sexta-feira, 31 de julho de 2020

" AQUI DA MINHA JANELA " - HISTÓRIA DE UM PESADELO - Um dia mais ...






Ando estilo "barata tonta", arrastando as horas nos dias e os dias no calendário.
Pareço ter a sensação que vencidas as etapas, abrir-se-ia uma qualquer luz ao fim não sei bem de que túnel.  Só que o raio do túnel é de uma negritude sem tamanho. Não se lhe vê nem a embocadura nem a porta de saída.
Só ar irrespirável, mofado, só passos mais adivinhados do que seguros, num tactear entremeio às teias de aranha, que já houve tempo suficiente para serem tricotadas ...

A vida segue mais ou menos igual todos os dias.  As pessoas mexem-se em torno da posição de equilíbrio, sem grandes voos, sem grandes aventuras.
Caminhamos um pouco como o trapezista sem rede.  Sem nos atrevermos.  Sem ousarmos ... e a ousadia é sinónimo de vida ... que parece não termos.

O ano já dobrou a metade.  O Verão já leva um mês às costas.  Quando dermos por nós, o pincel ocre e dourado da Natureza, aponta-nos a breve chegada outonal.
E o que foi feito desta escorrência fétida de tempo ?
Vivemos ?  Hibernámos ?  Criogenámos ?  Marinámos apenas ?  Ou adormecemos sem sequer sabermos se viremos a acordar ???
Desperdício puro da nossa existência !!!  Disso, eu tenho a certeza !
Quanto à contabilidade da mesma ... ao nosso deve e haver escrito no livro do destino ... não sei fazer o acerto !  Quem nos poderá ressarcir destas contas viciadas ?!...
Sufocação ... é o sentimento dominante !

Os estados sociais do ponto de vista político-sanitário, vão mudando de nome ... emergência, calamidade, contingência, alerta ... sei lá !  Por esta ou outra ordem...isso agora não me interessa nada !  Mas as pessoas continuam a evitar-se.  As reticências espetam-se em todas as conversas.  A suspeição chega a ser ridícula.  Cada "outro", é um potencial "inimigo sanitário".  Tentamos disfarçar a hesitação, o "susto", a apreensão ... porque nos cruzámos no dobrar de uma insuspeita esquina !
"Suba , suba... eu ainda vou ver o correio ... "  o que se inventa p'ra não partilhar o elevador com o nosso inofensivo vizinho do lado !..
Visitas, não se fazem.  "Podes vir de máscara ... por mim não tem problema !"...  "Melhor não.  Acho não ser oportuno !  Deixamos o café p'ra outra vez!"....

Deixamos.  Deixamos o café, deixamos os silêncios, deixamos as partilhas ... deixamos o amparo do ombro, do cólo e do coração !... Esquecemos o abraço ... Deixamos o tempo ... e a vida, acoplada !
Qualquer dia !...
Sim .... pode mesmo vir a ser na próxima encarnação ... vá-se lá saber !
O virtual está esgotado.  O virtual já não responde, não supre, não satisfaz ... não mata a nossa carência afectiva e emocional, essa sim, que é mesmo mortal !
As panaceias dos meses primeiros do nosso flagelo, estão totalmente cansadas.  O entusiasmo dos vídeos, das fotos, dos bons dias, das boas noites ... o carinho plástico que nos trazia a força do bem querer, perdeu o fôlego, perdeu a capacidade de quase nos fazer sorrir ...
Cansaço ... um cansaço que derruba, que incapacita, que anestesia ... Estamos todos assim, neste torpor sem fôlego, sem ventilação ... sem  "pique"...

Nada se projecta.  Nada se planeia.  Nada se decide.
Ir ali agora ?  Talvez !... Mas, não sendo agora ... daqui a dois meses ?  Poderá ser ???  Vá-se lá saber !  E a segunda "onda" ?  E o Inverno que já espreita lá ao fundo ?  E os casos na China a aumentarem !...  E países que já retrocederam ... já reconfinaram ... aqui bem pertinho ...
Inferno !!!  Tudo adiado, uma neblina que não abre.  Um céu cinzento e pesado, numa manhã invernosa em pleno Julho, quente e azul !!!
Ausência de vida !!!...

Anamar

terça-feira, 28 de julho de 2020

" MEMÓRIAS IDAS ... "




Aquela casa não é aquela casa ...
E ainda bem que "esta" casa não é a casa que era !

Respirei fundo, cumpri o horário e atrevi-me.  Não fazia ideia de como me saíria de uma visita inesperada, ilógica e desajustada no tempo.
O tempo ... de Covid19,  é um tempo impensável p'ra visitas em casa de quem quer que seja, menos ainda em casa de pessoas que não nos são propriamente familiares ou de relações próximas. Visitas, configuram mesmo um certo abuso ... eu acho .
Mas passo a explicar:
A casa dos meus pais, nos últimos quase trinta anos a casa "da minha mãe" apenas ... era um rés-do-chão alto,  como se dizia, que estreámos, acabadinho de fazer, quando, recém-chegados do meu Alentejo, de Évora, meu berço de coração, rumámos à capital por razões profissionais do meu pai.
Corria então o ano de 1963.
E lá se fez toda a minha história.
De lá saí p'ra casar, de lá parti para Luanda onde vivi dois anos, cumprindo também eu a "comissão militar" do meu marido, alferes miliciano  ali destacado.
P'ra lá entrei com a minha filha mais velha nos braços, chegada da clínica, com horas de vida.
De lá vi o meu pai rumar ao hospital, sem retorno ... no que foi o meu primeiro grande desgosto na vida.
De lá saí para a casa definitiva onde ainda vivo até hoje, embora o cordão umbilical nunca tivesse sido cortado.

Aquela casa foi pois, a casa de família ... o berço, o ninho, o aconchego.
Todos os dias transpunha a soleira daquela porta.  Todos os dias desejava as boas noites à minha mãe, quando pelas sete horas, debruçada na janela, com o Gaspar ao lado, se despedia de mim, antes das minhas aulas, já que o liceu nos ficava em caminho.
Todos os dias, quando dobrava a esquina, a ouvia descer a persiana, porque a noite se avizinhava e para ela eram quase horas de recolhimento.
Aquela casa assistiu ao crescimento das minhas filhas.  Ficando logisticamente no triângulo entre o meu liceu, a escola preparatória da mais velha e a primária da mais nova, era estrategicamente o pólo de apoio a nós três, na hora do almoço.
Vínhamos chegando, contando as novidades, conversando, rindo e claro ... acelerando a minha mãe, mercê da fome que já se fazia sentir.
" Avó ... cheira bem !  O que é hoje ? "  " Meninas, mãos lavadas e mesa ... parem da corrimaça ! "      " Cláudia ... chega !  Catarina,  pára ... olhem  que  ainda  partem  alguma  coisa ! "...
" Como foi a escola ? "... " Recebeste algum teste, Cláudia? "...
E era assim !...  E foi assim ... muitos anos.  Todos os possíveis !!!...

Depois, a vida desmanchou-se.  Como se desmancham as vidas das pessoas.
Pelas mais variadas razões, aquela casa foi-se despovoando ...  Até o Gaspar ( a quem só faltava falar, dizia a dona ... ), partiu um dia.
As persianas desceram definitivamente, as plantas foram definhando, pois já não era mais a dona que as cuidava ... os estendais ficaram inúteis, o silêncio e as sombras foram-se instalando ... a ausência de vida passou a morar por ali ...
Até ao dia em que inevitavelmente me coube a mim franquear de novo a porta da rua, agora no sentido do exterior ... definitivamente, jurara eu.

Mas a vida tem ironias, tem "arapucas" difíceis de entender.  Tem desafios que talvez seja útil encarar de frente.  Tem feridas que por vezes criam crostas apenas superficiais, e que removendo-as de vez, abrem hipóteses para uma cicatrização objectiva e plena.

A actual inquilina daquele espaço é uma antiga aluna minha, uma miúda que vi crescer ali, no segundo andar do mesmo prédio.
A casa foi para obras de fundo tanto quanto me apercebi, como careceria um andar que pouca manutenção tivera desde a construção.  A senhoria verbalizara-mo, quando lhe devolvi em definitivo as chaves.
Passei uma vez junto às janelas ... abertas, por via das obras.  Olhei longamente o que conseguia divisar.  Um operário perguntou-me se queria entrar para ver.  Declinei, enquanto as lágrimas me escorriam.  "Foi a casa de toda a minha vida ... Não quero entrar, não !"

O tempo passou.  A minha mãe já partiu há mais de dois anos.
Ontem, a Sandra disse-me "professora, faço gosto em que veja a minha casa e como ela ficou depois de toda uma vida ser a vossa casa ..."
Não pude recusar.  Eu queria e não queria.  Buscava ( como se ali estivesse ) toda a história que ali vivi.  Parecia que naquelas paredes estava indelevelmente tactuada a presença dos meus pais, o som das suas vozes, o ruído dos seus passos.  Tinha a certeza ( e isso enchia-me o coração de uma esperança vã ... quase de uma alegria mitigadora), que olhar aquele espaço seria uma regeneração de um passado que se tornaria presente outra vez ... Como se isso pudesse acontecer !... Como se milagres existissem ...

Não fazia ideia de como me saíria de uma visita inesperada, ilógica e desajustada no tempo.
Mas ... respirei fundo, cumpri o horário e atrevi-me ...

Aquela casa não é aquela casa ...
E ainda bem que "esta" casa não é a casa que era !...

Anamar

sexta-feira, 24 de julho de 2020

" AQUI DA MINHA JANELA " - HISTÓRIA DE UM PESADELO - Um outro dia





Hoje chegou até mim este vídeo enviado por uma amiga, que não sendo alentejana, sabe que eu o sou.  Sabe do amor que nutro pelo meu chão, da nostalgia com que as suas memórias me atravancam o coração ... e de como qualquer pequeno sinal se transforma numa ponte de acesso em pretexto de mitigar saudades.

Atravessamos tempos difíceis.  Tempos de angústias e solidão.  Tempos de incertezas e de horizontes nublados.
Atravessamos tempos de cansaços e de exaustão.  Tempos de parecer não valer a pena, em que as forças faltam, e a fé em futuros menos nublados parece estar a anos-luz do nosso dia a dia ...
A resistência física está a ir-se.  Sente-se claramente, ou um desinvestimento em sonhos, projectos, envolvimentos futuros que quase já não subscrevemos ... ou simplesmente tanto  faz que corra para baixo ou para cima, numa inércia e num desinteresse notórios.
Eu já não acompanho notícias, números, discussões, opiniões, questiúnculas, trocas de galhardetes em praça pública entre esferas e estruturas com responsabilidades ... nem nacionais nem internacionais, todos tentando contabilizar dividendos da coisa ... pela simples razão de ter atingido um grau de saturação que me opaciza a realidade que me envolve.
Se fosse brasileira, diria que "não tenho mais saco" pra nada !

Entretanto o tempo atmosférico carregou sem piedade.  Sei que o mês é Julho.  Sei que estamos no pino do Verão, mas as temperaturas que se fazem sentir, para quem passa a maior parte do dia e dos dias entre quatro paredes, são penosas e destruidoras.
Trinta e cinco graus na cozinha, ambiente de sauna dia após dia após noite, em que se reduz a indumentária ao mínimo dos mínimos, em que não se dorme ... vai-se ali à cama estender o esqueleto e tentar que o sono nos abrigue em braços de esquecimento ... em que a almofada se encharca, em que a luz se coa e fica quase noite o dia inteiro, para vedar com os estores a intromissão dos raios solares pela casa adentro ... reduzem até os mais resilientes e optimistas a uns vermes sonolentos ... 😄😄😄 
Pelo menos é assim que me sinto !!!

Um destes dias resolvi ir espreitar Lisboa "amordaçada" ... Queria ver como é o rosto da cidade agonizante, amputada do brouhaha que a mantém viva e a torna uma das metrópoles mais belas do mundo !
Queria testemunhar esta Lisboa Covid 19 ...
Era um domingo ensolarado e quente, de um Verão que não deixa os pregaminhos por mãos alheias.  Os jacarandás, já adormecidos numa modorrência de fim de floração, pareciam deprimidos,  com as últimas lágrimas lilases pingando das ramagens.
Sentiam-se decepcionados ... Afinal, engalanaram os céus da cidade para tão poucos olhos os admirarem ...
Lisboa mascarava-se de máscara e viseira na pressa corrida dos veraneantes que se atreviam.
Lisboa que sempre se travestiu de uma multitude de rostos, linguagens, cores, numa promiscuidade de dialectos, raças e géneros ... num universalismo de capital desta Europa de sul, em liberdade assumida, silenciou e ensombrou do Rossio ao Chiado, da Avenida aos Restauradores, numa Baixa mais sozinha e entristecida do que algum dia a vimos.
Lisboa está triste.  Perdeu a alegria da sua gaiatice de menina-mulher !...
É afinal uma cidade fantasmagórica, solitária ... descaracterizada, que aprisiona consigo as suas gentes que a não percebem, reconhecem, ou identificam ...

E assim a vida segue.  Uma vida com toda a estranheza do mundo, em que todos nos sentimos mal na pele que vestimos, em que lá fora se perdeu na curva do tempo, tudo o que deixámos há escassos meses apenas.  Tudo o que eram as referências norteadoras do nosso existir !  Tudo o que redigiu palavra por palavra, frase por frase, a história de cada um de nós !...
Saudades do meu Alentejo !  Saudades de uma boa açorda de coentros e alhos, degustada na sombra generosa da parreira que ensombrava o quintal da nossa infância ...
Saudades , saudades ... saudades !...
























LISBOA  DESAPARECIDA  -  JULHO  DE  2020

Anamar

quinta-feira, 9 de julho de 2020

"AQUI DA MINHA JANELA " - HISTÓRIA DE UM PESADELO - em dia de esperança





TEMPOS  DIFÍCEIS


Nunca a espera foi tão longa
Nunca o caminho tão escuro
Nunca a esperança tão tamanha
Nunca o cansaço tão duro !
Nunca a prova tão travessa
Nunca o medo tão real ...
E ainda que não pareça
e que o sonho desvaneça
e o mundo não seja igual ...
sempre o sol nascerá,
sempre a lua descerá
e as aves irão cantar ...
Depois da noite, outro dia
abrirá com alegria
na madrugada a chegar !

Aqui estamos a pé firme
Nosso esteio, o horizonte,
Nosso caminho a seguir
ruma à luz que está defronte !
Não podemos soçobrar
e no cansaço mortal
teremos que buscar forças ...
E não sendo o mundo igual,
mesmo que o sonho adormeça,
cumpriremos a promessa ...
vamos cantar a canção
que acalenta um mundo-irmão ...
ainda que não pareça !...

Das Américas até África,
Do levante ao ocidente
vamos estender nossa mão,
escancarar o coração,
gritando alto "Presente" !...
E a Terra renascerá
à luz de um outro amanhã ...
Um hino se irá escutar
no cansaço do esperar,
porque a espera não foi vã !
E o pesadelo sofrido
já não mais fará sentido ...
A nossa esperança venceu !...
Depois da noite, outro dia
esperará  com alegria
o Homem novo que nasceu !!!

Anamar

quarta-feira, 8 de julho de 2020

" AQUI DA MINHA JANELA " - HISTÓRIA DE UM PESADELO - mais um dia !





Continuamos indefinidamente no mesmo lugar, na mesma rota ...ou seja, sem rota e sem rumo ! Num sentido proibido de vida e de esperança !...
Não tenho sobre o que escrever.  Os meus estados de espírito são recorrentes, os sentimentos de angústia e de cansaço repetem-se em círculo ... a chamada "síndrome pescadinha de rabo na boca" ...
Excepto uma assustadora e progressiva degradação psicológica que me noto ... tudo o mais é cinzento, é anódino ... é turvamente indiferente, quase ...

Continuamos no estado de calamidade.  Pertenço à mancha das dezanove freguesias da área metropolitana de Lisboa, abrangidas superiormente por esta medida, dadas as estatísticas penalizadoras ditadas pelas contagens e mais contagens da DGS.
Apesar do verdadeiro "molho de brócolos" em que se tem tornado a divulgação oficial diária dos casos respeitantes à pandemia, e dos desacertos dos mesmos na busca do acerto das contagens ( o que não beneficia uma certa urgente e necessária paz de espírito da população ), os números não são de facto, tranquilizantes ...
Assim, tudo igual !

Estou-me nas tintas já p'ra tudo isto !  O que é verdade é que estou saturada de análises, gráficos, interpretações, teorias, opiniões ... verdadeiras teses contraditórias quase sempre, de especialistas ou não, de jornalistas ou não ....
Toda a gente opina, e o cidadão comum balança, balança nesta corda bamba da multi-informação aspergida sobre as nossas cabeças, como os aerossóis do corona ... que a OMS veio agora considerar serem forma possível de transmissão via aérea, até distância razoável ...
E é uma "poluição" de dados e pareceres  nacionais e internacionais, em tratados, artigos de opinião, fóruns, debates ... de quem terá legitimidade para os proferir e de quem talvez não a tenha ...
É uma toxicidade nociva, a adoecer-nos o corpo e a alma !...

As nossas cabeças em "fritura" permanente, dois passos adiante, três para trás, são um nó cego de neurónios a estoirar pelas costuras !...
Na  verdade,  a  nossa  capacidade  de  resistência,  está  como  os  hospitais ... à  beira  da  ruptura ...
Não dá para muito mais !  A minha, não dá ... garantidamente !

Entretanto, os países europeus que abrem agora fronteiras e corredores aéreos à circulação de cidadãos em turismo, "brindam-nos" com notícias "fantásticas" :  Inglaterra primeiro, agora Escócia, Bélgica e acabei de ler ... Finlândia ... consideram inseguro permitir a circulação de portugueses, sem o devido rastreio e quarentena à chegada ao seu território.
Dessa forma, uma machadada brutal é desferida sem apelo nem agravo na recuperação da nossa economia, que deitava agora a cabeça de fora e tenteava os primeiros passos da recuperação imprescindível à nossa sobrevivência ...

Por cá, ontem mais uma vez a Teresa me acalentou com a sua doce presença das sete da manhã à meia-noite.  A mãe, na frente "de fogo" de um hospital central de Lisboa, faz-se presente onde inevitavelmente faz falta.
E é aquela angústia, aquela incerteza, aquela ansiedade ... aquele MEDO ...
As notícias são as conhecidas, num local onde a saúde e a doença, a vida e a morte, são as peças de um jogo de xadrês que se joga ao limite, e onde, uma escolha mal feita, um lance mal jogado, um descuido na avaliação, pode conduzir a um inglório e irreversível xeque-mate !

Escolho não pensar muito.
Escolho brincar com a Teresa, conversar com ela, cuidá-la, escutá-la ( nos seus três anos ) falar dos "bichinhos" !... Lava bem as mãos, avó ... por causa dos bichinhos !...
Teresa, não mexas, não toques, não te encostes ... Uma realidade de filme de ficção !!!
Cada dia destes que vivo agora, transmite-me uma sensação estranhíssima.  Analiso-me à exaustão ... dói-me a cabeça, tenho calor... terei febre? Estou cansada, exausta ... o que será ?
E pergunto : Catarina, está tudo completamente normal contigo ?  Ocorreu alguma situação mais preocupante por lá?...

E é como se fosse ali comprar uma raspadinha e viesse verificar com o "suspense" inerente, se o "prémio" estava lá, nas figurinhas raspadas lentamente ...
Ainda não foi desta !!!...
E o espírito pendurado na corda da roupa, a baloiçar ao vento !  E a sanidade mental, sujeita a uma pressão excessiva e prolongada por demais, a escoar-se pelo ralo !...

Bom ... esta a realidade que vou vivendo em mais um dia, de um Verão a ir-se também, num ano que desliza à velocidade da luz, umas vezes ... na lentidão do caracol, outras ...
Um ano que não conta, não pode fazer número nas nossas vidas, porque na verdade, será sempre um ano não vivido ...
Paradoxalmente, ou não ... talvez o que virá a ser o mais marcante "ad eternum", nas nossas existências !...

Até amanhã !  Fiquem bem, por favor !

Anamar

sábado, 4 de julho de 2020

" AQUI DA MINHA JANELA " - HISTÓRIA DE UM PESADELO - continuamos por aqui ...





Hoje ... foi só mais um dia ! Daqueles ... sem horizonte ou sonho !
Estou melancólica, triste, nem sei mesmo se angustiada. Fisicamente não estou bem, dentes a atormentarem-me e noites muito mal dormidas há tempo de mais.

O Facebook trouxe até mim uma memória de há dois anos, uma vivência inesquecível num lugar de privilégio, quando os tempos eram leves e luminosos. Quando seria impensável, sequer conjecturável nos nossos espíritos, o que viria a invadir e a detonar a paz das nossas vidas, dois anos depois ...
Até por isso mesmo, cada vez mais se deverá valorizar cada momento, cada instante ... o hoje ... porque o ontem já vivemos e do amanhã nada sabemos. E a vida, matreira e madrasta, não se coíbe de nos dar um nó nos planos, nos projectos e nos sonhos que mais abraçamos !
Nunca nada está garantido, nunca nada é certo ... Até o alvorecer de cada dia sempre nos pode surpreender com uma borrasca insensível, em vez da manhã rósea e clareada, a anunciar um puro céu azul !...

Decidi partilhar convosco o texto que escrevi então ... porque enquanto o leio ( e voltei a lê-lo incontáveis vezes ), transporto-me para além das nuvens, para além do sonho ... para além do tempo ... duma forma tão vívida e presente, penetrando de novo a antecâmara do paraíso, com que a Ilha do Príncipe recebe quem a visita ...
E que infinitas saudades desse Verão de 2018 !!!



PORQUE  TUDO  TERMINA ...

"CRÓNICAS  DE  VIAGEM -  FIM  DE  FESTA ... "

Detesto despedidas, partidas, portas fechadas, janelas cerradas ...

E hoje é véspera de partida.

O Príncipe ficará exactamente como é e será, ao longo das eras : selvagem, doce, estonteante na beleza com que se veste, emocionante na simplicidade com que acolhe.
Os rochedos de basalto duro, apenas se irão desgastar mais e mais, e novos retoques na orografia surgirão, no preenchimento das faltas.
As areias continuarão dançando, vergadas ao sabor das marés ... para cá e para lá, incessantes ...
A floresta morre e renasce.  Por cada dia, novas flores, novos frutos, novas árvores nascerão e morrerão sob um sol de equador que mais acarinha, que castiga.
Os coqueiros da beira da praia, como anciãos cansados, dobram-se lentamente  até beijarem as águas.  E um dia, desistentes, irão com elas mundo fora, contar histórias para o outro lado da Terra !
Os pássaros também cumprirão os seus desígnios.  Sem dúvidas ou perguntas.  Apenas, cumprindo-os.  Ano após ano, enquanto for ...
O mar será manso ou encrespado.  Continuará azul, verde ou prateado, consoante o céu se adorne e as nuvens viajantes ou adormecidas, o determinem ...
O sol fará as negaças de um amante que ora se dá, ora se ausenta, sempre embevecido ... e a chuva tropical, quente e forte, abençoará a terra úbere e parideira ... E sempre será certa, quando a gravana passar ...
As luas que se sucedem, tornarão em dia as noites silenciosas e escuras, onde o ponteado estelar é um bordado de pé de flor, a desenhar os céus ...
As crianças crescerão, mas continuarão a sorrir.  E novos meninos encherão os terreiros, sob o coqueiral e no chapinhar dos charcos. ... 
E estarão descalços, rotos, sujos e ranhosos ... mas continuarão com alma de meninos ...

Vou partir.

Amanhã, o Príncipe ficará para trás na cauda do avião de hélice que me vai levar, na esteira do barco da saudade já, que deixarei no mar ...

Detesto despedidas, partidas, portas fechadas, janelas cerradas ...
Não sei se algum dia volto.  A vida, crepuscular, poderá ou não permiti-lo.
Mas os pores de sol que bebi por cada dia que o vi deitar lá longe na linha do horizonte, rendida à magia e ao fascínio de uma África genuína, pura e autêntica ...
As carícias a que rendi o meu corpo nu, nas águas quentes, doces e mansas, como nos braços do homem que é só nosso e a quem nos entregamos na volúpia do abandono ...
Os cheiros fortes, penetrantes e únicos que devassam e grudam na pele, no corpo inteiro e na alma ...

... todos esses ficarão para sempre na caixinha das emoções, no recôndito de mim mesma, em mim tactuados com as cores e o sal desta terra única !
Ficarão afinal, na eternidade da curta e precária temporalidade humana !!!

Até amanhã !  Fiquem bem, por favor !





Anamar

sexta-feira, 3 de julho de 2020

"AQUI DA MINHA JANELA " - HISTÓRIA DE UM PESADELO - um outro dia





De Isabel Allende


Encerrada en su casa junto a su marido y dos perros, la escritora chilena vive en Estados Unidos desde hace 30 años.
Consultada por el principal miedo que conlleva el virus, *que es la muerte*, la escritora contó que desde que murió su hija Paula, hace 27 años, le perdió el miedo para siempre: "Primero, porque la ví morir en mis brazos, y me dí cuenta de que la muerte es como el nacimiento, es una transición, un umbral, y le perdí el miedo en lo personal. Ahora, si me agarra el virus, pertenezco a la población más vulnerable, la gente mayor, tengo 77 años y sé que si me contagio voy a morir. Entonces la posibilidad de la muerte se presenta muy clara para mí en este momento, la veo con curiosidad y sin ningún temor.
Lo que la pandemia me ha enseñado es a soltar cosas, a darme cuenta de lo poco que necesito. No necesito comprar, no necesito más ropa, no necesito ir a ninguna parte, ni viajar. Me parece que tengo demasiado. Veo a mi alrededor y me digo para qué todo esto. Para qué necesito más de dos platos.
Después, darme cuenta de quiénes son los verdaderos amigos y la gente con la que quiero estar.
¿Qué crees que la pandemia nos enseña a todos? Nos está enseñando prioridades y nos está mostrando una realidad. La realidad de la desigualdad. De cómo unas personas pasan la pandemia en un yate en el Caribe, y otra gente está pasando hambre.
También nos ha enseñado que somos una sola familia. Lo que le pasa a un ser humano en Wuhan, le pasa al planeta, nos pasa a todos. No hay esta idea tribal de que estamos separados del grupo y que podemos defender al grupo mientras el resto de la gente se friega. No hay murallas, no hay paredes que puedan separar a la gente.
Los creadores, los artistas, los científicos, todos los jóvenes, muchísimas mujeres, se están planteando una nueva normalidad. No quieren volver a lo que era normal. Se están planteando qué mundo queremos . Esa es la pregunta más importante de este momento. Ese sueño de un mundo diferente: para allá tenemos que ir.
Y reflexiono: Me di cuenta en algún momento de que uno viene al mundo a perderlo todo. Mientras más uno vive, más pierde. Vas perdiendo primero a tus padres, a gente a veces muy querida a tu alrededor, tus mascotas, los lugares y tus propias facultades también. No se puede vivir con temor, porque te hace imaginar lo que todavía no ha pasado y sufres el doble. Hay que relajarse un poco, tratar de gozar lo que tenemos y vivir en el presente".

Isabel Allende



Começo os meus dias invariavelmente, ainda na cama a passar os olhos pelo telemóvel, adormecido na cabeceira. Ligo o wifi que ficara desligado durante a noite, e caio inevitavelmente na realidade que me cerca.
Ainda no torpor de um sono meio interrompido, as notícias mais recentes, as comunicações de amigos, os artigos que circulam profusamente nesta época de comunicação à distância, começam "a bombar" ... como é moda agora dizer-se ...
Os acontecimentos de última hora, os números divulgados e actualizados, mesmo não sendo pedidos, oferecem-se de bandeja. E é dessa forma que começo a situar-me em mais vinte e quatro horas que me aguardam ...
Hoje, recebi através de uma amiga este artigo com que encabeço o meu post, um texto de Isabel Allende, a escritora que para mim é uma das referências na arte das letras, e que li muito já lá vão largos anos. Os seus icónicos livros, "A casa dos espíritos", "Retrato a sépia", "O plano infinito" ou "Paula", são títulos inolvidáveis ... O seu perfil social e político é igualmente para mim, motivo de admiração e respeito, ela que, tal como o tio, o Presidente Salvador Allende, foram, como se sabe, figuras incontornáveis da resistência chilena, que a História não esquecerá.
Isabel faz neste texto uma reflexão e uma análise muito objectiva, serena e lúcida, da experiência sofrida que o mundo atravessa, devido à pandemia da Covid 19.
Estando a vivê-la da sua residência na América ( onde vive há trinta anos ), em confinamento familiar restrito, tece alguns considerandos que me tocaram particularmente.
Em primeiro lugar, é a imagem ( eu diria quase tranquila ), de uma mulher em aceitação, equilibrada, o que ressalta das suas palavras.
É o despojamento, a capacidade de distanciamento de tudo o que se nos afigurou sempre como imprescindível, numa vida de abundância e de excessos ... o aprender a "soltar coisas", o saber relativizar a importância que lhes damos, o ser capaz de priorizar o verdadeiro, o genuíno e o essencial em detrimento do supérfluo, do falso e do vazio que tantas vezes preenche os nossos dias, na futilidade com que socialmente com frequência mergulhamos ... a mensagem maior que nos deixa.
Visiona-se claramente uma mulher "preparada" para o que vier, se e quando vier ... uma mulher que maturou profundamente o valor da vida e o significado da morte, e que a entende simplesmente como uma experiência de passagem, um novo nascimento ou uma transição ... que a olha de frente, sem medos e até com curiosidade.
A grave crise sanitária, com todo o seu envolvimento emocional, social e afectivo, tem modelado irremediavelmente o Homem, como sabemos. Tem-no levado a reflectir sobre valores primordiais como a amizade, a solidariedade e a fraternidade entre os povos e as nações.
As desigualdades sociais, a acentuarem-se exponencialmente em consequência da crise económica instalada, a semear pobreza e fome extremas, revelam-nos passageiros de uma mesma embarcação, num mar encapelado e tormentoso, onde só a força da união poderá conduzir-nos a um qualquer porto seguro.
Por tudo isso, urge repensar as escolhas conscientes a serem feitas, do que queremos ou não, para a nova realidade que emergirá ... para o que poderá ser o futuro num provável e desejável maravilhoso "mundo novo" !
Gostaria que, nesta fase da minha vida, pudesse encarar com esta bonomia e tranquilidade, o futuro que ainda terei. Gostaria de poder desenhá-lo sem me perturbar excessivamente com o amanhã, com a antecipação de angústias e receios pelo que virá, como virá ... quando virá.
Mas não me reconheço uma mulher "conformada", uma mulher tranquila ... uma mulher pacificada ...
Sou sim, uma mulher inquieta, a destempo com a realidade que sou obrigada a viver ...
Não ! Tenho muita coisa ainda para fazer ! Tenho muito caminho a calcorrear, muito recanto a descobrir, muito céu e muito mar a desvendar ! E vou lutar por eles !
Não preciso de mais bens materiais ... de todo ! Já tudo me sobra !
Mas falta-me tempo para o mundo todo que me espera lá fora ... enquanto estou aqui, prisioneira do destino, a perder cada segundo precioso da minha existência ... Tenho pressa !
Sinto-me numa bolha a olhar o filme que se desenrola, e que me é estranho ... tudo me é irreconhecível. Parece que o tempo parou, ou abrandou a marcha alucinante ... parece que estou criogenada, à espera não sei do que esperar ... parece que pairo numa irrealidade que me tolhe, me aprisiona e me exaspera ...
Estou cansada ... muito cansada mesmo !...
Até amanhã ! Fiquem bem, por favor !

Anamar

terça-feira, 30 de junho de 2020

" AQUI DA MINHA JANELA " - HISTÓRIA DE UM PESADELO - Dia sem número



Mais um dia igual a todos os outros !
Rotinas instaladas numa realidade entediante.  Pairo por aqui.  Não vou dizer que vivo por aqui, porque este torpor cinzento que se abate sem novidade ou notícia, é fastidioso e cansativo.

Hoje não era dia de caminhada.  Nem sequer já a descida à mata, o encontro com o verde, o ar puro, a passarada e os raios de sol intrusivos pelo meio da ramagem, me animam.
Ando por aqui na mesmice de sempre.  Gastou-se  há muito, o "combustível" anímico dos primeiros tempos deste filme a preto e branco.  Hoje, cirando neste périplo demasiado gasto ... apática, distante e desinteressada.
Vou às compras porque devo ir às compras ... Automatizo os gestos, os rituais e os cuidados. De resto, arrasto-me, simplesmente ...
Oiço algumas notícias ... poucas.  Procuro os números, como quem confere a chave do euromilhões ou os bonecos da raspadinha.  Os mortos e os infectados, os que desesperam nos cuidados intensivos, em hospitais que já sabemos super-lotados.
Mas procuro os números sem emoção.  Sem emoção e quase já sem angústia.  Sem angústia e quase já sem medo !...
Indiferença !  Tudo isto se tornou indiferente de mais, para o potencial de coragem, de ânimo e de esperança que parecia termos ...

Oiço falar da América ( a antecâmara do horror ) ... oiço falar do Brasil ( a hecatombe que não gostaríamos de assistir ... ) ... e penso : como estará África ?  Continente de quem ninguém fala ... Países que parecem não interessar nada ... e se calhar não interessam mesmo, nesta distante realidade  de abundância e prosperidade, dos ditos pertencentes ao primeiro mundo !...
O silêncio que se "escuta" deve ser revelador de qualquer coisa ... qualquer coisa muito má, como uma maré negra que avança indomada, pelas praias da vida ...
Mas tudo é muito esquisito !  Eu sinto-me profundamente esquisita !
Tenho a postura do espectador que assiste comodamente da frisa, ao desenrolar de uma película,  que  por  pior  que  seja,  ele  sabe  que  é  só  uma  película  e  ele, um  actor  fora  da  trama !...
Apatia ...  O coração já nem acelera !
Quando as luzes acenderem e a sala se iluminar, tudo não passou de um filme ... e cá fora, espera-nos a normalidade da nossa vida "normal" ...

Sonhar ... talvez ainda nos reste.  Será ?
De preferência, que não seja um pesadelo que nos assombre as madrugadas ... e que a alvorada possa erguer-se límpida e luminosa ... como os dias de um Verão que nos assoma pelas varandas, pelas vidraças, nos céus claros e promissores ...

Tudo é efémero.  Tudo, menos o peso desta devastação mortal !
Tudo, menos a certeza do dia que amanhã vai nascer ... Tudo, menos a luz que se apaga logo ali, no fim desta linha indivisa, e que não nos deixa nem suspeitar o que está para além, no horizonte escuro de um túnel demasiado longo, misterioso e terrífico !...

O Outono não demora.  Como nada demora ... a não ser a espera ...
Notícias novas já vêm outra vez de lá, do oriente, onde tudo começa ... Novas infecções, ameaças de novas, ou outras ... ou a mesma pandemia, mascarada ...
Lá, de onde o sol nasce, onde tudo é delicado, é doce, é sensível ... lá, onde a sabedoria milenar inunda as almas e mostra ao Homem o valor e o poder regenerador da espiritualidade ... lá, onde os silêncios são recolhimento e purificação nos corações desapegados, humildes e em paz ... chega-nos a escuridão, chega-nos o ocaso profundo e a desesperança no renascer ...

Porquê ?!...

Até amanhã !  Fiquem bem, por favor !

Anamar

sexta-feira, 26 de junho de 2020

" AQUI DA MINHA JANELA " - HISTÓRIA DE UM PESADELO - outro dia mais





Bom, não sei qual será o degrau desta escada até ao infinito, em que o dia de hoje se encaixa.
E nem esperava sequer, estar novamente a escrever mais uma página desta história de um pesadelo ... "olhada" aqui da minha janela ...
Esta "never ending story" que se arrasta, e que perpetua a desestabilização, a angústia ... o medo e a morte ... objectivamente a "não vida" nas nossas vidas, voltou a pincelar-se de nuvens negras no nosso firmamento que se mantivera azul e estoicamente ensolarado, nos primeiros meses da pandemia.
Aliás foi este "status quo" que nos cotou como um dos países que mais assertivamente abordara e tratara a tragédia que se abate sobre o Mundo.

Contivemos e estabilizámos de certa forma, o avanço dos casos de infecção, por forma a que paulatinamente a curva exponencial que o representa, se achatasse em planalto, evitando que uma hecatombe numérica fizesse sucumbir o SNS.
Estendemos portanto no tempo, o aumento brusco  do número de infecções, o que provocaria a ruptura dos meios técnicos e humanos desse serviço.
Víramos o que fora o descalabro, sobretudo em Itália e Espanha, e fomos eficientes, prudentes e eficazes nos resultados.
O confinamento rigoroso do país, resultado dos sucessivos estados excepcionais decretados pelo Governo e instituições de saúde responsáveis pela gestão da crise, contiveram efectivamente o que poderia ter sido um desastre com custos demasiado elevados.

As pessoas ficaram em casa, o país mobilizou-se em torno duma causa que reconheceu, a protecção pessoal a vários níveis, o distanciamento social de segurança e o respeito pelas regras superiormente emanadas, deram resultados.
No cômputo global, mesmo a nível europeu e por comparação com países similares em área e população ao nosso, as coisas correram favoravelmente, e parecia estarem a criar-se condições para fases mais leves de confinamento.
É que, a realidade social na sua vertente económica e política, pressionava drasticamente, a impossibilidade da manutenção de um país totalmente fechado, por muito mais tempo.  A crise económica que se abatera por todo o mundo, obrigava à retoma do trabalho, da actividade laboral no seu conjunto, sob pena dos danos sociais serem absolutamente destrutivos e irreversíveis.
Assim, estados de emergência, estados de calamidade, estado de alerta, e de contingência ... foram os passos sucessivamente percorridos pelo território nacional, ao longo dos tempos.
Foi aberto o desconfinamento, ainda que faseado e sob medidas rigorosas de contenção.
E estragou-se tudo !!!

Neste momento temos o país a caminhar sorrateiramente e em bicos de pés, no avanço para a normalidade, mas em três fases distintas em simultaneidade :  zonas que estão regidas simplesmente por um estado de alerta ( as mais bafejadas por alguma bonança da doença, com a existência de uma acalmia na prevalência de casos ), zonas abrangidas ainda por um estado de contingência, e zonas, como aquela onde resido, em que dezanove freguesias estão abrangidas, de novo, por um estado de calamidade, o que lhes configura um quadro de confinamento novamente bem mais apertado, e um recuo nas posições profilácticas, assumidas até agora.
Restrições mais severas nas liberdades sociais, encerramento da maioria dos espaços comerciais às 20 h, permissão de circulação para o estritamente necessário apenas, e recolhimento a casa.

Era previsível.  Sempre me foi previsível, que em consequência do desconfinamento decretado, iríamos ter uma inversão da tendência que vinha a manifestar-se até então.
Somos um povo de brandos costumes, somos permissivos em excesso, pouco disciplinados e pouco responsáveis.
Depois de demasiado tempo sob medidas rigorosas de confinamento, de uma reclusão pesada e doída com inibição das mais elementares e simples necessidades, contenção de vontades e desejos ( em que cada um nas suas casas convivia com o mundo exterior exclusivamente com o auxílio das novas tecnologias, e em que os afectos ansiosamente necessários e equilibrantes à vida, eram expressados e transmitidos à distância de andares, de patamares, de ruas ... de vídeo-chamadas e vídeo-conferências, e em que tudo tão completamente distante e impessoal, nos deixava quantas vezes, com o coração ainda mais espremido e as lágrimas mais incontidas ... ), o desconfinamento decretado, ainda que com apelos de prudência, responsabilidade e equilíbrio, revelou-se demasiado gorado ...
De repente, e numa espécie de emaravilhamento, descompressão urgente e loucura colectiva, parece termos esquecido que o vírus não partiu, que circula entre nós, se transmite vertiginosamente e sem regras, está e continuará a estar nas nossas vidas, sem clemência ... e que passos em falso, podem ter preços excessivamente elevados !

Inicialmente verificava-se serem os menos jovens a assumirem algumas atitudes permissíveis e de irresponsabilidade.  Havia alguma renitência a cuidados de protecção achados excessivos, porque afinal, já havíamos passado tantas coisas nas nossas vidas, que quase parecíamos invencíveis !...
Não seria este vírus a vir derrubar-nos !

Agora, mercê da "liberdade" a viver-se, novamente com as portas abertas, a alegria a empolgar-nos, a criatividade e a juventude amputadas, de novo a saírem pelos poros, são os mais jovens que parecem ter assumido o tal grau de invencibilidade.
E com os poucos anos que detêm, a insuficiente experiência de vida, e uma convicção de que ela está toda aí à sua frente para ser vivida em pleno, rápida e urgentemente ... facilmente são impulsionados para atitudes inconsequentes, imprudentes, com desrespeito pelas regras determinadas superiormente para a situação sanitária que se vive.
Desta forma, têm propiciado um recrudescimento de contágios, mercê do pouco cuidado dos convívios e da proximidade entre si, comprometendo toda a estabilidade e melhoria possível já  alcançada no país.

Por outro lado, não podemos ignorar que estas dezanove freguesias problemáticas têm de facto um perfil muito particular.
Pertencem a zonas limítrofes da cidade de Lisboa, da sua cintura industrial, zonas de habitação precária onde residem pessoas de parcas condições económicas, na generalidade emigrantes, alguns já de segunda e terceira gerações.
Vivem em condições difíceis, em que fisicamente é praticamente impossível a observância das regras de privacidade e distanciamento social.
São bairros e freguesias de gente que diariamente sai de suas casas, em transportes públicos com um excesso de frequência, com ocupações que exigem presença local  nunca substituível por tele-trabalho.
Havendo um foco de infecção num destes espaços, o mesmo alastra como um rastilho, em cadeias de transmissão familiar e social, duma forma vertiginosa e incontrolável.

Esta é, em síntese, a realidade que volto a viver no presente momento, em que aguardava já, com alguma serenidade, uma evolução mais positiva e optimista do panorama sanitário da Covid 19 em Portugal !

Até amanhã !  Espero que tenham, neste entretanto, continuado a ficar bem !

Anamar

quarta-feira, 24 de junho de 2020

" MORTE VERSUS VIDA - A PROBLEMÁTICA DO SUICÍDIO "



Vivemos num paraíso e não o sabemos !
Este micro-mundo perdido no Universo, grão de poeira estelar, a meia distância entre o centro e a borda da Via láctea, reserva-nos tesouros naturais indescritíveis !
Tanto para ver e tão curto tempo para o fazer ...
Ainda se existisse um qualquer varandim com vista para os cantos e recantos do planeta Terra, sentir-nos-íamos menos injustiçados, e eu já não me importaria de morrer ... quando fosse ...

Por morrer, por morte ... por esta temática se encontrar na ordem do dia mercê de um acontecimento mediático ocorrido esta semana, em que uma figura pública acarinhada pelas audiências que frequentam séries e novelas da televisão, pôs fim à vida  de uma forma que deixou consternados mesmo os que não são "habitués" ... resolvi escrever alguma coisa a propósito.

Porquê ?!  Como foi isso possível ?!  Por que é que as pessoas escolhem estes caminhos sem retorno ?!  Por que não superou os possíveis problemas ou tudo aquilo que o deprimia, estando inserido numa família estruturada, sendo uma pessoa de sucesso e reconhecida profissionalmente e não só ?!... Não tinha o direito de fazer isto ! ... e et cetera, et cetera, et cetera ...
Estas e outras questões, saltaram de imediato para a boca das pessoas, numa espécie de busca absurda, de uma explicação para o que a não tem.

Consternados ficámos todos, como o ficará qualquer pessoa, penso, face a um suicídio com contornos de uma violência física e de uma coragem fria, atrozes.
Consternados, ficámos todos quando somos levados a questionar como é que um pai de cinco filhos, dos três aos vinte anos, naturalmente com o peso de uma responsabilidade e de um apego à vida que obviamente lhes eram exigíveis ... conseguiu fazê-lo ...

E porque tudo isto foge ao nosso entendimento, porque tudo isto foge a uma lógica com que sempre tendemos a rotular os actos do dia a dia, tudo isto foge a comportamentos que sempre tendemos a padronizar ... reagimos com a tal estupefacção ilegítima, e logo acorremos rapidamente a procurar respostas.
Como se uma depressão, uma afecção psicológica e mental ... essas tais doenças sem rosto e demasiadas vezes sem voz ... tivessem ou pudessem ser passíveis de explicação ou entendimento à luz da lógica de outras patologias, do tipo tem uma dor, toma um analgésico, tem azia, toma um anti-ácido ...
Como seria simples se assim fosse !...

Sou uma pessoa intrinsecamente negativa.  Sou um ser que sempre se pauta, ao longo da vida, por posturas e visões tendencionalmente negativas e não positivas.  Derrotistas e facilmente problematizáveis, e não o inverso. Sou a do copo meio vazio e nunca meio cheio.  Sou a que luta, para espevitar quantas vezes, uma auto-estima que injustificadamente lhe tende a despencar aos pés.
Reajo com dificuldade face à adversidade, tenho fraca capacidade de adaptabilidade e resiliência.
Puno-me vezes de mais ... e injustamente ... confesso-o.
Tenho um historial de vida, como a generalidade dos seres humanos certamente, atulhado de pedregulhos, becos e vielas, estradas sinuosas e mares encapelados ...
Até aqui, nada de novo. Não sou vítima nem heroína.
Tenho-me saído razoavelmente bem, mas isso não faz de mim uma vencedora, nem me espanta as angústias, os desânimos e os medos de não ter forças.
Já recorri e muito, a acompanhamento médico.  É para isso que eles existem.
Não tenho pudor ou medos de me expor.  Por que o teria ?  O estigma social que infelizmente tende a marcar as pessoas, também não me assusta por aí além, apesar de ouvir com alguma frequência que me irrita ( confesso ), "não tens necessidade de falar de assuntos íntimos !"... "Não precisas expor o que te vai na alma!"... 
Porquê não ?
Ao contrário ... sinto algum orgulho por me "despir" face ao comum dos mortais ... porque o comum dos mortais, podendo não o escancarar, talvez saiba claramente do que falo ... e se isso servir para alguma coisa, já será bom !

As pessoas não gostam, eu sei, de se confrontarem com situações incómodas, com vidas problematizadas, com realidades incomodativas ...
Tão melhor, como acontece no nosso dia a dia, nas nossas relações sociais ( seja ao vivo e a cores, seja através das redes de convívio disponibilizadas pelas tecnologias existentes ), ostentarmos vidas impolutas, famílias de felicidade exemplar, núcleos familiares intocados e invejáveis, uma perfeita "ordem" existencial, assumida plasticamente, sem mácula, sem carne, sem sangue e sem nervos...
Tão melhor e mais cómodo, não percebermos ou sentirmos o incómodo do sofrimento desestabilizador do nosso semelhante, numa sociedade egoísta, egocentrista e centrada nesta necessidade  canibalesca de sobrevivência ...
Tão melhor, mas tão intencionalmente hipócrita !

Mas se o pressentimos ou sentimos, aí vêm todos os que passam a saber de tudo. Todos os "técnicos" de gabarito e especialização adequada à circunstância : "tens que ser mais forte ... tens que ver com estes ou aqueles olhos ... tens que te abrir ... e eu oiço-te, escuto-te, estou aqui p'ra ti ... em qualquer momento ... Tens que, tens que ... deves ... !"...

O que sabe esta gente do sofrimento oculto ?
O que lhes confere o atrevimento de opinarem sobre tudo o que, talvez felizmente para eles, nunca experienciaram ? O que lhes permite fazerem juízos de valor e julgarem ... tão de ânimo leve que até dói ?!
Por que razão, de repente, nos meios de comunicação, se passou a falar de estatísticas suicidárias, se passaram a veicular números telefónicos de organismos e instituições de SOS no apoio a situações extremadas ... se passou a equacionar urgentemente a saúde mental dos portugueses, até aqui aparentemente negligenciada ... se passou a escalpelizar toda a problemática em torno da escolha da morte, como refúgio para os que já não acreditam na vida ?!
Consciência social inquieta ? Ou tormentos mal resolvidos ?

Bom ... não alongo mais esta minha exposição.
Anexo um artigo de opinião que li  entretanto, produzido por Carmen Garcia do jornal Público, exactamente no contexto da morte do actor Pedro Lima ... pois tem sido esta infeliz ocorrência que fez escorrer rios de tinta, a propósito.
Esse artigo enforma com toda a clareza, o que penso a respeito de um assunto tão sensível e devastador.  Subscrevo portanto as palavras desta articulista.




Morreu ontem o actor Pedro Lima.

Aparentemente terá sido mais uma das cerca de oitocentas mil pessoas que, anualmente, colocam termo à própria vida. O país ficou em choque e, por todo o lado, se multiplicaram as manifestações de pesar e surpresa. As redes sociais, aquelas que, curiosamente, nos bombardeiam diariamente com fotos plásticas e altamente trabalhadas de vidas perfeitas, encheram-se de publicações com apelos para que não se esconda o sofrimento. A incoerência abraçou o seu pico.


Bottom of Form
Não vou falar especificamente sobre a vida do actor porque não me cabe fazê-lo. Da sua história pouco ou nada conheço. Mas conheço a história de muitas outras pessoas que diariamente lutam com a doença mental, muitas delas em segredo, porque o mesmo país que ontem gritava “peçam ajuda” é o mesmo que continua a apontar o dedo e a estigmatizar quem assume frontalmente estar deprimido. “Tens de ser mais forte do que isso” diz. Quase como se a doença mental fosse uma escolha ou um sinal de fraqueza.
O suicídio mata mais do que o cancro da mama. E por este último saímos à rua, corremos, usamos laços cor-de-rosa ao peito. Mas em relação ao suicídio continuamos a assobiar para o lado, quase como se fosse uma coisa indigna de ser falada, uma coisa feia que precisa de ser escondida. E pior, julgamos, criticamos, atiramos a primeira pedra. “Mas ele tinha tudo para ser feliz”, dizemos quase chocados e cometendo o pior dos erros: avaliar, à luz de uma mente saudável, aquilo que se passa numa mente doente.

Ao longo dos últimos anos, a ciência (e consequentemente a medicina) evoluíram muito. Sabemos hoje que a depressão pode ser associada a factores genéticos e que o funcionamento dos neurotransmissores está afectado nesta patologia. Ainda assim muitos continuam a acreditar que a depressão se trata com “a força de vontade”, como se esta, por si só, aumentasse de forma significativa os níveis de serotonina de alguém. Se fizéssemos uma comparação directa com outra doença, por exemplo a diabetes, o que teríamos seria um amigo a quem diríamos “vá lá, tens que ter força de vontade para o teu pâncreas começar a produzir insulina suficiente”. É ridículo, não é? Pois…

E pedir ajuda de qualidade é difícil. Muito difícil num país onde figuras públicas de relevo dizem coisas como “tomar medicamentos para a depressão é que não, porque isso faz-nos deixar de ser nós próprios”. Assim mesmo, como se a farmacologia hoje fosse a mesma de há 40 anos e os antidepressivos fossem comprimidos que nos deixam tipo zombies a babar pelos cantos da casa. A sério, não sei mesmo a que ajuda é que estas pessoas se referem. É que os 50/50 só funcionam em programas como o “Quem quer ser milionário?”.
É urgente, muito urgente, combater estes preconceitos infundados. Se há quadros depressivos que até podem responder bem a intervenções não-farmacológicas, acreditem que muitos vão precisar dessa ajuda. E está tudo bem. Os antidepressivos não roubam a identidade de ninguém, antes pelo contrário. E os psiquiatras não são bichos-papão. São médicos competentes que tratam doenças concretas com aquilo que a ciência tem para oferecer.


A morte de Pedro Lima é uma tragédia. Há uma família que fica de coração partido e, quem passou por isso sabe, como diz o provérbio africano, que “um morto amado nunca mais pára de morrer”. A eles dirijo as mais sentidas condolências e peço desculpa em nome de uma sociedade que continua a falhar aos seus, que continua a fazer com que as pessoas com perturbações mentais sintam que se devem esconder. 

Que a morte do Pedro desta família sirva para, pelo menos, darmos um passo em frente enquanto sociedade. Que finalmente deixemos de lado a hipocrisia e estejamos realmente aqui para quem precisa de ajuda. Sem recriminações. Sem frases feitas. Sem julgamentos.




Anamar

quinta-feira, 18 de junho de 2020

" FESTA DA AMIZADE "



Nesta anormalidade quase já normal que vivemos ( já nem conseguimos surpreender-nos com nada ... ), resolvi desafiar duas amigas, daquelas de toda a vida.
Amigas, meio amigas quase irmãs, de quarenta, cinquenta anos ... por aí ... daquelas que a vida nos oferece de bandeja, no virar de uma esquina, num qualquer acidente de percurso ... Que chegam, e depois nunca mais partem das nossas vidas !
Até porque nós nem íamos deixar ... era o que faltava !!!

Não podemos nunca esquecer que os amigos são a "família" escolhida, e são eles que, quando os nossos ancestrais vão partindo, nos ficam à cabeceira ...
São eles que nos escutam, quando os acontecimentos que nos atravessam o caminho, nos tentam derrubar ... são eles que nos limpam as lágrimas e nos dão colo, se os desgostos nos invadem e amarfanham ... são eles que nos amparam quando parece não haver luz nenhuma nas estradas a percorrer ... e o cansaço nos atormenta ...
Mas é também com eles que dividimos as alegrias, que rimos, brincamos e partilhamos momentos que por serem tão especiais, se tornam eternos ...
E foi um desses momentos, a tarde em que confraternizámos ontem.

Desafiei duas amigas, dizia eu, a fazermos um almoço juntas, num local que conheço e que sei seguro, com respeito por todas as regras do desconfinamento, na preservação da segurança individual de cada uma de nós.
Em torno de um caril de gambas com frutas, de um copo de branco bem fresquinho e de umas farófias tão inexpugnáveis quanto as muralhas encasteladas das fortalezas mouriscas, nem demos pelo tempo passar, tão animada era a conversa, tanta a necessidade de nos contarmos como estamos a viver todo este pesadelo, como tentamos superar as dificuldades que parecem ser cada vez maiores, tanta a cumplicidade que advinha de uma partilha de histórias que foram as nossas, e vividas tão de perto ao longo dos tempos ...
Os assuntos fluíam naturalmente, porque a linguagem era a mesma, a forma de estar e sentir também, as inquietações identificadas e conhecidas, as angústias partilhadas sentidas da mesma forma ...
As nossas actividades profissionais eram comuns, e como tal, reabrir o baú das recordações, foi gratificante, doce e saudoso ... mas também divertido e mesmo hilariante !
Porque lembrar as histórias, os momentos, os episódios ... até as pessoas que já partiram ... nos aquecia o coração ... nos levava numa viagem de regresso lá atrás, a tempos e a vivências inalienáveis e inesquecíveis ...

A tarde passou, por isso, muito rápido.
Resolvemos, para registar este encontro tão particular e feliz, fazer uma selfie de recordação pela reabertura da vida, pela saída da clausura total e pela esperança em melhores dias.
E na celebração que chamámos de Festa da Amizade, jurámos para breve, a repetição de outro "programita"  assim divertido ... porque a vida é curta e nunca sabemos até quando nos deixarão andar por aqui !...



Anamar

terça-feira, 16 de junho de 2020

" MAIS UM DIA SEM HISTÓRIA "



Dia sem história, modorrento e arrastado. Dia daqueles que não levedam, que não levantam, quais claras em castelo sem fôlego.
Ontem, dia de aniversários. Dia destinado a festa, alegria e disposição. Jantar mascarado, naquele ritual fantasmagórico de chegada ao restaurante.  Cumprimentos de longe, de leve, sem compromisso, sem beijos ou abraços.  Resta a bebé, que dorme o sono dos justos sem saber que colo ou que peito a aninha ...
Tudo estranho, eufemisticamente desenhado como jantar de família, porque o calendário mandou ... a vontade não tanto !
Hoje, esbarro em mim própria, embrulho-me nas pernas, por astenia de vontade.   Encalho nas letras que se negam a formar palavras, menos ainda frases, ideias e histórias ...
Desperdiço tempo.  Levo os dias a desperdiçar os dias, neste arrastar de tempo sempre igual.
Tempo engelhado, enrugado, enrodilhado, envelhecido de esperado, tempo cansado de sonhado em vão.  Tempo sem história já !  Maculado do ranço acumulado ou dos sonhos vazios ...
Tempo escrito com histórias reinventadas, para ver se é menos inglória a jornada ...

Mais um dia com o sol a disparar rumo ao horizonte ... com pressa de chegar, porque a travessia de oriente a ocidente, é longa e desesperançosa.  Daqui a pouco é noite !
Já não há histórias que pintem de azul os dias, e de estrelas as noites.
A caminhada é insípida e sinuosa.  Labiríntica e sem rumo, como as estradas no deserto que rumam a lugar nenhum, embora sempre haja um oásis na cabeça de cada homem !
Puro engano ! Atrás de cada duna, há só mais uma duna, e nunca se chega ao fim da eternidade, e as miragens sempre atentam nas esquinas das areias ...

Cansaço.  Canseira.  Saturação.  Tempo inóspito rumo ao Verão, que se abeira sem água que nos dessedente.
As rosas já floresceram.  Os jacarandás pintalgam de lilás e mel as pedras da calçada.  E tudo foi em vão, porque a cidade não se acendeu com a alegria de sempre.
As vozes que nos povoam as noites desertas já não falam do amor embrulhado em laço de fita, as gaivotas que voam por aqui, já perderam o rumo das falésias distantes ...
E só há uma imensa e pesada solidão !...

Anamar

sábado, 13 de junho de 2020

" AQUI DA MINHA JANELA " - HISTÓRIA DE UM PESADELO





Faz hoje três anos, a esta hora passeava-me eu por Alfama, numa tarde solarenga de calor, céu azul e turistas nas ruas e pracinhas, em busca da tradicional animação em honra de Sto.António, padroeiro de Lisboa.
Lembro uma cidade cheia, não só nos bairros populares, mas mesmo no coração da capital.  Lembro o Rossio, o Terreiro do Paço, a Avenida, a zona ribeirinha, por todo o lado deitando pelas costuras a alegria, a animação, a música a rodos, as gargalhadas, os grupos em animado cavaqueio ...
Lembro as tasquinhas, os fogareiros nas ruas, as esplanadas improvisadas em cada canto, o cheiro das sardinhas a assar, as grelhadas, o tinto a correr ... a cerveja, a jinginha ... as farturas ...
Lembro os balões de papel dependurados das grinaldas e festões, num dossel perfeito nos céus das vielas e dos becos ... nas escadinhas e mansardas ...
Lembro as sacadas com as sardinheiras em flor, os vasos de manjericos com o cravo e a quadra alegórica ...
E de repente, num qualquer nicho, num qualquer recanto, numa qualquer esquina espreitava um trono de Sto. António e os restos do que fora uma fogueira saltada ... uma alcachofra florida ...
A procissão desceu às ruas, num percurso que terminou na capela do Santo, junto à Sé.
Pelo meio das varandas engalanadas com as melhores colchas, o povo em recolhimento religioso, os foguetes pelo ar e a banda a fechar o cortejo, a procissão foi pelo caminho, integrando as imagens dos diferentes outros santos, venerados em todas as igrejas por onde foi passando e parando, e que completaram o cortejo.
Os andores de S. João Baptista, S. Miguel Arcanjo, Sto. Estêvão, S.Vicente de Fora e Santiago Maior, todos eles com ligação e significado na vida de Sto. António, são sempre transportados por mulheres.
No largo da Sé, os noivos de Sto.António casados nesse mesmo dia pela manhã, numa cerimónia que faz parte da tradição da cidade, esperavam a chegada do Santo e depositaram os seus ramos nupciais nas grades da capelinha, aos pés da imagem, como homenagem, gratidão e busca de protecção e sorte, para os laços então juramentados ...

Eu perambulei por ali.
Lembro que estava aflita, preocupada com o nascimento da Teresa que viria a acontecer dois dias depois.  Existindo problemas com a colocação da criança, o atraso que já se verificava, não seria de bom augúrio.
Nesse dia, a minha filha, no seu estilo habitual, ainda não decidira onde a criança iria nascer, sendo que a situação era delicada e enfermava de algumas preocupações.
Lembro, que embora sendo agnóstica, e vá-se lá saber porquê ... à passagem da imagem de Sto.António, emocionada e frágil, elevei-Lhe  por isso  um estranho pedido de protecção, num gesto incoerente, utópico e de alguma forma, despropositado.
Comportamentos  humanos  que  não  se  entendem,  não  se  explicam ... e  custam  a  aceitar-se ...
Mas foi exactamente assim ... confesso !!!

Este ano, "Alfama está morta" ... desabafo de uma moradora, que li há pouco.
Com a pandemia que vivemos e muito embora estejamos num período de desconfinamento, todos os arraiais, todos os eventos que implicassem aglomeração de pessoas e consequente desrespeito do distanciamento social exigido, foram cancelados.  Não se realizaram as marchas populares na Avenida, não houve casamentos, nem arraiais, nem tasquinhas nas ruas, nem fogueiras, nem tronos, nem música ou sardinhas ...
E a procissão, que desde o século XVIII sempre fez parte da História de Lisboa, também não saíu à rua !

Os manjericos, este ano quase todos virtuais, chegam às nossas casas, através dos amigos que connosco têm dividido este inferno ! Como um miminho, no apoio de todos para todos !
Até o Santo, tenho a certeza, estará mais triste e descoroçoado, a achar que os lisboetas o esqueceram na capelinha onde reside por todo o ano !!!

Também por tudo isto, 2020 ficará lamentavelmente para todo o sempre, nas histórias inolvidáveis da História que vivemos !!!



Anamar