sábado, 26 de março de 2011

"IRREMEDIÁVEL PAIXÃO"


O Alentejo estava a dormir espreguiçado na planície...
Nem percebeu que eu passava.

Ainda só tinham acordado, as giestas, as estevas e as bolinhas de ouro das mimosas, à beira da estrada; essas, há muito haviam tirado as ramelas dos olhos e encaravam um sol fraco e envergonhado, por detrás das nuvens.
Eu pedira céu azul e limpo...não se pode ter tudo!...

Também nos prados, ora bem verdes, fazendo jus às chuvas impiedosas deste Inverno que não nos deixa saudades, os novelos brancos das ovelhas em rebanhos, pareciam floquinhos de neve acabados de cair.
Alguns cavalos garbosos, provocadores e ociosos, exibiam as crinas de liberdade.
os campos verdes até onde os olhos se perdiam, "sangravam" de onde em onde pelo vermelho profuso das papoilas...
Vêem-se já poucas papoilas por aí, mas aqui, na minha Terra, ainda há verdadeiros redutos vermelhos.

E depois há os sinais tristes destes tempos: os montes degradados e abandonados na planície, mostram a desertificação, a solidão, o sinal de que o Alentejo começa a não ser "casa", senão para os velhos que ficaram.
Exibem janelas e portas esventradas, mato a crescer à volta, mas chaminés hercúleas, ainda desafiadoras dos céus...

Os pássaros, esses, mesmo tendo asas, não abandonaram o Alentejo.
Desde as andorinhas, em voos rasantes bem junto ao solo, rodopiando, as rapinas em espreita de caça, planando, as garças boieiras depenicando no gado, às cegonhas, altaneiras inquilinas sobretudo de postes de alta tensão...esses continuam fielmente presos à paisagem, fielmente presos aos espaços que não têm limites, porque liberdade combina com pássaro e pássaro sempre representa liberdade...

Évora recepciona-me pela enésima vez, pela vida toda, sempre "quente", sempre igual e sempre diferente. Sempre é berço de repouso...isso eu sei-o, ainda antes de franquear as muralhas.
As cores são aquelas, o silêncio é aquele, a paz é aquela...
O rosto é o meu, de menina-mulher, que lá me fiz...os sonhos, também;
Évora sempre floresce cada ano, das minhas raízes que ficaram fundo no solo. Mais tarde plantei-lhe outras raízes...essas também lá estão, mas as únicas flores que conseguem parir, são as de glicínia roxa, lágrimas roxas pendentes e cheirosas...


Calcorreei tudo, tudo que preciso ver, porque Évora também me fornece o oxigénio para respirar melhor, para viver melhor...
Fui pela milésima vez aos "meus sítios", numa romagem de saudade, numa doce lembrança, num deixar-me recuar e ir, e ir e ir, até onde os sonhos me foram levando, numa masturbação de alma e coração que não termina nunca.

Já lá não está a "minha chaminé das cegonhas"...o tempo destruiu-a, como nos faz a nós...e com ela, foram também as cegonhas...
Mas isso que importa, se eu também não estou mais àquela janela em frente, a ver-lhes cada movimento, cada voo majestoso, todas as Primaveras?!...
Se eu não sou mais menina, se o meu pai já não existe mais, se aquela casa está sepulcralmente fechada e degradada?!...
Nem já existem as árvores de flores, intensas no cheiro e nos mosquitos, que me entravam pelas sacadas adentro!!...
Também aí o meu espaço ficou perdido na curva lá atrás!

A Universidade, o "meu liceu" de então, imponente, sólida, grandiosa, essa, arrosta com os tempos, as tempestades, os acontecimentos.
Vasculhei tudo;
A "Sala dos Actos" aberta, mostrava uma outra vez, a beleza da azulejaria antiga portuguesa, a cátedra do reitor e outros representantes académicos, ao tempo...e lá estava eu, tímida, muito tímida, sem saber por onde ia, mal ouvindo o meu nome a ser chamado, no meio de palmas, para receber alguns prémios de então, com a minha mãe na assistência a escorrer lágrimas de orgulho!!!...

Também lá estava a sala onde fiz o meu exame de admissão ao liceu, no fim da quarta classe, lembram-se? com as tranças no cabelo da criança que era...
A fonte em pedra, à roda da qual, que nem uma perdida, me esfalfava a brincar "ao agarra", com a Mané...
O sino que assinalava o começo e o fim das aulas, ainda ecoa naqueles claustros, embora talvez o seja apenas no meu coração...e eu estou a baralhar tudo!!...
Um pátio interior, na altura anexo ao Laboratório de Química...e agora, ao que parece, já nem Química lá há!
E o bar dos chupas-chupas de frutas, a vinte e cinco tostões, também já mudou de sítio, e os chupas também já não existem certamente mais!...
Os alunos universitários não comem chupas, óbvio!!...

A Praça do Giraldo, o Café Arcada...
Que envolvente e gratificante é, estar ali sentada ao sol, a fumar um cigarro, frente a uma chávena já vazia, só a ver o tempo a correr lento, como o tempo corre no Alentejo...rumo à eternidade!!

O meu périplo terminou, como não poderia deixar de ser, no jardim de D.Manuel.

Como quem visita um túmulo, um local de interioridade e intimismo, estive junto ao busto de Florbela Espanca, colocado nesse jardim.

Fui "visitar" a mulher da "Charneca em Flor", essa mulher inteira, que para mim é um talismã, um mito incontornável, um ícone, porque fala a minha e também a linguagem do Alentejo, porque traduz o meu e o sentir do Alentejo, porque, como sobejamente já aqui disse, interpreta fielmente, em simultâneo, a fragilidade e a força titânica de uma alma feminina!...

Fui, como que agradecer-lhe o ter existido, o ter sido como foi, o ter tido a coragem, a determinação e a frontalidade, apanágios da sua vida...o ter sido, afinal, uma mulher daquela Terra!!...

Anamar

2 comentários:

Anónimo disse...

Lendo teu texto revisitei Évora, onde já não vou há séculos.Gostei muito do que escreveste.
Beijinhos.
Merryl.

anamar disse...

Olá Merryl
Espero-te bem.
Ainda bem que o meu texto te transportou até à minha Terra.
Como sabes, tenho "compulsão afectiva" pelo Alentejo. Nunca posso estar muito tempo sem lá voltar.
Temos que pensar num cafezinho...tenho saudades tuas. Diz alguma coisa.
Beijinhos
Anamar