sexta-feira, 20 de março de 2020

" AQUI DA MINHA JANELA " - HISTÓRIA DE UM PESADELO - Dia 9








"  A  GENTE  FICA ... "


Hoje amanheceu cinzento, com chuva copiosa fazendo jus às nuvens encasteladas aqui por cima.
A Natureza parecia prantear a desgraça que assola a raça humana.
Ainda na cama, como vos contei, passo a limpo a programação do dia.  Mais um, o nono do meu isolamento, ainda totalmente bem de saúde  assim como todos os meus.
Hoje seria dia da caminhada pela mata, que neste momento me é imprescindível para a manutenção de um equilíbrio físico, mas sobretudo psicológico.  A possibilidade de poder continuar a realizá-la no Estado de Emergência que se vive, foi para mim, uma medida absolutamente gratificante.
Depois, seria dia de algumas compras, visando um período dilatado de tempo em que as provisões me asseguram a não necessidade de descer ao super mercado.

No caminho até à mata, que faço com  ritmo estugado, ninguém comigo se cruzou. Parecia mais uma manhã de domingo, do que um dia útil.  A mata estava deserta como seria expectável, até porque chovia.  Era uma chuva mansa e doce, que tornava mais  vívidos todos os verdes da policromia que me rodeava.  As árvores e arbustos agora em rebentação franca, com uma pujança e uma beleza, que só a Primavera que amanhã chegará  garante, emocionam-me, renovam-me, dão-me esperança e coragem.  A Natureza que nunca nos falta, aí está cumprindo o ritual da VIDA !
Os pássaros  todos, saltam, pipilam, esvoaçam e empoleiram-se de ramo em ramo.  No chão, placidamente, um habitante do bosque catava o que comer.  Nem deu por mim.  Estaria feliz !

Durante o caminho, dobrando os recantos, percorrendo os atalhos, respirando aquele ar leve e puro que nos enche os pulmões e acaricia a alma, pensei e conversei longamente com a minha mãe, de quem particularmente agora, o seu cólo me faz tanta falta !
Sei exactamente qual o diálogo que travaríamos.  Sei exactamente tudo o que me diria, o carinho com que me reconfortaria, as palavras com que me tranquilizaria ... se estivesse por aqui ...
E sei-o porque as pessoas partem ... mas ficam.  
Ficam no que disseram ao longo dos anos, no que fizeram ao longo das vidas, no que partilharam ... no que deram ! Ficam na forma como deixaram o seu "sinal" impregnado no nosso ser.
Porque o amor é uma corrente de fios invisíveis que não se destrói. Atravessa os tempos e as vidas ...

E depois continuei, pensando na gratidão que sinto para com a humanidade, que  neste  momento   está  mais  presente,  é  mais  solidária,  mais  desperta,  mais  próxima ... mais  " gente " !
Quando ligo o telemóvel pela manhã, os sinais de alerta de vária ordem inundam o meu acordar, às vezes ainda meio entorpecido.  E são as mensagens, as comunicações via whatsapp, as palavras enviadas por messenger, os mails, o tlim-tlim do Facebook ... os telefonemas mais de perto ou mais de longe, trazem-me os amigos, trazem-me as vozes familiares, os afectos dos que não se tocam mas se sentem ... e sempre nos dizem : " estou aqui deste lado, para o que der e vier " ...
Trazem-me os rostos de quem as saudades apertam.  Trazem-me o sentir de quem, mesmo de longe se faz presente, numa palavra, num conselho, numa gargalhada, num apoio.
E mesmo os que não conhecemos, organizam-se, juntam-se para informar, para nos actualizar as notícias, para nos dar sugestões ... para nos mostrar que não estamos sós neste mar encapelado ... se mais não for, para nos dizerem : "ergue-te, aguenta com força, com coragem e sem medo.  Haveremos de vencer a dor, haveremos de vencer a batalha ! "

Desculpem ... hoje não estou muito inspirada.  Sinto-me cansada, assustada ... doída na alma e no coração ao ver quão galopante avança este vírus destruidor.  A impotência assola-me, exponencialmente com ele ! ...

Ousei pegar numa postagem de uma amiga lá da minha terra, do meu chão, do meu Alentejo ... e vou colocá-la aqui, porque sei que gostará até, que eu o faça.  Obrigada Lucinha ! 

"Nenhum homem é uma ilha isolada, cada homem é uma partícula de um continente, uma parte da Terra.  Se um torrão é arrastado para o mar, a Europa fica diminuída, como se fosse um promontório, como se fosse a casa dos teus amigos ou a tua própria casa.  A morte de qualquer homem diminui-me porque sou parte do género humano.  E por isso não perguntes por quem os sinos dobram ... eles dobram por ti ! "     
                                                                     John Donne

Até amanhã.  Façam o favor de ficarem bem !

Anamar

quinta-feira, 19 de março de 2020

" AQUI DA MINHA JANELA " - HISTÓRIA DE UM PESADELO - Dia 8

" A  CANSEIRA  DAS  NÃO - ROTINAS "

Dou em acordar angustiada.  Burrice minha, porque ninguém me manda devorar notícias até às duas da manhã ...  Depois, obviamente o sono fica prejudicado.
Assim, naquele período em que estamos mas não estamos exactamente bem acordados, muita coisa revolve os meus neurónios.
Em primeiro lugar tentei situar-me no tempo, já que o período que vivemos nos deixa um pouco "off" em relação ao calendário. 
Aí pensei, pois, hoje é quinta-feira, quase já fim de outra semana, que agora demoram a passar ... e hoje é dia 19, dia de receber a pensão mensal ... Pois é ... e logo de seguida ... é verdade, hoje é Dia do Pai !
O meu, partiu há quase vinte e oito anos, e ainda assim continua bem presente na minha vida e no meu coração.  Onde estiver, para onde estiver lhe envio um enorme beijo com todo o meu amor e infinita saudade, e como sempre faço, lembrei-lhe quão preciso, mais do que nunca, da sua protecção e ajuda, que sei não me faltarão ...
Depois continuei a cogitar e voltei a sentir o peso sufocante dos dias que atravessamos.  Hoje é o meu oitavo dia de isolamento voluntário.
Expectei ser um dia algo diferente.  Afinal  hoje acordei no meio do Estado de Emergência em Portugal, decretado ontem pelo Presidente da República, o qual inclui e define as medidas restritivas comportamentais em relação à sociedade, no sentido desesperado de estancar o avanço do vírus mortal.
Pois bem, ao dirigir-me à janela, poderia dizer-se "grosso modo" que a manhã de sol que se fazia, repetia as rotinas do dia a dia, com pessoas circulando nas ruas, parando para darem dois dedos de conversa, sentando-se na esplanada do café que existe no meu largo, ou mesmo sentando-se nos bancos a apanhar sol, como no dia mais normal deste mundo !...

Entretanto Itália contabiliza quase 3500 mortos ... e pelos vistos, as pessoas ainda não entenderam a coisa ...

Debaixo de édredon,  esquematizo diariamente, o que vai ser o meu dia, este, o oitavo do isolamento voluntário a que me propus, como disse.
E aí, começa o filme ... tomar banho e vestir... pacífico ... Hoje não faria a caminhada profiláctica, por isso a roupa a usar seria a normal.
Iria ao pão, porque se acabara o último, comprado.  Teria que ir ao talho e adquirir ainda mais algumas coisas que estavam em falta. Dessa forma ficaria aprovisionada para cerca de mais uma semana.
A máscara e um par de luvas esperavam-me antes da saída.
Pôr o quê, primeiro ?  Ato a máscara à cabeça, calço as luvas e julgo-me apta a sair ... só que, penso, será que tenho dinheiro na carteira ?  Vou para abrir o porta-moedas mas lembro ... bolas, o dinheiro está infectado ... e faço o quê ? Volto a tirar as luvas, porque assim como assim, as mãos estarão desinfectadas ( acabei de as lavar e passar por álcool ). Pelo menos preservo para já as luvas ...  Conto o dinheiro, fecho a carteira.  Volto à casa de banho ... nova lavagem criteriosa, novamente álcool a desinfectar.  Regresso, calço de novo as luvas e ... agora sim, estou apta a seguir ....
Oh não !... O telemóvel repousa bem à minha frente, só que nem o vi ... Vou ter que o levar, pois podem querer comunicar comigo, e não respondendo, instalo a preocupação do outro lado ... A última vez que o desinfectei com álcool foi ontem. Já não deve dar ... Bolas ... e agora ?  Volto a tirar as luvas para lhe pegar, verificar o monitor e meter na mala ... Casa de banho de novo.  Nova lavagem e desinfecção das mãos ...
Bolas !!!...  ( não é bem isso que vocifero ... mas adiante !...)

Eis-me finalmente na escada.  Fecho a porta à chave ... tranquila, tranquila ... Nestas chaves sou só eu que mexo, não há crise !...  Enquanto faço este raciocínio laborioso, desvio o foco de atenção, claro, e apesar de ter na mão uma folha de papel com que tencionava carregar no botão para chamar o elevador ... népia ... já o tinha chamado com a mão desprotegida, obviamente !
Fula, fula , chamei-me uns quantos nomes e tentei aliviar o espírito ... afinal aqui no meu patamar vem pouca gente, pois é o último do prédio ... só eu e o senhor Lourenço, vizinho do lado ... ah, mas esse não está infectado !....
Mal assim concluí, disse-me : burra ... como se as pessoas tivessem cara de infectadas ou rótulo na testa !!!.... Olha ... que se lixe ! ( também não foi bem isso que eu disse ... mas adiante ! )
E segui para a rua.

Regressei, e hoje era dia de faxina ( assim o decidira ... sim, porque eu programo-me ... 😄😄😄 )
Lavei, cozinhei, reguei as plantas que parecem estar mais satisfeitas comigo em casa, tratei da logística dos gatos, tratei das casa de banho, da cozinha ... e consegui almoçar às quatro da tarde !... 😌😌
Sentei-me agora ... esfalfada.  Pensei queixar-me ao sindicato.  Mas como estou a laborar no regime de "Olívia patroa - Olívia costureira " ( lembram por certo a nossa saudosa Ivone Silva ... 😃), percebi que não valia a pena.  De resto, estou a fazer teletrabalho ... envio as instruções do computador do quarto para a cozinha, e policio-me sobre o desempenho !!!...

Bom, e tinha como sabem, encontro convosco hoje, para vos dar conta do que foi mais um dia por aqui, da minha janela, onde vivencio, em  comunhão com todos vocês, as dificuldades, as canseiras, as tristezas, o medo e a angústia que afinal todos experimentamos, neste pesadelo que nos assola.
Hoje procurei que os meus escritos  desanuviassem um pouco  tudo o que se vive, esperando que de alguma forma se tenham divertido com todo o meu desnorte, na ausência das minhas rotinas de sempre !
Afinal,  há momentos em que me sinto mais tonta do que um polícia bêbedo !!!... ihihih

Até amanhã e fiquem bem, se fazem favor !

Anamar   

quarta-feira, 18 de março de 2020

" AQUI DA MINHA JANELA "- HISTÓRIA DE UM PESADELO - Dia 7




"Aqui da minha janela" pretende ser a compilação de folhas de um caderno que vou tentar escrever diariamente, neste período tão especial, tão particular e tão difícil das nossas vidas ... para que se algum dia pudéssemos esquecê-lo, o não esqueçamos !

Hoje, 18 de Março de 2020, às portas da Primavera, foi decretado o estado de emergência no meu país.  Procura assim conter-se esta escorrência assassina, de um vírus desembestado que atropela, trucida, aterroriza e mata ... indiferente, indiferente ao céu azul e ao sol dourado que nos ilumina ... indiferente aos sonhos e às vidas, que estão agora suspensos e esperam ... apenas esperam ...

A história vem mais detrás ... Hoje é o sétimo dia do meu isolamento social voluntário.
Mas ela vem ainda mais detrás ...
Chegou num dia em que as notícias davam conta de que em Wuhan, lá no outro lado do mundo, numa China tão distante que nos parecia inalcançável,  um vírus estranho, desconhecido e inesperado, desatara a matar gente.
As sinetas tocaram e a China armou-se até aos dentes. A China reinventou-se, cerrou fileiras, não abriu guardas.
Um país que consciencializou à força da dor, que aquela era a hora e que não havia lugar a hesitações, vacilações ou descaso, reorganizou toda a sua sociedade, em torno da luta que teria de travar-se.
Os médicos, os enfermeiros, todo o pessoal de saúde iniciaram  uma luta sem tréguas, dia e noite. A cidade de Wuhan foi  "encerrada" dentro de um perímetro sanitário de total isolamento.
As pessoas confinaram-se às suas casas, acataram e respeitaram integralmente todas as indicações das autoridades, disciplinaram os seus dias, sem cedências ou facilitismos, com ordem e responsabilidade.
A solidariedade social intensificou-se, a entreajuda instalou-se, a coragem e a transcendência emergiu ... e sobre Wuhan continuaram a voar pegas azuis ...

Morreu muita gente, morreu gente demais, num desafio que parecia não ter fim.  Mas hoje, reabilitada aos poucos a realidade em Wuhan, a China avança agora rumo à Europa fustigada a seguir, com altruísmo, partilha e ajuda.
De lá vieram médicos, de lá veio a voz da experiência mártir, de lá chegam ventiladores para mitigar quem já tem pouco ar a respirar ...

Porque, depois da China, Carnaval passado,  num continente que parecia suficientemente distante para estar tranquilo,  na Europa  os alicerces cederam.  A Itália iniciou uma escalada assustadora de casos de contágio, seguida da Espanha, da França, da Alemanha, do Irão, da Coreia ... e de um número interminável de países.  Portugal também não foi poupado.
A epidemia do Coronavírus, transformou-se em poucos dias, numa pandemia, no seu alastramento à escala do planeta.
Todos os organismos mundiais, nacionais e regionais na área da saúde e em todas as esferas sociais e políticas desenvolveram medidas concertadas, estratégias de acompanhamento, monitorização e combate ao flagelo.
190 mil infectados e mais de 8 mil mortos estremecem o globo. De leste a oeste, de norte a sul, sem respeitar fronteiras, credos, cores, ou línguas.

Portugal enfrenta neste momento, a subida exponencial da curva de infectados. Hoje, caminhamos para setecentos doentes.
Todos os especialistas na área da saúde e em todas as áreas complementares a esta, todas as estruturas sanitárias, todos os organismos sociais na pirâmide do poder e da responsabilidade se uniram, acreditando que haveremos de vencer esta calamidade atroz.
As escolas fechadas, as pessoas confinadas a casa, as ruas desertas, o país parado, as protecções pessoais usadas sem negligência ou esquecimento, uma reorganização activa implementada nas famílias, agora com vivências diárias obviamente mais complicadas de gerir, fronteiras encerradas, controle total de entradas e saídas do país, da mobilidade dos cidadãos, quarentenas voluntárias ou profilácticas  e consciencialização das populações, são medidas visíveis e obrigatórias.

Depois de um estado de alerta, e depois da Reunião do Conselho de Estado ocorrida hoje, o Presidente da República decretou o estado de emergência por um período de duas semanas, passível, se necessário, de ser alargado.

Continuarei a minha história amanhã, e amanhã e amanhã ...
Irei contando o que vejo, o que sei e o que sinto, aqui da minha janela ...

No móvel da entrada da minha casa, repousa a caixa das luvas descartáveis, juntamente com a máscara diária a usar, se necessitar em absoluto, de descer ...
Contar-vos-ei,  do olhar de relance que lhes deito ao passar, sonhando com o dia em que ali já não estejam, por desnecessárias ...
E contar-vos-ei também, como as vidas das pessoas se entrecruzam diariamente, com a proximidade que os nossos dispositivos electrónicos nos permitem ...
E farei as reflexões que me ocorrerem, na expectativa de pelo menos, eu, uma vez na vida, me esforçar para ver o "copo meio cheio" ...
Falarei da solidariedade, da angústia, da solidão, do sofrimento ... mas também das saudades, do medo ... da esperança e da certeza da vitória ...
Falarei do cansaço que às vezes me toma, e também dos afectos, que onde quer que estejam, têm braços compridos e sempre nos afagam ...
Falarei de como passo os meus dias.  De como engano o tempo.  De como tento manter a minha sanidade mental ...
Até porque, como diz este vídeo fascinante que escolhi para ilustrar este meu texto ... " A Primavera não o sabia" ... e sempre virá para nos restabelecer a confiança, a esperança, o sonho ... a VIDA !!!

Até amanhã !

Anamar

segunda-feira, 16 de março de 2020

" ATRÁS DAS GRADES "



Passei dias, passei meses, anos, décadas ... passei séculos e milénios ...
Lendo isto, praticamente me julgo uma lenda.
Ensinei muita gente que foi por esse mundo ensinar ainda mais gente ... e aprendi sempre com os que foram por esse mundo ensinando outros tantos ...
Fui vivendo, olhando, vendo e fascinando-me com tudo o que o Homem atravessou, os desafios que superou, as dificuldades ultrapassadas e os êxitos alcançados ... hoje, neste ano de 2020, do século XXI, no novo milénio ...
Maravilho-me com a sua capacidade de superação, a sua resiliência, o seu afinco, a aposta e a entrega que faz face às ondas alterosas, se o mar está de borrasca.
Encanto-me com a altivez e a coragem com que deita a cabeça de fora de novo, e se ergue outra vez, se a tempestade tenta submergi-lo.  E a convicção, a fé e a força com que se reergue, mesmo que tudo pareça perdido ...

A minha geração é, também ela, uma geração de resistentes.
Lembrava um destes dias, alguns, só alguns marcos históricos que me vieram à mente, e que escreveram a letras de ouro ou letras de sangue, toda a História de uma época.  Assinaláveis momentos, acontecimentos, períodos absolutamente marcantes e determinantes na vida humana.
Desde a chegada à lua em 1969, o domínio espacial com a exploração cada vez mais aprofundada e desenvolvida, projectou o Homem para os domínios do Universo longínquo.
A clonagem com o surgimento da ovelha Dolly em 96, maravilhou o mundo científico.
A fertilização "in vitro" e a gestação em corpos que não o materno, trouxe as "barrigas de aluguer" ( na década de 60 ) como alternativa em dificuldades de gestação para muitas mulheres.
Os testes de DNA, e a descodificação total do genoma humano foram alguns dos passos gigantescos no domínio da Ciência.
Assistiu-se ao desenvolvimento industrial no planeta, com a China a ascender a segunda potência económica.
Em termos sociais e políticos, a criação da União Europeia foi um marco histórico determinante na organização geo-política mundial, a que recentemente o Bréxit, veio dar novo figurino ...
O domínio da tecnologia é absolutamente imparável e de alcance inimaginável. A era da cibernáutica com a criação e desenvolvimento dos computadores, dos smarthphones, tablets e afins ... os iphones, os relógios inteligentes, todo o mundo digital, as redes sociais, a impressão em 3D, a invenção dos drones, toda a forma de comunicação e actuação, à distância apenas de um clique, na instalação de uma aplicação nos nossos dispositivos ... as redes wifi, as vídeo-chamadas, as tele-conferências entre outras, são invenções inestimáveis ao serviço do Homem.
Na Medicina igualmente se travaram lutas e venceram batalhas. Surtos epidemiológicos foram combatidos com novos fármacos, vacinas, testes de diagnóstico e mil outros meios auxiliares.  O HIV, o ébola, a Gripe das aves, o SARS, a pandemia da Gripe A, o dengue, a pandemia do vírus H1N1 altamente virulento conhecida como a Gripe espanhola, a febre das vacas loucas, entre tantos outros surtos, em paralelo com a luta sem tréguas permanente, e também sem fim à vista, frente ao desenvolvimento do câncer.
O muro de Berlim caíu em 89. O declínio do socialismo no leste europeu, provocou a dissolução da União Soviética  e pôs fim à Guerra Fria.
Em Portugal a ditadura também haveria de cair  em 25 de Abril de 74, arrastando com ela a descolonização dos territórios portugueses em África, e bem assim a instauração da Liberdade e da Democracia no nosso país, pondo fim a uma guerra que devastou e sangrou Portugal.
Mas foram e são muitos, os cancros sociais que afectaram e continuam a afectar o planeta.
Várias guerras e conflitos nos atormentaram e atormentam.  Quem não lembra a Guerra do Vietname que durando vinte anos, destroçou os povos daquela zona e varreu mortalmente os exércitos que para lá eram enviados ?
Quem não lembra a Guerra do Golfo ( 90-91 ), a invasão da ainda União Soviética ao Afeganistão ( 79 ), os conflitos perenes no Oriente Médio, as crises sócio-políticas que empurram em direcção à Europa, hordas e hordas de migrantes, por esse Mediterrâneo fora, em busca de um lugar de paz e de Vida ?
Quem não lembra os atentados terroristas e a insegurança social vivida em tantas zonas do globo ?  Quem não lembra a Queda das Torres Gémeas naquele 2001 sempre presente, a partir do qual o Mundo nunca mais foi o mesmo ?
E a grande crise económica de 2008 que levou à recessão mundial de que até hoje sofremos sequelas e cuja memória não se apagará,  particularmente agora, quando, fruto do colapso sanitário do planeta, nova recessão parece já alinhar-se no horizonte ?
E os problemas climáticos que nos assombram o futuro, com catástrofes mundiais, cheias, incêndios, tufões devastadores ... uma panóplia desgovernada de desmandos, que a Terra parece vir cobrar com a justeza de quem se sente vilipendiada e maltratada pelos seus habitantes ?...

Enfim ... isto sou eu a pensar, a reflectir, a concluir, neste dia 16 do mês de Março de um ano que parece amaldiçoado, com todo o tempo do mundo para o fazer, numa auto-quarentena, num isolamento voluntário profiláctico, no Portugal onde começaram agora a chegar os ventos destruidores vindos de leste ... o tsunami mortal corporizado na Pandemia COVID -19.
Estamos num ano bissexto, e diz o conhecimento popular que ou é muito pródigo ou muito travesso.  Este, dispensa outras apresentações.
O Mundo está parado. O Mundo está a viver uma guerra sem fronteiras, sem contenção, sem trincheiras ... sem quartel ! Não há memória de alguma vez termos vivido, sequer estado perto, de algo assim.
Os países estão isolados.  Na Europa a Itália está totalmente devastada, num cenário sem precedentes.  Segue-se-lhe Espanha, com quem Portugal vai encerrar fronteiras, a França, a Alemanha e muitos outros países, espalhados por vários continentes.  Há total contenção e restrição de livre circulação.  Os aeroportos são depósitos de aviões parados.  De este a oeste, do hemisfério norte ao sul ...
Os hospitais não têm já capacidade de resposta, anuncia-se uma ruptura humana e material que parece insolucionável.  As cidades são fantasmas, as ruas estão desertas, as pessoas confinadas a casa.
É um cenário de terror e devastação o que se vive.

Sai-se à rua apenas para abastecimento, quer de géneros alimentares quer de farmácia.  Usam-se luvas descartáveis e máscaras protectoras, esperando que o maldito vírus, que se propaga com uma facilidade e uma velocidade indescritíveis, não descubra nenhuma brecha penetrante, por cada vez que nos expomos um pouco. O afastamento social determina a segurança de cada um .
Portugal conheceu hoje a sua primeira vítima mortal.  Há cerca de 190000 infectados pelo mundo e mais de 7800 mortes já registadas.
Nos hospitais, os técnicos de saúde receiam um recrudescimento de casos.  Muitos deles também já foram infectados.  As famílias estão desarticuladas.  As crianças e jovens estão em casa, com as escolas de todos os graus, encerradas.  Os adultos cujo trabalho lhes permite, trabalham de casa, executam tele-trabalho.
Os outros vão em frente.   Não há como não ir ...
Está no horizonte próximo, daqui a quarenta e oito horas, a aprovação do Conselho de Estado, para a declaração do Estado de Emergência no país.  Nunca tal havia ocorrido antes.

E eu por aqui ...
Fazendo parte de um grupo de risco, devido à faixa etária em que me incluo, estou atenta em permanência a todas as medidas, informações e desenvolvimentos que circulam na comunicação social.  Sofro por todos, em especial pelos meus, obviamente.  Sinto-me encurralada, sem espaço de manobra, sem nada poder fazer para minorar o que se vislumbra no horizonte.
Tenho uma filha na área da Saúde, a trabalhar num dos Hospitais de referência em Lisboa.  Condições precárias, até mesmo a nível de protecção pessoal destes técnicos de saúde...
Vivo apavorada com a hipótese de que ela possa vir a ser contaminada.  Tem uma filha de dois anos e o companheiro trabalha fora do país na Comunidade Europeia.
Não há rede de apoio.  A família é muito pequena.  Não me "deixam" avançar para ficar com a Teresa, se a questão vier a colocar-se.  E a angústia que isso me transmite, associada ao medo que tenho tentado controlar, mas que está a ultrapassar-me, começa a desequilibrar-me física e psicologicamente, e a tornar as minhas noites, num vazio de sono e descanso !

Ao acordar de manhã, neste isolamento voluntário que me confina a este quarto, nesta casa de silêncios, onde apenas os meus dois gatos me acompanham ... longe da família, dos amigos, dos conhecidos ... dos afectos ... afastada dos lugares, com as rotinas comprometidas e com as notícias trágicas a pingar a um ritmo alucinante na televisão, no telemóvel, no computador ... sem um fim à vista ... sem uma melhora que se vislumbre ... sinto-me prisioneira, atrás das grades onde o MEDO, a IMPOTÊNCIA e o DESESPERO me confinam ...
E digo-me  em jeito de tentar tranquilizar-me, racionalizando,  que o Homem sempre se transcende, sempre se reergue e renasce ... mesmo que a onda pareça ser incontível !!! Essa é a sua História de Vida !!!
E que a seguir à tempestade, um céu azul e uma Primavera a despontar daqui a cinco dias, nos aguardam !!!



Anamar

terça-feira, 10 de março de 2020

" SEM AVISO PRÉVIO ... "



Voltei a escrever, no Pigalle.
O Pigalle voltou a ser um espaço quase devoluto em que as pessoas habituais sumiram.  E desta feita, a culpa não é do café, nem do tanto quanto aqui já referi noutros escritos.  A culpa é dos tempos que se vivem ...
O Mundo ficou, sem aviso prévio, em estado de sítio em poucos dias.  Não bastando os abalos sociais, as guerras, as incertezas, a violência e a dor instalados e que fazem parte sempre da nossa realidade ... assim, do dia para a noite, no espaço de dois meses e pouco, as nossas vidas confrontaram-se com angústias, dúvidas, incertezas acrescidas ... com perguntas sem resposta, com previsões sem fundos sustentáveis, com uma precariedade existencial que nos confrontou bem de rompante, com uma fragilidade sem tamanho, pelo facto de sermos apenas, habitantes do Planeta Terra.
Uma epidemia ( à beira de uma pandemia ),  que não conhece fronteiras, grassa como uma labareda incontrolável de este a oeste, de norte a sul, devastando, escarnecendo, restringindo, aniquilando e destruindo as pessoas, as famílias, as sociedades ... o Mundo !

De repente, sem aviso prévio, sem sinal visível, o tornado, o tsunami, o flagelo abateu-se sem anúncio, sem pedido de licença, sem autorização para entrar.  E foi entrando.  Nem sequer de mansinho, mas aos magotes de infectados, de mortos e de apavorados, por todos os continentes já.
E de um dia para o outro, as cidades viraram fantasmas, os países viraram assombrações e as nossas vidas  ficaram assim uma coisa suspensa no ar, sem sabermos bem como gerir algo que desconhecemos !
As nossas existências vivem num limbo estranho, dia após dia, num ganho por cada dia, se não foi nesse ainda, que nós, os nossos familiares e amigos, fomos  apanhados na torrente destruidora ...
Vivem-se sentimentos imprecisos, não identificáveis, de um desconforto sob o domínio de um alarmismo inevitável que parece não se controlar.
Erguem-se as vozes nas áreas da saúde, sociais, governamentais, políticas ... num apelo ao controle e à possível tranquilidade das populações, tentando-se  que as "rédeas" na sociedade, não fujam ao domínio das entidades responsáveis, o que seria um desastre ainda maior, já que o medo, o alarme colectivo e o desnorte, em situações limite, nunca conduzem a bons resultados.
Mas a comunicação social, com a facilidade da notícia ao minuto, bombardeia-nos em permanência, com os números, as estatísticas, e a actualização mesmo das notícias referentes ao outro lado do mundo.
Dá-nos  conta  de  uma  Europa  que  se "defende" a  ferro e fogo  do  avanço de  um vírus  que desde a  China, galga  a  passadas  largas  muros, fronteiras,  marcas, barreiras, céus e mares ...
Um vírus que desafia e exige soluções em tempo record, a toda a comunidade científica, no sentido de se encontrar uma terapêutica, uma vacina, uma medida profiláctica eficaz ... qualquer coisa que trave com urgência, esta onda desrespeitosa de uma calamidade que parece incontrolável.
Temos países em caos organizacional.  Temos países cerrados ao contacto exterior, quer por decisão interna ( no desespero de impedir a total circulação de cidadãos ), quer pelo boicote feito ao seu acesso por parte dos outros países, na tentativa, desta forma,  de uma contenção da epidemia.
Temos ruas vazias, o comércio fechado, os cafés e locais de convívio e encontro, igualmente encerrados.  Há zonas ditas "vermelhas", em que a incidência do risco é superior.  As pessoas remetem-se e trabalham a partir de casa, tentando proteger-se e reduzir o contágio.
Respeitam auto-quarentenas, ou quarentenas sanitárias impostas.
Itália encabeça esta lista, mas a França, a Espanha e a Alemanha sucedem-se, com o agravamento do número de infectados.
Em Portugal, as restrições às rotinas, estão aí.  Relacionamentos sociais restringidos, eventos públicos cancelados, escolas fechadas, teatros, museus e outros espaços igualmente encerrados, provas desportivas e outras,  à porta fechada, e bem assim  suspensas outras iniciativas passíveis de reunir os cidadãos com alguma proximidade.

Não me lembro de alguma vez ter vivenciado sequer algo próximo disto.
Parece que começamos objectivamente já, a viver um estado de sítio caótico que eu imagino viver-se nos países que atravessam conflitos de guerra, miséria e desestruturação social.
Não se conhece o dia de amanhã, não se sabe da real segurança das pessoas  no âmbito das suas necessidades de sobrevivência, das capacidades de resposta na área da saúde, seja em termos de estruturas físicas hospitalares, seja em termos de respostas humanas ... Enfim, começo a sentir-me numa espécie de "gheto" social.
Saio pouco, vou ao café mas não fico, relaciono-me com os que me rodeiam, com algumas precauções.  Faço as minhas caminhadas como sempre, porque as considero espaços terapêuticos de revitalização das defesas e qualidade de vida.  Não utilizo transportes públicos, vou normalmente às compras mas evito proximidades desnecessárias com terceiros.
Não estou assustada por mim.  Estou mais preocupada com a "minha gente"... filhas expostas naturalmente nas suas actividades profissionais, sendo que, por ser enfermeira num dos hospitais de referência, a mais nova vive na "linha de fogo", sem protecções especiais facultadas ao pessoal que aí trabalha, com uma criança de dois anos que frequenta uma creche, e que com o pai a trabalhar no estrangeiro pouca serventia tem no apoio presencial familiar ...
Preocupo-me com os outros três miúdos, frequentando estabelecimentos e graus de ensino diversos e praticando actividades desportivas, com treinos e trabalho de ginásio, onde naturalmente os contactos são muitos e variados ...
Enfim, preocupo-me com a crise económica que todo este caos arrasta, nacional e internacionalmente, com consequências gravosas, altamente penalizantes para o nosso país que vive no "arame", e igualmente em termos da conjuntura mundial ... Tudo isto iremos pagar ... tudo isto nos sairá  do bolso em termos próximos futuros ...
A Síria ficou para trás, o Irão e suas ameaças nucleares, do Brexit pouco já se fala, os migrantes sofrem na carne e na alma mais dores em cima das que detêm ... os nossos escândalos "privados" ( as "guerras" institucionais, os buracos económicos, as corrupções e a escandaleira da justiça ... até as crises futebolísticas acaloradas que rendem semanas de entretenimento ... ), de Trump e suas enormidades, de Bolsonaro e seus alarvismos, das injustiças sociais confrangedoras e gritantes ... da fome, da miséria, até das alterações climáticas, o Homem abriu um parêntesis e tenta unir-se em torno da causa única : salvar a Humanidade ...

O corona vírus chegou num belo dia do fim de 2019, em Wuhan na China, mas já alcançou protagonismo e capacidade de aterrorizar e fazer tremer até as maiores e mais fortes potências mundiais !
Afinal, o ser humano é efectivamente um grão de poeira face àquilo que não domina, não controla e não conhece.
Ao ser humano resta neste contexto, experimentar e exercitar um desafio que talvez nunca lhe tenha sido colocado tão prementemente na era moderna : a solidariedade, a partilha, o trabalho grupal, a união de esforços, a entreajuda, sem cor, sem raça, sem língua, sem fronteira ... em torno de uma causa comum ... salvar a sua espécie !!!



Anamar

domingo, 23 de fevereiro de 2020

" POR AÍ ... "





Tarde ensolarada de mais um Carnaval ...
Aí está uma época do ano e uma efeméride que sempre detestei.  No meu senso de humor não encaixa ter que me "divertir" quando o calendário assim o decide.
Mas hoje o dia foi absolutamente generoso com os foliões, com temperaturas de franca Primavera, embora ainda tenhamos um mês de Inverno pela frente.

O Carnaval é sobretudo para as crianças  que, seja qual for a fatiota que lhes inventem, ficam felizes e eufóricas, na magia de uma personagem encantada.
Relembrei inevitavelmente os anos aqui em casa, com duas para mascarar, nos tempos em que ainda não existia a panóplia de oferta extremamente variada, criativa e baratinha, propiciada pelas lojas dos chineses e afins.
Os fatos de então, eram confeccionados ( o que era uma bela de uma chatice ), ou alugados, o que obviamente não era para todos os bolsos.
A escolha não tinha muita margem de variação ( sempre se tentava que no ano seguinte se retomassem os modelitos já passados, com a inerente resistência por parte de quem os envergaria ... 😃😃😃 ).
Havia que rentabilizar o mais possível o trabalho e o capital ... ( rsrsrs ).  Assim, a minhota, a sevilhana e as fadas, eram coisa certa e segura ...
Depois passava-se à epopeia de vestir, de pentear adequadamente e de maquilhar.
Enquanto que uma das minhas filhas desejava, suportava e participava mesmo, na "construção" da figurinha, não reclamando e prestando-se a todas as facécias necessárias (cabelos ripados, palha de aço na cabeleira para segurar a peiñeta, e imobilidade quase total para que a pintura saísse a preceito ), a outra quase tinha que ser manietada para lhe conseguir fazer qualquer coisa.  Fugia, não queria, esquivava-se o mais que podia.  Era um cansaço e uma prova de esforço, conseguir sair incólume de tal odisseia !
Hoje, tem uma filha com idade para as mesmas tropelias.
E também a mãe "corta um dobrado" para a convencer, quase ingloriamente, a deixar pôr a bendita fatiota e prender as asas de borboleta, ou a bandolete das antenas no alto do cocuruto ... o máximo permitido ... ( rsrsrs )

Nessa altura, o Carnaval ainda tinha sabor a vida, a brincadeira, a boa disposição.
O tempo passou.  Os mais velhos ignoram as palhaçadas da época.  Dezoito, quinze e doze anos conferem-lhes o "estatuto" de gente muito crescida e séria ...
Resta a "pitorrinha" de pouco mais de dois anos e meio, com quem, como disse, o sucesso não parece ser muito !!!

Eu agora ando assim.  Não sei se serei só eu ( penso que não ), para quem a vida se norteia por revivalismos de tempos passados, ou por uma afobação sentida e urgente, de esgotar tudo aquilo que ainda possa, enquanto possa.
Uma vida feita "às pressas", como se fosse acabar-se amanhã ... e uma vida de lembranças e recordações, boas e más ... sempre gratificantes, porque o são da minha história.
A fragilidade da existência, a efemeridade da mesma, a precariedade dos tempos e a corrida vertiginosa dos dias, assustam-me e pressionam-me.  As vinte e quatro horas voam, literalmente.  Levanto-me tarde, é certo, o que consequentemente as encurta.  Mal tenho aqui o sol a inundar-me, frente à janela, já daqui a pouco estou a descer os estores, porque o céu  laranja lá longe no horizonte, me anuncia que mais um dia está a findar ...
Nada disto é obviamente saudável.  Nada disto deveria ser condicionante das nossas vivências diárias.  Afinal a vida segue indiferente, angustiemo-nos ou não.  E tudo será o que tiver que ser, quando tiver que ser !...
O mundo é cada vez mais um lugar perigoso de se viver.  Viver, é cada vez mais uma condição humana, exponencialmente de risco elevado...

Cerca de duas mil e quinhentas pessoas morreram já, com a pandemia que se alastra indiferente, neste barco de casco disfarçadamente roto, que é o planeta.  O medo instala-se e grassa.
Não adianta, dizem.  Sabemo-lo bem !  Afinal, como estancar ou refrear  num mundo de globalização, a circulação permanente, incontida e fácil das pessoas e dos contactos ?!
Assim, a juntar às incertezas que se vivem, inerentes às dificuldades experimentadas por todas as realidades existentes a nível pessoal, familiar e social ... a juntar ao horror dos conflitos generalizados, das guerras instaladas, dos ódios, da fome e das perseguições ... a juntar às mais disfarçadas agressões a que o ser humano é sujeito em permanência ... à constatação angustiante indiferente e doída da degradação do planeta, vítima do descaso e da loucura de alguns ... a juntar a tudo isto, digo, como se um castigo viesse redimir tanta ignomínia, como se se fizesse um qualquer acerto de contas no Universo ... como que um cerco se fecha, e as doenças acrescidas àquelas que já nos fustigam, amarguram-me, intranquilizam-me, assustam-me, e apavoram mesmo os meus dias ...

Não  será  preciso tanto, dirão.   Afinal,  para  se  morrer  basta  estar  vivo ! - Velhíssima  máxima ...

Nos últimos dias têm partido figuras públicas que, por o serem, não nos passam despercebidas.  Indivíduos que também escreveram, à sua maneira, a História do nosso país.  E, apesar de para mim representarem apenas isso ... o facto de deterem em si, o protagonismo do enriquecimento da nossa realidade nas mais variadas áreas, culturais, sociais e políticas, com o contributo que nos legaram ... sempre me sinto empobrecida, nostálgica e interrogativa com o seu desaparecimento ... como se o mesmo fosse um processo contra-natura, despropositado e ilógico ...
Afinal foram meus contemporâneos, são meus "conterrâneos" e responsáveis também, por um acréscimo e uma valorização integral dos meus conhecimentos, da minha personalidade ... da minha individualidade enquanto gente, aqui e agora nesta Terra !...

Bom, não alongarei mais a escorrência dos meus estados de alma ...
Hoje tratou-se tão somente disso mesmo ... um mix aleatório, um fluir solto, desconstruído, sem elaboração prévia ... sem linha ou estrada previamente decidida.
Simplesmente uma torrente a esmo  pelo meio dos escolhos que me atormentam, das interrogações que me coloco, das perguntas insolúveis, das respostas silentes às dúvidas audíveis ... Exactamente como me foram chegando ...
Por aí ...
Não mais ...

Anamar

domingo, 16 de fevereiro de 2020

" A ESPERANÇA AINDA MORA EM WUHAN"


 REQUIEM  PARA  WUHAN




Hoje foi um domingo de sol em Wuhan.

Foi a esperança que mo disse.  A doçura de um sol frouxo penetrou  pelas vidraças veladas, fechadas há muito, na reclusão de quem foge ao horror lá de fora.
Sente-se o silêncio da condenação dos condenados, nos hospitais, nas casas ... nas ruas ...
Experimenta-se o medo ... o pavor de quem foge aos tentáculos monstruosos que pairam por ali ...
Agoniza-se de terror pelo ar que se respira, pela mão que se toca, pelo monstro gigante que espreita em cada esquina ... e emudece-se sepulcralmente ...
Percebe-se a exaustão dos que lutam, dos que se excedem e se ultrapassam na ânsia de chegar primeiro.  Antes dela ... da morte !

Mas a esperança ainda lá vive.
A esperança dos que se sentem abençoados pelo simples facto de amanhecerem, por cada dia.
A esperança dos que se sentem escolhidos, só porque, mesmo através da vidraça, podem ver o verde que ponteia naquela cidade amaldiçoada e mártir, de onze milhões de penitentes..
Uma planície aluvial de colinas, lagos e lagoas, antes pujante de vida, hoje o epicentro infernal de mais um descaso atroz do destino !...

E o sorriso ...
O sorriso dos que ainda conseguem sorrir ... 
 ... só porque em Wuhan  há pegas azuis,  que não desistiram de gorgear e de enfeitar hoje, ainda, um céu que foi azul também...

Anamar 

" REGRESSO ÀS ORIGENS "





Fui ao Alentejo.

E o Alentejo está lindo neste fim de Inverno, início de uma Primavera que já se apruma a chegar.
Tem chovido alguma coisa e a Natureza que é frugal, desponta em força, exuberantemente verde, prometendo para breve, o multicolorido das flores que começam a anunciar-se pelos campos fora.
Os pássaros chilreiam, em tempos de acasalamento. E volteiam, em afobação de ninho.
A vida brota, o ciclo reinicia-se e aquele chão generoso não se esquiva nunca.
As cegonhas empoleiram-se,  geração após geração, no ninho que as viu nascer, agora que notoriamente já não emigram para o norte de África.  O clima, a garantia de satisfação das necessidades alimentares e uma segurança nas vidas, fixa-as na paz de habitações colectivas, em verdadeiros "condomínios"  pelos postes de alta tensão acima, à beira das estradas.
Depois, o gado pastoreia placidamente e é uma paz para a alma ouvir-lhe os chocalhos, o balido das ovelhas, o ladrar dos cães ... a brisa que perpassa leve e solta pela charneca ...
e  os sinos dos campanários longínquos, dando as horas numa lentidão arrastada, numa paz modorrenta, como as sombras doces e longas, projectadas por um sol manso e também ele meio dormente ...
E o silêncio ... aquele silêncio que é e não é, que se se escuta e adormece, em cumplicidade com as memórias e com a presença "ainda", dos que já partiram mas que sempre estão por ali ...

E lá estão as gentes, as vozes cantadas, a solicitude nas respostas, se uma pergunta lhes é feita ... Sempre ... como sempre, ao longo dos tempos ...
Encontrei os mesmos velhos, na ociosidade da pirisca esquecida no canto dos lábios, nos bancos de pedra do largo da Matriz ...
Velhos do asilo, a maioria ... que procuram conforto no calor dos raios do sol, e paz na certeza do reencontro diário ...
Senti-lhes as mesmas conversas lentas ... as mesmas de há cem anos.  As mesmas de toda a vida.  De todas as vidas ...

E aquela terra, não nega que é a minha terra, deserdada que estou na cidade impessoal.
O sangue fervilha logo que os cheiros, os sons, as cores e o olhar  ( que de repente ganha asas e espaço para se alargar além-horizontes ) descomanda e ciranda livre e solto, como eu o era, nos tempos de pai, mãe, avós, tios e primos ...
Todos já foram indo, abrindo caminho ao que há-de ser, quando for ...

E as pedras da calçada  ainda falam de mim.  Mesmo que as tranças já não existam. Mesmo que da casa mãe, só existam as paredes iguais, esvaziadas e silenciosas, sem alma ... porque são outras, as mãos que a detêm ...
E as histórias também, porque essas, são perenes, porque são histórias de Vida !

O largo, dos jogos da macaca, das brincadeiras de roda, da "linda falua", das  covinhas  dos berlindes ( tampas dos pirolitos mantidos no fresco do poço, revestido de avencas verdes e frondosas, para adoçar as refeições ) ... está lá, intocável, parece.
É um largo de memória e saudade !...
Da loja do Zé Marovas, com a exposição de tudo quanto lá se vendia  pendurado em pregos, na rua, parede fora, desde as pás de lixo em zinco, às vassouras, aos alguidares de vários tamanhos, às panelas, às pequenas alfaias agrícolas, escadotes, canas e pincéis para a caiança, tintas, cal  e tudo quanto a necessidade exigisse ... só existem os pregos, e portas e montras entaipadas há muito ... numa parede de velhice e solidão ...
A barbearia do Zé Francisco, lugar de amenidades, encontros e novidades da terra, também já foi.
A senhora Teresa, das miniaturas em barro para as brincadeiras da raparigada, partiu há muito.
As senhoras Capitoas, frente à casa da avó, onde os queijos frescos, de alavão pessoal, e o almeice que fazia as delícias da minha mãe ... são também uma lembrança distante, apenas.
A menina Sofia e a irmã, solteironas, austeras regentes escolares  já então aposentadas, muito respeitadas e vivendo duas portas abaixo ... sempre paravam pela janela ou pelo postigo ... E havia que serem cumprimentadas, à passagem.  A educação assim o impunha ...
A igreja da Saúde,  igreja das missas do Galo pela mão da avó  embiocada no xaile dos dias solenes, na gélida madrugada dos Natais ... continua a "desvendar-me"  com nitidez, a luz clara do altar, o incenso do turíbulo, o som dos cânticos ecoando, e a imagem do Menino cujo pezinho beijaríamos à saída. "Vejo" tudo claramente ... enquanto a lembrança mo deixar ...

E as horas foram indo ...
Breve, a torre do castelo daria as horas do regresso.  E deu.
Lá longe, a cidade de sempre, nos lugares de sempre, com as pessoas de sempre ... na vida quase sempre igual, requeria que eu voltasse ...




Anamar

sexta-feira, 7 de fevereiro de 2020

" A VOZ DO DONO "


Não sou licenciada em Direito.  Não tenho formação jurídica.  Convivi contudo intimamente, mais de dois terços da minha vida com quem o era, e com quem a tinha.
E tinha-a, nos tempos em que nesta área ainda havia muita gente honesta, séria, capaz, sabedora e escrupulosa.
Depois, a minha linha sucessória deu continuidade a esta senda, com os princípios, os valores, a dedicação, o esforço, a seriedade e o acreditar de quem havia felizmente bebido em boa "fonte".

Assim, sou uma simples cidadã deste país que constata, analisa e reflecte sobre o que se passa à sua volta ... e se indigna ainda, felizmente, com todos os atropelos miseráveis em que vamos tropeçando.
Esta minha exposição  traduz por isso, apenas o meu sentir, a minha análise e o meu entendimento, estando seguramente ferida de imprecisões técnicas que não domino, e logicamente, de rigor de linguagem e conceitos.

Neste momento, e de novo na ribalta pelas piores razões, mais episódios da novela "Tancos" - o desvio das armas nesta unidade militar.
E como cidadã comum que lê, se informa e escuta o que a rodeia, assiste-me o direito à indignação, à estupefacção, e à incredulidade perante o rumo que as coisas entretanto, assumiram.

O tempo da ditadura de má memória, caracterizara-se como em todas as ditaduras, por repressão, arbitrariedades, crimes, amputação das liberdades e direitos dos cidadãos, desrespeito por instituições, valores e princípios que pusessem em causa o regime em vigor na nossa sociedade.
O 25 de Abril de 74, foi a alvorada das nossas existências, repondo finalmente, ao fim de 48 anos, os alicerces do estado de direito !
As liberdades e os direitos individuais foram repostos e consignados na Constituição da República Portuguesa.
A actual Constituição, foi redigida pela Assembleia Constituinte eleita na sequência das primeiras eleições gerais livres no país em 25 de Abril de 1975, data de 1976 e na sua feitura teve um papel  destacado o eminente constitucionalista Jorge Miranda.

Aprendi que num estado de direito, existem consignados na Constituição da República, três poderes, a saber, o legislativo, o executivo e o judicial e que as áreas abrangidas pelos mesmos, deveriam ser respeitadas,  não podendo ser entre si devassadas, violadas e "atropeladas".
Também aprendi, que à luz da mesma Constituição ( documento sagrado ou Bíblia, numa democracia ou estado de direito ), todos os cidadãos são iguais perante a lei, com igualdade de deveres e de direitos.
Acontece que, como sabemos, nada disto se passa.
Neste momento assiste-se a uma vergonhosa, escandalosa e discricionária interferência do poder político sobre as estruturas judiciais responsáveis, primeiro pelo inquérito ( na fase de investigação ) e agora sobre a instrução do referido processo.
Há uma manifesta e objectiva obstrução à isenção que os profissionais de direito (garantes do cumprimento de todos os trâmites julgados necessários e fundamentais para a averiguação e  esclarecimento do processo ), tentam por em prática.
Assiste-se a uma intocabilidade de determinadas figuras públicas, devido à "dignidade" dos lugares que ocupam no quadro político do país.  Refiro-me como é de conhecimento geral, ao Primeiro Ministro e ao Presidente da República, que haviam sido convocados pelo Ministério Público, na qualidade de testemunhas, a prestarem esclarecimentos julgados úteis, importantes e determinantes para a consecução da investigação do processo.
A Procuradoria Geral da República, na figura da sua Procuradora Geral, Lucília Gago, veio de imediato à liça, invocando a não adequação desta intimação, dada a especificidade dos cargos desempenhados por António Costa e Marcelo Rebelo de Sousa, impedindo que esta diligência fosse efectuada.
Baseou a sua fundamentação numa consulta feita ao seu conselho consultivo, e desta forma  tornou-a  numa directiva sobre a intervenção da hierarquia em processos judiciais.
Indicava este parecer, que os procuradores só poderiam desobedecer às chefias, quando estivesse em causa uma violação da consciência jurídica do magistrado, e ainda assim, deveria a mesma ser devidamente espaldada e fundamentada, sob risco de ser levantado um processo disciplinar ao mesmo.
Desta forma, os Procuradores viram-se desautorizados, condicionados, viram os seus poderes coartados, viram as suas consciências violadas e a sua autonomia questionada, tornando-se  simples marionetas nas mãos dos seus superiores hierárquicos, abrindo-se assim um perigoso precedente, sem tamanho.
Passaram a ser meros técnicos jurídicos e não mais magistrados, na verdadeira acepção do desempenho das suas funções, caracterizadas sempre por isenção, idoneidade e independência, limitando-se agora a expressar, a traduzir  e a  fazer exercer determinantemente e não mais,  o entendimento dos seus superiores.
Ou seja, a defenderem  inapelavelmente, e tão só, a "voz do dono " !!!

Esta "guerra" aberta e vergonhosa que mostra claramente a intromissão abusiva e inadmissível da esfera política na área judicial, leva-nos ao crepúsculo mais escuro, das liberdades alcançadas na madrugada de Abril, há quase 46 anos.  Leva-nos a memórias de repressão, de silêncios e de opacidade. Traz-nos à memória perseguições, processos persecutórios hediondos, interesses escusos, arbitrariedades e compadrios !!!

Não foi p'ra nada disto, seguramente, que os cravos vermelhos desceram à rua naquela madrugada de ESPERANÇA !!!

Anamar

quarta-feira, 5 de fevereiro de 2020

" O FIEL JARDINEIRO "





Os dias continuam radiosos e abençoados.  O sol não se esquiva, a temperatura é generosa, o céu azula, os pássaros chilreiam e mostram-se saltitantes pelos campos e jardins, onde a erva rebentou em força  com um verde saudável e viçoso, e onde as flores despontam já, com a pujança e a beleza promissora de uma Primavera candente.
O sol faz o milagre.  Aliás, o sol sempre faz o milagre de despertar, colorir e adornar gentilmente os dias que agora nos arquivam a escuridão, a neblina e o frio do Inverno, que apesar de tudo ainda atravessamos.

Adoro a Natureza.  Sempre ela subjaz aos meus escritos, porque sempre ela emoldura e determina os meus estados de alma.  Não canso de o referir, e tenho-a como o bem mais seguro e precioso de que dispomos,  porque ela representa a VIDA ... 
É certa, magnânima, não guarda ressentimento ...
Fascina-me sempre a sua dádiva sem cobrança, apesar dos maus tratos e da insensibilidade do Homem.  Ela não pede, aceita ... não nega, dá-se ... não cobra e não nos falha ...

Aprecio quem a aprecia.  Identifico-me com quem com ela se identifica.  Agrada-me a sensibilidade de quem com ela gosta de se miscigenar, de quem lhe identifica a linguagem e lhe sabe ler os mistérios.
De quem se extasia com um nascer ou um por de sol.  De quem sabe olhar as margaridas selvagens, as azedas delicadas, ou a nudez dos plátanos despidos.  De quem entende, porque escuta, o trinado do melro, o arrulhar dos pombos, o pipilar do chapim ou da pega rabuda ... o grasnido da gaivota que patrulha os penhascos alterosos ou saúda a rebentação da maré baixa ...
Emociono-me com quem se debruça para colher um malmequer dos campos, uma madressilva dos muros velhos, apanhar um seixo dos areais, ou com quem "guarda" a cantilena da rebentação, nas praias ora desertas.  Quem entende a voz do vento, quem lê o recado da tempestade ... quem silencia, para sonhar, no horizonte ...
Enterneço-me com quem planta tomates, pimentos, aromáticas, figueiras, malaguetas, morangos e outros,  em vasos de varanda, e  rejubila com cada um que nasce e cresce, e o acarinha e o trata como se de uma criança se tratasse.
Extasio-me com a dádiva de amor posta na recuperação das espécies doentes ou moribundas, tantas e tantas vezes irremediável e desprezadamente largadas no lixo ... por nós, aqueles que não as "sentem" como seres vivos clamando por ajuda ...
Extasio-me com quem ajardina encostas inóspitas de falésias junto ao mar, só porque nelas se encerram vidas, histórias e destinos ...
E admiro profundamente quem ama os animais, sobretudo aqueles a quem a desdita jogou em futuros  tortuosos e indefinidos ... Quem os ajuda, os defende e os protege ...

Conheço alguém assim.
E só consegue ser assim, quem tiver um coração do tamanho do mundo e uma alma aberta, disponível, pura e "naïve", capaz de deixar albergar em si tudo e todos que o precisarem ... Quem tiver uma sensibilidade ímpar e desperta,  na arte da "jardinagem da vida" ...
Já lhe chamei  "o homem das rosas", e sobre ele escrevi um conto, há anos atrás.  Hoje, chamo-lhe o "fiel jardineiro" ... e sinto-me privilegiada por, de quando em vez, também eu ser uma humilde "plantinha" do seu jardim ...



Anamar

segunda-feira, 3 de fevereiro de 2020

" DE TUDO UM POUCO "



O dia amanheceu radioso, aliás já ontem o seu semblante foi primaveril.
Um sol luminoso e quente, num céu completamente límpido e translúcido, emoldurou estes primeiros dias de Fevereiro.  Afinal, Fevereiro igual a si próprio ... sempre nos presenteia com estes dias que parecem anunciar uma Primavera com pressa de chegar ...

Ontem, a efeméride do costume ... dia de Nossa Senhora das Candeias,  Nossa Senhora da Candelária, Nossa Senhora da Apresentação ou Nossa Senhora da Luz ... conforme o local que A homenageia.  Este ano, com uma data interessantíssima :  02-02-2020, ou seja, uma sequência numérica chamada de palíndromo.
Este conceito que não se aplica apenas aos números, respeita a uma palavra, frase ou qualquer outra sequência de unidades que tenha a característica de poder ser lida de igual forma, da direita para a esquerda, ou em sentido contrário.
 "Ovo", "reviver", "luz azul", "ame o poema", são exemplos de palíndromos.
Na nossa travessia,  tivemos  já o privilégio de vivenciar duas capicuas :  os anos  1991 e  2002, o que é raro acontecer. A data de ontem, constitui uma perfeição global !

Bom, neste domingo "perfeito", a Senhora da Luz chegou-nos com um tempo gloriosamente luminoso ... talvez por isso mesmo !  E acresce, que consequentemente  e pegando no ditado popular, teremos ainda um Inverno para chegar ...
Sempre a minha mãe lembrava : se o dia da Senhora das Candeias "rir", o Inverno está p'ra vir, e se ele "chora", temos o Inverno fora !...
Sempre a minha mãe e os seus "ditos" !...

Hoje fiz a minha caminhada, embrulhada na mornidão deste solzinho de Inverno, doce e manso.
Por todo o lado onde o verde ainda só se anuncia longinquamente, os pássaros volteiam, saltitam e trinam numa alegria esfuziante.
Afinal, Fevereiro é mês de acasalamento e nidificação, Março mês de posturas e nascimentos, ou não albergasse em si a chegada da estação da renovação e da continuidade ...
A Natureza é sábia e nunca erra !

E a Natureza é um pote de alimento para a alma, um boião de néctar para o coração !
O ser humano experimenta em si, uma força e um poder,  uma esperança sentida e vinda nem se sabe de onde, e uma claridade insuspeita que nos inunda, como uma onda que se espraiasse mansamente num areal deserto ...
De repente, da escuridão e das trevas dos meses de recolhimento que atravessamos, surge o dealbar de uma nova aurora, de um renascimento que nos anima e "recarrega" todas as baterias do nosso ser !...
Era então que a minha mãe dizia que "ficamos com vontade de fazer coisas" ...  E fazer coisas, para ela, era desencadear uma faxina feroz na casa, de fio a pavio, que ninguém amansava ...
Nunca entendi muito bem estas "realizações" que deixavam a minha mãe exultando de felicidade !... ( rsrsrs  😄😄😄 )
Não lhe herdei, de facto, estes rompantes efusivos que tornam felizes as pessoas simples, as que não exigem demais da vida, as que se realizam e pacificam com o que os dias lhes vão dando ...
São seres de paz, de bonomia, de aceitação ... seres não tumultuados, e de bem com a existência !...

Ontem tive comigo, toda a tarde, a minha benjamina.  A Teresa, a caminho dos três anos que completará em Junho, é de facto uma bênção para quem com ela convive ...
Pequenina de estatura, tem um desenvolvimento físico mas sobretudo mental, que me maravilha.  Desde muito novinha no infantário, no que considero ser uma mais valia no desabrochamento intelectual de qualquer criança, estimulando-lhe aptidões fundamentais quer individualmente quer na relacionação grupal, a Teresa é uma criança sem inibições, com uma desenvoltura e um à-vontade espantosos, extrovertida e com uma linguagem perfeitamente escorreita e rica, para a pouca idade que detém.
Tem um discurso lógico, claro e rico em expressões.  Divide e partilha.  É calma e sempre bem disposta.  Não é uma criança birrenta, pelo que é fácil o convívio com ela.  Ouve os adultos, aceita o que se lhe diz e expõe as suas ideias enriquecendo-as com uma expressão gestual que me fascina ...
O convívio quase exclusivo com a mãe, já que o pai trabalhando no exterior passa grande parte do tempo fora, propicia-lhe e estimula-lhe uma ligação íntima  com esta, muito forte e cúmplice, que nos mostra uma menina parecendo ter bastante mais idade.

Já há muitos anos que não acompanhava de perto o crescimento de uma criança.  Antes dela, o meu outro neto mais novo, tem já doze anos, e acho que me escapou muito do seu desenvolvimento.
A vida tem períodos e fases mais ou menos complicadas, em que as prioridades, por vezes, não nos são generosas ...
Agora a Teresa, chegada quase nos quarenta anos da mãe, e em que eu talvez já não acreditasse muito que um novo elemento nos viesse enriquecer a família, é uma descoberta permanente ... um enamoramento e um fascínio constantes para mim, o facto de poder testemunhar o seu percurso promissor, nestes tempos tão conturbados e descoloridos !...

Desculpem um pouco da imodéstia.  Não o é, na verdade.  Sinto-me sim, uma "sortuda", uma privilegiada e abençoada mesmo, por a vida ainda me presentear com a possibilidade da descoberta do milagre que é a chegada ao mundo de um ser tão indefeso, tão frágil e tão vulnerável ...  e poder testemunhar dia a dia, a sua busca pelo seu lugar no mundo !
De alguma forma, sente-se  uma realização muito grande, uma imensa expectativa, e como que uma gratificação e um sentido objectivo para a continuidade, também, das nossas existências nesta Terra !...

Anamar

sexta-feira, 31 de janeiro de 2020

" ISTO SOU EU A PENSAR ... "




O dia está de "nieblas" ou seja, está envolto num nevoeiro tão cerrado que não se vê, só se adivinha ...
Não está frio, nos 16 graus de um Janeiro, meio de Inverno.  Contudo ... chove. Chove aquela chuva miudinha que não é bem carne nem peixe, mas que chegou para me encharcar na caminhada ... já que hoje era dia .
Eu gosto das "nieblas", este tempo fantasmagórico que desenha perfis esbatidos, como se estivéssemos atrás de um vidro embaciado.  Gosto deste ar misterioso que sempre me transporta às narrativas celtas, às costas bravias e inóspitas da Irlanda, tão bem retratadas naquele filme maravilhoso de mar alteroso e descomandado  com  que  "A filha de Ryan" nos presenteou, nos écrans de cinema nos idos de 70 ...

Afinal, o dia está parecido com a vida das pessoas.
A maior parte não tem tempo, saudavelmente, para se preocupar com estas tretas. Mas como "quem tem vagar faz colheres ..." eu, até enquanto caminho, penso na vida e falo sozinha ...
O cinzento que me cercava e que me fazia "desaparecer" no raio de alguns metros, foi propício a que me interrogasse pela enésima vez, do porquê da insegurança e da instabilidade da nossa existência, nos dias que correm.
Nos primeiros tempos da minha vida, eu e as pessoas minhas contemporâneas  adquirimos, alicerçámos e interiorizámos conhecimentos, princípios, valores que nos norteavam e que nos garantiam certezas mais ou menos indiscutíveis.  Sabíamos que estas causas, produziriam aquelas consequências, que se vivêssemos controladamente dentro de determinados parâmetros  que conhecíamos, não teríamos à partida, surpresas desagradáveis ou grandes percalços no futuro.
Podíamos planificar, podíamos aceitar desafios e assumir responsabilidades, mesmo a longo prazo, porque era devidamente acautelado o risco que se corria.  E só o corria quem queria.

Hoje, vivemos num arame sem rede.  Tudo, mas tudo, pode sempre acontecer em qualquer circunstância.  Tudo o que era certo ontem, cai em suspeição hoje.  A instabilidade, a incerteza, a dúvida sobre o que e quem nos rodeia, é uma onda gigantesca que cresce mais e mais avassaladora, como um tsunami nos nossos dias.
Há uma desprotecção total do ser humano  face à sociedade, face aos cidadãos, face às instituições, face aos princípios, às linhas norteadoras e às coordenadas que nos regem.  É como se, de repente, toda a sinalética que conhecíamos, fosse desvalorizada, e todos os códigos assimilados e válidos, caíssem em desgraça e passássemos a desconhecê-los.
E aí ficamos nós  mais perdidos que no meio de um deserto, mais naufragados do que em cerração de alto mar ...
E apossa-se-nos uma angústia, um pavor, um cansaço e um descrédito em tudo, que nos indigna, nos revolta e nos reduz à fragilidade com que nos confrontamos, percebendo-nos demasiado insignificantes e desprotegidos no mundo que habitamos.
Não temos verdadeiramente ninguém que nos defenda, as instituições são mais e mais falíveis e inaptas, as estruturas sociais não respondem e não funcionam sequer em tempo útil, são manipuláveis e corrompíveis.  Deixámos de saber as linhas com "que nos cosermos" ... deixámos de identificar as verdades que o eram ...
E ficámos estranhos ... estilo  marcianos largados de uma qualquer nave espacial ...

Somos espoliados nas "nossas barbas" ... e sabendo-o, contudo,  não temos armas disponíveis para a reversão das situações. Tudo é maquiavelicamente engendrado.  Verdadeiros  processos kafkianos são montados. Cantam-nos canções de embalar descaradamente entorpecentes,  para que consigamos reagir.  A verdade e a mentira, o direito e o avesso, o certo e o errado saem da tômbola aleatoriamente, como se inocentemente, o seu grau de validade fosse o mesmo ...

Estas reflexões atormentaram-me e atormentam.  Angustiam-me e desgastam-me.  Desmotivam-me e desencantam-me face à vida e ao futuro.  Sou cada vez mais uma analfabeta, face ao livro da Vida.

Fiz análises de rotina há alguns dias.  O meu colesterol continua teimosamente descontrolado, e desafiador.  Depois de há já razoável tempo eu ter assumido medidas correctivas no meu esquema de vida demasiado sedentário, assumiu valores ainda mais elevados.
Alimentação simples e não comprometedora, comportamentos de risco que evito diariamente e exercício físico praticado com total regularidade, seriam garante de uma segura descida dos seus valores.
Bem ao contrário ... num braço de ferro, persiste em assumir valores fora da tabela.
Sou meio inconsequente em relação a estes acidentes de saúde.  Como o meu pai, que resistia o mais que podia a médicos, medicamentos e tratamentos, eu, que felizmente não tenho  historial de contratempos a este nível, evito dar-lhes importância, protagonismo ou com eles me preocupar.
E por isso, tenho assumido um comportamento de "deixar correr" ...  Os resultados laboratoriais chegam, leio-os de través e guardo-os no armário até que uma nova investida de "consciência" me invada ... e os repita.

Entretanto, vou ouvindo as sugestões de gente avisada : "tens que te aconselhar com o médico !  O valor é elevado,  olha este e aquele a quem aconteceu isto e aquilo " ...

São as estatinas o fármaco aconselhado na terapêutica.  Todos o sabemos.  Só que se trata de um químico com uma moldura de efeitos colaterais assustadora.  Desde a dependência ao medicamento,  ( que exige um tratamento longo  para que tenha eficácia, direi mesmo, "sine die" ),  a um prejuízo acentuado no âmbito da parte muscular e articular do paciente, com restrições na qualidade de vida, e bem assim,  a ser potenciador de alterações cerebrais, como a demência ... o leque de aspectos negativos secundários inerentes, assustam-me e desmotivam-me totalmente.
Depois, ouvem-se algumas vozes da comunidade científica, denunciantes destas situações, com desaconselhamento do uso deste químico, e igualmente se escuta um ping-pong de opiniões sobre a mesma prescrição, desmistificando o colesterol como vilão no nosso organismo, e denunciando  e desmascarando um empolamento intencional e miserável da verdade, montado em prol do  "lobby farmacêutico", que a comercialização destes medicamentos beneficia.
O dinheiro e os interesses económicos das multinacionais sem escrúpulos, sempre à frente, trucidando, se preciso for, o ser humano !!!...

Bom, e portanto, SIM ou NÃO ?
Leio, busco na Internet, falo com gente da área, profissionais de saúde, e fico mais ou menos na mesma ... ou seja, quem fala a verdade, neste imbróglio ???!!!
Trata-se de uma  patologia  silenciosa e falsa, que só é detectável em exames e investigação adequados, ou por alguma "surpresa" grave que nos espreite ao dobrar de uma esquina ...  E aí, poderá já ser tarde !...

"Nieblas" ... sempre as benditas nieblas, poalha viscosa de desinformação, dúvidas e incertezas !...
E nós por aqui, indefesos ... como a mosca presa na teia de uma aranha monstruosa, contra a qual jamais terá capacidade de fazer frente !!!

Anamar

domingo, 19 de janeiro de 2020

" SEI LÁ QUE NOME DAR A ISTO ... "




E o bando dispersou.
Eram muitas, há pouco, patrulhando lá de cima o que suponho ser bem desinteressante aqui por baixo ... um casario sem rei nem roque, uma floresta de betão com alguns assomos de verde, para fazer de conta.
Sei que gaivota não é bicho de jardim, não é bicho de floresta, mata ou serra.  Gaivota é bicho de arribas, de falésias a pique, de rochedos salpicados de sal.  Gaivota é bicho de azul, de rendilhados de espuma, de caramujos, de algas e de peixe de marés distraídas.
Adormece-se se a onda ajuda, pica a fundo sobre as cristas, se ela é rude e se impõe.
Gaivota é bicho de ser livre.   Perspicaz, atrevida e desafiadora, não entendo por que perde tempo a andar por aqui ...
Por essa razão perdoei à minha, que partiu há muito.   Partiu, mas levou-me com ela nas asas do sonho, para bem longe deste cativeiro ...

O céu hoje é um céu de Primavera, num glorioso dia de Inverno.  O seu azul diáfano, a sua luminosidade de doçura perceptível, o calor tímido do seu sol, é um doce envolvimento para o coração e para a alma.
Da janela, repousada em varanda de privilégio do meu sétimo andar, pouco se atreve a tapar-me o horizonte.  Pouco se atreve a escurecer-me a luz.  Pouco se atreve a boicotar-me o pensamento que se solta e voeja longe, mais e mais longe ... sempre mais além ...

O rasto de um avião aqui por cima, traçou uma linha perfeita na tela do firmamento.  Um avião, seja qual for, é um caminho, é um projecto, é uma viagem, é uma história.  Sempre é uma história na vida das pessoas. Uma história contada ou inacabada.
Um avião, é uma chegada e uma partida.  É um encontro onírico.  Para mim, sempre o é.
E lá vou eu ... atrás do rasto, atrás das asas ... atrás do sonho !

Vem aí a tempestade "Glória", dizem os serviços meteorológicos oficiais.
Que saudades dos tempos em que a voz de Anthímio de Azevedo, tudo simplificava no pequeno écran ...
As tempestades não tinham denominações absurdas.  Eram tempestades e pronto. O Inverno era o Inverno, com sabor a frio, a chuva, a ventos, mais ou menos fortes, dias seguidos ... os que fossem .
O Inverno eram as golas altas, os gorros fofos, as luvas que hoje esquecemos no fundo das gavetas.  Eram os pés encharcados, os guarda-chuvas partidos nas reviravoltas das esquinas. Eram as gripes, os espirros e as tosses persistentes.  Era o Vicks Vaporub que a mãe nos punha antes de dormir ...
O Inverno era o que abria as portas à Primavera, e esta ao Verão que antecedia o Outono, no tempo certo, sem surpresas ou desvarios.
As castanhas comiam-se assadas quando o S.Martinho nos batia à porta.  Os morangos e as cerejas assomavam com a doçura mansa da Primavera. As favas desciam-nos à mesa pelas Páscoas.
Era assim.  Sabíamos e esperávamos com gosto, com desejo, com alegria ... porque sabíamos que era exactamente assim !
As coisas eram conhecidas e seguras.  Sabíamos perfeitamente com o que contar, sem sustos ou atropelos. 
Hoje acontece tudo, sempre, em qualquer momento.  Perdeu a graça !...

Hoje sabemos muitas coisas.  Coisas de mais.  Aliás, sabe-se tudo, em tempo real.  E pasmamos com a evolução das tecnologias, com o avanço do conhecimento e da informação.
Mas morre-se nos hospitais, não da doença que lá nos levou, mas de uma bactéria residente, que parece estar ali, para abater quem entrou com uma apendicite ...
E morre-se, porque um inocente avião em rota comercial, é derrubado "por engano" por um míssil, no meio de confrontos absurdos e incontroláveis, em guerras políticas e fratricidas, comandadas de secretárias a milhares de quilómetros de distância.
E há fogos sem norte ou rumo, que devastam, destroem e matam, dia após dia ... homens, plantas, animais ... a Natureza sem defesa, consumida e reduzida a cinzas.  Seguem-se inundações catastróficas, num caos e num desmando que o Homem, afinal, não controla ou aquieta.
O planeta zanga-se.  Zanga-se e avisa.  Zanga-se e castiga.

O futuro mostra-se como as areias movediças do deserto, como as dunas móveis que se fazem e desfazem, à nossa frente ... incerto e duvidoso ... assustador !
O trabalho, o mérito, a isenção, o esforço, a verticalidade, parecem não garantir a dignidade e a realização de ninguém.  São outros os valores que movem o Homem de hoje.  São outros os "requisitos" garante da segurança nos dias vindouros. Os baluartes da sociedade são falaciosos, as estruturas que deveriam pugnar pelos seus direitos, e defendê-la das arbitrariedades que nela grassam, têm pés de barro e mostram-se ineptas, ineficazes e incapazes de proteger os cidadãos.
Manda o poder. Todo o poder ... material ou não ! Impõe-se sem escrúpulos.  De todas as formas de que dispõe.
Enfim, as tempestades vão muito além das meteorológicas !

Bem ... onde o pensamento me trouxe, numa viagem sem bilhete, intemporal e não programada !...
Comecei na minha janela, olhando o espaço sem limite ou fronteira, deitado aos meus pés, há algumas horas atrás ... e termino, quando o sol já faz as malas para dormir ... saboreando uma chícara aconchegante de café, de novo junto à minha janela, quando as gaivotas já buscaram guarida e só os pombos idiotas perambulam por aqui.
O plátano agora esquálido e esfíngico, despido da folhagem que ainda esperará para voltar, parece dormitar como os velhos à lareira.
De resto, o silêncio do fim de dia aproxima-se a passos largos.  Afinal, foi mais um dia de Inverno com um glorioso semblante primaveril !...


Anamar

sábado, 18 de janeiro de 2020

" OS PEQUENOS PRAZERES ... "



Levantei-me tarde, aliás como é hábito.  Herdei do meu pai os genes da apreciação de uma boa manhã na cama, não importando a hora do recolhimento.  Essa, pode ser qualquer uma, ao sabor das circunstâncias e dos momentos.
Já varei muita madrugada entretida cá nas minhas coisas,  já me amanheceu o dia sentada ao computador frente à janela de sempre, já escrevi muito de meu nas horas silenciosas e cúmplices, perdidas noite adiante.
Mas aquela oportunidade de tempo sem tempo, no entremeio da fofura dos lençóis, no ninho aconchegante e quente do édredon ... essa, é uma benesse sem tamanho, é um privilégio que me compensa da obrigatoriedade de encarar mais um dia, com ou sem vontade, no desencasular face à luta diária que sempre nos espera !
Sou tipicamente uma mulher da "noite".  Funciono do lusco-fusco, adiante.  As manhãs ... sobretudo as horas da alvorada deprimem-me, violentam-me, incapacitam-me os neurónios, tornam-me totalmente disfuncional ...
Sobretudo nesta época do ano em que se pressente borrasca lá fora, em que se ouve o vento agreste a soprar, em que se adivinham  nuvens cavalgantes e encasteladas cobrindo a abóbada por cima das nossas cabeças ... em que a chuva copiosa tamborila ou açoita a vidraça ...
Foi o caso desta noite, em que por cada momento consciente entre o sono e os sonhos que me acompanharam,  saboreei  a  doçura  do  estar  bem ... de  tudo  estar  mais  ou  menos  perfeito !...

Depois, cumpri a caminhada que me imponho  três vezes por semana, na procura de mais qualidade de vida, com a satisfação do dever cumprido.  Sim, porque não sendo eu uma pessoa que me reconheça disciplinada, sobretudo nesta área, conseguir manter um projecto, uma determinação e uma realização, sabe-me efectivamente a uma verdadeira e prazeirosa conquista.
Hoje, em itinerário alternativo à mata enlameada e intransitável pelas chuvas caídas, inaugurei satisfatoriamente o percurso que apelidei de "inverno" ...

O sol acabou espreitando pelo meio de algumas nuvens esparsas que viriam a adensar-se e a fazerem cara feia, agora ao fim do dia.
Almocei de prato na mão, sentada sobre a máquina de lavar roupa, junto à janela, saboreando a generosidade de uma luminosidade dourada, doce e envolvente, dos raios que me inundavam.
À minha frente, o casario desgovernado, que me permite olhar horizontes longínquos,  mais adivinhados do que alcançáveis, transportava-me ao sabor do sonho, na liberdade das gaivotas que por aqui preguiçosamente planavam.
Há quanto tempo eu não me oferecia este descompromisso de formalismos !... Há quanto tempo eu não me permitia esta coisa de poder ser como eu quisesse, sem demais preocupações, presenças ou obrigatoriedades !...
Bebido o cafezinho de fim de refeição, sem urgências ou afobações, esperava-me uma tarde ociosa sem programas determinados.  E poder fazer isto, aquilo  ou aqueloutro conforme me desse na telha, tinha um sabor abençoado.

Vim para o computador  mexer e remexer em pastas, documentos, fotografias arquivadas, testemunhos de eventos, momentos que o foram, registos que marcam inesquecíveis acontecimentos, indelevelmente guardados por esta ou aquela razão, mas que se pretende que perpetuem aquela fatia das nossas vidas.
São memórias inapagáveis, são formas de nos trazerem o passado ao presente, de uma forma tão vívida que parece que o vivemos outra vez.
Revi o vídeo do lançamento do meu livro "Silêncios" que fará em Maio, três anos decorridos.  Rever as pessoas, sentir toda aquela festa, toda aquela emoção, todo aquele "conto de fadas" de um dos dias mais felizes da minha vida, deixar-me de novo envolver naquele regaço de carinho e afecto, trouxe-me outra vez as lágrimas aos olhos.
Olhar as pessoas, ver os seus rostos na alegria com que me homenagearam, escutar as palavras proferidas na Biblioteca Piteira Santos ... "beber" Énya no seu "Only Time" que nunca se apagará do meu coração ... foram presentes bem acima do que eu alguma vez sonhara, do que eu alguma vez mereceria ...

E pronto ... anoiteceu entretanto.
O meu sábado foi um conforto de alma pejado de pequenos prazeres, soltos e leves, uma  verdadeira dádiva  que  me  concedi,  com  o  sabor  da  liberdade,  da  irreverência  e  da  plenitude  de simplesmente  ser  e  saber-me  mulher,  na  posse  das  minhas  vontades, opções  e  escolhas !...

Afinal, a vida também é feita destes pequenos e saborosos retalhos ... acredito !!!...

Anamar

segunda-feira, 13 de janeiro de 2020

" EM BALANÇO ... "




Dei por concluído mais um volume - repositório de tudo o que publico aqui  neste meu espaço pessoal - o correspondente ao ano agora findo, de 2019.
Desde que iniciei a escrita deste blogue no passado 2008, uma iniciativa que surgiu entre a curiosidade e a experimentação, já completei dezoito volumes em suporte de papel, que guardo religiosamente na prateleira da minha estante.
São testemunho vivo da concretização de um projecto pessoal, que vale o que vale, não tem nenhum tipo de pretensão ou convencimento, e que é simplesmente algo que ficará um dia quando eu partir. Será um legado meu que falará daquilo que eu sou, daquilo que foi o meu percurso, as minhas preocupações, as minhas dúvidas, as minhas conquistas e os meus desaires, os meus sentires ... alegrias, tristezas, o que foi capaz de me emocionar ... em suma, um retrato nu desta que eu sou.

Cada palavra, cada linha, cada texto que aqui foi registado, foi-o com o desassombro, com a independência que me concedo, com a liberdade que me permito, com a autenticidade que me desenha.
Cada sentimento expresso, foi-o por escorrência simples e natural da minha pele e do meu coração.  Sem censuras, sem barreiras, sem crivos ou filtros.  Sensata ou insensatamente ... prudente ou imprudentemente ... Nunca isso me coartou, preocupou ou limitou.
Tal como na vida em que nunca aceitei cangas, baias ou fronteiras, e simplesmente me assumo com a genuinidade  que me confere uma coerência e uma verdade que sempre busco e respeito, também aqui sou eu frente a mim mesma ... em espelho de lealdade e verdade, sem fraudes ou distorções.

Sempre escrevi o que a voz me ditava, nunca me obriguei ao socialmente adequado ou correcto, sempre ignorei o "ruído" exterior, fingi não perceber intencionalidades ou interesses.
Nada foi "trabalhado", retocado, travestido pelo parecer bem, pela aceitação, pela conveniência.

E só por isso valeu a pena !
Hoje leio-me, e ao ler-me reabro a estrada, espreito as bifurcações, sinto as hesitações das encruzilhadas ... percebo as dúvidas, as angústias das incertezas nesta arte de marear, tantas e tantas vezes em meio de tempestades alterosas ...
Hoje, reassumo os batimentos acelerados dos cansaços do caminho,  respiro de novo as pausas nas sombras de paz e água fresca, com que a vida ... com que as vidas alternam nos nossos percursos ...
Hoje, congratulo-me pelo crescimento que descortino, gratifico-me pela maturidade conquistada, aceito com bonomia e paz  as cicatrizes deixadas pelas horas menos felizes, enxugo as lágrimas inevitáveis escorridas pelos tempos ... aquieto o coração, vezes de mais escalavrado e sofrido ...
Hoje, ao ler-me, "vejo-me", "descubro-me", "orgulho-me" ... "reconheço-me" ...

E apesar dos pesares, não sou capaz de me zangar com esta existência de tropeços, quedas, desacertos e incompletudes, porque sei do esforço diário desenvolvido para o acerto, porque sei do desafio imposto para a superação, porque sei da luta permanente travada  para a não desistência, porque sei da coragem e da esperança que bebi às colheradas para não soçobrar no campo de batalha ...
Por tudo isto, dia a dia me agiganto, me respeito mais e mais e me admiro ... se tal me for permitido ...
Em jeito de balanço, direi apenas que esta "herança" que deixo, talvez seja a mais preciosa que poderia  deixar, porque é uma dádiva integral de mim, na globalidade física e espiritual da mulher que eu sou !...

Anamar

terça-feira, 7 de janeiro de 2020

" E A PRIMAVERA AINDA DEMORA A CHEGAR ... "




O ano começou há exactamente uma semana .  É um recém-nascido peremptório, teimoso e cheio de artimanhas.
Veio carregadinho de vontades imperativas, sem dar cavaco a ninguém.
Prometo que não vou falar daquelas frases "kitsch", tipo  "uma nova página a ser escrita",  " vêm aí 366 novas oportunidades ", "o tempo passa sozinho, mas és tu que viras a página" ... " meta para 2020 : ser feliz! " ... e bla bla bla ... tipo receitas do Pantagruel ...
Irrita-me o vazio de frases feitas e irrita-me a bonomia de mão passada pela cabeça ... deixa lá, vai ser melhor, não desistas dos sonhos, depois da tempestade vem a bonança ... basta acreditar ... e etc, etc, etc ...  Tudo lindinho, tudo fofo, tudo iluminado ... com os corações pseudo plenos de paz na Terra, amor e boa vontade !
Como se tudo fosse exactamente assim ... como se a vida, o tempo, a nossa existência fossem exactamente bombons  embrulhados  em pratas coloridas ...

Acho que estou gradualmente a perder a capacidade do sonho.  A capacidade do acreditar.  A capacidade da esperança.  E tudo isto é grave ... é mesmo muito grave !
A estrela do presépio não assomou por aqui.  Não  me ensinou caminhos,  e  o  meu "deserto" está mergulhado na profunda escuridão de todos os desertos, onde só o firmamento vive ponteado de fogachos longínquos, alguns  inexistentes, apagados e mortos ... à semelhança de muito, do tanto que inventamos.
A sua luz ficou lá atrás dos tempos e das eras ...

Entra ano, sai ano, correm horas, dias e meses, no desfiar implacável de amanheceres seguidos de ocasos.  Ilusoriamente acredita-se que tudo será privilegiadamente diferente, só porque  o  calendário ( essa invenção de mau gosto ), deixou pingar a sua última página ...

Um Inverno, agora generosamente solarengo, pintalgado de azuis e laranjas, enfeita-nos os dias, promete-nos alvoreceres auspiciosos.
Não faço intencionalmente previsões.  Não desenho metas ou pinto cenários, obviamente.
Vou só vivendo ... tão simplesmente.  Vazia ... ou melhor, esvaziada de ilusões.  Acho que essas, feneceram, tombaram quais folhas caducas, das árvores de finais felizes, que se despem impiedosamente, rumo ao sono retemperador e intimista da estação que vivemos.

E a Primavera que ainda demora a chegar ...

Anamar