quinta-feira, 22 de julho de 2010

"O RAPAZ DOS OLHOS VERDES"

Nunca vos falei dele...
Raro é o dia que não nos "esbarramos", quer dizer, que os meus olhos não batem nele, e têm feito germinar em mim um sentimento de revolta, de indignação perante a vida, de tristeza, de profunda inquietação...

O Miguel, soube hoje que se chama assim, é mais um dedo social em riste, apontado a todos nós....
Vive na rua, dorme onde calha, de comer, pouco me apercebi, deambula com um saco de plástico cujo conteúdo desconheço e permanentemente com pacotes de vinho ou cerveja na mão...permanentemente....

As pessoas evitam-no, porque a sujidade, a degradação, a miséria são de tal ordem, que deixam de mal consigo mesmos, os corações mesmo os mais empedernidos.
Muda-se de passeio, troca-se de calçada, enxota-se daqui para ali, como um cão vadio.

O Miguel não fala com ninguém, não pede sequer esmola...o Miguel tem uns olhos lindos, verdes, inocentes, de criança, mas que já não vivem por aqui....estão perdidos algures num vazio distante, em que recordações, não sei, com que imagens, também não...mas que afinal...fiquei perplexa....sabem chorar...

Hoje acordei muito cedo, eram pouco mais de sete horas.A essa hora, a minha cabeça ainda está leve, ainda tem energia, projectos, forças...e sabe-se lá porquê,  "saltaram-me" à frente a limpidez daqueles olhos que me incomodam.
O ser humano é cobarde. Eu acho, que o ser humano defende-se daquilo que puder agitar-lhe a consciência...e é hipócrita também.... Não estou a excluir-me, não me interpretem mal.
Normalmente recuso esmolas, excepto a idosos, e há dentro de mim uma espécie de vergonha, ao dizer não, um certo acabrunhamento, por eu ser uma privilegiada e eles não....eles, aqueles que de facto se sujeitaram a ouvi-lo...e não consigo encará-los nos olhos....
Decidi, que se os meus caminhos  se cruzassem... com os do rapaz de olhos verdes, hoje iria aproximar-me dele, e tentar perceber a complexidade daquele cérebro, que eu acho que ficou muito lá atrás....

Miguel estava sentado num daqueles bancos das paragens dos autocarros, que partem e chegam constantemente à minha praceta.
Comprei uma sandwich (sou franca, receava a forma como iria ser recebida....). Não queria que se sentisse humilhado, não queria magoá-lo mais que a vida já o fez.
Abeirei-me e estendi-lha...disse-lhe:"coma...agora, ou mais logo....não ponha só álcool no seu estômago...isso faz-lhe muito mal!" perguntei se me podia sentar e conversei longamente com ele, arrancando-lhe a custo algumas palavras....
Trinta anos da maior miséria inimaginável...não vou aqui expor o nosso diálogo...mas fiquei a saber que ele se considera sozinho no mundo....e fiquei a saber que aqueles olhos verdes de criança, sabem chorar...

As lágrimas rolaram-lhe pela face... e não me contive sem lhe dar um beijo e afagar-lhe a cabeça...."Força Miguel....só um dia de cada vez....prometa-me que vai tentar",,,

Demagogia...poderão dizer....Um coração de mãe a falar, isso sim....direi eu!...

Anamar

2 comentários:

Anónimo disse...

Que bom que conseguiste fazer isso! Quando encontro alguém como o "teu" Miguel, sobretudo quando pedem, tão mal me sinto por não dar como por dar.Desvio sempre os olhos, não sei encarar isto de frente.
Um beijinho para ti, Margarida.

Anónimo disse...

Tantos Migueis por este Mundo...e, tal como tu dizes, tanta covardia. Tambem eu sinto muitas vezes esse embaraço perante situações de miséria e abandono.
O Miguel não vai esquecer essa atenção. Mais do que "esmola" as pessoas precisam de atenção.
Um beijinho.
Merryl