quinta-feira, 26 de março de 2020

" AQUI DA MINHA JANELA "- HISTÓRIA DE UM PESADELO - Dia 15






NA  CORDA  BAMBA !...

Ontem deitei-me profundamente angustiada, desanimada, desencorajada ... apavorada.
Os números da pandemia pelo mundo fora, ultrapassam o meu conceito de pesadelo.
Dizia  para mim, que por mais pensamentos positivos que fizesse, por mais aparente descontracção que fingisse demonstrar  desde logo para mim mesma ... por mais auto-convicção, de que é só preciso ter calma, resiliência e paciência ( porque um dia destes o folhetim acaba, a página vira e acordamos libertos do que havia sido, tão somente, um brutal pesadelo ) ... de pouco serviu.
Sentia-me perfeitamente encurralada, perdida em estrada sem escapatória ...
Eu que quase me desabituara de chorar, agora, do nada, as lágrimas caem-me cara abaixo, num estado de espírito esfarrapado e num desequilíbrio que me assusta.  Lembro muito a fragilidade emocional da minha mãe, nos últimos anos, de quem dizíamos a brincar, ter o coração ao pé da boca ...

Ouvi a propósito, ontem, um depoimento de um psicólogo que dissecava as dificuldades sentidas por este regime de excepção que nos enclausura, sem fim à vista.
E retive algo que me parece muito importante : dizia ele, que um dos primeiros passos para suportar com sanidade este cárcere forçado, é ter aceitação dos nossos estados de espírito, sem brigarmos connosco mesmos, por os acharmos de fragilidade inadequada, por sentirmos que o auto-controlo que em situação normal é imprescindível à nossa segurança, se está a esboroar.
Aceitarmos pacificamente a angústia, a incerteza, a ansiedade ... convivermos com o desânimo e o medo ... como respostas obviamente normais,  à violência traumática a que estamos sujeitos.
Se tivermos que chorar ... pois que o façamos.  Se tivermos que gritar ... idem.
Não desvalorizarmos ou sufocarmos qualquer tipo de emoção, é fundamental.

Depois, sentirmos que para além de nós, estamos a vivenciar fenómenos comunitários.  E estamos solidariamente a "trabalhar" também, para os ajudarmos a minorar, e a resolver uma causa comum.
Esse sentimento de altruísmo, fortalecer-nos-à  e ajudar-nos-à a reerguermo-nos e a sentirmo-nos mais "gente" ...

Falar e expressar os seus sentimentos, dividir com a família e os amigos ( neste momento, obviamente por via virtual ), as dificuldades, os desânimos, o medo e tudo o mais que nos povoe o espírito, sem medo de julgamentos e até mesmo de nos expormos, por parecermos não tão fortes quanto acharíamos ser-nos exigível , ou julgarmos estar a sossobrar à pieguice ... será outro passo a dar ...

Contactar sempre com os nossos afectos, por longe que estejam.
As novas tecnologias são, neste campo, uma benção,  que há anos atrás nem sequer cogitaríamos quanto !...
O toque, a presença física, a voz real, a pele, o colo, o abraço ... o beijo ... vitais para o ser humano, agora impedidos de os usufruir, terão que ser remediados com as comunicações, seja de que natureza forem ...
Uma criança de tenra idade, a quem de repente são subtraídas as presenças de avós, de tios, primos, a ambiência habitual e segura da escolinha, dos amigos, dos professores ... enfim, as figuras de referência afectiva ... tudo ao mesmo tempo ... precisa também readquirir a estabilidade e a normalidade possíveis para que, sem poder entender o que a rodeia, não sofra um traumatismo emocional com consequências gravosas excessivas ...

Depois, teremos que instalar rotinas neste novo esquema de vida.  São obviamente rotinas totalmente diversas  das nossas conhecidas rotinas, da vida fora da "guerra" ... mas ainda assim, rotinas ...
Quaisquer umas ... o que nos der na telha fazer, sem obrigatoriedades ou excesso de zelo.  Sem "forcings" desnecessários .  Até porque temos todo o tempo do mundo !
Vamos mesmo surpreender-nos com as aptidões e capacidades que possuímos, sem o saber !
A vida é vista com outros olhos, os valores assumem outra dimensão, tudo está forçosamente relativizado.  Não se corre mais, para nada !!!
E por isso ... sem stress !...

Acordei com a determinação de que hoje seria dia de faxina, e por isso, a "Margarida-empregada" passou a receber ordens da "Margarida-patroa" ... areia dos gatos, rega das plantas, limpeza de pó ( de uma só das divisões ... nada de exageros ... e sem batotas ! ), arranjo das casas de banho ... etc, etc, etc ...
Como "adoro", sempre adorei e me realizei com todas estas ocupações domésticas 😌😌😌 ... resolvi, para "minorar os estragos",  seguir os conselhos da minha filha mais velha ( parecida comigo pelo menos nesta área ) ... e com a janela aberta  e a  música aos berros, desatei a aspirar furiosamente, como se não houvesse amanhã !...

Acreditem ... dá um resultadão !!!

E por hoje, é tudo.  Até amanhã !  Continuem bem, por aí ...

Anamar

quarta-feira, 25 de março de 2020

" AQUI DA MINHA JANELA " - HISTÓRIA DE UM PESADELO - Dia 14

" VAMOS ... "




Já não olho o relógio .
Sei que o dia começa quando os primeiros alvores da madrugada me penetram a penumbra do quarto.  E sei que a noite começa quando o sol adormece, lá longe no meu horizonte.
E o dia começa quando entende começar ... e a noite cai quando entende ser a hora ...
Nada depende de mim, ou é como eu quero ...

Sei que os segundos parecem minutos e estes parecem horas.  Sei que as horas duram dias e as semanas não passam, apesar do meu desejo.
Tudo corre ao ritmo que tem que correr, e o Homem é uma mera partícula na engrenagem da vida ...

Sei das absurdas estatísticas dos números que nos assombram as noites, e sei da força de palavras como solidariedade, partilha, afecto, coragem, generosidade ... entrega ...
Mas também sei o poder destrutivo do medo, da angústia, da incerteza, da dor ... do cansaço ...
E também pouco depende de mim, ou da minha ânsia de repor tudo  o que era aparentemente normal ou conhecido ...

Vi hoje que as glicínias  floriram ...
e a Primavera que não fora avisada, continuou carregando as braçadas de flores frescas, os pássaros e as mariposas que volteiam pela mata ... como sempre ...
E eu olho-os e percebo da indiferença da Natureza face à pequenez do Homem ...
Tudo é perfeição fora do caos que nos atormenta.  O sol continua a brilhar, e o riso das crianças sempre será o bálsamo com que o Universo nos apazigua os corações ...

Hoje, as ruas estão ainda mais desertas, as cidades mais vazias e indiferentes ao frio gélido que nos atormenta a alma.
Hoje é o décimo quarto dia do pesadelo que atropelou as nossas vidas.
O silêncio que se escuta e que torna a noite um fantasma aterrador, é pesado, estranho e incompreensível ... e sofre-se esse silêncio por detrás de cada vidraça iluminada !
A distância e a ausência atormentam e matam aos poucos ...

Mas se tudo parece ser porque tem que ser, talvez não tenha que ser o que não quisermos que seja ...
Vamos mudar as regras deste louco tabuleiro de xadrês !... Vamos subverter as cartas viciadas desta tômbola maquiavélica !... Vamos acreditar que podemos, e que a saudade da ausência se transforma na força da presença de todos os que amamos !... Presença de todos os que ansiamos voltar a abraçar, vontade do sonho que desejamos em breve voltar a sonhar ... desejo da vida adiada que acreditamos poder reinventar ... coragem para erguer do chão o peso da desistência ... esperança em dias azuis de Marços que hão-de vir ...

Vamos ...

Eu, continuo em casa !...

Até amanhã !   Fiquem bem, por favor !

Anamar

terça-feira, 24 de março de 2020

" AQUI DA MINHA JANELA " - HISTÓRIA DE UM PESADELO - Dia 13





FORÇA  PORTUGAL !

Hoje não estou boa companhia para vocês.
Arranjei ontem uma lesão incomodativa na lombar, ao fazer inadequadamente um esforço que me empanou os movimentos.  À conta disso dormi precariamente, e à conta de não ter aliviado a cabeça com um sono retemperador, acordei angustiada, cansada, sem ânimo ou vontade.
Ficara a ouvir as notícias da pandemia mundial até tarde, e o panorama de Portugal em particular, desestabilizou-me totalmente.
Toda a mentalização que tento fazer, todo o positivismo de que procuro imbuir-me, me abandonou.  Entrei em stress, ansiedade e medo.  Sentia-me acossada, com aquela sensação de impotência de estarmos na iminência de um perigo, sem termos para onde fugir ...
Os relatos das diferentes realidades sociais que se vão conhecendo, apavoram-me.
Desde logo o ambiente vivido em meio hospitalar, com profissionais a atingirem níveis de exaustão que fazem perigar a sua saúde, não falando já do contágio de que são vítimas, por insuficiência nos meios de protecção pessoal ... o horror que atinge as instituições que albergam idosos, entregues à sua sorte, sem nenhum tipo de protecção e quase sempre com condições precárias de cuidados, assistência sanitária e outras ... o abandono dos sem-abrigo, eles que só por si e já em condições normais, constituem uma preocupação social acrescida ... não falando depois, de uma displicência notória bem visível, apesar do estado de emergência, nos hábitos dos cidadãos que continuam a desafiar a sorte e as regras, expondo-se, mas sobretudo pondo em risco a vida dos seus concidadãos, com os comportamentos erráticos que assumem, parecendo ignorar tudo o que os rodeia ...
Tudo isto me está a fazer um mal sem tamanho !

Hoje não era dia de caminhar, e nem fisicamente o poderia, mas era o dia da semana destinado a comprar alguns bens alimentares, pelo que desci  protegida como habitualmente para este fim, ao Continente situado em baixo, no meu largo.
Pensava eu que talvez em plena hora de almoço, a afluência fosse menor ... Três quartos de hora na rua, ora num pé ora no outro, sem posição para estar ... lá entrei.
Muitas faltas ... prateleiras desfalcadas.   Para azar meu, o que precisava não constava.  Comprei o resto, e subi a pôr em casa as compras, para voltar a descer, tentando outra superfície comercial, ainda perto.
Outra fila de metros e metros. Ora um pé  ora outro, suportava o meu mau estar físico e o meu desespero.
Apesar do distanciamento de segurança entre as pessoas, para todos os efeitos são locais de exposição, logo, de risco ...
Quanto mais rápido tencionara desenvencilhar-me das compras, mais tudo se complicara ...

No regresso perguntava-me até quando se alastrará este estado absolutamente anormal de vida ?  E até quando as nossas resistências física e anímica o suportarão ?  E até quando as famílias aguentarão a pé firme e coesas, todos os atropelos que este esquema desestruturante desencadeia ?  E até quando as crianças e os jovens suportarão sem maiores danos, o regime de clausura, de horizontes fechados ?  E como sairão de tudo isto e como resistirão, os nossos velhos, maioritariamente confinados a espaços exíguos, precários e de solidão profunda ?...
Infinitas perguntas ... ausência total de respostas !...

Entretanto a Alemanha recebeu doentes italianos com Covid 19, numa ajuda humanitária inestimável ... as empresas em Portugal reestruturam-se em tempo record, para fabricarem equipamento, máscaras e viseiras para os profissionais de saúde ... reabilitam-se ventiladores  na posse de entidades públicas ou privadas, colectivas ou individuais, que estão inactivos, carecendo ou não de reparação...  ( acredita-se poderem ser recuperados 200 ventiladores, nesta plataforma solidária, criada através das redes sociais ) ... João Nascimento, um jovem estudante de Neurociências em Harvard, sensibilizado com o quadro devastador em Itália, lançou um repto para a criação urgente de novos dispositivos, e em apenas dois dias, existem já cerca de 800 especialistas dispostos a colaborar com João Nascimento e com uma empresa de Guimarães, que se propôs produzi-los ... médicos mesmo aposentados, responderam de prontidão no socorro dos que precisam ... e fizeram-se presentes ... fazem-se doações avultadas, para o combate à pandemia, por parte de figuras públicas.  Cristiano Ronaldo não poderia estar obviamente indiferente ...
Todo o país tenta mobilizar-se, numa luta que é desigual, na qual não podemos sossobrar e da qual teremos que sair ganhadores ...

Tudo isto, me povoava ainda mais o espírito, hoje que me sinto particularmente fragilizada e sensível ...
Por mim passou um autocarro, praticamente vazio, a cumprir horário.  No visor do destino, podia ler-se :  "FORÇA  PORTUGAL" ...
... e a quatro e quatro as lágrimas me escorreram pela cara ...

Até amanhã !  Fiquem bem, por favor .

Anamar

segunda-feira, 23 de março de 2020

" AQUI DA MINHA JANELA "- HISTÓRIA DE UM PESADELO - Dia 12





SOLIDÃO

Não, não estou em solidão !  Estou apenas só, num isolamento voluntário, de que hoje cumpro o décimo segundo dia. E isso são coisas absolutamente diferentes !

O dia iniciou-se com a calma e a normalidade de quem tem todo o tempo do mundo para tudo o que inventar fazer.  Tomei o pequeno almoço e segui para a caminhada habitual.
Neste momento, é o único período do dia em que me sinto verdadeiramente liberta.  E saboreio-o até me esbaldar de sensações de paz e harmonia com tudo o que me cerca.  É uma espécie de clímax vivido no meio da Natureza, como não canso de repetir.
O sol, embora não excessivamente forte, acaricia-nos por dentro, e tudo quanto tem cor, tem mais cor ainda, com a sua luminosidade clara, de início de Primavera.

Como sempre, aquela hora e meia que me concedo, afastada de tudo e todos ( em que os sons são apenas a orquestra da passarada, os cheiros são os que emanam das árvores e arbustos em plena floração, o silêncio, que é audível,  é o perpassar leve da brisa na ramagem, e a felicidade é o que experimento por poder  desfrutar de tudo isto, numa comunhão mais que perfeita ) ... é um espaço mental que me reservo, p'ra me articular, p'ra ordenar ideias, expandir emoções, falar-me em surdina sobre todas as minhas interrogações, angústias e incertezas ... e desta forma alcançar um estado de alma equilibrante, absolutamente vital nos dias que vivemos.  Em suma, é o meu momento zen do dia que encaro ...

E pensava eu então, na palavra solidão ...
Houve alguns períodos da minha vida em que talvez a tenha efectivamente experienciado  no corpo e na alma.  Períodos obscurecidos de ausência de esperança, de desânimo, de abandono ... Períodos em que as paredes deste quarto se alteavam na proporção da minha desistência ... Períodos em que, virada para dentro de mim apenas, num confinamento doentio e triste, não enxergava muito além do horizonte  curto  que  conseguia ver ... horizonte  toldado  por  uma  neblina  cerrada de manhã de Inverno ...
Hoje, olho à distância esses dias mais conturbados e cinzentos da minha vida. Hoje, com mais maturidade, distanciamento e objectividade, relativizo todo esse pretérito, e sinto-me abençoada e grata por ter chegado até aqui, e por ter hoje esta alegria de viver.

E de repente, uma entidade estranha com uma dimensão entre 50 e 200 nanometros de diâmetro, tomou lugar nas nossas vidas, sem pedir licença, entrando de intruso e destruidor.  E tudo se põe de imediato em causa, e tudo se repensa, se sopesa, se valoriza.
E de repente, o que não era importante, passou a ser.  E tudo o que o era desmedidamente, talvez não tivesse justificação para o ser.
E de repente, o tempo atrás do qual corríamos de manhã à noite, ficou sobrante nas nossas vidas.
E percebemos como a solidão que achávamos que vivíamos, era uma mentira, face à riqueza das nossas existências.
E aprendemos o valor da palavra solidariedade.  E reaprendemos o significado das palavras amor, amizade e esperança ...
E reolhámos os nossos, e passámos a falar-lhes com outra paz e outra bonomia.  E relembrámos como era rir com eles, nos tempos em que os nossos filhos ainda nos sentavam o colo ... e que a vida, sem sabermos porquê, distanciou ...

E no verde da mata ... que também é verde da esperança ... despi o susto, apaziguei a alma e sorri. 
E percebi que estou mais acompanhada do que nunca, como se, constantemente infinitas janelas se abrissem ( como em Itália se cantava para espantar o medo ), e delas todos os rostos de todos os que me amam, aparecessem e dissessem : VAI  FICAR  TUDO  BEM !!!...

Até amanhã e fiquem vocês, também bem !

Anamar

domingo, 22 de março de 2020

" AQUI DA MINHA JANELA " - HISTÓRIA DE UM PESADELO - Dia 11






ESPERANÇA


Hoje apetecia-me  baldar-me ... apetecia-me fazer-me de songamonga, de esquecida, ou fugir ( p'ra onde ?... não tenho !... ) ... Afinal hoje é que não tinha mesmo nada de especial para vos contar, neste décimo primeiro dia de clausura.

O dia amanheceu lindo de sol, e depois, apanhando-nos distraídos, começou a semear nuvens aqui e mais além, que se foram avolumando e tornando a tarde bem mais desmotivante.
Disseram-me tratar-se de cirros, nuvens formadas na alta troposfera a 10000 Km de altitude, associadas a tempo agradável, cuja orientação indica a orientação do vento.  As coisas que as pessoas sabem ! ...
Levantei-me meio estremunhada pelas dez e tal, ainda atarantada por uma insónia malfadada que me atazanou o espírito a partir das seis da manhã.   Ora estamos exactamente numa época em que as insónias são de todo desaconselhadas, já que criam terreno fértil para que as sensações mais depressivas nos atormentem.  E foi o que me aconteceu.
Neste clima de medo, insegurança, paranóias, cansaço já a instalar-se , neurastenia crescente propiciada pelo isolamento voluntário já longo e sem fim à vista, uma insónia é um desastre total !
Nada de bom nos assalta, pulamos de desgraça em desgraça, de preocupação em preocupação, como rastilho em restolho deixado ...

Decidi portanto e rapidamente preparar-me para uma caminhada, que funciona como um copo de tinto para levantar o astral.
Temperatura amena  como disse, excesso de pessoas nas ciclovias e vias pedonais, procurando a higienização  mental e o desenferrujar de articulações meio paradas, fruto da permanência e uma inactividade acrescida, em casa.  Contudo, não mais do que pares  circulavam, e ainda assim, bem afastados uns dos outros.
O regresso a casa e o encarar de uma nova semana, que será por certo apenas mais uma de uma grande história nas nossas histórias, o voltar ao silêncio de uma casa onde apenas eu e os gatos atestamos que por aqui há vida ... quase me atiravam p'ra uma fossa danada, e nem o "sentir" que por todos os lados as vivências são as mesmas, as dificuldades também, e nem o saber que todos arrastamos correntes para melhor ou pior irmos conduzindo adiante este barco, no meio de uma tempestade sem tamanho ... me animava.
Sei exactamente que é a hora de, de longe nos sentirmos perto.  Sei exactamente que por detrás de cada janela iluminada, haverá o esforço comum da solidariedade que nos devemos, e que importa respeitar .  Sei exactamente que advirá da robustez das cadeias criadas, o sucesso na vitória ...

Sei tudo isso, mas ...

Foi então que o telefone tocou e foi a vez de, do Kiko ao António passando pela Vitória, naqueles seus discursos parcos de palavras, nas idades desajeitadas que detêm, os meus miúdos me dizerem "olá avó ... como vai isso por aí ?"...
E pronto ... lavou-se-me a alma outra vez.  E estou novinha em folha para amanhã recomeçar uma nova semana ... com esperança, confiança e certa mesmo que a vida se reinventa, se reorganiza e arranja as formas mais sub-reptícias de nos compensar, de nos amparar  e não nos deixar despencar para o abismo existencial !

Até amanhã e façam o favor de continuarem benzinho ... 😄😄😄

Anamar

sábado, 21 de março de 2020

" AQUI DA MINHA JANELA " - HISTÓRIA DE UM PESADELO - Dia 10



Hoje, sábado dia 21 de Março de 2020 ... queria escrever-vos um poema.
Um poema que encerrasse toda a esperança que esta Primavera estranhamente chegada às três e cinquenta do já passado dia 20, nos trouxe ... ou pelo menos tentou.
Um poema que honrasse o dia, também ele Dia da Poesia.
Mas, não consegui.
Nada me sai de um coração tão entupido de emoções, que carecia como do pão para a boca, de esvaziar, de soltar as palavras encalhadas, de aliviar o sufoco no peito e na alma ...
Mas não consegui.
Olho o dia, que se abriu cinzento derramando chuva copiosa de um céu que parecia chorar as lágrimas que todos nós, se calhar não conseguimos chorar por aqui.
Olho o dia, que agora reabriu um sol tímido, tornando mais azuis os rasgões que já espreitavam promissores ... e penso : a nossa história é isto mesmo ! É o azul depois do negro ... é a bonança depois da tempestade ... é a vida depois da morte ... é a esperança depois do desespero ... é a alegria depois do cansaço ...
É a Primavera depois do Inverno ... é a luz depois das trevas !

Hoje, sábado dia 21 de Março de 2020, os números sobem absurdamente em Itália, sobem em Espanha, sobem nos Estados Unidos e em Inglaterra e no resto do mundo ... e no meu país ...
E o medo cresce, exponencialmente com esses números.  E a impotência parece tolher-nos e imobilizar-nos.
Queria dizer-vos tudo o que sinto.
Mas não consegui.
E no entanto, nunca se disse tanto em tão poucos dias.  Nunca tantos corações se abriram em tão pouco tempo. Nunca tanto se falou, se contou e se riu também ... porque há que exorcizar os fantasmas e fazer de conta que o terror não levará a melhor e não nos dominará !
E arregaçar as mangas, porque o flagelo não passará enquanto soubermos a palavra AMOR !
Nunca tantos heróis se corporizaram.  Nunca tantos laços se estreitaram, tantos elos de cadeias invisíveis se apertaram ... tantos braços se deram ...

Hoje dia 21 de Março de 2020, no meu décimo dia desta caminhada de susto, queria escrever-vos um poema ...

E porque não consegui, deixo-vos simplesmente este emocionante vídeo da BBC que vocaliza por certo, tudo o que todos queriam dizer ... tudo o que eu tinha querido dizer ...
... e NÃO  CONSEGUI !

Até amanhã !  Por favor, fiquem bem !




Anamar

sexta-feira, 20 de março de 2020

" AQUI DA MINHA JANELA " - HISTÓRIA DE UM PESADELO - Dia 9








"  A  GENTE  FICA ... "


Hoje amanheceu cinzento, com chuva copiosa fazendo jus às nuvens encasteladas aqui por cima.
A Natureza parecia prantear a desgraça que assola a raça humana.
Ainda na cama, como vos contei, passo a limpo a programação do dia.  Mais um, o nono do meu isolamento, ainda totalmente bem de saúde  assim como todos os meus.
Hoje seria dia da caminhada pela mata, que neste momento me é imprescindível para a manutenção de um equilíbrio físico, mas sobretudo psicológico.  A possibilidade de poder continuar a realizá-la no Estado de Emergência que se vive, foi para mim, uma medida absolutamente gratificante.
Depois, seria dia de algumas compras, visando um período dilatado de tempo em que as provisões me asseguram a não necessidade de descer ao super mercado.

No caminho até à mata, que faço com  ritmo estugado, ninguém comigo se cruzou. Parecia mais uma manhã de domingo, do que um dia útil.  A mata estava deserta como seria expectável, até porque chovia.  Era uma chuva mansa e doce, que tornava mais  vívidos todos os verdes da policromia que me rodeava.  As árvores e arbustos agora em rebentação franca, com uma pujança e uma beleza, que só a Primavera que amanhã chegará  garante, emocionam-me, renovam-me, dão-me esperança e coragem.  A Natureza que nunca nos falta, aí está cumprindo o ritual da VIDA !
Os pássaros  todos, saltam, pipilam, esvoaçam e empoleiram-se de ramo em ramo.  No chão, placidamente, um habitante do bosque catava o que comer.  Nem deu por mim.  Estaria feliz !

Durante o caminho, dobrando os recantos, percorrendo os atalhos, respirando aquele ar leve e puro que nos enche os pulmões e acaricia a alma, pensei e conversei longamente com a minha mãe, de quem particularmente agora, o seu cólo me faz tanta falta !
Sei exactamente qual o diálogo que travaríamos.  Sei exactamente tudo o que me diria, o carinho com que me reconfortaria, as palavras com que me tranquilizaria ... se estivesse por aqui ...
E sei-o porque as pessoas partem ... mas ficam.  
Ficam no que disseram ao longo dos anos, no que fizeram ao longo das vidas, no que partilharam ... no que deram ! Ficam na forma como deixaram o seu "sinal" impregnado no nosso ser.
Porque o amor é uma corrente de fios invisíveis que não se destrói. Atravessa os tempos e as vidas ...

E depois continuei, pensando na gratidão que sinto para com a humanidade, que  neste  momento   está  mais  presente,  é  mais  solidária,  mais  desperta,  mais  próxima ... mais  " gente " !
Quando ligo o telemóvel pela manhã, os sinais de alerta de vária ordem inundam o meu acordar, às vezes ainda meio entorpecido.  E são as mensagens, as comunicações via whatsapp, as palavras enviadas por messenger, os mails, o tlim-tlim do Facebook ... os telefonemas mais de perto ou mais de longe, trazem-me os amigos, trazem-me as vozes familiares, os afectos dos que não se tocam mas se sentem ... e sempre nos dizem : " estou aqui deste lado, para o que der e vier " ...
Trazem-me os rostos de quem as saudades apertam.  Trazem-me o sentir de quem, mesmo de longe se faz presente, numa palavra, num conselho, numa gargalhada, num apoio.
E mesmo os que não conhecemos, organizam-se, juntam-se para informar, para nos actualizar as notícias, para nos dar sugestões ... para nos mostrar que não estamos sós neste mar encapelado ... se mais não for, para nos dizerem : "ergue-te, aguenta com força, com coragem e sem medo.  Haveremos de vencer a dor, haveremos de vencer a batalha ! "

Desculpem ... hoje não estou muito inspirada.  Sinto-me cansada, assustada ... doída na alma e no coração ao ver quão galopante avança este vírus destruidor.  A impotência assola-me, exponencialmente com ele ! ...

Ousei pegar numa postagem de uma amiga lá da minha terra, do meu chão, do meu Alentejo ... e vou colocá-la aqui, porque sei que gostará até, que eu o faça.  Obrigada Lucinha ! 

"Nenhum homem é uma ilha isolada, cada homem é uma partícula de um continente, uma parte da Terra.  Se um torrão é arrastado para o mar, a Europa fica diminuída, como se fosse um promontório, como se fosse a casa dos teus amigos ou a tua própria casa.  A morte de qualquer homem diminui-me porque sou parte do género humano.  E por isso não perguntes por quem os sinos dobram ... eles dobram por ti ! "     
                                                                     John Donne

Até amanhã.  Façam o favor de ficarem bem !

Anamar

quinta-feira, 19 de março de 2020

" AQUI DA MINHA JANELA " - HISTÓRIA DE UM PESADELO - Dia 8

" A  CANSEIRA  DAS  NÃO - ROTINAS "

Dou em acordar angustiada.  Burrice minha, porque ninguém me manda devorar notícias até às duas da manhã ...  Depois, obviamente o sono fica prejudicado.
Assim, naquele período em que estamos mas não estamos exactamente bem acordados, muita coisa revolve os meus neurónios.
Em primeiro lugar tentei situar-me no tempo, já que o período que vivemos nos deixa um pouco "off" em relação ao calendário. 
Aí pensei, pois, hoje é quinta-feira, quase já fim de outra semana, que agora demoram a passar ... e hoje é dia 19, dia de receber a pensão mensal ... Pois é ... e logo de seguida ... é verdade, hoje é Dia do Pai !
O meu, partiu há quase vinte e oito anos, e ainda assim continua bem presente na minha vida e no meu coração.  Onde estiver, para onde estiver lhe envio um enorme beijo com todo o meu amor e infinita saudade, e como sempre faço, lembrei-lhe quão preciso, mais do que nunca, da sua protecção e ajuda, que sei não me faltarão ...
Depois continuei a cogitar e voltei a sentir o peso sufocante dos dias que atravessamos.  Hoje é o meu oitavo dia de isolamento voluntário.
Expectei ser um dia algo diferente.  Afinal  hoje acordei no meio do Estado de Emergência em Portugal, decretado ontem pelo Presidente da República, o qual inclui e define as medidas restritivas comportamentais em relação à sociedade, no sentido desesperado de estancar o avanço do vírus mortal.
Pois bem, ao dirigir-me à janela, poderia dizer-se "grosso modo" que a manhã de sol que se fazia, repetia as rotinas do dia a dia, com pessoas circulando nas ruas, parando para darem dois dedos de conversa, sentando-se na esplanada do café que existe no meu largo, ou mesmo sentando-se nos bancos a apanhar sol, como no dia mais normal deste mundo !...

Entretanto Itália contabiliza quase 3500 mortos ... e pelos vistos, as pessoas ainda não entenderam a coisa ...

Debaixo de édredon,  esquematizo diariamente, o que vai ser o meu dia, este, o oitavo do isolamento voluntário a que me propus, como disse.
E aí, começa o filme ... tomar banho e vestir... pacífico ... Hoje não faria a caminhada profiláctica, por isso a roupa a usar seria a normal.
Iria ao pão, porque se acabara o último, comprado.  Teria que ir ao talho e adquirir ainda mais algumas coisas que estavam em falta. Dessa forma ficaria aprovisionada para cerca de mais uma semana.
A máscara e um par de luvas esperavam-me antes da saída.
Pôr o quê, primeiro ?  Ato a máscara à cabeça, calço as luvas e julgo-me apta a sair ... só que, penso, será que tenho dinheiro na carteira ?  Vou para abrir o porta-moedas mas lembro ... bolas, o dinheiro está infectado ... e faço o quê ? Volto a tirar as luvas, porque assim como assim, as mãos estarão desinfectadas ( acabei de as lavar e passar por álcool ). Pelo menos preservo para já as luvas ...  Conto o dinheiro, fecho a carteira.  Volto à casa de banho ... nova lavagem criteriosa, novamente álcool a desinfectar.  Regresso, calço de novo as luvas e ... agora sim, estou apta a seguir ....
Oh não !... O telemóvel repousa bem à minha frente, só que nem o vi ... Vou ter que o levar, pois podem querer comunicar comigo, e não respondendo, instalo a preocupação do outro lado ... A última vez que o desinfectei com álcool foi ontem. Já não deve dar ... Bolas ... e agora ?  Volto a tirar as luvas para lhe pegar, verificar o monitor e meter na mala ... Casa de banho de novo.  Nova lavagem e desinfecção das mãos ...
Bolas !!!...  ( não é bem isso que vocifero ... mas adiante !...)

Eis-me finalmente na escada.  Fecho a porta à chave ... tranquila, tranquila ... Nestas chaves sou só eu que mexo, não há crise !...  Enquanto faço este raciocínio laborioso, desvio o foco de atenção, claro, e apesar de ter na mão uma folha de papel com que tencionava carregar no botão para chamar o elevador ... népia ... já o tinha chamado com a mão desprotegida, obviamente !
Fula, fula , chamei-me uns quantos nomes e tentei aliviar o espírito ... afinal aqui no meu patamar vem pouca gente, pois é o último do prédio ... só eu e o senhor Lourenço, vizinho do lado ... ah, mas esse não está infectado !....
Mal assim concluí, disse-me : burra ... como se as pessoas tivessem cara de infectadas ou rótulo na testa !!!.... Olha ... que se lixe ! ( também não foi bem isso que eu disse ... mas adiante ! )
E segui para a rua.

Regressei, e hoje era dia de faxina ( assim o decidira ... sim, porque eu programo-me ... 😄😄😄 )
Lavei, cozinhei, reguei as plantas que parecem estar mais satisfeitas comigo em casa, tratei da logística dos gatos, tratei das casa de banho, da cozinha ... e consegui almoçar às quatro da tarde !... 😌😌
Sentei-me agora ... esfalfada.  Pensei queixar-me ao sindicato.  Mas como estou a laborar no regime de "Olívia patroa - Olívia costureira " ( lembram por certo a nossa saudosa Ivone Silva ... 😃), percebi que não valia a pena.  De resto, estou a fazer teletrabalho ... envio as instruções do computador do quarto para a cozinha, e policio-me sobre o desempenho !!!...

Bom, e tinha como sabem, encontro convosco hoje, para vos dar conta do que foi mais um dia por aqui, da minha janela, onde vivencio, em  comunhão com todos vocês, as dificuldades, as canseiras, as tristezas, o medo e a angústia que afinal todos experimentamos, neste pesadelo que nos assola.
Hoje procurei que os meus escritos  desanuviassem um pouco  tudo o que se vive, esperando que de alguma forma se tenham divertido com todo o meu desnorte, na ausência das minhas rotinas de sempre !
Afinal,  há momentos em que me sinto mais tonta do que um polícia bêbedo !!!... ihihih

Até amanhã e fiquem bem, se fazem favor !

Anamar   

quarta-feira, 18 de março de 2020

" AQUI DA MINHA JANELA "- HISTÓRIA DE UM PESADELO - Dia 7




"Aqui da minha janela" pretende ser a compilação de folhas de um caderno que vou tentar escrever diariamente, neste período tão especial, tão particular e tão difícil das nossas vidas ... para que se algum dia pudéssemos esquecê-lo, o não esqueçamos !

Hoje, 18 de Março de 2020, às portas da Primavera, foi decretado o estado de emergência no meu país.  Procura assim conter-se esta escorrência assassina, de um vírus desembestado que atropela, trucida, aterroriza e mata ... indiferente, indiferente ao céu azul e ao sol dourado que nos ilumina ... indiferente aos sonhos e às vidas, que estão agora suspensos e esperam ... apenas esperam ...

A história vem mais detrás ... Hoje é o sétimo dia do meu isolamento social voluntário.
Mas ela vem ainda mais detrás ...
Chegou num dia em que as notícias davam conta de que em Wuhan, lá no outro lado do mundo, numa China tão distante que nos parecia inalcançável,  um vírus estranho, desconhecido e inesperado, desatara a matar gente.
As sinetas tocaram e a China armou-se até aos dentes. A China reinventou-se, cerrou fileiras, não abriu guardas.
Um país que consciencializou à força da dor, que aquela era a hora e que não havia lugar a hesitações, vacilações ou descaso, reorganizou toda a sua sociedade, em torno da luta que teria de travar-se.
Os médicos, os enfermeiros, todo o pessoal de saúde iniciaram  uma luta sem tréguas, dia e noite. A cidade de Wuhan foi  "encerrada" dentro de um perímetro sanitário de total isolamento.
As pessoas confinaram-se às suas casas, acataram e respeitaram integralmente todas as indicações das autoridades, disciplinaram os seus dias, sem cedências ou facilitismos, com ordem e responsabilidade.
A solidariedade social intensificou-se, a entreajuda instalou-se, a coragem e a transcendência emergiu ... e sobre Wuhan continuaram a voar pegas azuis ...

Morreu muita gente, morreu gente demais, num desafio que parecia não ter fim.  Mas hoje, reabilitada aos poucos a realidade em Wuhan, a China avança agora rumo à Europa fustigada a seguir, com altruísmo, partilha e ajuda.
De lá vieram médicos, de lá veio a voz da experiência mártir, de lá chegam ventiladores para mitigar quem já tem pouco ar a respirar ...

Porque, depois da China, Carnaval passado,  num continente que parecia suficientemente distante para estar tranquilo,  na Europa  os alicerces cederam.  A Itália iniciou uma escalada assustadora de casos de contágio, seguida da Espanha, da França, da Alemanha, do Irão, da Coreia ... e de um número interminável de países.  Portugal também não foi poupado.
A epidemia do Coronavírus, transformou-se em poucos dias, numa pandemia, no seu alastramento à escala do planeta.
Todos os organismos mundiais, nacionais e regionais na área da saúde e em todas as esferas sociais e políticas desenvolveram medidas concertadas, estratégias de acompanhamento, monitorização e combate ao flagelo.
190 mil infectados e mais de 8 mil mortos estremecem o globo. De leste a oeste, de norte a sul, sem respeitar fronteiras, credos, cores, ou línguas.

Portugal enfrenta neste momento, a subida exponencial da curva de infectados. Hoje, caminhamos para setecentos doentes.
Todos os especialistas na área da saúde e em todas as áreas complementares a esta, todas as estruturas sanitárias, todos os organismos sociais na pirâmide do poder e da responsabilidade se uniram, acreditando que haveremos de vencer esta calamidade atroz.
As escolas fechadas, as pessoas confinadas a casa, as ruas desertas, o país parado, as protecções pessoais usadas sem negligência ou esquecimento, uma reorganização activa implementada nas famílias, agora com vivências diárias obviamente mais complicadas de gerir, fronteiras encerradas, controle total de entradas e saídas do país, da mobilidade dos cidadãos, quarentenas voluntárias ou profilácticas  e consciencialização das populações, são medidas visíveis e obrigatórias.

Depois de um estado de alerta, e depois da Reunião do Conselho de Estado ocorrida hoje, o Presidente da República decretou o estado de emergência por um período de duas semanas, passível, se necessário, de ser alargado.

Continuarei a minha história amanhã, e amanhã e amanhã ...
Irei contando o que vejo, o que sei e o que sinto, aqui da minha janela ...

No móvel da entrada da minha casa, repousa a caixa das luvas descartáveis, juntamente com a máscara diária a usar, se necessitar em absoluto, de descer ...
Contar-vos-ei,  do olhar de relance que lhes deito ao passar, sonhando com o dia em que ali já não estejam, por desnecessárias ...
E contar-vos-ei também, como as vidas das pessoas se entrecruzam diariamente, com a proximidade que os nossos dispositivos electrónicos nos permitem ...
E farei as reflexões que me ocorrerem, na expectativa de pelo menos, eu, uma vez na vida, me esforçar para ver o "copo meio cheio" ...
Falarei da solidariedade, da angústia, da solidão, do sofrimento ... mas também das saudades, do medo ... da esperança e da certeza da vitória ...
Falarei do cansaço que às vezes me toma, e também dos afectos, que onde quer que estejam, têm braços compridos e sempre nos afagam ...
Falarei de como passo os meus dias.  De como engano o tempo.  De como tento manter a minha sanidade mental ...
Até porque, como diz este vídeo fascinante que escolhi para ilustrar este meu texto ... " A Primavera não o sabia" ... e sempre virá para nos restabelecer a confiança, a esperança, o sonho ... a VIDA !!!

Até amanhã !

Anamar

segunda-feira, 16 de março de 2020

" ATRÁS DAS GRADES "



Passei dias, passei meses, anos, décadas ... passei séculos e milénios ...
Lendo isto, praticamente me julgo uma lenda.
Ensinei muita gente que foi por esse mundo ensinar ainda mais gente ... e aprendi sempre com os que foram por esse mundo ensinando outros tantos ...
Fui vivendo, olhando, vendo e fascinando-me com tudo o que o Homem atravessou, os desafios que superou, as dificuldades ultrapassadas e os êxitos alcançados ... hoje, neste ano de 2020, do século XXI, no novo milénio ...
Maravilho-me com a sua capacidade de superação, a sua resiliência, o seu afinco, a aposta e a entrega que faz face às ondas alterosas, se o mar está de borrasca.
Encanto-me com a altivez e a coragem com que deita a cabeça de fora de novo, e se ergue outra vez, se a tempestade tenta submergi-lo.  E a convicção, a fé e a força com que se reergue, mesmo que tudo pareça perdido ...

A minha geração é, também ela, uma geração de resistentes.
Lembrava um destes dias, alguns, só alguns marcos históricos que me vieram à mente, e que escreveram a letras de ouro ou letras de sangue, toda a História de uma época.  Assinaláveis momentos, acontecimentos, períodos absolutamente marcantes e determinantes na vida humana.
Desde a chegada à lua em 1969, o domínio espacial com a exploração cada vez mais aprofundada e desenvolvida, projectou o Homem para os domínios do Universo longínquo.
A clonagem com o surgimento da ovelha Dolly em 96, maravilhou o mundo científico.
A fertilização "in vitro" e a gestação em corpos que não o materno, trouxe as "barrigas de aluguer" ( na década de 60 ) como alternativa em dificuldades de gestação para muitas mulheres.
Os testes de DNA, e a descodificação total do genoma humano foram alguns dos passos gigantescos no domínio da Ciência.
Assistiu-se ao desenvolvimento industrial no planeta, com a China a ascender a segunda potência económica.
Em termos sociais e políticos, a criação da União Europeia foi um marco histórico determinante na organização geo-política mundial, a que recentemente o Bréxit, veio dar novo figurino ...
O domínio da tecnologia é absolutamente imparável e de alcance inimaginável. A era da cibernáutica com a criação e desenvolvimento dos computadores, dos smarthphones, tablets e afins ... os iphones, os relógios inteligentes, todo o mundo digital, as redes sociais, a impressão em 3D, a invenção dos drones, toda a forma de comunicação e actuação, à distância apenas de um clique, na instalação de uma aplicação nos nossos dispositivos ... as redes wifi, as vídeo-chamadas, as tele-conferências entre outras, são invenções inestimáveis ao serviço do Homem.
Na Medicina igualmente se travaram lutas e venceram batalhas. Surtos epidemiológicos foram combatidos com novos fármacos, vacinas, testes de diagnóstico e mil outros meios auxiliares.  O HIV, o ébola, a Gripe das aves, o SARS, a pandemia da Gripe A, o dengue, a pandemia do vírus H1N1 altamente virulento conhecida como a Gripe espanhola, a febre das vacas loucas, entre tantos outros surtos, em paralelo com a luta sem tréguas permanente, e também sem fim à vista, frente ao desenvolvimento do câncer.
O muro de Berlim caíu em 89. O declínio do socialismo no leste europeu, provocou a dissolução da União Soviética  e pôs fim à Guerra Fria.
Em Portugal a ditadura também haveria de cair  em 25 de Abril de 74, arrastando com ela a descolonização dos territórios portugueses em África, e bem assim a instauração da Liberdade e da Democracia no nosso país, pondo fim a uma guerra que devastou e sangrou Portugal.
Mas foram e são muitos, os cancros sociais que afectaram e continuam a afectar o planeta.
Várias guerras e conflitos nos atormentaram e atormentam.  Quem não lembra a Guerra do Vietname que durando vinte anos, destroçou os povos daquela zona e varreu mortalmente os exércitos que para lá eram enviados ?
Quem não lembra a Guerra do Golfo ( 90-91 ), a invasão da ainda União Soviética ao Afeganistão ( 79 ), os conflitos perenes no Oriente Médio, as crises sócio-políticas que empurram em direcção à Europa, hordas e hordas de migrantes, por esse Mediterrâneo fora, em busca de um lugar de paz e de Vida ?
Quem não lembra os atentados terroristas e a insegurança social vivida em tantas zonas do globo ?  Quem não lembra a Queda das Torres Gémeas naquele 2001 sempre presente, a partir do qual o Mundo nunca mais foi o mesmo ?
E a grande crise económica de 2008 que levou à recessão mundial de que até hoje sofremos sequelas e cuja memória não se apagará,  particularmente agora, quando, fruto do colapso sanitário do planeta, nova recessão parece já alinhar-se no horizonte ?
E os problemas climáticos que nos assombram o futuro, com catástrofes mundiais, cheias, incêndios, tufões devastadores ... uma panóplia desgovernada de desmandos, que a Terra parece vir cobrar com a justeza de quem se sente vilipendiada e maltratada pelos seus habitantes ?...

Enfim ... isto sou eu a pensar, a reflectir, a concluir, neste dia 16 do mês de Março de um ano que parece amaldiçoado, com todo o tempo do mundo para o fazer, numa auto-quarentena, num isolamento voluntário profiláctico, no Portugal onde começaram agora a chegar os ventos destruidores vindos de leste ... o tsunami mortal corporizado na Pandemia COVID -19.
Estamos num ano bissexto, e diz o conhecimento popular que ou é muito pródigo ou muito travesso.  Este, dispensa outras apresentações.
O Mundo está parado. O Mundo está a viver uma guerra sem fronteiras, sem contenção, sem trincheiras ... sem quartel ! Não há memória de alguma vez termos vivido, sequer estado perto, de algo assim.
Os países estão isolados.  Na Europa a Itália está totalmente devastada, num cenário sem precedentes.  Segue-se-lhe Espanha, com quem Portugal vai encerrar fronteiras, a França, a Alemanha e muitos outros países, espalhados por vários continentes.  Há total contenção e restrição de livre circulação.  Os aeroportos são depósitos de aviões parados.  De este a oeste, do hemisfério norte ao sul ...
Os hospitais não têm já capacidade de resposta, anuncia-se uma ruptura humana e material que parece insolucionável.  As cidades são fantasmas, as ruas estão desertas, as pessoas confinadas a casa.
É um cenário de terror e devastação o que se vive.

Sai-se à rua apenas para abastecimento, quer de géneros alimentares quer de farmácia.  Usam-se luvas descartáveis e máscaras protectoras, esperando que o maldito vírus, que se propaga com uma facilidade e uma velocidade indescritíveis, não descubra nenhuma brecha penetrante, por cada vez que nos expomos um pouco. O afastamento social determina a segurança de cada um .
Portugal conheceu hoje a sua primeira vítima mortal.  Há cerca de 190000 infectados pelo mundo e mais de 7800 mortes já registadas.
Nos hospitais, os técnicos de saúde receiam um recrudescimento de casos.  Muitos deles também já foram infectados.  As famílias estão desarticuladas.  As crianças e jovens estão em casa, com as escolas de todos os graus, encerradas.  Os adultos cujo trabalho lhes permite, trabalham de casa, executam tele-trabalho.
Os outros vão em frente.   Não há como não ir ...
Está no horizonte próximo, daqui a quarenta e oito horas, a aprovação do Conselho de Estado, para a declaração do Estado de Emergência no país.  Nunca tal havia ocorrido antes.

E eu por aqui ...
Fazendo parte de um grupo de risco, devido à faixa etária em que me incluo, estou atenta em permanência a todas as medidas, informações e desenvolvimentos que circulam na comunicação social.  Sofro por todos, em especial pelos meus, obviamente.  Sinto-me encurralada, sem espaço de manobra, sem nada poder fazer para minorar o que se vislumbra no horizonte.
Tenho uma filha na área da Saúde, a trabalhar num dos Hospitais de referência em Lisboa.  Condições precárias, até mesmo a nível de protecção pessoal destes técnicos de saúde...
Vivo apavorada com a hipótese de que ela possa vir a ser contaminada.  Tem uma filha de dois anos e o companheiro trabalha fora do país na Comunidade Europeia.
Não há rede de apoio.  A família é muito pequena.  Não me "deixam" avançar para ficar com a Teresa, se a questão vier a colocar-se.  E a angústia que isso me transmite, associada ao medo que tenho tentado controlar, mas que está a ultrapassar-me, começa a desequilibrar-me física e psicologicamente, e a tornar as minhas noites, num vazio de sono e descanso !

Ao acordar de manhã, neste isolamento voluntário que me confina a este quarto, nesta casa de silêncios, onde apenas os meus dois gatos me acompanham ... longe da família, dos amigos, dos conhecidos ... dos afectos ... afastada dos lugares, com as rotinas comprometidas e com as notícias trágicas a pingar a um ritmo alucinante na televisão, no telemóvel, no computador ... sem um fim à vista ... sem uma melhora que se vislumbre ... sinto-me prisioneira, atrás das grades onde o MEDO, a IMPOTÊNCIA e o DESESPERO me confinam ...
E digo-me  em jeito de tentar tranquilizar-me, racionalizando,  que o Homem sempre se transcende, sempre se reergue e renasce ... mesmo que a onda pareça ser incontível !!! Essa é a sua História de Vida !!!
E que a seguir à tempestade, um céu azul e uma Primavera a despontar daqui a cinco dias, nos aguardam !!!



Anamar

terça-feira, 10 de março de 2020

" SEM AVISO PRÉVIO ... "



Voltei a escrever, no Pigalle.
O Pigalle voltou a ser um espaço quase devoluto em que as pessoas habituais sumiram.  E desta feita, a culpa não é do café, nem do tanto quanto aqui já referi noutros escritos.  A culpa é dos tempos que se vivem ...
O Mundo ficou, sem aviso prévio, em estado de sítio em poucos dias.  Não bastando os abalos sociais, as guerras, as incertezas, a violência e a dor instalados e que fazem parte sempre da nossa realidade ... assim, do dia para a noite, no espaço de dois meses e pouco, as nossas vidas confrontaram-se com angústias, dúvidas, incertezas acrescidas ... com perguntas sem resposta, com previsões sem fundos sustentáveis, com uma precariedade existencial que nos confrontou bem de rompante, com uma fragilidade sem tamanho, pelo facto de sermos apenas, habitantes do Planeta Terra.
Uma epidemia ( à beira de uma pandemia ),  que não conhece fronteiras, grassa como uma labareda incontrolável de este a oeste, de norte a sul, devastando, escarnecendo, restringindo, aniquilando e destruindo as pessoas, as famílias, as sociedades ... o Mundo !

De repente, sem aviso prévio, sem sinal visível, o tornado, o tsunami, o flagelo abateu-se sem anúncio, sem pedido de licença, sem autorização para entrar.  E foi entrando.  Nem sequer de mansinho, mas aos magotes de infectados, de mortos e de apavorados, por todos os continentes já.
E de um dia para o outro, as cidades viraram fantasmas, os países viraram assombrações e as nossas vidas  ficaram assim uma coisa suspensa no ar, sem sabermos bem como gerir algo que desconhecemos !
As nossas existências vivem num limbo estranho, dia após dia, num ganho por cada dia, se não foi nesse ainda, que nós, os nossos familiares e amigos, fomos  apanhados na torrente destruidora ...
Vivem-se sentimentos imprecisos, não identificáveis, de um desconforto sob o domínio de um alarmismo inevitável que parece não se controlar.
Erguem-se as vozes nas áreas da saúde, sociais, governamentais, políticas ... num apelo ao controle e à possível tranquilidade das populações, tentando-se  que as "rédeas" na sociedade, não fujam ao domínio das entidades responsáveis, o que seria um desastre ainda maior, já que o medo, o alarme colectivo e o desnorte, em situações limite, nunca conduzem a bons resultados.
Mas a comunicação social, com a facilidade da notícia ao minuto, bombardeia-nos em permanência, com os números, as estatísticas, e a actualização mesmo das notícias referentes ao outro lado do mundo.
Dá-nos  conta  de  uma  Europa  que  se "defende" a  ferro e fogo  do  avanço de  um vírus  que desde a  China, galga  a  passadas  largas  muros, fronteiras,  marcas, barreiras, céus e mares ...
Um vírus que desafia e exige soluções em tempo record, a toda a comunidade científica, no sentido de se encontrar uma terapêutica, uma vacina, uma medida profiláctica eficaz ... qualquer coisa que trave com urgência, esta onda desrespeitosa de uma calamidade que parece incontrolável.
Temos países em caos organizacional.  Temos países cerrados ao contacto exterior, quer por decisão interna ( no desespero de impedir a total circulação de cidadãos ), quer pelo boicote feito ao seu acesso por parte dos outros países, na tentativa, desta forma,  de uma contenção da epidemia.
Temos ruas vazias, o comércio fechado, os cafés e locais de convívio e encontro, igualmente encerrados.  Há zonas ditas "vermelhas", em que a incidência do risco é superior.  As pessoas remetem-se e trabalham a partir de casa, tentando proteger-se e reduzir o contágio.
Respeitam auto-quarentenas, ou quarentenas sanitárias impostas.
Itália encabeça esta lista, mas a França, a Espanha e a Alemanha sucedem-se, com o agravamento do número de infectados.
Em Portugal, as restrições às rotinas, estão aí.  Relacionamentos sociais restringidos, eventos públicos cancelados, escolas fechadas, teatros, museus e outros espaços igualmente encerrados, provas desportivas e outras,  à porta fechada, e bem assim  suspensas outras iniciativas passíveis de reunir os cidadãos com alguma proximidade.

Não me lembro de alguma vez ter vivenciado sequer algo próximo disto.
Parece que começamos objectivamente já, a viver um estado de sítio caótico que eu imagino viver-se nos países que atravessam conflitos de guerra, miséria e desestruturação social.
Não se conhece o dia de amanhã, não se sabe da real segurança das pessoas  no âmbito das suas necessidades de sobrevivência, das capacidades de resposta na área da saúde, seja em termos de estruturas físicas hospitalares, seja em termos de respostas humanas ... Enfim, começo a sentir-me numa espécie de "gheto" social.
Saio pouco, vou ao café mas não fico, relaciono-me com os que me rodeiam, com algumas precauções.  Faço as minhas caminhadas como sempre, porque as considero espaços terapêuticos de revitalização das defesas e qualidade de vida.  Não utilizo transportes públicos, vou normalmente às compras mas evito proximidades desnecessárias com terceiros.
Não estou assustada por mim.  Estou mais preocupada com a "minha gente"... filhas expostas naturalmente nas suas actividades profissionais, sendo que, por ser enfermeira num dos hospitais de referência, a mais nova vive na "linha de fogo", sem protecções especiais facultadas ao pessoal que aí trabalha, com uma criança de dois anos que frequenta uma creche, e que com o pai a trabalhar no estrangeiro pouca serventia tem no apoio presencial familiar ...
Preocupo-me com os outros três miúdos, frequentando estabelecimentos e graus de ensino diversos e praticando actividades desportivas, com treinos e trabalho de ginásio, onde naturalmente os contactos são muitos e variados ...
Enfim, preocupo-me com a crise económica que todo este caos arrasta, nacional e internacionalmente, com consequências gravosas, altamente penalizantes para o nosso país que vive no "arame", e igualmente em termos da conjuntura mundial ... Tudo isto iremos pagar ... tudo isto nos sairá  do bolso em termos próximos futuros ...
A Síria ficou para trás, o Irão e suas ameaças nucleares, do Brexit pouco já se fala, os migrantes sofrem na carne e na alma mais dores em cima das que detêm ... os nossos escândalos "privados" ( as "guerras" institucionais, os buracos económicos, as corrupções e a escandaleira da justiça ... até as crises futebolísticas acaloradas que rendem semanas de entretenimento ... ), de Trump e suas enormidades, de Bolsonaro e seus alarvismos, das injustiças sociais confrangedoras e gritantes ... da fome, da miséria, até das alterações climáticas, o Homem abriu um parêntesis e tenta unir-se em torno da causa única : salvar a Humanidade ...

O corona vírus chegou num belo dia do fim de 2019, em Wuhan na China, mas já alcançou protagonismo e capacidade de aterrorizar e fazer tremer até as maiores e mais fortes potências mundiais !
Afinal, o ser humano é efectivamente um grão de poeira face àquilo que não domina, não controla e não conhece.
Ao ser humano resta neste contexto, experimentar e exercitar um desafio que talvez nunca lhe tenha sido colocado tão prementemente na era moderna : a solidariedade, a partilha, o trabalho grupal, a união de esforços, a entreajuda, sem cor, sem raça, sem língua, sem fronteira ... em torno de uma causa comum ... salvar a sua espécie !!!



Anamar

domingo, 23 de fevereiro de 2020

" POR AÍ ... "





Tarde ensolarada de mais um Carnaval ...
Aí está uma época do ano e uma efeméride que sempre detestei.  No meu senso de humor não encaixa ter que me "divertir" quando o calendário assim o decide.
Mas hoje o dia foi absolutamente generoso com os foliões, com temperaturas de franca Primavera, embora ainda tenhamos um mês de Inverno pela frente.

O Carnaval é sobretudo para as crianças  que, seja qual for a fatiota que lhes inventem, ficam felizes e eufóricas, na magia de uma personagem encantada.
Relembrei inevitavelmente os anos aqui em casa, com duas para mascarar, nos tempos em que ainda não existia a panóplia de oferta extremamente variada, criativa e baratinha, propiciada pelas lojas dos chineses e afins.
Os fatos de então, eram confeccionados ( o que era uma bela de uma chatice ), ou alugados, o que obviamente não era para todos os bolsos.
A escolha não tinha muita margem de variação ( sempre se tentava que no ano seguinte se retomassem os modelitos já passados, com a inerente resistência por parte de quem os envergaria ... 😃😃😃 ).
Havia que rentabilizar o mais possível o trabalho e o capital ... ( rsrsrs ).  Assim, a minhota, a sevilhana e as fadas, eram coisa certa e segura ...
Depois passava-se à epopeia de vestir, de pentear adequadamente e de maquilhar.
Enquanto que uma das minhas filhas desejava, suportava e participava mesmo, na "construção" da figurinha, não reclamando e prestando-se a todas as facécias necessárias (cabelos ripados, palha de aço na cabeleira para segurar a peiñeta, e imobilidade quase total para que a pintura saísse a preceito ), a outra quase tinha que ser manietada para lhe conseguir fazer qualquer coisa.  Fugia, não queria, esquivava-se o mais que podia.  Era um cansaço e uma prova de esforço, conseguir sair incólume de tal odisseia !
Hoje, tem uma filha com idade para as mesmas tropelias.
E também a mãe "corta um dobrado" para a convencer, quase ingloriamente, a deixar pôr a bendita fatiota e prender as asas de borboleta, ou a bandolete das antenas no alto do cocuruto ... o máximo permitido ... ( rsrsrs )

Nessa altura, o Carnaval ainda tinha sabor a vida, a brincadeira, a boa disposição.
O tempo passou.  Os mais velhos ignoram as palhaçadas da época.  Dezoito, quinze e doze anos conferem-lhes o "estatuto" de gente muito crescida e séria ...
Resta a "pitorrinha" de pouco mais de dois anos e meio, com quem, como disse, o sucesso não parece ser muito !!!

Eu agora ando assim.  Não sei se serei só eu ( penso que não ), para quem a vida se norteia por revivalismos de tempos passados, ou por uma afobação sentida e urgente, de esgotar tudo aquilo que ainda possa, enquanto possa.
Uma vida feita "às pressas", como se fosse acabar-se amanhã ... e uma vida de lembranças e recordações, boas e más ... sempre gratificantes, porque o são da minha história.
A fragilidade da existência, a efemeridade da mesma, a precariedade dos tempos e a corrida vertiginosa dos dias, assustam-me e pressionam-me.  As vinte e quatro horas voam, literalmente.  Levanto-me tarde, é certo, o que consequentemente as encurta.  Mal tenho aqui o sol a inundar-me, frente à janela, já daqui a pouco estou a descer os estores, porque o céu  laranja lá longe no horizonte, me anuncia que mais um dia está a findar ...
Nada disto é obviamente saudável.  Nada disto deveria ser condicionante das nossas vivências diárias.  Afinal a vida segue indiferente, angustiemo-nos ou não.  E tudo será o que tiver que ser, quando tiver que ser !...
O mundo é cada vez mais um lugar perigoso de se viver.  Viver, é cada vez mais uma condição humana, exponencialmente de risco elevado...

Cerca de duas mil e quinhentas pessoas morreram já, com a pandemia que se alastra indiferente, neste barco de casco disfarçadamente roto, que é o planeta.  O medo instala-se e grassa.
Não adianta, dizem.  Sabemo-lo bem !  Afinal, como estancar ou refrear  num mundo de globalização, a circulação permanente, incontida e fácil das pessoas e dos contactos ?!
Assim, a juntar às incertezas que se vivem, inerentes às dificuldades experimentadas por todas as realidades existentes a nível pessoal, familiar e social ... a juntar ao horror dos conflitos generalizados, das guerras instaladas, dos ódios, da fome e das perseguições ... a juntar às mais disfarçadas agressões a que o ser humano é sujeito em permanência ... à constatação angustiante indiferente e doída da degradação do planeta, vítima do descaso e da loucura de alguns ... a juntar a tudo isto, digo, como se um castigo viesse redimir tanta ignomínia, como se se fizesse um qualquer acerto de contas no Universo ... como que um cerco se fecha, e as doenças acrescidas àquelas que já nos fustigam, amarguram-me, intranquilizam-me, assustam-me, e apavoram mesmo os meus dias ...

Não  será  preciso tanto, dirão.   Afinal,  para  se  morrer  basta  estar  vivo ! - Velhíssima  máxima ...

Nos últimos dias têm partido figuras públicas que, por o serem, não nos passam despercebidas.  Indivíduos que também escreveram, à sua maneira, a História do nosso país.  E, apesar de para mim representarem apenas isso ... o facto de deterem em si, o protagonismo do enriquecimento da nossa realidade nas mais variadas áreas, culturais, sociais e políticas, com o contributo que nos legaram ... sempre me sinto empobrecida, nostálgica e interrogativa com o seu desaparecimento ... como se o mesmo fosse um processo contra-natura, despropositado e ilógico ...
Afinal foram meus contemporâneos, são meus "conterrâneos" e responsáveis também, por um acréscimo e uma valorização integral dos meus conhecimentos, da minha personalidade ... da minha individualidade enquanto gente, aqui e agora nesta Terra !...

Bom, não alongarei mais a escorrência dos meus estados de alma ...
Hoje tratou-se tão somente disso mesmo ... um mix aleatório, um fluir solto, desconstruído, sem elaboração prévia ... sem linha ou estrada previamente decidida.
Simplesmente uma torrente a esmo  pelo meio dos escolhos que me atormentam, das interrogações que me coloco, das perguntas insolúveis, das respostas silentes às dúvidas audíveis ... Exactamente como me foram chegando ...
Por aí ...
Não mais ...

Anamar

domingo, 16 de fevereiro de 2020

" A ESPERANÇA AINDA MORA EM WUHAN"


 REQUIEM  PARA  WUHAN




Hoje foi um domingo de sol em Wuhan.

Foi a esperança que mo disse.  A doçura de um sol frouxo penetrou  pelas vidraças veladas, fechadas há muito, na reclusão de quem foge ao horror lá de fora.
Sente-se o silêncio da condenação dos condenados, nos hospitais, nas casas ... nas ruas ...
Experimenta-se o medo ... o pavor de quem foge aos tentáculos monstruosos que pairam por ali ...
Agoniza-se de terror pelo ar que se respira, pela mão que se toca, pelo monstro gigante que espreita em cada esquina ... e emudece-se sepulcralmente ...
Percebe-se a exaustão dos que lutam, dos que se excedem e se ultrapassam na ânsia de chegar primeiro.  Antes dela ... da morte !

Mas a esperança ainda lá vive.
A esperança dos que se sentem abençoados pelo simples facto de amanhecerem, por cada dia.
A esperança dos que se sentem escolhidos, só porque, mesmo através da vidraça, podem ver o verde que ponteia naquela cidade amaldiçoada e mártir, de onze milhões de penitentes..
Uma planície aluvial de colinas, lagos e lagoas, antes pujante de vida, hoje o epicentro infernal de mais um descaso atroz do destino !...

E o sorriso ...
O sorriso dos que ainda conseguem sorrir ... 
 ... só porque em Wuhan  há pegas azuis,  que não desistiram de gorgear e de enfeitar hoje, ainda, um céu que foi azul também...

Anamar 

" REGRESSO ÀS ORIGENS "





Fui ao Alentejo.

E o Alentejo está lindo neste fim de Inverno, início de uma Primavera que já se apruma a chegar.
Tem chovido alguma coisa e a Natureza que é frugal, desponta em força, exuberantemente verde, prometendo para breve, o multicolorido das flores que começam a anunciar-se pelos campos fora.
Os pássaros chilreiam, em tempos de acasalamento. E volteiam, em afobação de ninho.
A vida brota, o ciclo reinicia-se e aquele chão generoso não se esquiva nunca.
As cegonhas empoleiram-se,  geração após geração, no ninho que as viu nascer, agora que notoriamente já não emigram para o norte de África.  O clima, a garantia de satisfação das necessidades alimentares e uma segurança nas vidas, fixa-as na paz de habitações colectivas, em verdadeiros "condomínios"  pelos postes de alta tensão acima, à beira das estradas.
Depois, o gado pastoreia placidamente e é uma paz para a alma ouvir-lhe os chocalhos, o balido das ovelhas, o ladrar dos cães ... a brisa que perpassa leve e solta pela charneca ...
e  os sinos dos campanários longínquos, dando as horas numa lentidão arrastada, numa paz modorrenta, como as sombras doces e longas, projectadas por um sol manso e também ele meio dormente ...
E o silêncio ... aquele silêncio que é e não é, que se se escuta e adormece, em cumplicidade com as memórias e com a presença "ainda", dos que já partiram mas que sempre estão por ali ...

E lá estão as gentes, as vozes cantadas, a solicitude nas respostas, se uma pergunta lhes é feita ... Sempre ... como sempre, ao longo dos tempos ...
Encontrei os mesmos velhos, na ociosidade da pirisca esquecida no canto dos lábios, nos bancos de pedra do largo da Matriz ...
Velhos do asilo, a maioria ... que procuram conforto no calor dos raios do sol, e paz na certeza do reencontro diário ...
Senti-lhes as mesmas conversas lentas ... as mesmas de há cem anos.  As mesmas de toda a vida.  De todas as vidas ...

E aquela terra, não nega que é a minha terra, deserdada que estou na cidade impessoal.
O sangue fervilha logo que os cheiros, os sons, as cores e o olhar  ( que de repente ganha asas e espaço para se alargar além-horizontes ) descomanda e ciranda livre e solto, como eu o era, nos tempos de pai, mãe, avós, tios e primos ...
Todos já foram indo, abrindo caminho ao que há-de ser, quando for ...

E as pedras da calçada  ainda falam de mim.  Mesmo que as tranças já não existam. Mesmo que da casa mãe, só existam as paredes iguais, esvaziadas e silenciosas, sem alma ... porque são outras, as mãos que a detêm ...
E as histórias também, porque essas, são perenes, porque são histórias de Vida !

O largo, dos jogos da macaca, das brincadeiras de roda, da "linda falua", das  covinhas  dos berlindes ( tampas dos pirolitos mantidos no fresco do poço, revestido de avencas verdes e frondosas, para adoçar as refeições ) ... está lá, intocável, parece.
É um largo de memória e saudade !...
Da loja do Zé Marovas, com a exposição de tudo quanto lá se vendia  pendurado em pregos, na rua, parede fora, desde as pás de lixo em zinco, às vassouras, aos alguidares de vários tamanhos, às panelas, às pequenas alfaias agrícolas, escadotes, canas e pincéis para a caiança, tintas, cal  e tudo quanto a necessidade exigisse ... só existem os pregos, e portas e montras entaipadas há muito ... numa parede de velhice e solidão ...
A barbearia do Zé Francisco, lugar de amenidades, encontros e novidades da terra, também já foi.
A senhora Teresa, das miniaturas em barro para as brincadeiras da raparigada, partiu há muito.
As senhoras Capitoas, frente à casa da avó, onde os queijos frescos, de alavão pessoal, e o almeice que fazia as delícias da minha mãe ... são também uma lembrança distante, apenas.
A menina Sofia e a irmã, solteironas, austeras regentes escolares  já então aposentadas, muito respeitadas e vivendo duas portas abaixo ... sempre paravam pela janela ou pelo postigo ... E havia que serem cumprimentadas, à passagem.  A educação assim o impunha ...
A igreja da Saúde,  igreja das missas do Galo pela mão da avó  embiocada no xaile dos dias solenes, na gélida madrugada dos Natais ... continua a "desvendar-me"  com nitidez, a luz clara do altar, o incenso do turíbulo, o som dos cânticos ecoando, e a imagem do Menino cujo pezinho beijaríamos à saída. "Vejo" tudo claramente ... enquanto a lembrança mo deixar ...

E as horas foram indo ...
Breve, a torre do castelo daria as horas do regresso.  E deu.
Lá longe, a cidade de sempre, nos lugares de sempre, com as pessoas de sempre ... na vida quase sempre igual, requeria que eu voltasse ...




Anamar

sexta-feira, 7 de fevereiro de 2020

" A VOZ DO DONO "


Não sou licenciada em Direito.  Não tenho formação jurídica.  Convivi contudo intimamente, mais de dois terços da minha vida com quem o era, e com quem a tinha.
E tinha-a, nos tempos em que nesta área ainda havia muita gente honesta, séria, capaz, sabedora e escrupulosa.
Depois, a minha linha sucessória deu continuidade a esta senda, com os princípios, os valores, a dedicação, o esforço, a seriedade e o acreditar de quem havia felizmente bebido em boa "fonte".

Assim, sou uma simples cidadã deste país que constata, analisa e reflecte sobre o que se passa à sua volta ... e se indigna ainda, felizmente, com todos os atropelos miseráveis em que vamos tropeçando.
Esta minha exposição  traduz por isso, apenas o meu sentir, a minha análise e o meu entendimento, estando seguramente ferida de imprecisões técnicas que não domino, e logicamente, de rigor de linguagem e conceitos.

Neste momento, e de novo na ribalta pelas piores razões, mais episódios da novela "Tancos" - o desvio das armas nesta unidade militar.
E como cidadã comum que lê, se informa e escuta o que a rodeia, assiste-me o direito à indignação, à estupefacção, e à incredulidade perante o rumo que as coisas entretanto, assumiram.

O tempo da ditadura de má memória, caracterizara-se como em todas as ditaduras, por repressão, arbitrariedades, crimes, amputação das liberdades e direitos dos cidadãos, desrespeito por instituições, valores e princípios que pusessem em causa o regime em vigor na nossa sociedade.
O 25 de Abril de 74, foi a alvorada das nossas existências, repondo finalmente, ao fim de 48 anos, os alicerces do estado de direito !
As liberdades e os direitos individuais foram repostos e consignados na Constituição da República Portuguesa.
A actual Constituição, foi redigida pela Assembleia Constituinte eleita na sequência das primeiras eleições gerais livres no país em 25 de Abril de 1975, data de 1976 e na sua feitura teve um papel  destacado o eminente constitucionalista Jorge Miranda.

Aprendi que num estado de direito, existem consignados na Constituição da República, três poderes, a saber, o legislativo, o executivo e o judicial e que as áreas abrangidas pelos mesmos, deveriam ser respeitadas,  não podendo ser entre si devassadas, violadas e "atropeladas".
Também aprendi, que à luz da mesma Constituição ( documento sagrado ou Bíblia, numa democracia ou estado de direito ), todos os cidadãos são iguais perante a lei, com igualdade de deveres e de direitos.
Acontece que, como sabemos, nada disto se passa.
Neste momento assiste-se a uma vergonhosa, escandalosa e discricionária interferência do poder político sobre as estruturas judiciais responsáveis, primeiro pelo inquérito ( na fase de investigação ) e agora sobre a instrução do referido processo.
Há uma manifesta e objectiva obstrução à isenção que os profissionais de direito (garantes do cumprimento de todos os trâmites julgados necessários e fundamentais para a averiguação e  esclarecimento do processo ), tentam por em prática.
Assiste-se a uma intocabilidade de determinadas figuras públicas, devido à "dignidade" dos lugares que ocupam no quadro político do país.  Refiro-me como é de conhecimento geral, ao Primeiro Ministro e ao Presidente da República, que haviam sido convocados pelo Ministério Público, na qualidade de testemunhas, a prestarem esclarecimentos julgados úteis, importantes e determinantes para a consecução da investigação do processo.
A Procuradoria Geral da República, na figura da sua Procuradora Geral, Lucília Gago, veio de imediato à liça, invocando a não adequação desta intimação, dada a especificidade dos cargos desempenhados por António Costa e Marcelo Rebelo de Sousa, impedindo que esta diligência fosse efectuada.
Baseou a sua fundamentação numa consulta feita ao seu conselho consultivo, e desta forma  tornou-a  numa directiva sobre a intervenção da hierarquia em processos judiciais.
Indicava este parecer, que os procuradores só poderiam desobedecer às chefias, quando estivesse em causa uma violação da consciência jurídica do magistrado, e ainda assim, deveria a mesma ser devidamente espaldada e fundamentada, sob risco de ser levantado um processo disciplinar ao mesmo.
Desta forma, os Procuradores viram-se desautorizados, condicionados, viram os seus poderes coartados, viram as suas consciências violadas e a sua autonomia questionada, tornando-se  simples marionetas nas mãos dos seus superiores hierárquicos, abrindo-se assim um perigoso precedente, sem tamanho.
Passaram a ser meros técnicos jurídicos e não mais magistrados, na verdadeira acepção do desempenho das suas funções, caracterizadas sempre por isenção, idoneidade e independência, limitando-se agora a expressar, a traduzir  e a  fazer exercer determinantemente e não mais,  o entendimento dos seus superiores.
Ou seja, a defenderem  inapelavelmente, e tão só, a "voz do dono " !!!

Esta "guerra" aberta e vergonhosa que mostra claramente a intromissão abusiva e inadmissível da esfera política na área judicial, leva-nos ao crepúsculo mais escuro, das liberdades alcançadas na madrugada de Abril, há quase 46 anos.  Leva-nos a memórias de repressão, de silêncios e de opacidade. Traz-nos à memória perseguições, processos persecutórios hediondos, interesses escusos, arbitrariedades e compadrios !!!

Não foi p'ra nada disto, seguramente, que os cravos vermelhos desceram à rua naquela madrugada de ESPERANÇA !!!

Anamar

quarta-feira, 5 de fevereiro de 2020

" O FIEL JARDINEIRO "





Os dias continuam radiosos e abençoados.  O sol não se esquiva, a temperatura é generosa, o céu azula, os pássaros chilreiam e mostram-se saltitantes pelos campos e jardins, onde a erva rebentou em força  com um verde saudável e viçoso, e onde as flores despontam já, com a pujança e a beleza promissora de uma Primavera candente.
O sol faz o milagre.  Aliás, o sol sempre faz o milagre de despertar, colorir e adornar gentilmente os dias que agora nos arquivam a escuridão, a neblina e o frio do Inverno, que apesar de tudo ainda atravessamos.

Adoro a Natureza.  Sempre ela subjaz aos meus escritos, porque sempre ela emoldura e determina os meus estados de alma.  Não canso de o referir, e tenho-a como o bem mais seguro e precioso de que dispomos,  porque ela representa a VIDA ... 
É certa, magnânima, não guarda ressentimento ...
Fascina-me sempre a sua dádiva sem cobrança, apesar dos maus tratos e da insensibilidade do Homem.  Ela não pede, aceita ... não nega, dá-se ... não cobra e não nos falha ...

Aprecio quem a aprecia.  Identifico-me com quem com ela se identifica.  Agrada-me a sensibilidade de quem com ela gosta de se miscigenar, de quem lhe identifica a linguagem e lhe sabe ler os mistérios.
De quem se extasia com um nascer ou um por de sol.  De quem sabe olhar as margaridas selvagens, as azedas delicadas, ou a nudez dos plátanos despidos.  De quem entende, porque escuta, o trinado do melro, o arrulhar dos pombos, o pipilar do chapim ou da pega rabuda ... o grasnido da gaivota que patrulha os penhascos alterosos ou saúda a rebentação da maré baixa ...
Emociono-me com quem se debruça para colher um malmequer dos campos, uma madressilva dos muros velhos, apanhar um seixo dos areais, ou com quem "guarda" a cantilena da rebentação, nas praias ora desertas.  Quem entende a voz do vento, quem lê o recado da tempestade ... quem silencia, para sonhar, no horizonte ...
Enterneço-me com quem planta tomates, pimentos, aromáticas, figueiras, malaguetas, morangos e outros,  em vasos de varanda, e  rejubila com cada um que nasce e cresce, e o acarinha e o trata como se de uma criança se tratasse.
Extasio-me com a dádiva de amor posta na recuperação das espécies doentes ou moribundas, tantas e tantas vezes irremediável e desprezadamente largadas no lixo ... por nós, aqueles que não as "sentem" como seres vivos clamando por ajuda ...
Extasio-me com quem ajardina encostas inóspitas de falésias junto ao mar, só porque nelas se encerram vidas, histórias e destinos ...
E admiro profundamente quem ama os animais, sobretudo aqueles a quem a desdita jogou em futuros  tortuosos e indefinidos ... Quem os ajuda, os defende e os protege ...

Conheço alguém assim.
E só consegue ser assim, quem tiver um coração do tamanho do mundo e uma alma aberta, disponível, pura e "naïve", capaz de deixar albergar em si tudo e todos que o precisarem ... Quem tiver uma sensibilidade ímpar e desperta,  na arte da "jardinagem da vida" ...
Já lhe chamei  "o homem das rosas", e sobre ele escrevi um conto, há anos atrás.  Hoje, chamo-lhe o "fiel jardineiro" ... e sinto-me privilegiada por, de quando em vez, também eu ser uma humilde "plantinha" do seu jardim ...



Anamar

segunda-feira, 3 de fevereiro de 2020

" DE TUDO UM POUCO "



O dia amanheceu radioso, aliás já ontem o seu semblante foi primaveril.
Um sol luminoso e quente, num céu completamente límpido e translúcido, emoldurou estes primeiros dias de Fevereiro.  Afinal, Fevereiro igual a si próprio ... sempre nos presenteia com estes dias que parecem anunciar uma Primavera com pressa de chegar ...

Ontem, a efeméride do costume ... dia de Nossa Senhora das Candeias,  Nossa Senhora da Candelária, Nossa Senhora da Apresentação ou Nossa Senhora da Luz ... conforme o local que A homenageia.  Este ano, com uma data interessantíssima :  02-02-2020, ou seja, uma sequência numérica chamada de palíndromo.
Este conceito que não se aplica apenas aos números, respeita a uma palavra, frase ou qualquer outra sequência de unidades que tenha a característica de poder ser lida de igual forma, da direita para a esquerda, ou em sentido contrário.
 "Ovo", "reviver", "luz azul", "ame o poema", são exemplos de palíndromos.
Na nossa travessia,  tivemos  já o privilégio de vivenciar duas capicuas :  os anos  1991 e  2002, o que é raro acontecer. A data de ontem, constitui uma perfeição global !

Bom, neste domingo "perfeito", a Senhora da Luz chegou-nos com um tempo gloriosamente luminoso ... talvez por isso mesmo !  E acresce, que consequentemente  e pegando no ditado popular, teremos ainda um Inverno para chegar ...
Sempre a minha mãe lembrava : se o dia da Senhora das Candeias "rir", o Inverno está p'ra vir, e se ele "chora", temos o Inverno fora !...
Sempre a minha mãe e os seus "ditos" !...

Hoje fiz a minha caminhada, embrulhada na mornidão deste solzinho de Inverno, doce e manso.
Por todo o lado onde o verde ainda só se anuncia longinquamente, os pássaros volteiam, saltitam e trinam numa alegria esfuziante.
Afinal, Fevereiro é mês de acasalamento e nidificação, Março mês de posturas e nascimentos, ou não albergasse em si a chegada da estação da renovação e da continuidade ...
A Natureza é sábia e nunca erra !

E a Natureza é um pote de alimento para a alma, um boião de néctar para o coração !
O ser humano experimenta em si, uma força e um poder,  uma esperança sentida e vinda nem se sabe de onde, e uma claridade insuspeita que nos inunda, como uma onda que se espraiasse mansamente num areal deserto ...
De repente, da escuridão e das trevas dos meses de recolhimento que atravessamos, surge o dealbar de uma nova aurora, de um renascimento que nos anima e "recarrega" todas as baterias do nosso ser !...
Era então que a minha mãe dizia que "ficamos com vontade de fazer coisas" ...  E fazer coisas, para ela, era desencadear uma faxina feroz na casa, de fio a pavio, que ninguém amansava ...
Nunca entendi muito bem estas "realizações" que deixavam a minha mãe exultando de felicidade !... ( rsrsrs  😄😄😄 )
Não lhe herdei, de facto, estes rompantes efusivos que tornam felizes as pessoas simples, as que não exigem demais da vida, as que se realizam e pacificam com o que os dias lhes vão dando ...
São seres de paz, de bonomia, de aceitação ... seres não tumultuados, e de bem com a existência !...

Ontem tive comigo, toda a tarde, a minha benjamina.  A Teresa, a caminho dos três anos que completará em Junho, é de facto uma bênção para quem com ela convive ...
Pequenina de estatura, tem um desenvolvimento físico mas sobretudo mental, que me maravilha.  Desde muito novinha no infantário, no que considero ser uma mais valia no desabrochamento intelectual de qualquer criança, estimulando-lhe aptidões fundamentais quer individualmente quer na relacionação grupal, a Teresa é uma criança sem inibições, com uma desenvoltura e um à-vontade espantosos, extrovertida e com uma linguagem perfeitamente escorreita e rica, para a pouca idade que detém.
Tem um discurso lógico, claro e rico em expressões.  Divide e partilha.  É calma e sempre bem disposta.  Não é uma criança birrenta, pelo que é fácil o convívio com ela.  Ouve os adultos, aceita o que se lhe diz e expõe as suas ideias enriquecendo-as com uma expressão gestual que me fascina ...
O convívio quase exclusivo com a mãe, já que o pai trabalhando no exterior passa grande parte do tempo fora, propicia-lhe e estimula-lhe uma ligação íntima  com esta, muito forte e cúmplice, que nos mostra uma menina parecendo ter bastante mais idade.

Já há muitos anos que não acompanhava de perto o crescimento de uma criança.  Antes dela, o meu outro neto mais novo, tem já doze anos, e acho que me escapou muito do seu desenvolvimento.
A vida tem períodos e fases mais ou menos complicadas, em que as prioridades, por vezes, não nos são generosas ...
Agora a Teresa, chegada quase nos quarenta anos da mãe, e em que eu talvez já não acreditasse muito que um novo elemento nos viesse enriquecer a família, é uma descoberta permanente ... um enamoramento e um fascínio constantes para mim, o facto de poder testemunhar o seu percurso promissor, nestes tempos tão conturbados e descoloridos !...

Desculpem um pouco da imodéstia.  Não o é, na verdade.  Sinto-me sim, uma "sortuda", uma privilegiada e abençoada mesmo, por a vida ainda me presentear com a possibilidade da descoberta do milagre que é a chegada ao mundo de um ser tão indefeso, tão frágil e tão vulnerável ...  e poder testemunhar dia a dia, a sua busca pelo seu lugar no mundo !
De alguma forma, sente-se  uma realização muito grande, uma imensa expectativa, e como que uma gratificação e um sentido objectivo para a continuidade, também, das nossas existências nesta Terra !...

Anamar