As pessoas, amparam-se ... Fundamentalmente, as pessoas AMAM-SE !

E pergunto-me, onde terão aqueles pais e aquelas mães, hoje já avôs e avós, aprendido a fórmula secreta para um tão grande acerto ?!
Será que nas realidades familiares, as culpas ou os sucessos, só serão de um lado ?
Será que estamos perante pais e mães de eleição e filhos extraordinários, versus pais e mães energúmenos, impreparados, incompetentes, que nunca o deveriam ter sido ( como já ouvi ), e filhos incarnando potenciais " monstrinhos" ?!...

Não posso ir por aí.  Não posso aceitar carregar em exclusividade toda a culpa do mundo, se falhei, se errei, e se os sentimentos entre as pessoas estão feridos de morte.
Se em vez de filhos, tenho à frente seres cuja presença, em vez de me ser gratificante, amorosa e portadora de felicidade, me faz mal, me deixa mais e mais destruída, e cujo distanciamento me surge como a única solução possível para um convívio minimamente aceitável e penoso ...
Angústia.  Uma profunda angústia é o que me fica.  Tristeza, é o que sinto no coração.   E culpa.   Mais culpa ainda, por estar a conseguir verbalizar tudo isto que aqui deixo, nestas palavras.

"Tu é que és a mãe.  Tu é que tens que dar o primeiro passo "- oiço, de quando em vez.
Mas qual passo, se esbarro no desconhecido, no incompreensível ... se encalho numa parede, se encontro um fosso e não uma ponte ?!...

Que mãe, afinal, serei ?
Qual a imagem materna que lhes represento ?
Quanto de sofrimento nos impomos, com toda esta incompatibilidade de linguagens ?
Seres de costas viradas ...  Seres que optam por separarem as vidas, por defesa, por sobrevivência, por inexistência de opção ...
" Carne da mesma carne e sangue do mesmo sangue " , diz-se ...

E no entanto, pais e filhos ... E no entanto, vidas tão curtas, sem direito a reescrita ou escapatórias ...
E no entanto, tanto que fica por dizer-se, tantas palavras que secam na garganta antes de se soltarem, tantos olhares que não se trocam e se evitam, tanta ternura que se perde antes de nascer ... tanto amor que estiola como planta à míngua de água ... tanto, tanto que lembramos,  arrependidamente  e  sem remédio,  tarde  de  mais ... quando  tudo  já  terminou !!!...

Anamar

sexta-feira, 26 de julho de 2019

" LA COTICA "






De Samaná eu trago tudo ...

Das águas transparentes, de um azul turquesa espantoso na sua limpidez, com temperaturas da ordem dos 27 / 28 graus, ao silêncio do coqueiral, sussurrante na brisa que perpassa ...
Do céu, ora azul translúcido, ora com nuvens encasteladas promissoras de chuvadas tropicais abençoadas no calor que se faz ...
Do marulhar silencioso de um mar que apenas desmaia mansamente na areia fina ...
Dos peixes multicores que habitam os afloramentos coralíneos, às aves que pipilam na mata, com estridências e linguagens que só ali se escutam ...
Do matraquear dos pica-paus ao romper do dia  nos troncos dos coqueiros e nos palmeirais, ao galrejar da cotica ou cotorra como é localmente conhecido o papagaio verde, endémico e quase extinto ...
Da beleza abençoada de uma natureza pura e não moldada ainda pelo Homem, que nos absorve, nos assimila e nos transmite a maior sensação de liberdade que alguma vez experimentei ...
Dos cheiros inconfundíveis e característicos, à beleza esmagadora dos flamboyants em flor, como se de uma cabeleira rútila flamejante se tratasse ...
Dos manguezais emaranhados, ora em terra seca, ora em banhos de maré subida ...
Dos ritmos "calientes" afro-caribenhos dos merengues e das bachatas, num povo que tem a alegria nas veias e a sensualidade à flor da pele ...

Tudo, eu trago de Samaná ... na memória, nos olhos, no coração e na alma, que para mim são tudo poisos diferentes ...

Mas, sem dúvida, os acordares sem custo pelas cinco e meia, ainda com a noite meio fechada e uma aurora apenas espreitando timidamente ...
O chegar ao areal vazio e silencioso àquela hora, onde apenas três ou quatro "adoradores do sol" como eu, o aguardavam ...
A vivência daquela mística que é a magia do nascer do astro-rei - uns dias subindo no céu por detrás de nuvens que desenhavam no firmamento castelos encantados ... a outros em que apenas esfregava os olhos ensonados lá longe, por cima da linha de um horizonte límpido, como se acabasse de sair de um banho doce ...
A caminhada diária dos quilómetros destinados, na babugem da rebentação, enquanto o sol ainda o permitia porque era manso e não castigava ...
E depois, pela tardinha, reverenciá-lo de novo, outra vez por entre laranjas e dormires afogueados ... até que aquela bola imensa se transformasse lentamente numa calote luminosa apenas, e depois num último ponto aceso, de novo no horizonte acolhedor ... só que agora, do outro lado ...
Tudo eu trago de Samaná !

A terra dos taínos, que Colombo no século XV, desvendou ao mundo, tem de seu nome La Hispaniola ... República Dominicana desde 1844, ano em que se proclamou país livre e soberano ... é uma ilha do Caribe, entre o Atlântico e o Mar das Caraíbas, constituindo juntamente com outras ilhas, o conhecido anel das Antilhas.'
Nela, Samaná é uma península nordestina.
E tal como os taínos ofereciam aos espanhóis dominadores, coticas ou cotorras em sinal de amizade e hospitalidade, Samaná, a mim, ofereceu-me tudo de coração ... uma vez mais !!!

Anamar




sábado, 6 de julho de 2019

" PAUSAS "




Há momentos em que a vida pausa.
E se não formos nós a determiná-lo, parece ser ela mesma que se encarrega de o fazer.  É como um bolo que para crescer, precisa de levedar.  É como uma casa que acumulou pó ao longo do tempo, e em que há que abrir as janelas para que areje, por irrespirável que o ar se tornou.

E às vezes nem há propriamente nada que despolete a mudança.  É ela que se impõe.
Não quer dizer que se deitem fora os móveis, que se troquem as cortinas, que se mudem as colchas.
Se calhar, dá-se uma pintadela, troca-se o lugar das coisas, puxa-se o brilho ao soalho, manda-se polir aquela escrivaninha velha, colocam-se flores nas jarras e ... opera-se o milagre :  passa a ver-se e a perceber-se tudo com outros olhos, outros sentires, outra linguagem.  Recomeça-se a vida naquele espaço ...

Há momentos em que a vida mofa, de parada, de extática, de estagnada, de cinzenta.
E fica incómoda, cansativa, nauseante, sem graça.  E aí, tem que se agitar, como uma bebida no "shaker".  Faz mais mal que bem, vivê-la !

Tal como a História que tem os momentos marcantes que a escrevem e a determinam, assim a história das nossas vidas se vai fazendo por parágrafos, por mudanças de linha, por hiatos, por pontos de interrogação e exclamação, por reticências ... às vezes, por pontos finais.
E vira-se a página, ainda que nem seja a vontade que impere.  É o ciclo da existência, simplesmente ...
Não sabemos o que virá.  Sabemos que "aquela" vida, como está, não tem pés para andar.
Muitas vezes não sabemos sequer o que deverá ser ... sabemos é que o que é, mata e destrói.
E é ela, a vida, que nos põe à frente um sinal de stop, tão imperioso ele se afirma !

Então, há que reflectir, repaginar, valorizar desapaixonadamente o essencial do que fica, não alimentar rancores do que parte.  Aproveitar sempre o que se aprende, procurar melhorias no que virá.  Não desprezar nunca, valores e sentimentos, se essenciais.  Retirar a espuma sobrenadante e aproveitar sempre, o lastro residual, por ser sólido, seguro e valorizável !
Há que sacudir a água das penas, como os passaritos, numa poça refrescante ... e levantar voo.

Há momentos em que a vida pausa.
Ela é mestra, sapiente, pedagógica.  É preciso é saber escutá-la.  Estar atento.  Dá sinais, como um corpo a adoecer. Como uma alma que entristece e fenece, ela tem linguagem própria.  E não adianta fazer de conta.  Não há analgésicos que lhe acudam !  Fede de apodrecimento, como fruta passada do ponto na árvore que a acolheu ...

Não arranjemos motivos, razões, bodes expiatórios, culpados ... alvos.  Certamente, por algumas e todas as razões do mundo, o destino desgastou, exauriu, esgotou ... descoloriu ! É assim ... é tão só, a dinâmica da vida !...
O Homem tem que sobreviver a ela. Como um ser racional, inteligente e  pragmático, é-lhe exigida a compreensão das pausas da sua vida.  E decidi-la.  Reorientá-la.  Sopesá-la.  Redescobri-la na sua essência, e no que lhe é importante.
Esse, será um sinal de inteligência !...

... porque há momentos em que a vida pausa !...

Anamar

" VOU POR AÍ ... "




Adoro viajar.   Já aqui o mencionei vezes sem conta.
Já viajei muito sozinha, já viajei diversamente acompanhada, mas todas e cada viagem tiveram sempre um sabor diferente.
Já passei por alguns sobressaltos, atribulações imprevistas, acontecimentos inesperados da mais variada ordem.  Nem eu própria os equacionaria, antes sequer de iniciar a viagem ...
Mas de todas elas, sempre guardo o doce sabor da aventura, da novidade, da aprendizagem ... do enriquecimento pessoal !

E de todas elas guardo as memórias de quem me acompanhou, de quem conheci nos destinos, das histórias da história inenarrável que vivenciei.

Tenho para mim, que uma viagem é um luxo.  Um luxo do destino, que nada tem a ver com a ostentação característica desse mesmo destino, ou seja, nada tem a ver com a grandiosidade, o requinte , o perfil mais ou menos oneroso que esses locais impõem.
Para mim, trata-se de um luxo pelo privilégio, pela magia, por tudo em que ela, nos mínimos detalhes, preenche o meu coração e me enriquece a alma ...
Por isso, poder fazê-las, faz-me sempre sentir a mulher mais livre, feliz e sortuda à face da Terra ... E quando um dia as não puder fazer, por limitações da vida que se prendem naturalmente com o avanço dos anos, com a boa ou má saúde de que usufrua, ou por outros imponderáveis do destino, tenho a certeza que me sentirei tolhida, infeliz, entristecida e aí sim ... verdadeiramente envelhecida !
Porque elas são também uma injecção de juventude, de sonho e adrenalina, que nos fazem sentir vivos !

Mas, antes de partir para qualquer destino, sempre me bate uma nostalgia pelo que deixo, e uma ansiedade pelo que encontrarei. 
Como os limos nos rochedos das praias perdidas, torno-me também pertença desses areais distantes, torno-me dona dos sonhos, que o vai-vem das marés que sobem e descem me prometem ... torno-me senhora dos sons, das cores, dos cheiros e até mesmo dos silêncios imperantes.
E nada nem ninguém me consegue roubar o adormecer doce e calmo das ondas que o não são, no afago manso e eterno nas praias para lá do mundo ... quando afinal o mundo é só um !...
Nada nem ninguém me pode roubar o calor daquele sol, os lampejos daquelas luas espelhadas na mansidão das águas, onde também só as estrelas se revêem ...

Estou de partida.
Será mais uma história a viver-se ...

Anamar

terça-feira, 25 de junho de 2019

" A FRONTEIRA "







"O  HOMEM  DOS  OLHOS  LINDOS "

O homem dos olhos lindos
é lindo por dentro e fora
porque não há fora sem dentro
e não há dentro sem fora ...
O homem dos olhos lindos
tem doçura no olhar
tem um coração imenso
tão profundo quanto o mar ...
Tão imenso quanto o céu
sem horizonte a fechar...
pois não há dentro sem fora
nem fora sem adentrar ...
O homem dos olhos lindos 
é uma criança a sorrir ...
Tem ternura no olhar
e um coração a partir
com vontade de ficar ...
Tem uma alma gigante
e uns braços de albergar
os amigos e os amores,
os afectos e o sonhar
Um ninho dentro do peito
que é berço-maré de jeito,
sempre embala em qualquer hora ...
É lindo por fora e dentro ...
Pois não há fora sem dentro
e não há dentro sem fora !...


Este  poema  escrevi-o  há pouco  mais  de dois anos, e  apus-lhe  a  seguinte dedicatória  :   ( " dedicado com todo o carinho ao Pedro, amigão de tertúlias vadias ..." )

Hoje eu vi um farrapo humano.  E vi exactamente como, num piscar de olhos, aí podemos chegar ...

O Pedro era um desportista, de olhos azuis, rosto franco, disposição invejável, disponível em todas as horas e como eu dizia então, "um amigão de tertúlias vadias "...
Mais velho que eu cerca de meio ano apenas, costumava brincar dizendo que o ano em que nascêramos fora a época de ouro da década de cinquenta.
Nascido na terra que habitamos, não há quem não lembre o Pedro desde sempre.  Licenciou-se em psicologia, exerceu numa escola superior e apesar de ter tido uma vida afectiva muito conturbada de que lhe resultaram três filhos ( o mais novo actualmente com dezoito anos apenas ), vivia sozinho há largos anos.
Sempre se manteve ligado ao desporto.  Foi treinador de andebol, foi dirigente desportivo, de coração verde de nascença, amava o seu Sporting de paixão.
Não era fanático, tinha fair-play e interessava-se por todas as modalidades, nacionais e internacionais.
Praticava futebol inserido num grupo de amigos, de várias faixas etárias.
Dizia a brincar que o "leão da Gago Coutinho" ( a rua em que nasceu ), era imbatível ... e ria desbragadamente, como um puto travesso e irreverente, que desafiasse os coleguinhas de rua, onde em criança dera os primeiros pontapés na bola ...

2019 derrubou o Pedro e afastou-o do convívio de todos nós.  Um surto psicótico desencadeador de uma profunda depressão com posicionamentos obsessivo-compulsivos, jogaram-no para os serviços de psiquiatria de vários hospitais.
E aparentemente, de uma forma irreversível, o seu quadro clínico tem vindo a agravar-se.  A sua degradação física e mental têm-se acentuado.
Hoje o Pedro parece ter mais vinte anos em cima, não lê, pouco fala, descoordena as ideias, não elabora nenhum discurso assertivo, não mantém sequer um diálogo, e vive totalmente afastado do que ele chama de "o mundo lá fora" ...
Diz-se confuso, tem medos, vive o fantasma da não reabilitação. não concebe para si um dia de amanhã ...
Duas tentativas de suicídio falhadas, fala da solidão que vive entre as paredes do mundo alucinado da psiquiatria.  E repete, trémulo, compulsivamente :  " é o fim da linha, Margarida! "

Hoje, eu vi um farrapo humano.  E vi quão fácil é o atravessar dessa fronteira débil e ténue, entre o mundo dos ditos "normais" e o mundo dos "loucos" ...
Hoje, ele é um prisioneiro da Vida ... um refém do Destino !

Hoje, o homem dos olhos lindos, o "amigão de tertúlias vadias" está já do outro lado !...

Anamar

segunda-feira, 24 de junho de 2019

" TÃO SIMPLES ASSIM ..."



Escrevo pouco, ando dispersa, desligada, indiferente.
Acho que um pouco vazia de emoções.  Experimento uma certa acomodação à vida, que me desafiava e já não desafia como antes.
Penso que rotinei em excesso, amodorrei, indiferentizei-me com o que me rodeia.  Vivo num encolher de ombros, tanto me fazendo que o sol brilhe ou seja cinzento o dia ...
Cansada.  Cansada, parece ser o vocábulo que mais me vem aos lábios.  Digo-o e digo-mo, vezes sem conta.  Quase todos os dias ...

Será que quando atravessamos uma grande tempestade, pouco já consegue abalar-nos ?
Será que quando olhamos a morte de perto, quando a percebemos realmente e com ela conversamos, ainda que noutro corpo e noutro coração, ficamos meio dormentes, como com uma ferida aberta que já não sangra mas continua a doer ?  Um doer lento, manso, como um resto de anestesia que nos ficasse no sangue, circulando de alto a baixo ??
Talvez passemos a relativizar a importância de tudo, a importância até da própria vida.
E percebemo-la tão pequenina, tão insignificante ... tão frágil, que toda a importância que ao longo dos anos lhe atribuíamos, toda a inquietação com que nos atormentou, não passaram de fogos fátuos, que se apagam na noite escura.

Sinto-me "entupida" de um desconforto destrutivo, e sinto-me só comigo mesma, falando-me de estados de alma que só eu conheço, que só a mim interessam, que só para mim têm significância, e que os outros não entendem nem aceitam, simplesmente porque não entendem mesmo.
Vem aquela coisa de empatia solidária de alguns ... "sim ... tem dias assim, em que acordamos com uma insatisfação atroz com tudo, com uma inércia que nos tolhe até os menores movimentos e vontades ... Comigo também "... bla bla bla ...
Parece que oiço as vozes, distingo as palavras, até vejo os rostos de quem, complacentemente, o diz, no intuito de uma espécie de compensação, ajuda, compreensão ... simpatia ...

Ou oiço os outros que não entendem, simplesmente porque não entendem a linguagem ... como dizia.
Porque na verdade, na realidade ... porquê, sentir-me assim, sem alegria de viver, se a vida parece ser tão importante ?!

A vida, a sua justificação, o seu significado, o seu interesse, a sua lógica, são as tais questões existenciais que, se começamos a questioná-las, está tudo perdido ... para não usar um português mais vernáculo ...
Em tempos idos tive um interlocutor nesta mesma onda.  Talvez de nada adiantasse, mas pelo menos existia uma compreensão empática das dúvidas que nos tomavam ...
Acho que ele encontrou um "modus vivendi", e vai seguindo.  O trabalho é uma excelente terapia.  Pelo menos retira-nos tempos de ociosidade e introspecção.  E isso, ele tem muito.
Eu não.
É espantoso como, quando estamos no activo, ansiamos atingir aquele patamar de vida em que teoricamente iríamos finalmente realizar isto, aquilo e o outro, para que não temos então tempo ...
Tolice.  Nada se passa dessa forma.  O tempo está mais vazio, de facto, mas falta o resto.  E o resto é a centelha de vontade, a exuberância da frescura, o quinhão de loucura que parece termos perdido por aí ... Faltam objectivos, porque parece que pouco nos falta já, fazer.  Já está quase tudo pronto.
Os filhos têm vidas próprias e resolvem as suas próprias questões.  Os netos cresceram ou estão a crescer, depressa de mais, quase à nossa revelia, com padrões e linguagens que já não identificamos bem.  A casa ou as casas que haveríamos de adquirir, já quase só são, uma dor de cabeça, uma fonte de despesas e preocupações. Os nossos ascendentes, grosso modo, já partiram e libertaram-nos das exigências que lhes eram devidas.  Praticamente todos os amigos que tenho já não têm pai ou mãe ...
Começamos a perder conhecidos e amigos ... Alguns deles, inesperadamente.  E a sensação de "orfandade", torna-se assim mais abrangente ... Os amores ... bom, os amores também já os vivemos.
Quando pensamos, dizemo-nos como seria bom apaixonarmo-nos de novo !  Sorrimos, ao lembrar ... A vida também já nos roubou sonhos, esperanças, fé.  A vida já nos apagou as chamas que nos ardiam no peito ... e não há tanto tempo assim, afinal !!!

Então, fica aquela coisa de "pão dormido" ... de "comida requentada" ... de balão furado ...
Falta gás, falta "élan", falta força, falta projecto ... faltam objectivos ...

Porque ...

Os objectivos norteiam a vida.  A falta deles amorfiza os dias e retira o ânimo e a vontade.
Nas empresas trabalha-se por objectivos que impõem ritmos, metas, orientam esforços, definem rumos.  A luta pelo alcance dos mesmos, estimula a superação, o aperfeiçoamento, o desafio pessoal, a capacidade individual. Diariamente devem ser condutores das nossas vidas, porque são o semáforo que, aceso no fim do trilho, chama, ilumina, facilita.  Sem eles, vive-se um pouco por viver.

O homem gera-os, por vezes por razões positivas, por vezes por razões negativas.
São eles que erguem diariamente o homem que clama por justiça, o homem que busca a vingança de ódios acumulados, o homem que luta pela reposição de direitos feridos ... o homem que pugna por ideais em que acredita.
São uma mola impulsionadora que nos empurra o sonho adiante, que nos alimenta o ego e nos dá força para continuar...

Deve então ser exactamente  tudo isto, e não mais !... Ausência  de  objectivos,  na  minha  vida ! Tão simples  assim !!!...

Anamar

segunda-feira, 17 de junho de 2019

" SIMPLESMENTE UMA RECAÍDA ... "



Um pardal cisca na mesa da frente, as migalhas por ali deixadas.  Reparo que as alfazemas já estão em flor e os jacarandás, eu sei que iluminam de lilás esfusiante as ruas, os largos e alamedas por toda a cidade.
Na mata, os "bordões de S. José" estão também a começar a florir, neste mês de santos, que não o seu ...
Tempo vai em que Junho era um mês de muitas ocupações.  Desde logo, os exames à porta, no quinto ou no sétimo ano, relegavam-nos ao reduto do quarto, em noites de estudos intermináveis, quando a rima dos manuais a serem dissecados, parecia infindável.  Três de História, três de Geografia, três de Física e outros tantos de Química dos terceiro, quarto e quinto anos, e por aí adiante ... em todas as disciplinas curriculares.
Eram noites para estudar e manhãs para dormir, já que o silêncio da concentração só nos ajudava pelas madrugadas. Eu vivia num rés-do-chão de uma avenida barulhenta e movimentada, e por isso, não era fácil durante o dia conseguir o sossego desejado.

Já aqui contei, creio, que a minha mãe entendia que se me fizesse companhia noite dentro, tudo me seria mais fácil. E por isso, vinha para junto de mim  fazer renda e obsequiar-me com miminhos constantes ... miolo de pinhão, bolachinhas a gosto, ananás em calda, pratinhos de arroz doce, frutas caramelizadas e tudo o mais que lhe viesse à cabeça.
Sempre gostei de estudar com música, baixinha, e nessa altura do ano, toda a noite as marchas populares ocupavam as estações de rádio.

Depois, Junho era o mês dos casamentos de Sto.António e assisti-los pela televisão, era um programa e tanto ... As  marchas  populares, no  desfile  pela avenida, eram  outra  "maravilha" !...
Os afazeres eram aligeirados ou acelerados mesmo, para que não se perdesse pitada !
O Festival da Canção parava o país ...
E a vida corria mansa e simples.  As tecnologias que nos absorvem e estupidificam hoje em dia, não existiam, e por isso, ler, escrever, desenhar para quem gostava e deliciar-se com o que um dos dois únicos canais televisivos exibiam, já estava de bom tamanho ...

Os horizontes passavam muito pelos desígnios norteados pelos pais, que ansiavam que os filhos fossem mais além do que a bitola e a fasquia das suas próprias vidas !
Os objectivos a atingir eram por isso óbvios.  A vida era modesta, aparentemente sem grandes surpresas ou sobressaltos.  Os valores eram aqueles que a boa formação que nos era transmitida, impunha.
As casas eram lares, as famílias eram clãs, os sonhos eram direito da existência, os relógios pareciam correr devagar, e os anos pareciam mais generosos do que agora.
As estações estavam definidas, e sabíamos perfeitamente que grossas camisolas de gola alta eram imprescindíveis no Inverno.  Sabíamos que as andorinhas e as cegonhas haviam de emigrar, quando os primeiros tremores da estação se fizessem sentir.
Sabíamos vagamente que no mundo havia conflitos, e que existia um fantasma que se chamava "guerra fria" ... Mas tudo isso era lá longe !... O muro de Berlim parecia dividir o mundo, e tudo se passava entre a América e a Rússia, que assustava, e onde existia uma gente estranha, dura e má ...
Por cá, convinha ser discreto, andar na linha, não fazer politiquice ...
As férias do Verão eram intermináveis e passavam-se por aqui mesmo. Quem tinha "terra", recolhia uns dias ao chão onde nascera e donde no regresso vinham as batatas, as chouriças, até o azeite e o vinho, da colheita do ano ...
As roupas faziam-se nas modistas.  Pronto a vestir era ainda uma ideia estranha.  E não havia marcas. Todos usávamos mais ou menos indumentárias semelhantes, sem luxos ou exibicionismos.  Não existiam as "jeans" e as raparigas quase sempre usavam saias.
Víamos o Flipper, golfinho inteligente que sempre nos deliciava, e a Bonanza entrava-nos em casa na garupa dos cavalos dos Cartwright ...
A mãe comprava a Crónica Feminina, a Flama, os Lavores Femininos e nós líamos os "Caprichos" meio à surrelfa. Amor e sexo, pertenciam um pouco ao imaginário de adolescentes como eu ...
Passávamos o cabelo a ferro na tábua de engomar, e em vez de condicionador usava-se cerveja para o fortalecer ...
Começávamos a reivindicar os primeiros biquinis, que não o eram, mas sim os púdicos "duas peças" ...
Sonhávamos ouvindo Roberto Carlos, delirávamos com o romantismo de Adamo, Hardy, Silvie e o seu romance escaldante com Hallyday ... Bécaud, Aznavour ...
Livros existiam, alguns ... não muitos ... os clássicos ... Eça, Herculano, Guerra Junqueiro, Florbela, Camilo e outros. Encadernados, com bordaduras e letras a ouro, davam requinte às estantes que os exibiam ...

Enfim ... o pardal acabou voando, o perfume das alfazemas impregna-me o coração e eu ... acabei "acordando" desta recaída nostálgica a um tempo já esbatido, como o são as imagens a sépia que ocupam ainda muitas das nossas molduras ...

Saudades do que era ... das que éramos ...

Anamar

sexta-feira, 24 de maio de 2019

" PÁSSAROS "



Aqueles tocadores de sonhos começaram cedo pela manhã.  E não arredaram pé, por todo o dia, da calçada junto à porta do prédio, zona de passagem de quem se faz às compras diárias, aos autocarros e aos comboios.
Por certo, esperançavam-se ser ali, lugar de generosidades dos passantes.
Duas bicicletas, um  atrelado por cada uma, mais umas tralhas logísticas, mais um cão ... mais a magreza inerente à escassez adivinhada, mais a sujidade dos trajes e das "rastas" nos cabelos imundos ...
Ah ... e um pífaro.  Um deles tocava uma espécie de música, sempre a mesma, extraída daquele instrumento.
Esse, em pé, bamboleava o corpo como quem experimenta uma  dança nos acordes musicais.  O outro, sentado no chão, num pano estendido sobre as pedras, fazia uma qualquer bricolage que expunha na calçada, sonhando talvez que alguém pudesse comprar aquelas peças, cuja serventia não descortinei.

O sol esteve agressivo por todo o dia.  Forte de mais, apesar do céu se mostrar nublado a espaços.
E eles ao sol, alheados do que os rodeava.  Silenciosos.  No seu mundo, apenas.
O cão dormia, o pífaro tocava aquela lenga-lenga, o rapaz da bricolage terminava acabamentos, o rapaz do pífaro ora num pé ora noutro, parecia não estar por ali .
Não pediam esmola, não pediam comida, não falavam com ninguém.
Dois perfis esfíngicos, alheados do contexto à sua volta, numa postura total e absolutamente zen ... eu diria ...

Conhecemos gente assim. Vagueiam nas cidades, pedalam nas estradas, acampam nas falésias frente ao mar.
"Hippies", marginais, "outsiders" ... gente estranha ... vá-se lá saber ... era o que se adivinhava na postura selectiva e xenófoba de quem os olhava e rapidamente desviava os olhos.  Eram incómodos, sem o serem ...

O ser humano, sem querer obviamente generalizar, reage mal ao diferente, ao que desafia as estruturas, ao que questiona, ao que mexe com o instituído, ao que quebra regras ...
E a presença daqueles jovens, assumidos na forma comportamental escolhida, confrontava quem passava, se mais não fosse, porque acenava com a coragem de se mostrarem livres. Independentemente de serem ou não aceites numa sociedade  toda ela articulada, desenhada em figurinos musculados e "correcta", enjeitam literalmente o estabelecido, ainda que este os hostilize.

Do meu sétimo andar, onde chegavam os acordes daquela melopeia repetida, espreitei-os vezes sem conta.
Certamente serei demagógica ... mas aquelas figuras descomprometidas causavam-me alguma inveja. De certa forma, despertavam-me simpatia e admiração ... a nós, que acomodados ao conforto das seguranças na vida, nas certezas dos trilhos desejados e escolhidos, optamos pelo imobilismo de ir ficando por aqui ... ainda que os sonhos fiquem quase sempre  da  "porta" para fora !

Transportam mundo nas costas, carregam estrada nas pernas ... e asas ...
Pousam nas grades da nossa "gaiola" e sorriem.
Não sei se são tocadores de sonhos, não sei se são adoradores de sóis e de luas, amigos do vento e da chuva ... filósofos da vida ...
Não sei se serão só isto, se serão exactamente isto ... ou muito mais que isto ...
Ou apenas, pássaros !...

Anamar

quarta-feira, 22 de maio de 2019

" DESABAFO "




Ando a escrever pouco ...  Menos ainda, poesia ...
Hoje, foi "dia" ...


" DESABAFO "


Se de girassóis, tivesse um mar,
e o sagrado silêncio da alvorada,
deixaria a minha alma atormentada
nas asas de um pássaro, voar ...

Se eu tivesse do céu, o infinito
e deixasse o coração falar tudo o que cala,
partindo com a nuvem que se abala,
soltaria no vento, este meu grito ...

Porque eu sou alguém que não se entende ...
e só quem sabe, pode adivinhar ...
Sou caule e sou raiz que à terra prende
um barco, que se quer fazer ao mar ...
Uma flor que brota da semente,
e que querendo partir, tem que ficar ...

Anamar

terça-feira, 7 de maio de 2019

" CARTAS DE AMOR ... "






“Cartas de amor, quem as não tem ?...“   cantava  Francisco José ... 

Ainda sou capaz de trautear a melodia, embora ela pertença mais à geração da minha mãe, do que à minha. Era eu então uma criança, quando este tema, à semelhança de outros mais, que alguns recordarão, fazia estremecer os corações à boa moda do romantismo da época.
Exactamente a época das "cartas de amor"...

Escritas, trocadas, lidas, relidas, cheiradas, suspiradas e guardadas em laço de seda e fitas acetinadas, nos baús e nas gavetas, formavam o espólio dos apaixonados de então.
Devolviam-se também, quando os romances punham fim aos sonhos daqueles que as escreviam.
Eram cartas longas, cheirosas, osculadas muitas vezes pelos lábios da mulher que as endereçava, transportavam juras, promessas eternas, levavam sonhos pueris, desejos inconfessáveis ... e flores meio secas, como um bouquet de sentimentos ...

Eram clandestinas, às vezes.  Corri atrás de algumas, à posta restante dos correios, à revelia da vigilância da minha mãe ...
Era o tempo da adolescência, dos amores nem sempre aprovados, muitas vezes contrariados ... escondidos, por isso.
Mas sempre se arranjava forma de driblar os esquemas...
E tudo era por isso, de uma dimensão de fogueira descomandada.  Tudo se vivia  no ímpeto e na chama da pureza dos sentimentos, que eram sempre imensos, na altura, com uma exuberância fatal e sofrida, como nas telas ... o que os envolvia numa magia de história romanceada !

Havia "tempo" para se escreverem as cartas ... para se rascunharem primeiro e burilarem depois.  A vida não era tão assoberbada e corrida.  Os valores eram absolutamente díspares dos de hoje.  A realidade e os interesses também.  As pessoas eram menos descartáveis, as emoções igualmente.  Os códigos de conduta estereotipavam-se em modelos rígidos e pouco permissivos.  A sociedade, de certa forma, era mais espartilhante e controladora.
Hoje, a liberdade alcançada, a capacidade de escolha, o livre arbítrio e a determinação prodigalizados pela cultura, pela informação e pelo acesso a todas as fontes disponíveis, orientam por isso o Homem, para outros padrões comportamentais.

Mas os sonhos são transversais à vida, e sempre fazem sentido e norteiam os seres humanos.  São determinantes e impulsionadores do amanhã de todos nós.
E os amores e os afectos, felizmente continuam com a doce "pieguice" do ontem e com a capacidade suprema de nos surpreenderem e nos "melarem"os corações ...

E embora os anos avancem e teoricamente a disponibilidade emocional pareça regredir, já que  tendemos a endurecer-nos a nível sentimental  ( afinal, a vida, "grosso modo", encarrega-se disso mesmo, retirando-nos o espaço da emoção, da surpresa e da ingenuidade, em que a inocência se vai quase sempre, perdendo ), deveremos lutar para que se reverta essa situação. 
Manter, adubar e regar tudo aquilo que ainda consegue acelerar-nos as pulsações, enrubescer-nos o rosto, e potenciar-nos  um  sentimento de bem estar e felicidade ... é determinante à vida e ao estar-se vivo !

Cartas de amor, há muito não recebo.
Tenho nos meus guardados, bilhetes ternurentos, guardanapos de papel escritos, textos incipientes,  naïfs, rabiscados às vezes ... pedras da praia com locais e datas ... folhas secas e flores meio desfolhadas ... botões de rosa esmaecidos, mas sobreviventes aos tempos e às vicissitudes ...
Todos são afinal, verdadeiras cartas de amor indeléveis, codificadas nos afectos, nos sentimentos,  nas linguagens,  eternizadas  no  coração  e  na  mente,  até  ao  fim  dos  meus  dias !...
Pois afinal ... "cartas de amor ... quem as não tem ?... "

Anamar

domingo, 5 de maio de 2019

" UMAS E OUTRAS ... "





É ... é mesmo verdade !  As nossas cegonhas já não vão embora .

Fiz-me ao sul, numa de aproveitar alguns / poucos dias estivais que assomaram por aqui, neste Verão ainda longe de o ser.  Atravessei o Alentejo, que nesta altura do ano consegue estar ainda mais belo.
Os matizes de verdes, misturados com uma paleta que esgota todos os tons, das flores em explosão pelos campos, pintam uma aguarela assombrosa !
Os animais pastoreiam.  Na hora da sossega, as sombras dos sobreiros, das azinheiras ou das oliveiras, fazem do montado um céu pintalgado de pequenos pontos imóveis, adormecidos.  De quando em vez, pachorrentamente, deixam-se  ouvir os chocalhos ecoando na planície que se perde ...
Lá, as cegonhas ocupam os lugares altos. Os postes de alta tensão albergam ninhos e ninhos, numa convivência pacífica de condomínio.  As crias, de tamanho menor, habitam tribunas de privilégio, enquanto os pais catam pelos campos, o sustento necessário.
E rasam as copas das árvores, de asas esticadas, num voo soberano, aragem fora, garbosas, altivas, senhoras e donas da charneca.  É um enlevo olharem-se ...

E já não vão, de facto, embora.  As alterações climatéricas notoriamente mais favoráveis, neste nosso torrão abençoado, de pés de molho no Atlântico, já não lhes justifica a longa viagem em demanda do calor do norte de África.
Ficam ... Casa já têm ... pequenos arranjos de obras básicas, garantem-lhes de novo a estadia com qualidade ...

Por pássaros, incoerências e afins, lembrei dos passarinhos que vi em Myanmar, à porta de um Templo Budista.  Eram muitos, miudinhos, talvez menores que os nossos pardais dos telhados.  
Esvoaçavam, em espaço reduzido, numa gaiola quadrada, ao lado da qual uma mulher birmanesa se acocorava no chão.
O calor era violento, o sol era carrasco e a precária sombra que os protegia, não seria suficiente para os aliviar daquele sofrimento visível.  Água e comida, penso que não tinham.
Inocentemente, e com o conhecimento ocidental, indaguei dos seus destinos.  Se terminariam em iguaria culinária ...
Que não.  A sua liberdade, "comprada" por um euro, garantiria "pontos" no karma de cada um, que a essa boa acção se propusesse ...
Formas enviesadas de angariar o sustento, subterfúgios ardilosos de subsistência ... ou uma simples "transacção" com o além, num país de preceitos teoricamente rigorosos e condutas impolutas sob orientações e valores inquestionáveis ?!
Ou ... ( pensava eu ) apenas imperfeições, adulterações e incoerências humanas ???!!!...

Eu, ter-lhes-ia aberto simplesmente a gaiola, olhando-lhes a liberdade alcançada de um céu imenso, inteiro, sem limites,  para desfrutarem, seres vivos que são, numa terra por onde Buda apregoa uma lição de amor ...

Hoje, primeiro domingo de Maio, institucionalizado "Dia da Mãe", põe uma outra vez o consumidor, na senda exacta do consumismo, em mais um dia do calendário destinado a isso mesmo.
Sou dos tempos em que o Dia se assinalava tão só com o beijinho especial, carinhosamente trocado logo pela manhã, e a oferta de um cartãozinho feito pelas nossas mãos infantis.  Despretensioso, naïf, simples ... escrito com as letras pequeninas, cuidadosamente desenhadas ... traduzia na sua singeleza a autenticidade das coisas raras, realmente sentidas.
Após a partida da minha mãe, no desfazer da sua casa, encontrei alguns, religiosamente preservados entre os seus guardados.  Uma das netas quis manter a sua posse.
Afinal, como qualquer mãe sabe claramente ... e ninguém como ela consegue perceber com justeza e atestar com veracidade ... mãe  é  coisa de sempre, de todos os dias, de todas as horas ... de toda a vida ! Mãe é incondicional, é irrestringível, é perene !   É coisa de plantão ... tempo integral ... Porque é sangue e é carne, é amor e é dor !...  E o cordão que nos garantiu a vida durante nove meses, nunca nos é realmente cortado !
Quando já não está entre nós ... mãe, está dentro de nós !  Presente, "ad eternum" !...

Bom, hoje foi assim.  Divagações ao sabor das histórias, conforme me chegaram, umas e outras, à memória e ao coração ...



Anamar