terça-feira, 30 de maio de 2023

" DA VIDA E DA MEMÓRIA "

 


O dia foi de sol e calor.  Ironicamente, na véspera, terça-feira 23 fizera um tempo agreste, com chuva e trovoada.  Um tempo de recolhimento, diria eu.
Mas a quarta-feira, cinco dias depois que a Emília nos deixara para sempre, a manhã era azul, florida, radiante de luz.  O tempo parecia querer despedir-se dignamente de alguém que fora embora cedo demais. 
O tempo parecia querer prestar as honras devidas a quem, injustamente acabara de nos deixar .

Era um "ser de luz"... Seja isso o que for, sempre assim a recordarei.  Uma mulher que partilhou a sua vida profissional comigo, colegas da mesma escola para mais de trinta anos, embora em áreas programáticas diferentes.  A Emília leccionava História, eu, Física e Química.
Foi uma mulher de conciliação, de concórdia, de humanidade, com uma bonomia estampada no rosto, sempre iluminado, sorridente, feliz. Tinha a doçura de um sorriso para todos, e com todos.
Uma postura que sempre manteve, de educação, de simplicidade, de verticalidade, de isenção, de competência, fez dela uma "senhora", pessoal e profissionalmente reconhecida pelos seus pares e por toda a comunidade  escolar.  
Sendo, como dizíamos, da geração dos professores mais antigos da escola, sempre foi uma figura de referência, uma personalidade consensual.

A Emília nasceu no Brasil, em S.Paulo há setenta e seis anos acabados de completar.  Tendo-se licenciado em História pela Universidade de Coimbra, passou, como professora Coordenadora da Casa da Cultura Portuguesa na Universidade Federal do Ceará, em Fortaleza no nordeste do Brasil, um período da sua vida que sempre, pela forma como o referia, se pressentia ter sido muito feliz, saudoso, e realizado.  
Os colegas e amigos com quem privou então, também o referenciam como "tempos fantásticos, irrepetíveis, de memórias indefectíveis".
Por essas paragens a Emília deixou família e amigos ímpares, a quem uniam laços de cumplicidade,  afecto e uma ternura que transpareciam das suas palavras e recordações.
A cultura brasileira, os seus escritores, poetas e artistas sempre a acompanharam ao longo da vida; a vida social e política da sua terra, nunca foram ignoradas nem a elas foi estranha, em circunstância alguma.
Coimbra, sua referência de juventude, mas também Itália que conhecia profundamente de norte a sul e que amava de coração, Grécia, Turquia e tantos outros destinos que privilegiava nas viagens que realizava, foram marcos na sua vida. 

É fácil elogiar-se quem já partiu ... quem já não existe no nosso plano terreno.  Costuma dizer-se que toda a gente passa a ser de excelência, se já nos tiver deixado.  Infelizmente o ser humano tende a pautar-se dessa forma na avaliação dos que já não têm voz...
Em nada disso a Emília se enquadra.  Por mérito, valor, prestação de vida, partilha, sentido de justiça ... humanidade, mas também humildade, disponibilidade e amor ao seu semelhante, fizeram dela um ser GRANDE ... e por tudo isso é da mais elementar justiça e não mais, que eu aqui lhe devote o meu profundo reconhecimento, a minha gratidão e reitere o privilégio que tive, por ter sido merecedora da sua amizade em vida, e pelo legado deixado pela sua memória !...

Até sempre Emília !  Talvez por aí nos voltemos a cruzar.  Até lá, descansa em paz !!!

Anamar

domingo, 21 de maio de 2023

" É isto assim ... "

 


Nesta tarde insípida, em que o sol que foi brilhando sumiu por detrás de nuvens indefinidas e informes que encimam este céu que também já não é azul, uma outra vez estou sentada frente à janela de sempre.
Donde se avista o casario incaracterístico, também ele insípido como a tarde que se fez, donde se olham  pores de sol de belezas invulgares, donde as histórias da minha vida sempre desfilam ao sabor das memórias ... sinto nos últimos tempos uma estranheza para comigo mesma, que me desconhece frente aos meus próprios olhos.
Parece ter ficado muito lá para trás alguém que sendo eu, se perdeu numa curva de estrada dobrada, sem volta ou retrocesso.
Não sei de mim, não me encontro mais, sou um corpo sem invólucro conhecido.  De palpável sobrou apenas um desconforto imenso, como se eu ocupasse uma cápsula indevida, uma fatiota desajustada, vivesse um ar irrespirável...
Não me sei explicar.  Não me entendo mais, apenas arrasto um cansaço absurdo entediante e desinteressado.  Como se estivesse ébria, narcotizada, doentiamente sonolenta ... anestesiada mesmo, sem capacidade reactiva, sem alento ou vontade.

Pergunto-me se estarei doente, fisicamente falando, porque doenças da alma sempre as arrasto ao longo da vida.
Análises feitas, busca não sei bem do quê, sem vislumbre de coisa nenhuma. 
À minha volta, um emaranhado de situações exaurem-me as forças e a vontade, coartam-me as reacções.  Anseio pela hora do sono como de remédio milagroso para este fatigante mal estar crónico, este desinteresse generalizado pela vida, esta indiferença e imobilismo face a tudo o que me rodeia.
Em suma, estou farta de mim mesma ... e não consigo mexer uma única peça, neste xadrês doentio e sufocante ...

O Chico, companheiro de todas as horas há mais de década, adoeceu, também ele de maleita crónica que o acompanhará pelos tempos em que por aqui ainda andar.  Uma diabetes descontrolada e limitativa inviabilizou-lhe o que de mais precioso os gatos têm ... uma liberdade, uma agilidade motora, uma capacidade e uma alegria de vida inesgotáveis. Arrasta-se, mais do que anda. 
O Chico já não me espera à porta tentando esgueirar-se até à escada, já não "se mete" com a vassoura, desafio provocante que o atormentava irresistivelmente, já não se espreguiça ao sol junto às vidraças, porque simplesmente as não alcança.
Agora, o mundo do Chico é por certo mais imaginado do que real, e o seu horizonte feito das paredes que lhe confinam os espaços.  O Chico vive no chão, vive das nesgas de azul que cá debaixo se divisam olhando para cima, e com os raios de sol dançarinos que ousam atravessar os lugares onde passa o tempo deitado ...
O Chico é um simulacro de si próprio ! 
A escuridão debaixo da cama é guarida segura, e lá passa muito tempo do seu dia.

Num hospital, uma colega e amiga de toda a vida aguarda apenas exalar o último suspiro para finalmente ter alguma paz ... supomos nós. 
Também ela que sempre conheci como uma mulher lutadora, vertical, impoluta, de um trato humano fantástico com toda a gente, sempre sorridente e bem disposta, com um rosto aberto, fresco, amigo, soçobrou à doença maldita das últimas eras.  
E ela que sempre foi o que eu chamaria um "espírito de luz", seja lá isso também o que for, é não mais que um pequeno e frágil farrapo humano, vegetal, silente, morta em vida, à espera da compaixão do destino ou de quem distribui as horas, os minutos e os segundos a cumprir, para expiarmos as nossas faltas ... 
E é então que uma e outra vez se me coloca a problemática do acesso à morte medicamente assistida, e o direito de que todo o ser humano de posse das suas faculdades mentais deveria dispor para nestas situações limite, decidir do destino a cumprir pelo seu próprio corpo.
É duma violência atroz assistir-se a esta degradação arrastada, crescente e irreversível dum ser que já desistiu, que já se desenganou, que claramente conhece o seu próprio quadro clínico e que perfeitamente, enquanto ainda teve capacidade de observação e análise, soube o que escolheria se pudesse : partir em paz dum mundo de que se encontra totalmente desligada já, onde inclusive a sua dignidade como ser humano já sucumbiu sob a avalanche incontida dum tsunami impiedoso !
O acesso à expressão livre da sua vontade, de poder fazer do seu corpo o que legitimamente entender, é-lhe ainda vedado na sociedade hipócrita em que vivemos, em que falsos moralismos e pseudo-princípios religiosas, condicionam o livre arbítrio de cada um, ainda que de posse das suas faculdades mentais.
Acordo de noite e pressinto por perto a asa negra e monstruosa da morte, o seu peso rondando, e olhando o relógio, formulo o desejo de que o calvário que vive, pudesse ter terminado.
Este peso na mente e este sufoco no coração não me estão a fazer nenhum bem ...

Tudo isto é excessivamente doentio, tenebroso, esgotante.  Tudo é demasiado cinzento e obscuro, e tudo isto me confere um estado de espírito insalubre que estou a custar a gerir.

Na mata a vida é pujante.  O verde e o colorido das flores explode em cada canto.  As abelhas retornaram e azafamam-se na recolha dos pólens, as aves, de criações recentes, inebriam nos gorgeios aprimorados e as borboletas de variadas cores, volteiam pelos caminhos.
Tudo continua exactamente como tem que continuar, porque não há razão ou motivo para a Natureza estremecer por mais que o ser humano o faça.
Olho as árvores, algumas imponentes, altaneiras, de troncos atestando a sua já respeitável longevidade, que desafiam os céus, subindo mais e mais as suas copas e projectando-as por forma a que o sol as abrace.  Ali estão, a pé firme, porque o seu destino assim o determina.
Olho-as e penso ... o que são dez ou quinze anos no percurso de vida duma árvore ?
Quando eu por ali já não passar, quando os meus olhos já as não olharem, quando as veredas se esvaziarem da minha presença, eu, que conheço cada recanto daquela mata ... ainda assim elas ali continuarão, talvez com mais folhagem por cada ano, projectando mais sombras nos caminhos, talvez com mais ninhos nas ramagens por cada Primavera que se anuncia, talvez continuando a cantar a canção doce da brisa que sussurra ao passar. 
Os gatos da colónia ... outros gatos por certo, continuarão com vida mansa na segurança do abrigo.  Os patos ... outros patos, perpetuarão as gerações que ali nidificam.  Os cães de quem lá vai, continuarão a tomar banho nos tanques ... porque todos gostam, e não precisam sequer de se passarem a palavra ...
Tudo como tem que ser, porque não há nenhum motivo para que o não seja ...

Enfim, quem me ler perguntará do protagonismo que me confiro ... da importância que me atribuo, da soberba com que falo e da prosápia com que me coloco no mundo ... como se eu fosse  alguma  coisa mais  do  que  um  ínfimo  grão  da  poeira  daquelas  veredas  que  tanto  amo !!!

Anamar

Nota : Este post tem estado a ser escrito, sem finalização, já há tempo razoável !

terça-feira, 11 de abril de 2023

" VIDA "


Tenho pra mim que normalmente não dá bom resultado chafurdar no que a vida foi plantando lá para trás.  Fotos, escritos, papéis, pequenos objectos ... enfim, tudo o que teve significância e não tem mais, ou pelo menos não tem aquela que teve. 
Contudo, remexer em tudo isso não é mais do que uma incursão no tempo, que quase sempre nos deixa a perder por representar na maior parte das vezes, épocas já desfocadas, descontextualizadas, de memórias inquinadas, creio, pela distância e pela erosão que esse mesmo tempo nos foi deixando na alma e no coração.
Quando tento este exercício insano e desaconselhado, quase sempre me arrependo depois,  amargamente.  É como aquela velha constatação de compararmos o nosso estado de espírito antes e depois da ida a algum lugar que amámos.  À ida tudo é promissor, é como se fôssemos reencontrar tudo o que deixámos, exactamente nos lugares e no contexto em que deixámos ... para depois acabarmos  percebendo a dor da fraude sentida pelo tamanho do equívoco em que embarcámos ... por tontice, ingenuidade ou mesmo insensatez !...
E de nada valeu a pena ... de nada valeu o estrago e o amargor deixado, afinal !

A Páscoa passou. Ontem foi o domingo que encerra as celebrações.
Hoje na mata tudo continuava igual.  Os pássaros que elaboram verdadeiros e emocionantes concertos de cantoria, ou não estivéssemos numa Primavera generosa de dias bonitos, temperaturas elevadas e flores ... miríades de flores engalanando os arbustos em profusão ... não sabem que a Páscoa passou, não sabem que ontem foi Domingo de Páscoa, ou sequer que foi domingo ...
O que interessaria a um pássaro saber qual o dia que vivencia ?  A natureza, a vida, a sequência simples dos dias e das noites, o nascer e o por do sol, o dormir e o acordar, o instinto apenas, a orientá-lo no caminho da sobrevivência, é quanto basta.  Ele chega, cumpre o destinado e parte.  O seu desígnio biológico justifica-lhe a estadia ... não mais !
E nós ?  Nós "somos" ... hoje.  Amanhã já só dirão que "fomos"...
Também nós chegamos, cumprimos o destinado e partimos.  Partimos com a indiferença do Universo.  Partimos sob a pequenez, a insignificância e a irrelevância da nossa dimensão ... menos que um grão de areia no contexto da existência ... Partimos com o silêncio indiferente de tudo o que nos rodeou e não rodeia mais  ...
E vamos ainda "viver" por uns tempos ... se as memórias forem longas.  Depois, "fomos" apenas ...
Fomos aquele rosto imobilizado e gravado na película que ficou na moldura daquela mesa ... fomos aquele texto que escrevemos e ficou perdido no fundo da gaveta, aquelas palavras que expressámos, cujo eco também se vai esbatendo ... fomos o riso que talvez alguns ainda lembrem por uns tempos, o dichote e o humor sarcástico que nos acompanhava ... 
Depois fomos o que fizemos ... se fizemos alguma coisa que ficasse ...
Não mais !...

A Teresa olha longa e pesarosamente o Chico, que se arrasta, cujas patas não suportam o peso ou os movimentos do corpo.  O Chico que come deitado e que permanece deitado todo o tempo, ainda que olhe cá de baixo, do chão, o céu azul que a vidraça acima dele lhe desvenda.  O Chico que já só salta para os lugares que eram seus, em memória ... em desejo ... em sonhos ... porque de seu, o Chico vai tendo cada vez menos !
O Chico agora mia quando está só.  Não quer afastar-se de mim.  Não era hábito.  E esconde-se numa caixa que, como uma toca dissimulada e escura, o aninha.  O Jonas cheira-o insistentemente.  Será que a morte tem cheiro ?! Não sei.  Mas a sua presença por aqui, anuncia-se e assusta ...
A Teresa olha longa e pesarosamente e diz : " O Chico está quase a ir para a estrelinha "...

Hoje também, há cinco anos atrás a minha mãe buscou outra dimensão .  Mais uma estrelinha  que enfeitou o nosso firmamento.  Também de lá a Teresa garante dialogar com ela ...
Só que, lamentavelmente, somos crianças por tão pouco tempo nas nossas vidas !...

Partiu, partiu discretamente como sempre foi a sua vida, partiu sem queixume ou estardalhaço no silêncio íntimo dos seus dias ... partiu com a noção absoluta do descaso com que o ciclo da existência nos trata ... uma simples e anónima partícula da poeira em que se transformou ... matéria física que somos ... 
Não mais !

E cada dia que passa me faz mais falta, cada dia que passa lhe sinto mais e mais a ausência, cada dia que passa a minha orfandade se torna mais e mais absoluta e gigantesca !  
Cada dia que passa o silêncio que deixou me fere ensurdecedoramente ...  

E a vida é isto.  Viver é mais ou menos isto ...
Não mais !...

Anamar

sexta-feira, 24 de março de 2023

" SONHO BOM "

 


A Primavera entretanto chegou.  A Teresa já me vinha dizendo, nos seus convictos cinco anos, que ela "estava à porta".  Os dias ensolararam, sem dúvida as temperaturas subiram e já começamos a sacudir os casacos invernosos.
Ainda assim, friorenta como sou, o saco de água quente e o édredon continuam a ser meus amigos pela noite dentro.
Agora tenho quase todo o tempo também, a presença do Jonas que se aninha aos pés e até faz boa companhia, pois não é muito chato no desassossego.  Uma nova logística teve que ser criada em consequência do grave problema de saúde do Chico que, tal como eu vinha a suspeitar, está diabético.
Assim, alimentação distinta para cada um deles, a necessidade da areia estar em permanência disponível para que resolva as sucessivas urgências pela madrugada fora, implementaram um esquema algo complexo aqui em casa.
Põe comida, tira comida, acrescenta a água no bebedouro, dá insulina de doze em doze horas, a que se segue como importante que ele tenha comido quando o açúcar começa a baixar, para acautelar uma perigosa hipoglicémia ... são apenas pormenores que não podem / devem falhar na pacatez do dia a dia nesta casa.
Afastar-me daqui por excesso de horas, também não é muito possível, uma vez que só comem quando eu desenvolvo os consequentes episódios  que referi.
A ideia é controlar a doença, já que sendo uma patologia crónica, a diabetes dificilmente é passível de reversão.
Depois coloca-se outro filme de terror que é exactamente a quase impossibilidade de me afastar aqui de casa, por dias.  Desta feita, a garantia da administração da insulina tem que ser completamente assegurada, e se a D.Leonilde que é o meu "anjo da guarda" quando viajo, já que sempre assegurou a manutenção alimentar diária e bem assim a higiene dos bichos, não pode obviamente proceder à inoculação da mesma.  Não daria conta do recado, ou melhor, é o tipo de coisa que jamais eu lhe poderia solicitar.
Assim, se não quiser dar em doida e não me deprimir mais do que já estou, terei que inventar, não sei que solução para obviar ao problema.
E terei que o fazer duma forma bem resolvida, já que conviver com problemas de consciência intranquila, é uma questão fora do aceitável.  A minha cabeça tem que estar em paz e não arranjar soluções que venham a culpabilizar-me futuramente.

A Primavera chegou, como disse.  O sol, às vezes tímido, outras mais atrevido, faz sentir o seu calor e a luminosidade dos dias é um fascínio.
Na mata tudo floresce.  São as mimosas já bem engalanadas, são as azedas que alcatifam o chão, as pervincas que mesclam o seu azul com o amarelo daquelas ... são os folhados e outros delicados arbustos com pequenas florzinhas brancas como grinaldas ... são as chagas ... e é a passarada que numa fona, saltita de ramada em ramada, os melros, as rolas, os periquitos de colar, os pombos e os patos bravos que iniciam os processos de acasalamento ...  Voam, cantam, trinam e numa afobação imparável parecem ter pressa.  
O tempo climatérico, tipicamente primaveril onde nem sequer faltam os borrifos habituais de chuvinha mansa que volta e meia nos surpreende, renova, pinta, enfeita uma paisagem que aviva as cores, intensifica o brilho e renova a promessa de renascimento que assoma em qualquer canto.
A natureza sempre é um bálsamo para o coração, uma bênção para a mente e uma esperança que os dias vindouros generosamente levem para longe o cansaço, as agruras e o desalento.  Tudo volta a parecer auspicioso, possível de acontecer ... feliz !



Anamar

segunda-feira, 20 de março de 2023

" CURTAS ... "



Tanto me lembro da minha mãe ... a propósito de tudo e de nada ! Uma frase, um pensamento, um ditado, sim, porque a minha mãe era uma mulher de adágios.  Colocava-os nas ideias e nas frases, com toda a propriedade e como uma menina travessa, meio comprometida, como quem fez uma pirraça, ria e dizia a propósito :   " Vocês um dia vão lembrar-se muito de mim ! " 
E não é que me lembro mesmo ?!... Mais ... lembro o seu ar encabulado e dou por mim também a ser uma mulher de provérbios ...
Somos alentejanas, província de características muito próprias e particulares.  Com vivências únicas, acredito, com estares bem distintos, com sentires talvez diferentes ;  até na linguagem, além do sotaque e da  entoação cantada, se consegue pressentir essa singularidade.

Fisicamente reencontro no olhar que o espelho me devolve, a expressão dos olhos dela e tal como ela, nas últimas etapas da vida, as lágrimas se me soltam sem censura ou auto-controle.  Fácil, fácil, me emociono com qualquer coisa, sobretudo se forem coisas que não se explicam, só se vêem, sentem, percebem ... chegam e tomam-nos de assalto, do nada, num piscar de olhos.
É uma borboleta amarela que volteia à minha frente pela mata, como se me abrisse o caminho e me convidasse a segui-la ... é o olhar terno e desprotegido de um animal entregue ao seu destino, é o silêncio encantado duma vereda onde o sol faz negaças p'ra entrar ... é  o  chilreio, o  pipilar,  o  trinado e o  assobio  das  aves  que  demandam  poiso  nas  copas altaneiras, ou o grasnido das gaivotas que aqui  por  cima  bailam  na  aragem  que  corre ...
É o sol que se põe de novo, é o rasto do avião que risca o céu e conta histórias de lugares distantes ... é o  som  da  brisa  que  vai  e  que  vem,  ou o  som  do  ribeiro  que só vai,  já não vem ...
Enfim ... o coração parece ter-me subido aos olhos ou ao pé da boca, como soi dizer-se.  
Um inexplicável nó, pouco previsível e justificado aperta-me a garganta, a voz embarga-se e a emoção toma-me de jeito ... e pronto, lá vão as lágrimas que rolam rosto abaixo... tal como a ela ...
Estou frágil, sinto-me com as resistências tombadas, ameaço tombar junto com elas ...
E afasto-me de todos, isolo-me o quanto posso, fujo do convívio ... não tenho a mínima margem de capacidade, paciência ou sequer vontade para abrir a alma, para franquear o espírito, para escancarar o coração.  
Não vale a pena.  Cada ser humano tem só por si, cada vez mais nos tempos que correm, a difícil empreitada de gerir os seus próprios destinos, a tarefa hercúlea de desembaraçar o seu próprio novelo, tem o que chegue para se ocupar, afligir e enlouquecer com todas as pirraças e todas as jogadas do seu próprio tabuleiro de xadrês ... para que possa, nem por instantes desviar o seu próprio foco para as maleitas do vizinho.  As pessoas vivem perdidas nos seus redutos, já ninguém ouve ninguém ou é capaz de percepcionar a invernia que vai ali ao seu lado.
Não há partilha, não há entendimentos cúmplices, as linguagens são meras conversas de surdos ... E depois, não há tempo, obviamente não há tempo ... e também já nem adianta !
Fica um vazio tão doídamente grande quando a vida, o afastamento, o tempo ... as vicissitudes que nos atropelam, levam pessoas próximas a desconhecerem-se, a perderem-se pelas esquinas, a virarem páginas, a silenciarem tudo o que era, o que foi, a zerarem histórias, emoções, momentos, risos, afectos ... sentindo a total e absoluta incapacidade de reverter as vivências.
É como se, em vida, assistíssemos e vivêssemos infinitas e irreversíveis partidas.
Parece que a nossa vida é agora uma mera sobreposição de despedidas ... nada mais !  Nada já se recupera, porque nós mesmos já partimos do nosso caminho, faz tempo !

Dou por mim com uma saudade sem fim de realidades que foram.  Os tempos intermináveis da Covid foram insensíveis coveiros nas nossas existências.  Foi um pouco assim como o "day after" de
uma catástrofe acontecida, um terramoto, uma cheia, uma guerra ... em que a realidade que nos acolhia, num virar de página se descaracterizou completamente.  Os sítios já não são os mesmos, as pessoas já não estão lá, as rotinas dos momentos vividos esvaziaram de significado... Como se o mundo tivesse, num abrir e fechar de olhos, sofrido um varrimento inelutável e sem volta !
Foi como se tivéssemos desaprendido de viver, de falar, de estar.  Agora, aquilo que queremos parece ser apenas paz, silêncio, um canto para pousar a cabeça.  Tudo o mais é cansativo, não nos gratifica ou acrescenta ...

E pronto, este é o meu estado de espírito neste momento... uma espécie de marasmo, uma rotina entediante, uma coloração de cores mortas sem os tons quentes e provocadores dos momentos felizes ...
Um desinteressante e fastidioso desfolhar de horas, dias e meses ... cinzentão, chato e cansativo !...

Anamar

terça-feira, 7 de março de 2023

" NUNCA DIGA ..."




Do baú das memórias do Facebook, hoje, dia 4 de Março "saltou-me" uma dolorosa recordação de há dez anos atrás.  Nesse dia também cinzento e triste, partiu da minha vida uma amiga que partilhou comigo a sua, talvez por uns treze ou catorze anos.  Uma amiga muito especial, com quatro patas, olhar manso, doçura infinita ... companheira, mais que muitos, em momentos particularmente difíceis com que me cruzava então.
A Rita que me veio parar a casa de forma enviesada e inesperada, foi o animal que mais me marcou para todo o sempre.  Na realidade tratava-se de um gato, e chegou com a baralhação de sexo, provinda da residência universitária que a havia acolhido, onde, entregue exclusivamente a rapazes traquinas e irresponsáveis, era tida como um mero brinquedo para gáudio das suas brincadeiras e travessuras, quase sempre meio atoleimadas.  A Rita vivia apavorada, metida num roupeiro, seu reduto preferido de segurança, até que acabou vindo viver comigo.

E comigo ficou, fazendo companhia ao Óscar, outro bichano, esse mauzinho, que nunca nos poupava duma valente arranhadela ou dentada, quando muito bem lhe comprazia.  
Bem ao contrário, a Rita era o cúmulo da doçura, era a companhia sempre presente, era a partilha de amor sempre disponível.  Tinha a ternura de um bebé em forma de gato !
Contudo sempre tímida, medrosa, assustada, com as marcas deixadas de um início de vida problemático, ela que já havia sido encontrada no motor de um carro, em pleno Inverno.
Com um destino figuradamente pouco promissor, a Rita usufruiria finalmente duma existência em paz, quando veio viver em minha casa.
Talvez por tudo isso e pelas memórias pregressas, sempre foi um gato assustadiço, hesitante, inseguro. Só que também, duma humildade, duma dedicação, duma entrega sem limites a todos aqueles com quem vivia, demonstrando assim uma gratidão ainda maior, se possível, que a gratidão e o afecto incondicional e desinteressado que os bichos sempre dedicam a quem com eles convive.

Por tudo isto a Rita foi um marco afectivo e emocional indelével para todo o sempre na minha existência !
Partiu em 2013.  Acabaram de passar dez anos exactamente, quando pelas cinco da tarde desse 4 de Março ela se tornou mais uma estrelinha no meu firmamento ...

Estrelinhas que foram sírios nos nossos caminhos enquanto por aqui nos acompanharam ... estrelinhas que se tornaram memórias doces quando o destino delas se apropriou ...
Estrelinhas ... é assim que procuramos amenizar a dor da sua ausência.  É essa a imagem ternurenta com que respondemos às crianças quando interrogados sobre o significado da morte, da ausência, da partida dos seres que nos foram tão queridos e que nunca mais sairão das nossas histórias ...

Jurara não ter mais gatos.  Jurara atravessar a dor sofrida com uma incapacidade futura de voltar a ter outra Rita na minha vida.  Quase sempre juramos !  O vazio deixado mata-nos tanto por dentro, que parece secar qualquer futura possibilidade de nos darmos outra vez.  A ausência sentida no luto experimentado, remete-nos para uma negação que parece insuperável ...
"Acabando esta geração, não voltarei a ter mais gatos " - verbalizei há dias à veterinária, quando o Chico, aguardava a "sentença" que o esperava - uma diabetes crónica com valores de açúcar muitíssimo elevados, e obviamente uma previsão anunciada de um futuro ameaçadoramente precário, pela frente.
"Não diga isso !"  foi a resposta.

Neste momento, não sei.  Não sei se virei a ser capaz outra vez de reescrever uma nova história, não sei se serei capaz de iniciar mais um novo percurso ... de voltar a atravessar tudo aquilo que, nunca esquecido, já me ficou para trás, com todos os animais que me atravessaram a vida.
O Óscar, a Rita, o Gaspar, o Nico, a Dalila, a Nicas, a Concha ... por todos eles já chorei lágrimas de sangue, por todos eles o meu coração se espremeu de dor ... com todos eles, também eu morri um bocadinho por dentro ...


Anamar

sábado, 18 de fevereiro de 2023

" A SUIÇA SOBRE TRILHOS "


Branco ...
Branco é o que nos rodeia.  Branco e um cinzento azulado concedido pela vegetação sonolenta que trepa as encostas, totalmente salpicada pela neve que cai com intensidade significativa, a partir de determinada cota.
Aliás, cá em baixo, nos vales, planícies e margens dos cursos de água, a altitudes inferiores, a coloração de todo o contexto já assoma. De resto, tudo o mais é alvura, silêncio e paz e uma quietude que transforma toda a paisagem numa atmosfera onírica e mágica, quase irreal, desenhando esboços de inesquecíveis cartões de Natal.

A Suiça, donde regressei há poucos dias, tem todo um carisma muito particular. 
Paisagisticamente é um presépio a céu aberto, é uma história contada por entre montes e vales  com picos e desfiladeiros que se sucedem, com os cumes das montanhas desafiadoras em recorte, ostentando os seus gelos perpétuos, com os seus planaltos quase sempre acolhendo estâncias turísticas de desportos de Inverno, com os seus lagos serenos e adormecidos, com os seus cursos de água que serpenteiam em busca de caminho livre na direcção ao oceano lá longe ... porque de um país interior se trata.
A sua beleza natural não se descreve.  Não há retratos por mais bem pintados que o sejam, não há textos por mais fiéis e ricos na descrição, não há fotografias ou vídeos disputando os melhores ângulos, que consigam aproximar-se só, daquilo que os nossos olhos têm a felicidade de enxergar.  Porque o que se contempla, cheira, escuta e sente sempre fica a anos-luz para lá de todas as tentativas que fizemos na aproximação.  
Ancorada numa montanha feroz que sobe frequentemente a milhares de metros de altitude, os Alpes, a Suiça como o seu queijo ancestral que todos conhecemos, é perfurada pelos inúmeros túneis que atravessam a rocha.  Essa, a forma possível encontrada para obviar a mobilidade através do país.  Os túneis e os viadutos surpreendem,  levando sempre mais e mais além, qualquer viagem desejada por muito difícil que parecesse ser.
E a cada momento a surpresa de mais um túnel, a perplexidade de mais um viaduto altaneiro abrem passagem a mais um comboio, meio de comunicação privilegiado no país.
São transportes de alta qualidade, muito bem organizados, com o rigor e a eficácia tradicional desta terra, onde se tem a noção clara de se tratar de um país que efectivamente "funciona".  
Viajei em alguns comboios, nomeadamente destinados ao turismo, como o comboio de cremalheira que nos levou montanha acima até Jungfraujoch, 3571 metros, naquilo a que chamam o "topo da Europa", o Golden Pass, ou o mais icónico e inesquecível de todos eles, o comboio turístico de alta velocidade mais lento do mundo, o Glacier Express que nos transportou de Zermatt a St. Moritz durante mais de oito horas, num percurso de 300 quilómetros atravessando noventa e um túneis e duzentos e noventa e um viadutos num sobe e desce fascinante, atravessando de oeste para este o território suiço.
Esta "lagartinha vermelha" que serpenteava entre altitudes variáveis  ( 1804m a 670, a 2033, de novo a 585 para finalizar a uma altitude de 1775 m ), passou por pequenas aldeias e lugarejos encarrapitados nas encostas cobertas de neve, lugares míticos, preguiçosos, onde a presença humana parecia inexistente.  Apenas o fumo que subia das chaminés, a lenha empilhada em lugares protegidos e as torres das igrejinhas meticulosamente cuidadas, atestavam não serem lugares abandonados ...
Braços fora das janelas segurando as câmaras, na ânsia de se reterem os melhores e mais irrepetíveis momentos vividos, pesassem embora as temperaturas fortemente negativas que se sentiam ... tentavam guardar para todo o sempre o fascínio, a surpresa e o maravilhamento que nos tomavam ...
Cá dentro, total conforto numa carruagem climatizada e envidraçada, onde usufruímos de uma refeição como se numa mesa de restaurante tradicional estivéssemos. 
Nas subidas e descidas percebia-se a activação da cremalheira para que os metros de acentuada inclinação fossem vencidos. 
As estâncias de sky desvendavam os praticantes em actividade e os meios mecânicos e os teleféricos de apoio, em movimento.
A Garganta do Reno ( o maior rio da Suiça aqui nascido e com um curso de 375 Km neste país ),  não é mais do que um vale glaciar, um canyon com milhões de anos que se formou pela erosão das águas dos degelos glaciares, que rasgaram e esventraram as montanhas, com paredes rochosas de ambos os lados que podem atingir os quatrocentos metros de altura.  Trata-se de um acidente orográfico imponente, magnífico, esmagador, desfrutado em plenitude a partir do Glacier Express, que acompanha o leito do rio ora numa margem, ora na outra.
O Reno atravessa a Suiça, faz fronteira e atravessa a Alemanha, Países Baixos e desagua no Mar do Norte, a sul de Roterdão, após percorrer 1320 Km.

Durante esta inesquecível viagem poderia pensar-se que a paisagem que se estendia aos nossos olhos fosse monótona, fastidiosa, repetitiva ... Engano !  Foi sim de um êxtase absoluto, foi um prémio para os sentidos, uma gratificação para a alma! Foi um presente generoso de uma natureza que se impõe e se obriga a ser respeitada ! 

E era noite quando a estação de St.Moritz se anunciou.  Lá fora -10ºC nos aguardavam no dia que já havia descido.










Anamar

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2023

" O INFERNO É POR AQUI MESMO ..."



No silêncio deste canto, no aconchego da música que toca e na luz velada lá de fora, vagueio em pensamentos avulsos por aí, sei lá para onde ou por onde ... 
Vou, só porque vou, ao sabor da rapidez da mente, orientada pela força de sensações experimentadas que se tornam emoções inquebrantáveis no tempo que vai passando ...

E o tempo vai implacavelmente correndo, indiferente, sempre indiferente a tudo, seja a angústia, seja a mágoa, seja a dor, o desespero... seja a impotência, o cansaço, a incerteza, a já desesperança.
Mais de dois dias passaram por cima da última e devastadora catástrofe que assolou o mundo, na forma de um terramoto de dimensões monstruosas que varreu dois países já de si débeis, a Turquia e a Síria, sendo que este último sofre há muito, o ónus de uma guerra sem quartel com que o Homem presenteia o seu semelhante com a indiferença sádica sempre inexplicável e cruel dum sofrimento desta natureza.
A esperança de resgatar sobreviventes de debaixo dos escombros é praticamente nula, com o passar das horas, com o frio gélido que se faz sentir, com a dureza das condições de trabalho das equipas especializadas, que de muitos países do mundo, de imediato se fizeram presentes.  A iminência de mais derrocadas em estruturas totalmente fragilizadas expostas às inevitáveis réplicas que ainda se fazem sentir, periga inclusive a vida de quem socorre, em desespero. Estima-se já que os mortos possam atingir cerca de vinte mil
As notícias proliferam nos espaços informativos, as imagens correm mundo, insaciáveis, tenebrosas, aterrorizantes.  O pavor face ao que se vê nas televisões, tolhe-nos, paralisa-nos, enovela-nos o estômago, embrulha-nos a alma.
E extasiamos face ao que chamamos de milagres. A menina de dezoito meses que escapou incólume mas perdeu a mãe grávida e os irmãos.  O menino adormecido encontrado vinte horas depois, que pergunta estremunhado, o que aconteceu ... ouvindo em resposta que é um herói ... 
Um herói ?! O que representará na cabeça daquele menino, talvez sozinho no mundo neste momento, "ser um herói" ??...
Ou, o que para mim foi a imagem mais tristemente irónica e doída ... a recém-nascida parida debaixo dos escombros horas depois do sismo, ainda ligada à mãe pelo cordão, e que a insanidade da natureza trouxe à luz do dia ... Sem mãe, sem pai, sem família  ( todos encontrados mortos sob os destroços do prédio onde viviam na Síria ) ... sem nome, sem nada nem ninguém ... apenas a vida, o terramoto lhe deixou, naquilo a que chamamos "milagre" ou "sorte" ...
Será que algum dia, na sua estrada, ela se sentirá compensada, por este golpe de "sorte" ou milagre no seu destino ??!!
A aleatoriedade da existência ... a lotaria ... o xadrês ... Como sempre sem resposta, sem justificação, sem mérito !...
E Deus, onde ??  Porquê, os pobres dos mais pobres, os mais desprotegidos ou desfavorecidos, os mais vulneráveis, são os que, sem defesa ou capacidade, mais insensivelmente são jogados na roleta voraz e impiedosa do sumidouro da vida ?!...
E as crianças, Senhor ??...

Entretanto a guerra na Ucrânia continua, bárbara, destruidora, insidiosa numa carnificina louca e imparável, fazendo um ano dentro de dias. 
À surpresa, ao choque, à raiva e ao ódio, seguiu-se a incredulidade, a impotência, a mágoa e a tristeza.  A dor lancinante dos primeiros tempos, as lágrimas imparáveis dos primeiros dias, deram lugar à aceitação do que parece inevitável, do que nada temos capacidade de reverter ... deram lugar a um sofrimento crónico, baixinho, manso embora doloroso e a um cansaço que sempre anestesia e quase normaliza a realidade em que mergulhamos.
Olhamos já com algum afastamento os horrores, as atrocidades, o caos ... por cansaço, por defesa ... p'ra não adoecermos com a magnitude daquilo a que somos sujeitos !

É assim o ser humano ! 
Não conseguindo eternizar com o mesmo grau de impacto aquilo que inicialmente nos feriu e destruíu, vamos vivendo, procurando a acomodação ao choque, tentando fazer com que a vida prossiga com o menor efeito colateral possível, e o tempo, correndo implacavelmente indiferente como dizia, se encarregará de nos garantir a capacidade de o continuar a viver ...
Não seremos contudo os mesmos, nunca mais.  O efeito modelador do sofrimento sentido ou partilhado, agiganta-se duma forma progressiva e o cansaço face a uma vida cada vez mais penalizante, esbate-nos a coragem, a força, a resistência e empalidece-nos o sorrir !

É então que busco guarida na natureza e me remeto à paz do seu equilíbrio, é então que me deixo envolver pelo poder curativo do seu silêncio, me embriago com a força que emana do seu poder regenerador, com a certeza que advém do genuíno, do imutável ... É então que fujo ...




Anamar

domingo, 8 de janeiro de 2023

" UM INVERNO FANTASIADO DE PRIMAVERA "

 


Cinco e meia e anoiteceu ...
Menos mal que anoiteceu alaranjado na linha do horizonte, o que prevê tempo mais cordial do que temos tido.  O primeiro dia do ano primou por ter os rigores da estação a que pertence ... uma invernia de chuva e frio, de desconforto e silêncio, espelhados no cinzento agreste com que se vestiu.
Hoje, o sol resolveu iluminar o dia, fazendo jus ao ditado que garante que "depois da tempestade sempre vem a bonança"... Pudéssemos ter isso como certo, e as tormentas da vida parecer-nos-iam menos penosas, por temporárias.

De manhã resolvi fazer a caminhada, numa espécie de determinação contra a calaceirice instalada nos últimos tempos, de que as tropelias atmosféricas são as principais responsáveis.   
E voltei à mata no intuito de avaliar que estragos por lá se sentirão e a viabilidade ou não, de por ali retomar o programa habitual.
Também ali se fez sentir o efeito devastador da violência atmosférica. Também ali a erosão nos caminhos motivada pela força da escorrência impetuosa da água e das pedras arrastadas, traçaram configurações anormais na paisagem.  A ribeira transporta um caudal barulhento de zangado, a velha cisterna seca no Verão, transbordou e vaza, caminho fora toda a água sem contenção, desenhando e cavando no solo, verdadeiras linhas que nunca ali existiram. Uma árvore respeitável no tamanho e na longevidade tombou, sucumbindo à força dos elementos.  Muitos caminhos mntêm-se quase intransitáveis, os pássaros pouco soam, não há patos nos tanques, abelhas não zumbem ... cigarras também não.  Tudo parece ter fechado p'ra balanço.  A natureza assim o determina !
Duas borboletas voavam em "casamento" brincalhão.  Pareciam crianças no recreio da escola.  Vinham, cruzavam-se, abraçavam-se, soltavam-se de novo. Não sei, em termos biológicos, a que timing de vida poderá corresponder, nesta altura do ano, esta dança frenética de duas borboletas na mata ... 

Mas, porque do frio mesmo, pouco se dá conta, e porque a vida das espécies não sucumbe fácil, surgem, descaradamente, as primeiras flores por lá.  As azedas já se espalham ensolarando o verde das veredas, as mimosas começam a encorpar, promissoras, ao longo das ramagens, o folhado já abriu flor nos ramos mais expostos ao sol, e o aloé vera coroou-se do laranja enrubescido das flores erguidas ao céu como verdadeiros troféus ... Um Inverno fantasiado de Primavera !...
A renovação indesmentível e certa aí está, assegurando sempre a continuidade e a vitória da vida sobre a morte !

Anamar

sexta-feira, 30 de dezembro de 2022

" BALANÇOS ... "

 

Balanços, balanços ...

Por que raio somos impelidos a fazê-los, só porque o ano termina, se afinal "ele nasce outra vez" ... como  diz aquela maravilhosa e eterna melodia natalícia que todos conhecemos ?!

O dia trinta e um de mais um Dezembro que como um sinal de trânsito determina o fim deste trajecto de trezentos e sessenta e cinco que por aqui se foram escoando, é simplesmente mais uma marca que o ser humano inventou, como se o tempo não fosse um todo contínuo que temos a mania de fatiar ... anos, meses, semanas, dias ... horas ...
E dessa forma contabilizamos a vida, dessa forma despejamos nos nossos corações baldes de angústias, de ansiedades, de dúvidas e incertezas !
Dessa forma, criamos metas nas nossas cabeças, espreitamos fins de linha, receamos a aproximação do destinado, baseados em lógicas de esperança de vida, de estatísticas, de inevitabilidades ...
Como se fosse assim tão linear, o destino de cada um !...

E chego exactamente aqui com uma sensação de novelo de lã embrulhado nas pontas que se desgrenharam, com a sensação dum coração mais esburacado que o coador do chá, e com o cansaço de quem arrasta grilhetas atrás de si, pelos caminhos da vida.  Chego com a exaustão dum vazio irremissível, com o peso irresolúvel desse mesmo vazio ... ( Quem disse que a ausência de matéria não pesa horrores ??? )...
Quando estamos na idade produtiva, quando os planos e os sonhos esbracejam para terem espaço, e falta tempo e condições sobretudo materiais para os concretizarmos, acreditamos convictamente ... e ansiamos ... que, lá mais para a frente, há-de sobrar tempo, há-de haver paz, disposição e vontade, há-de haver disponibilidade emocional para se cumprir um percurso sereno, tranquilo, despreocupado e despido de angústias, aflições e incertezas destruidoras ...
Lá mais para a frente, será o tempo de recolectar, de usufruir, de saborear sem sustos ou sobressaltos, a nova qualidade de vida que nos é devida, afinal.
O Outono, também da existência humana, deverá ser um período de acalmia, de benefício, de paz ... o período da colheita do semeado em altura própria ...
Pois bem, chego exactamente aqui, como disse, com a sensação de ter feito quase tudo errado na minha vida, com a sensação de ter sido uma péssima administradora da mesma, com a desconfortável angústia da incapacidade de conseguir passar quase sempre a minha mensagem, clarificar a minha linguagem, traduzir com transparência tudo aquilo que quis transmitir, mostrar-me na total nudez da minha essência ... Com todos ... filhos, amigos, amores ...

Enfim, chego exactamente aqui carregando uma frustração sem tamanho, um desmesurado amargor no coração, uma sensação de derrota, de erro, de perda de tempo, de ineficácia, de fracasso ...
Não fui, simplesmente, capaz, hábil, convincente ... Quase tudo terá, portanto, sido em vão !...

Balanços ...
Antes de começar a escrever, sem uma linha norteadora, sem um assunto previamente equacionado, sem um propósito perseguido  ( apenas com uma sensação de profundo desânimo, cansaço e tristeza dentro de mim ), havia-me dito que balanços, não !  Bastava a penitência que me atribuo de escalpelizar o meu caminho ... bastavam as mãos vazias em colheitas que não deram frutos ... bastava a perda da ilusão e da inocência face ao que poderia ter sido e não foi ...
E afinal ... acabei incontornavelmente presa ao emaranhado dos seus inevitáveis tentáculos, em mais um ano que se está a acabar dentro de poucas horas.
Os balanços, afinal, sempre acabam dominando a mente humana !

Anamar

segunda-feira, 19 de dezembro de 2022

" QUANDO AS AZEDAS VOLTAREM ... "

 


E elas já aí estão ! 
Pintalgam a mata atestando a continuidade da vida, a resiliência dos seres.  Num ano totalmente atípico como o estão a ser cada vez mais, mercê da anormalidade das condições atmosféricas, fruto claro de alterações climáticas que já não têm disfarce possível, tudo na natureza se transformou numa conversa de surdos, com árvores a darem frutos mas já a florirem de novo, com a Primavera a ocupar os espaços de um Inverno que ainda não começou sequer ... enfim, com a Natureza a baralhar-se no meio desta baralhada toda, de facto !

Deveríamos estar às lareiras, deveríamos vestir lãs quentinhas, golas altas quiçá ... e não, como continua a ver-se, gente com mangas curtas na rua, sem um resquício de sacrifício ou penitência, porque efectivamente não está frio nenhum !  

E por isso, e à conta disso, as azedas voltaram.
Os campos bem verdinhos, com todos os arbustos rebentados já, beneficiando da amenidade térmica que persiste e da quantidade incontrolável de água que tem caído, propiciaram que este Natal que se avizinha tenha mais cara de Páscoa do que de um Dezembro que o calendário exigiria ...
E é lindo verem-se cobertos dos verdes mesclados de todos os cambiantes, e salpicados do amarelo viçoso da promessa primaveril que se antecipa !
Não fora a lama, e seria absolutamente convidativo perambular pelos caminhos, agora desertos, da mata. 
Com os céus plúmbeos, ameaçando mais chuva, a penumbra descida e o silêncio que impera, são para mim preferenciais companheiros de caminhadas.  Acresce que quase ninguém se propõe ... e por isso, as veredas desertas, o silêncio levemente entrecortado por trinados meio dormentes, ainda de alguma passarada que ficou ou passa mesmo por aqui a próxima época, criam uma ambiência fantástica, de paz e recolhimento ...  não fora a lama ...

Bom, detesto esta época.  Não sou única, cada vez mais, muita gente por aqui mo transmite.  Se calhar é coisa de estados de espírito para quem nem a profusão das luzes e das cores, nem a magia que parecia envolver esta quadra, conseguem recriar ainda, o sortilégio de que estes dias se revestiam.
Se calhar é coisa de idade, de realismo, de pragmatismo ... de frieza ou mesmo de incapacidade já, de "acreditarmos no pai Natal", nestes tempos que vivemos.
Não sei !

Lembro que neste primeiro dia de férias natalícias se rumava à Beira.  De armas e bagagens, com filhas, mãe, cão e gatos aí íamos nós demandando umas férias merecidas, findo o primeiro período escolar.
A Beira oferecia-nos o friozinho esperado, os campos livres e cheirosos, a lareira acesa de manhã à noite ... e quase sempre varando a noite mesmo, as luzes que aconchegavam, com a doçura da semi-obscuridade, a sala de pedra e madeira ...  
A Beira oferecia-nos os vizinhos que o eram apenas intermitentemente quando a casa abria portas e janelas, e franqueava a entrada de quem aparecia.      
A Beira oferecia-nos o musgo na cesta da avó, o pinheiro colhido no pinhal ( "jeitozinho ... nem grande nem pequeno " ), o presépio que haveria de armar-se ... as pequeninas luzes a piscarem, e o azevinho e as pernadas da cameleira vindas do jardim ... 
Enfim, a Beira prometia e oferecia a despreocupação da garotada, o descompromisso de nada fazer, a displicência da inexistência de horários ... o gorgolejo das águas do rio quase sempre impetuosas entremeio às fragas, ao fundo das terras ...
E o cheiro, o cheirinho que persiste até hoje na minha memória, da caruma, da terra molhada, do fumo que evolando das chaminés, lembrava que os fornos já coziam ... o pão, a broa, os bolos da consoada, as iguarias que viriam para a mesa daí a poucos dias ...
E como era doce e aconchegante, quando à saída da porta, com os cachecóis e os casacos de golas levantadas e bolsos em prontidão, o bafo da respiração se transformava  num "fuminho" simpático à nossa frente ...
"Mãe, acenda o lume ! "
E o fogo subia, e o calor entranhava-se ... as luzes da Árvore de Natal cantavam ... as crianças gargalhavam só porque sim ... e todos, ainda todos então, comungavam da partilha de ser outra vez Natal !!!





Anamar 

quinta-feira, 1 de dezembro de 2022

" TINHA QUE SER "


Parei de escrever no início do mês.  Assim o atesta a data do meu último post. 

Verdade seja que estive fora duas semanas, o que a juntar a preparativos de ida e depois da reinstalação na chegada, faz p'ra lá de um tempão.  Por isso, a juntar à já de si escassa inspiração e ausência de factos que pudessem agitar as águas por aqui, não tenho tido aquele "assento" como costumo dizer, para escrever fosse o que fosse.

Mas chegou o dia no formato e com o "desenho" desejável para a reassunção daquela paz, daquela introspeção, daquela interioridade que convidam ao silêncio dum quarto na semi-obscuridade de um único candeeiro aceso, onde apenas tamborila a chuva miúda na janela frente a mim, e onde a música relaxante de um CD de clássica, me confortam e aninham.
Beethoven, Schubert, Schumann, Mozart ... desfilam doce e lentamente, enquanto as palavras descem ao teclado e a tela do monitor se compõe.
Uma verdadeira tarde sonolenta, com o horizonte fechado além dos prédios mais próximos, um cinzento cerrado e um silêncio que eu diria absoluto, parecem dizer que tudo dorme lá fora ...

Estamos numa época do ano em que a "hibernação", a ausência aparente de vida, o intimismo que se respira dentro e fora de nós, nos remete para um aquietar das emoções, dos impulsos, dos sentimentos.  É mais um período de passividade do que de actividade.  É mais um período de reflexão, de análise, em que somos mais espectadores de nós mesmos do que actores e construtores de novos caminhos.
O Natal espreita já, melancólico, tristonho como eu sinto todos os Natais, silencioso e despojado como cada vez mais os vivencio.  A turbulência, a agitação, o brouhaha das festas cada vez menos me motiva.  Apetecia-me afastar-me dos lugares, das pessoas que me são indiferentes, de quem faz apenas número e cumpre calendário, apetecia-me ficar apenas com os que me aquecem a alma, com o silêncio das memórias, com o calor com que elas preenchem o gélido dos vazios deixados nos dias e nos tempos ...

Por estes dias tomei uma decisão há muito adiada e que se arrastava ano após ano, por tibieza de vontade, por saudosismo e por falta de coragem mesmo.  
Custo muito a desligar-me das coisas, não pelo seu valor material ( a esse não dou qualquer importância ), mas porque cada coisa é uma história, cada coisa é uma pessoa, uma palavra, um momento ...
Cada coisa tem o cheiro próprio do instante, tem a luz do que foi vivido, tem o som do que foi dito ... tem a gargalhada, o suspiro ... a lágrima que escorreu ...

Escancarados os roupeiros, despendurado o recheio de cada cabide, olhada com a indiferença e o distanciamento possíveis cada peça, procurando despi-la da emoção que lhe estava agarrada, da representação que configurava, foi a vez de dizer um basta e de separar definitivamente o que ficou no coração e na alma e o que cada trapo representou.
Isto estava comigo há catorze, há 15 anos ... isto foi usado nesta e naquela circunstância ... isto está associado a ... e por aí fora ...
Chega !  Não vale a pena esta espécie de flagelo à memória, este mau-trato a mim própria !  Definitivamente, o tempo foi, passou, foi o que foi e não é mais.  E este "grude" fétido, empesteado e doentio, tem que ser banido, raspado da minha pele e da minha memória.  Chegou a hora de exorcizar os meus "fantasmas", de acabar com esta intocabilidade, este "respeito" absurdo, como se estivesse a cometer o crime de violar uma espécie do santuário que todo aquele guarda-roupa religiosamente conservado, representou ... Tudo isto é louco demais, anormal demais ... doente demais !...
Mas acabou !
A página virou, a esquina dobrou, o livro fechou-se ... para sempre !!!  

Às vezes é preciso tomar decisões radicais nas nossas vidas e expurgar de nós mesmos muita coisa que nos dói  mas de que, pela significância assumida, não nos foi fácil, atempadamente, fazer o corte.  
Felizmente um dia a razão fala mais alto e a lucidez acaba por imperar. Afinal nada é eterno ... nada persiste para sempre !!!

Anamar

segunda-feira, 7 de novembro de 2022

" O VERÃO DOS MARMELOS "


Novembro chegou.  O característico tempo cinzento instalou-se, como seria de esperar.  Ainda não está frio, mas também já não temos o aconchego das temperaturas da estação anterior.  
O S.Martinho parece fazer cara feia contra aquilo a que sempre nos habituou, e o "Verão dos marmelos" que coincide segundo a minha mãe dizia, com o S.Mateus cuja comemoração em Viseu implica a realização da grande feira anual, já terá terminado.  

Quando o tempo azulava de novo e o sol persistia em brilhar brincando connosco de um Verão de fazer de conta, numa aparição fora de época, todos nos preparávamos para o S.Martinho que ainda haveria de nos ensolarar a vida, antes do escuro e do desconforto que aí vinha.  
Tempo de magustos, castanhas e água-pé, pretexto enviesado para algumas paródias, sobretudo se estivéssemos na aldeia, eram momentos sempre inesquecíveis ...
Afinal é uma época de doçura nas despensas e no tempo.  Àquelas, descem as compotas, os doces, as marmeladas ... a este, descem as tardes alaranjadas de sol manso, descem as cores duma natureza que se embrulha  num manto com restos de folhagem nas árvores e nos arbustos, e tapetes fofos a restolhar pelo chão à frente da aragem quando sopra ...

Mas antes, como disse, a minha mãe afirmava . "Ainda aí vem o Verão dos marmelos" !   
Comprados na Feira de Outubro no Redondo, os marmelos, amarelos, cheiinhos, com ar promissor, eram comprados aos quilos ... muitos ... para a desejada marmelada, feita em casa dos meus avós e que tinha à sua espera, as prateleiras da despensa, na nossa casa de Évora.
Colocada em travessas fundas adquiridas para o efeito na Feira do S.João, e cobertas com papel vegetal, iria durar o ano inteiro até que nova "safra" se anunciasse.
"Bem docinha", exigia o meu pai, sempre guloso além da conta ... 😆😆
E assim era !...

Hoje, resta-me a memória desses dias idos.  
Os marmelos continuam nos mercadinhos, ou nas grandes superfícies, amarelos e cheiinhos. As travessas fundas ainda existem na minha casa ... o doce que barrava o pão está-me ainda na boca ... Tudo o mais se esfumou no tempo ...
O cheiro das castanhas assadas sobe da rua, se a vendedeira escolher o recanto do meu largo pra fazer negócio ... Marmelada, às vezes oferecem-me uma ou outra tacinha, p'ra matar saudades ...
O meu pai não poderá já opinar sobre a medida do açúcar a usar, a minha mãe também já não anuncia mais o "Verão dos marmelos", e as prateleiras daquela despensa permanecem vazias da remessa que todos os anos as haveria de adoçar !...

Anamar

quinta-feira, 3 de novembro de 2022

" REFLECTINDO ..."



 

A hora mudou e com ela mudou definitivamente o rosto da estação que vivemos.  O sol põe-se às cinco e meia, o céu está feio, cinzento, ameaçador de chuva, que aliás tem caído com intensidade e alguma frequência.
Verdade que precisávamos dela como garante de sobrevivência, digamos, porque a seca longa e severa fazia perigar o futuro de plantas, animais e do próprio ser humano, alterando o nosso quotidiano com restrições sérias na utilização da água mesmo para as necessidades básicas, sobretudo no interior do país.

Assim, anoitece mais cedo e o nosso fototropismo vira-nos consequentemente mais e mais para dentro de nós mesmos, impulsiona-nos mais e mais para um natural intimismo, uma sonolência parda e mansa, como se a Natureza e tudo à nossa volta fechasse para hibernação ... para paragem, em que tudo parece desacelerar ...
Há um silêncio que impera, uma cumplicidade connosco mesmos que nos conduz a uma introspeção ainda mais profunda, num convite à análise e à reflexão.
Estou mais ou menos nesse registo.  Revisito tempos, pessoas, momentos ... passeio-me pelos pensamentos e pelas memórias, interrogo as dúvidas, procuro respostas ... frustro-me com a ausência das mesmas ...
Há alturas na vida em que o ser humano parece desconhecer razões óbvias, sentimentos inquestionáveis, palavras insofismáveis ... em que o avesso de cada um emerge, submergindo até o que nunca seria submergível ...
E há alturas na vida em que consequentemente interrogamos o que pareceria  desnecessário  ser interrogado,  porque  era  assumido,  certo,  verdadeiro,  seguro ... intocável !  Não era matéria passível de ser duvidosa ...
Tal como há valores nas nossas existências que não nos faz sentido questionar, porque são valores assumidos integrantes da nossa essência, "ad eternum" norteadores dos nossos caminhos, algo que contra chuvas e tempestades temos como inabalável. Algo que á a nossa verdade, escrita, assimilada, entranhada debaixo da pele.
Não nos interrogamos por exemplo sobre o amor filial, sobre o amor paternal ... não nos passa pela cabeça pôr em dúvida os laços afectivos no seio duma família estruturada, ainda que nem tudo sejam águas mansas ou os ventos soprem de feição, sempre ...
É que são sentimentos tão testados já ao longo das nossas existências, valores tão postos à prova já tantas vezes ... barreiras vencidas a duras penas ... mas ainda assim ultrapassadas ... que, pelo menos a mim repugna sequer colocar como frágeis, quanto mais duvidosos ...
Os escolhos podem ferir os pés ... às vezes ... mas não há lugar para sequer o questionarmos ...
Como "soi dizer-se" ... estamos lá e não "abrimos" !...

Mas o ser humano é distinto dos seus pares, cada um tem a personalidade, o estar, o sentir e consequentemente o pensar e o agir diferente do outro.  E por tudo isso eu convivo muito mal com posicionamentos que não entendo, com posturas que me violentam, me desgastam e me esgotam.  Com posturas que me confrontam em julgamentos descabidos, avaliações sumárias que injustiçam aquilo que eu sou, que sempre fui e serei ... como se devesse ocupar um qualquer banco dos réus, como se o que defendo, digo e reafirmo, não valesse nada, como se eu fosse uma qualquer "contadora de histórias"...

E devendo já ser imune a tudo isto, ao contrário magoo-me profundamente, sinto-me defraudada, afasto-me e desaposto. 
E o cansaço é o meu sinal exterior de abandono !... 

Anamar

quinta-feira, 27 de outubro de 2022

" ANTES QUE ME ESQUEÇA ... OU, ENQUANTO ME LEMBRAR ..." ( 6º EPISÓDIO )

 


O meu caminho para o liceu era fácil.  Embora morasse um pouco longe, com aquela idade tudo era uma festa !
Assim, subia a avenida, passava pelo pátio do Agnelo de que já falei, "apanhava" a Teresinha que morava algumas casas adiante, seguia frente à mercearia e drogaria do sr. Acácio, do outro lado da rua, continuava junto às Escolas Primárias em pleno Rossio de S.Brás, mais adiante o Regimento de Infantaria 16 e por aí fora, voltava à direita, atravessava frente ao Chafariz das Portas de Moura e derivava para a rua que me levava então, lá ao fundo, ao largo de acesso ao liceu, numa rua a descer ...
Os nomes das ruas já não consigo dizer.
Havia um autocarro que circulava ao cimo da minha avenida, que em dias de muita chuva os meus pais faziam questão que eu apanhasse.  Mas eu gostava bem mais de ir a pé.  Assim, às vezes chegava ao liceu molhada que nem "um pinto" ...😂
Nesses dias de Inverno a sério, a minha mãe pegava então num par de meias minhas e lá ia a caminho do liceu entregar a uma contínua para que eu pudesse trocar as meias encharcadas, por um par sequinho.  Entretanto, ela própria apanhava uma molha e tanto, nesta operação !...  Mas mãe é mãe , claro !!!...

Os meus pais eram oriundos de famílias muito humildes. O meu pai nascido numa aldeiazinha na raia de Espanha, no Baixo Alentejo, provinha duma família de cinco irmãos dos quais ele era o mais velho.  Não conheci os meus avós.  Ele era sapateiro, pouco amigo de trabalhar, tanto quanto sei, a minha avó tinha a seu cargo a penosa tarefa de criar os filhos em dificuldades extremas.  Assim, com sete anos já o meu pai era moço de recados, para ajudar como podia, ao sustento da casa.  Mais tarde, marçano de armazém.  Creio que terá feito (ou não ) a quarta classe.  Pelo menos não era analfabeto.
A minha mãe, igualmente alentejana, desta feita duma vila do distrito de Évora, era a terceira duma família também de cinco.  Os meus avós maternos tinham um pequeno negócio de restauração, com que faziam face ao sustento da família. 
Em casa, de muita labuta, as filhas ( duas para três rapazes ), tinham que trabalhar tanto ou mais que as criadas.  A minha tia casou muito nova e saíu portanto muito cedo, da casa dos pais.  Ficou a minha mãe que era uma escrava de trabalho, sem descanso ou regalias.
Foi para a primária, era excelente aluna, mas ao fim da segunda classe teve que abandonar a escola, para ajudar em casa, no tratamento dos dois irmãos que entretanto nasceram.
De nada serviram os pedidos da Sra. D.Ressurreição ( a professora ), para que o meu avô a deixasse continuar os estudos.  Tudo em vão e portanto, pela vida fora a escolaridade da minha mãe, para grande mágoa sua, ficou por ali ...
Anos mais tarde, casada e já mãe, quis tirar a carta de condução.  O meu pai entendeu que lhe seria útil, uma vez que ele próprio a não queria tirar.  Só que, necessitava para o efeito de possuir como habilitação, o exame da quarta classe. 
Para a minha mãe, não havia obstáculos.  Sempre enfrentou tudo na vida com denodo, esforço e muita aplicação.  Assim, deitou mão aos livros e preparou-se para as provas, como adulta, claro.
Eu já frequentava o segundo ano do liceu e também fui protagonista na coisa.
Conforme ela dizia, enquanto cozinhava e fazia os trabalhos caseiros, tinha ao lado os livros e os cadernos e repassava vezes sem conta as matérias.  Eram as dinastias na História, eram os rios, as serras, as linhas férreas na Geografia e por aí adiante ... os exercícios da aritmética, os problemas mais elaborados ... etc.
O meu papel era então, quando regressava a casa, conferir o sucesso ou não, do estudo desse dia ...
E dessa forma, a minha mãe alcançou o desiderato perseguido ... fazer com aproveitamento o seu exame e com ele, inscrever-se na escola de condução para aprender a conduzir na complicadíssima geometria da cidade de Évora.  As suas ruas estreitas, becos e outras dificuldades no Centro Histórico, tornam a obtenção da habilitação à condução, como das mais difíceis de alcançar.  Era pelo menos assim !
A minha mãe não era, contudo, muito expedita nessa área ...😁😁 Extremamente nervosa, descontrolava-se  sem nenhuma calma e só à terceira tentativa alcançou a aprovação !... 😁😁😁 
A carta foi passada, existe até hoje, neste momento nas mãos da neta mais velha que a quis guardar como memória da avó.
Esteve toda a vida arquivada numa gaveta, pois carro nunca houve, e assim sendo, nunca a minha mãe se sujeitou à aventura de dirigir por conta e risco, o seu próprio carro !...😓😓
Coitada !...

Anamar

quarta-feira, 26 de outubro de 2022

" ANTES QUE ME ESQUEÇA ... OU, ENQUANTO ME LEMBRAR ..." ( 5º EPISÓDIO )

 


Quando a escola primária terminou, completados os quatro anos normais de escolaridade, fiz o exame de Admissão ao Liceu Nacional de Évora, hoje a sua Universidade, instituição absolutamente icónica na cidade e no país.  

A universidade de Évora foi fundada a 1 de Novembro em 1559 pelo Cardeal D.Henrique  ( Arcebispo de Évora, mais tarde rei de Portugal ), a partir do Colégio do Espírito Santo, como a Universidade do Espírito Santo e entregue à Companhia de Jesus, que a dirigiu por dois séculos. 
Por isso, esse dia, é considerado até hoje, o Dia da Universidade.
No século XVIII foi a mesma encerrada por ordem do Marquês de Pombal, aquando da expulsão dos Jesuítas.
Voltou então a ser reaberta em 1973 como o Instituto Universitário de Évora, e só em 1979 este Instituto deu lugar à nova Universidade de Évora.
Foi a segunda universidade a ser fundada em Portugal, depois da de Coimbra, a mais antiga do país.

Assim, quando nela entrei a mesma detinha o pelouro do Ensino Secundário, desde o primeiro ao sétimo ano, com que este grau académico encerrava.  Paralelamente, na cidade existia também em opção, a Escola Comercial e Industrial, vocacionada p'ra saídas profissionais e não para o  prosseguimento de estudos.
Logo aí estava criada uma clivagem social entre quem frequentava o Liceu, a classe economicamente mais favorecida, e quem frequentava a Escola Comercial e Industrial.

Bom, mas lá fui fazer o exame de admissão ao Liceu, com a prestação de algumas provas de que me saí muito bem.  Lembro que numa das provas orais me foi feita uma pergunta na área do português, creio, à qual, precipitadamente respondi errado.
A professora olhou p'ra mim e do alto da sua cátedra disse : " Pensa ! A cabeça não é só feita para usar caracóis !"...
Não me atrapalhei e retorqui : " Eu sei, e daqui a pouco já respondo !" E assim foi.  Passados minutos dei a resposta correcta, o que fez rir o júri.  Bem pequenita que era,  tive o rápido discernimento de contornar a situação de forma airosa ...😁😁

O Liceu era misto, embora houvesse separação de géneros no espaço físico que o constitui.  As raparigas podiam ocupar determinadas zonas e os rapazes outras, embora na saída todos convivessem sem problemas.
Quem já visitou a actual Universidade sabe que ela é um monumento com uma arquitectura fantástica.   É composta por um conjunto arquitectónico austero, dos finais de século XVI, englobando vários edifícios - igreja e colégios - de construção maneirista de Estilo Chão, empregando o granito regional. A entrada desenrola-se a partir de um pátio interior totalmente contornado por claustros, quer no rés-do-chão quer no primeiro andar, o Pátio dos Gerais, exibindo rica azulejaria de época, e o interior das salas de aula dispostas ao longo desses claustros, possui púlpitos decorados com madeiras exóticas, bem como azulejos quinhentistas e seiscentistas.
No centro desse espaço existe um chafariz.  A fachada da antiga capela do Colégio do Espírito Santo é marcada por um enorme pórtico de mármore do séc. XVIII, encimado por uma pomba, símbolo do Espírito Santo e também da Universidade.
A Sala dos Actos do Colégio ( estilo barroco setecentista ) é um dos espaços mais imponentes de todo o edifício.  Tem azulejos e estuques do séc. XVII em tons verdes, azuis e rosa, alusivos às matérias leccionadas ( Matemática, Astronomia, Física e Belas Artes ).  No topo da sala podem ver-se os retratos a óleo de D.Sebastião e do Cardeal-Rei D.Henrique.
A Sala dos Actos era o lugar mais nobre do liceu, onde se realizavam os eventos mais importantes, como as sessões solenes de abertura de cada ano lectivo.
Os alunos merecedores de alguma distinção em cada ano, eram premiados no início do ano que se iniciava.  Por isso lá, recebi, das mãos do Reitor, um prémio, como contarei posteriormente, e bem assim menções honrosas por não ter dado faltas nos anos escolares cessantes.

O liceu cultivava certas tradições semelhantes às existentes na Academia coimbrã.  A entrada para as aulas anunciava-se pelo badalar do sino que existia nos claustros.  Penso que era o Sr. Almas, o contínuo a quem estava atribuída essa tarefa. O chefe dos contínuos era o inesquecível sr. Francisco,  uma figura ímpar ... Com alguma idade, mínimo de estatura, tinha o cargo máximo de responsabilidade na hierarquia do pessoal auxiliar.  Era muito querido e respeitado, e em cada ano, era figura presente e "obrigatória", na fotografia solene tirada nas escadas do pátio, por cada turma com a presença de todos os alunos e dos respectivos professores, bem como do Reitor, como figura máxima de prestígio.
Usava-se o traje académico no liceu, se e quando o desejássemos. Também o tive.  Saia-casaco preto, camisa branca, gravata e sapatos igualmente pretos, e claro, a capa de estudante. 
Dava ela um jeitão, nos frios invernos de Évora !

Iniciei o meu percurso escolar no Secundário com alguma atribulação.  
Na madrugada de 1 de Outubro  ( dia oficial do início de cada ano escolar ), exactamente no meu primeiro ano do liceu, a "bendita" serração de madeiras, sita paredes meias com a minha residência, que havia ardido alguns anos atrás, como relatei, voltou a sofrer outro incêndio. Um novo curto-circuito criou o pânico em minha casa, onde só eu e a minha mãe dormíamos.  Nunca podendo esquecer tudo o que havíamos sofrido anteriormente, a minha mãe entrou em choque, sem conseguir agir com a rapidez exigível a chamar o socorro.  Tentou telefonar para os bombeiros, mas chorava tanto num descontrole total, que fui eu, que deitando as mãos ao telefone pedi a ajuda necessária.
Lembro-me claramente que saltando da cama, ao fugirmos para a rua, agarrei num pequeno guarda-jóias que existia no toucador, em metal, vazio de jóias ou do que quer que fosse e o transportei comigo como se ali transportasse o tesouro mais valioso da casa ... nunca mais o largando !...😆😆
O mesmo faz parte do acervo da casa dos meus pais, que ainda hoje está comigo ...

Coisas de criança ... 


Anamar