quinta-feira, 14 de junho de 2012

" OS TRÊS F DA NOSSA SINA "


Realmente continuamos a ser um país de brandos costumes.
Os três "F" continuam a imperar.
Fátima, Futebol e Fado "alimentam" a maioria dos portugueses, têm um efeito terapêutico, até mesmo profiláctico, neste povo quase sempre cordato, quase sempre acomodado, quase sempre pouco reivindicativo.

O Governo pode estar relativamente tranquilo, Passos Coelho pode dormir com mais algum sossego, porque o "povo é sereno" !
Basta que para isso lhe seja servida uma boa dose de futebolada, um campeonato "à maneira", com as "estrelinhas" todas a brilhar no firmamento, com um Paulo Bento que deve continuar a achar que o balneário está tranquilo, e eis o pessoal a saltar, a gritar, a ensandecer, num fenómeno social espantoso, numa alienação colectiva de que estamos mesmo a precisar !

Qual crise, qual desemprego, quais greves, quais secretas, qual Grécia, qual resgate espanhol, qual falta de dinheiro já no meio do mês ... se a bola bateu na trave dez vezes, se o golo esteve nos pés do Cristiano outras tantas, se pelo menos durante hora e meia o país encerra "para obras" !!!
Ajeitam-se as vidas, os horários ... o trânsito "cessa" na Segunda Circular, na IC19 somos donos da estrada ... e a malta em qualquer canto, em qualquer tasca ou em confraternizações caseiras ( porque isto de sofrer em grupo sempre é menos traumatizante que sofrer sozinho ), com uns caracóis e umas "bejecas" está feliz, alucina a discutir os fora de jogo, os apitos do árbitro, o que não foi e podia ter sido !!!...

E sentam-se para se levantarem trinta segundos depois, roem o que sobrou das unhas, gesticulam intensamente e gritam pelos jogadores, e soltam palavrões e impropérios contra os juízes do jogo ;
as bandeirinhas, que as crianças também já mobilizadas agitam mesmo nas salas, frente aos écrans das televisões, não param ... Grita-se  " Portugal ... Portugal " !  Como se isso pudesse ecoar lá no campo, e pronto ... o pessoal todo unido à volta do verde e vermelho duma bandeira, com um desígnio único ... torcer pelo que nem se sabe muito bem o que é, mas que é este estranho orgulho bairrista de se ser português, de, de pequeninos nos agigantarmos, e até "os comermos" todos !!!
Grandes ao menos em qualquer coisa ... carago !!!...

Abençoado Euro 2012, porque enquanto durar ( e esperemos que não tenhamos que arrumar prematuramente as malas ), Portugal vai continuar anestesiado, com uma embriaguês colectiva que o fará sorrir, conseguir cantar em uníssono, e sentir uma solidariedade e uma unidade tais, que nos tornarão tão "bonzinhos", que nem do Governo a gente vai conseguir falar mal, nos tempos mais próximos !

Fátima foi há dias ...

Aí a vertente era outra.  Era mais a vertente dolorosa e frágil do Homem, que imperava.
Lá estavam os mesmos, com os terços, os cânticos, as velas, os joelhos esmurrados pelo martírio das promessas, as lágrimas escorrentes pelos rostos em penitência, em submissão, em contrição, em súplica !

Lá estavam os que pediam milagres de saúde, de empregos, de ajuda para a prestação da casa, já atrasada no Banco p'ra lá de tempo.
As "vivendinhas" em cera, entre  €3,5 e  €5, isso testemunhavam !...
Já não bastava o tradicional negócio macabro das velas de alturas humanas, das pernas, dos braços, das cabeças em cera !!!...

Aí,  é a crise que induz o aumento do "clientelismo".
Fragilizando as pessoas, vulnerabilizando-as, deixa-as inseguras, desesperadas, redu-las à pequenez da dimensão humana,  e obviamente o apelo ao divino maximiza-se.
O milagre e a protecção dos céus surge como a solução possível, como a derradeira e única ajuda, para alguém que se sente completamente perdido.
Explora-se a ignorância, o obscurantismo, a incultura, o fanatismo, mesmo o fundamentalismo das classes mais desfavorecidas, e por isso mais desprotegidas do povo.

Desígnios diferentes ... rituais massificantes iguais !!!...

Depois, todos os meses têm um 13 no calendário ... e a crise parece estar para durar, o que fará render a coisa !!!

Resta-nos o Fado ...

O Fado,  é o que se vive todos os dias.
O Fado é aquela coisa que as pessoas carregam como um fardo, que por sinal também começa com "F", e que lixa com "F" quase toda a gente !
Fado é o que nos faz dizer com aquele fácies de quem cumpre pena, tão nosso conhecido : "Vamos indo "!...
É aquilo que nos faz trabalhar e nunca sermos ricos, ao contrário dos que o são sem trabalhar ...
É a corrupção frente ao nosso nariz,  são as injustiças sociais às quais já encolhemos os ombros ...
é o dinheiro que encolhe para a saúde, para a alimentação, para a escolaridade, para os transportes ... para um mínimo de dignidade de vida ...
Fado é o analfabetismo formal como destino, e a desinformação conveniente ... é o cansaço e a desmotivação ... é o determinismo cruel que se abate ... é o não valer a pena !
Fado são os subsídios que nos foram sonegados ( coisa que já assimilámos, obviamente ... ),  é o cinto que de mês a mês aperta um furo ... é a sangria dos jovens, e daqueles que habilitados e credenciados profissionalmente,  procuram numa emigração só comparável à que lembramos das "calendas gregas",  um futuro lá fora ...
Fado são os suicídios por desespero e ausência de saída, a aumentarem,  ou os antidepressivos a serem vendidos em massa nas nossas farmácias ... são os idosos, que engolindo o que lhes restava de algum  orgulho, já pedem esmola às portas dos supermercados ... e os sem-abrigo a lotarem as instituições de solidariedade social !...

Em suma ... Fado é o que retomaremos garantidamente, sempre que os outros "fait divers" deixarem de conseguir alienar-nos mais, ou pelo menos adormecer-nos ou distrair-nos um pouco,  e acordarmos finalmente para a  nossa  verdadeira realidade !!!...

Anamar

" A MALA DOS SONHOS "


Nunca mais voltei ao meu local de trabalho.

A pasta com os últimos livros, os últimos dossiers, os últimos papéis, as últimas esferográficas já secas, foi desfeita e as coisas arrumadas, há apenas alguns dias.
"Jazia", é o termo, nas costas de uma cadeira da minha sala de trabalho, desde o último dia que a utilizei ... Quase três anos atrás !!!...

Incrível!

Olhei para ela vezes sem conta, mas não consegui mexer-lhe, menos ainda esvaziá-la, como se se tratasse de uma daquelas peças tão invioláveis que não ousamos mexer-lhes, sequer soprar-lhes o pó dos tempos.
Mais que uma vez tive essa intenção ; avançava dois passos na sua direcção, mas algo me impedia de lhe mexer, apesar de, de acordo com o meu sentido estético e de arrumação, ser absolutamente inconcebível, o facto de ter uma mala pendurada numa cadeira da sala, "ad eternum".

Aquela mala parecia "queimar-me" as mãos.  Desfazê-la e arquivá-la, no meu subconsciente devia representar-me um desfazer e arquivar de uma parte da minha vida.  Daí a resistência a fazê-lo.

O ser humano é espantoso !  É um intrincado de mecanismos tão complexos, de códigos tão incompreensíveis e incoerentes por vezes, ou aparentemente incoerentes, que raramente se lhes encontra um fio condutor lógico.

Hoje tento lembrar-me se no último dia que ali a deixei, ou seja, no último dia que lhe utilizei o conteúdo, que é como quem diz, que fui para as aulas, tive consciência disso.  Penso que não.
Tratou-se de um período extremamente conturbado em termos de saúde, em que a partir de fins de Novembro de 2009 fiquei em casa com atestado médico, dia 31 de Dezembro entreguei o pedido de aposentação antecipada, e a 28 de Maio de 2010 ela foi-me concedida.

Foi um período algo tenebroso na minha vida, um período em que penso que não vivia, flutuava, planava por sobre as realidades, quando não dormia sob o efeito de medicamentos.
E talvez graças a eles e ao entorpecimento por eles provocado, não consciencializei que estava a bater a porta definitivamente.
E por isso, aquela viragem na minha vida não foi avaliada em consciência, creio.

À escola voltei uma única vez, no fim de 2010, para a habitual reunião geral, em que por tradição são homenageadas as pessoas que cessaram funções nesse ano.
Nem nesse dia me emocionei, ao receber as flores e o presente da praxe, nem sequer ao ler uma pequena dissertação alusiva à ocasião e que dirigi particularmente aos novos professores, àqueles que ali estavam tal como eu estive, trinta e seis anos antes, numa reunião idêntica, só que de abertura de ano escolar, com um sorriso no rosto, uma ansiedade gostosa no coração, e uma pressa de que tudo começasse rápido, para que extravasasse aquela vontade de me dar, de me disponibilizar, de amar, ajudar, e se possível orientar aqueles putos, tímidos uns, reguilas outros, curiosos quase todos ...

Tinha então vinte e três anos, usava mini-saia, já era mãe mas não parecia, e sentia-me a encarnar aqueles seres sentados à minha frente, como quando era eu que ocupava as carteiras então.
Carregava os livros, os dossiers, as cadernetas ... mas sobretudo um monte de sonhos e ilusões, um monte de expectativas e vontades, uma força imensa de ensinar mas também de aprender todos os dias, sempre !

Cumpri uma vida naquela escola, à excepção de um único ano, em que por força da lei, fui obrigada a ir à província.
Além da docência, fiz de tudo também.
Não vou repetir o que tem sido lembrado exaustivamente por tantos como eu, cujo sacerdócio foi o mesmo.
Também não vou lembrar, até porque me dói, todo o maquiavelismo utilizado a desmembrar uma das mais nobres profissões do mundo, tornando-a, como alguém escreveu, uma "doença terminal" ...
Guardo para todo o sempre o que me deixaram ... a amizade e companheirismo partilhados com tantos colegas com quem me cruzei, mas sobretudo a dádiva incondicional e inestimável, de tantas gerações de jovens que por mim passaram.

Para além disso, guardo uma mágoa sem tamanho, uma raiva pela impotência perante a subalternização miserável a que todos fomos votados, uma preocupação e uma frustração imensas, por observar os caminhos ínvios e sem volta, a que estão a remeter a educação neste país !!!

Nunca mais voltei ao meu local de trabalho ;  custei a desfazer a mala ...

Agora sei bem porquê ...
Lá dentro ainda estavam, já bolorentos claro, os sonhos, as ilusões, as expectativas, as vontades ... e todo o amor que nela transportava generosamente, no meu primeiro dia, como professora !...

Anamar

terça-feira, 12 de junho de 2012

" INEXORAVELMENTE "

A vida aproxima e afasta as pessoas.
Os acasos determinam quem nós conhecemos ;  o destino ... quem permanecerá.

Dificilmente amizades de infância ou até da adolescência perduram, mercê da mobilidade das pessoas hoje em dia.  Não é raro, aliás é o mais frequente, que as vidas se iniciem  num local, e terminem noutro, atravessando por vezes alguns outros pelo caminho.
Muitas vezes, regressando à origem, com aquela sensação de poder reencontrar o que ficou, ele já lá não está ; os espeços, as cores, os cheiros, tudo sumiu, tudo ficou estranho, as pessoas também, no vórtice do tempo.
E essa busca ilusória do reencontro, torna-se mesmo num acontecimento incómodo e doloroso.
Buscamo-nos, buscando os outros ... buscamos no presente o passado, e tal é obviamente impossível.
Nem nós somos aqueles, nem os outros também o são.
E fica uma coisa meio constrangedora e decepcionante, triste mesmo.

São quase singulares os casos em que se cresce e morre no mesmo sítio,  nos tempos actuais ; talvez esse privilégio ( será ? ) pertença já só aos nossos ancestrais ainda vivos, confinados às pequenas comunidades perdidas no recôndito das aldeias da nossa terra.
Aí as famílias viviam em casas grandes, partilhando-se sempre, mesmo que fossem crescendo.
Avós, pais, filhos e depois noras, genros e netos, congregavam-se em torno da casa-mãe.
Era o tempo das grandes mesas de Natal, das Páscoas em comunhão ... o tempo em que os velhos morriam entre as paredes que conheciam e que sempre foram suas, em que as pessoas se reuniam nas refeições, em que as pessoas conversavam à mesa, sem pressas ou afobações por demais.
Era o tempo em que nos cemitérios da vila ou da aldeia se detinham as campas familiares, e ficávamos com a certeza que também aí permaneceríamos juntos para todo o sempre, e que em romagens póstumas, íamos de campa em campa, e estavam ali todos, naquele chão sagrado, os que já haviam "desertado" ... a família, afinal, uma vez mais reunida !

A realidade do hoje nada tem a ver com nada disto.
Os amigos perdem-se, ou simplesmente afastam-se ( muitas vezes nem sabemos porquê, sempre atribuindo à vida "corrida" a responsabilidade disso mesmo ).
É vulgar encetarem-se relações de amizade, muitas vezes acidentais, já na fase descendente, em que as solidões que entretanto se instalaram, como que solidarizam as pessoas.
E mercê das circunstâncias e das realidades, essas relações são por vezes resistentes, e vão ficando, com altos e baixos, com proximidades e afastamentos, mas resistem.  Por vezes amizades que vêm da vida profissional, ou da simples proximidade de vizinhança, mostram-se mais sólidas e fortes mesmo, que as criadas pelos laços de sangue, que entretanto se diluíram lá para trás.

Com os amores, mais inexplicavelmente ainda, também o tempo dinamita até aquilo que juraríamos ser intocável, e que convictamente garantiríamos ser para sempre.

Mas o que é  "para sempre" ?

Cada vez mais, nada é para sempre ... nem as coisas, nem as ideias, nem as convicções, nem as posturas ... porque as pessoas também não são para sempre, como é óbvio ...
E é espantoso !...  Eu ainda  "pasmo"  como o tempo incrivelmente desfaz o feito, o que julgávamos solidamente feito ... o que juraríamos ser impossível morrer, sem que nos matasse primeiro !!!
Infantil, utópica, naïve ... romântica demais esta forma de sentir, para a idade e vivências que já tenho ... pois se até os rochedos das falésias são desgastados lenta e inexoravelmente pelos ventos e marés, dia após dia, ano após ano, numa implacável moldagem e destruição !!!...

Tal como eles, o ser humano sofre a erosão imparável do tempo, mas também, tal como  neles , no seu coração ficam as marcas deixadas, e ficam os estratos sobrepostos, camada sobre camada, cicatriz sobre cicatriz,  "fossilizando" as histórias de vida, ... desenhando para todo o sempre, a "geologia" de cada um  de nós !!!

Anamar

segunda-feira, 11 de junho de 2012

" A TEIA "


A linha é feita de muitas linhas.
A teia é feita de muitos fios.
São finos, são diáfanos, são etéreos, dissimulam-se ... são quase invisíveis ...

Na copa daquela árvore, ligando a folhagem, num bordado pacientemente tecido, beneficiando da exposição aos escassos raios solares que atravessavam a vegetação cerrada daquela mata, lá estava ela ... a teia !

Desafiadoramente perfeita, num projecto geométrico e matemático irrepreensível, simultaneamente delicada e resistente, aparentemente vulnerável mas invencível.
A teia é um local de "paz", é um reduto de silêncio perturbador.
É uma cortina de morte, entre espaços de vida. O cá e o lá ... o antes e o depois dela.

E depois há ela, e a aleatoriedade dos momentos.

Ela não é um canto de sereia de emoções e promessas ...  Ela não é uma luz acesa, em torno da qual "zanzam" em círculos, borboletas da noite, impotentes e estonteadas ...  Ela não é um pântano sem aviso, que brilha e desafia, ou uma rede de sesta entre troncos ...  Ela não é uma miragem de areia, duna após duna no deserto ...

Ela está simplesmente lá, naquele cais de espera.
E depois há tudo o que acontece porque deve acontecer !

Tenho a certeza que é doce e embaladora, quase desejável ...  Tenho a certeza que não é um labirinto de cansaços e indecisões, mas é um berço, uns braços ou umas mãos, gávea de navio a baloiçar em maré mansa, um regaço, uma nuvem de algodão ... um charco de água no meio da aridez ... uma última nota ... talvez um último som !...

Mas a teia é para quem está ... não é para quem chega.
Ela estremece quando algumas asas a tocam.  Estremece capciosamente de prazer, e faz-se anunciar ...
Parece cais de aportar,  molhe de abrigo ... um farol norteador ... um voluptuoso véu de noiva ...
Mas na  verdade  torna-se uma tormenta, uma cratera  em actividade,  um tornado em girândula avassaladora !
A teia é um alçapão num trilho atapetado.  É uma falta de chão repentino.  É um fosso inesperado atrás de uma  moita de giestas.  É uma ravina ou desfiladeiro  a pique, no fim de um caminho  apenas  iluminado pelo luar ...   Ar rarefeito, no topo da montanha soberana !...
Na teia esbarra-se, tropeça-se, cai-se ...
Os tentáculos entorpecentes abraçam, acariciam ... a melopeia narcotizante inebria, o cântico lânguido adormece ...

A teia é um fim de linha ... um caminho sem volta !!!...

Anamar

domingo, 10 de junho de 2012

"ESTÓRIAS ??!!... QUE ESTÓRIAS ??!!..."


Hoje retomei a minha caminhada.
Ou simplesmente tomei-a hoje ... sei lá !

Sendo extremamente indisciplinada na vida, desde os aspectos físicos, aos psicológicos, aos de coração ... ( de facto toda eu sou uma "casa desarrumada" ), não consigo dizer se se tratou de algo pontual, ou se terei entrado nos "eixos" por algum tempo.
Sempre por "algum tempo" ...  Tudo comigo é por "algum tempo", estranhamente !
Sei que precisava "falar-me", respirar natureza, fundamentalmente sair de casa.  Neste momento as paredes desta casa são-me algo fóbico, que não me faz bem nenhum, que me abafa, me angustia, me arrasa.

Reencontrei a "minha" mata, com tudo no sítio, perfeito, florido, cheiroso ... deserto.
Uma das particularidades que sempre me agradam quando me sinto "encerrada para obras" ( como é o meu momento actual ), é poder caminhar, caminhar sem ver ou encontrar vivalma.
Ando um bocado farta de gente, de conversa, a maior parte das vezes circunstancial ;  farta de ter que afivelar este ou aquele semblante, só porque tenho a noção de que ninguém terá que descodificar se estou excelente, péssima ou assim assim !
Condicionalismos da vida social, condicionalismos de se viver numa mesma terra há 48 anos, na mesma casa há 38 ...

A meio do percurso, bem à minha moda, já pensava que o passeio estava a finalizar, e que a casa, aquela penumbra de fim de dia, aquele silêncio, aquele vazio, aquela solidão, estavam lá à minha espera.
Decidi que nada feito ... não ia confinar-me a esse "castigo", às cinco horas de uma tarde espectacular de sol, céu azul, uma brisa que condimentava na justa medida a força do astro-rei.

E como o "diabo foge da cruz" e quase em automatismo, meti-me no carro e vim ao Belas tomar um café.
Por aqui também há silêncio, apenas um silêncio emoldurado, como num quadro impecavelmente bem pintado, pelo verde da relva do golfe, ou dos pinheiros mansos aqui e ali, o branco das estevas, o ouro das urzes, o rosado das murtas, enfim, as pinceladas multicoloridas de tudo quanto é flor no mato rasteiro .
Por aqui joga-se golfe, pelas encostas doces deste tapete sonolento, um desporto que sempre me parece desafiadoramente repousante, intimista ... "cool" ...

A passarada privilegiada que por aqui habita, ostenta provocadora, uma liberdade estonteante ; os melros curiosos assomam as cabeças negras de bico amarelo, como se espreitassem de "tocaia" ... as andorinhas delicadas e dançarinas, ensaiam coreografias laboriosas, ora alto, ora baixo, recortadas no azul ... desenhadas no verde !...
Os patos bravos, rasam os lagos, mergulham, "catam" qualquer coisa ... e seguem displicentemente, nadando em marcha ordeira, bem comportados, até que voltam a mergulhar, a "catar" ... a seguir ...  E assim sempre!...
O sol, esse caminha em direcção ao ponto cardeal que lhe dará cama logo mais, mas entretanto, porque ainda vai alto, faz a gentileza de me envolver totalmente, na mesa em que me encontro, de chávena já vazia à frente, música calma nos ouvidos, telemóvel como única ponte com o mundo para lá deste oásis ...

Enfim, um domingo mais sem história, ou com muitas estórias ... a mais surpreendente das quais é, embora pareça estranho, o facto de continuar viva por aqui !...

Anamar

sábado, 9 de junho de 2012

" OS VEZO - um paraíso em qualquer lugar "


Os "VEZO"  são uma etnia indígena do sudoeste da Ilha de Madagáscar.

Nas minhas perambulações nocturnas pela TV, nas minhas "viagens" intermináveis no Travel Channel, "fui" até lá ;  deixei-me transportar pela aventura, pela curiosidade e pelo prazer de Jérôme Delafosse, o viandante de nacionalidade francesa, da Bretanha, com rosto de querubim e corpo grandão e desconjuntado, de turista de "pé descalço".

Os "VEZO" são povos nómadas, com uma precariedade de vida que aos nossos olhos ocidentais, parece insuportável, inaceitável, absurda.
Vivem ao sabor das tradições, do tempo, das marés, dos frutos e do peixe no mar.
Deslocam-se velejando em canoas rústicas e precárias, meramente em busca de condições favoráveis para subsistirem.  Famílias inteiras ... crianças de meses, vivendo da sorte por cada dia, geração após geração, século após século.
Montam tendas nas areias, junto ao mar, sob copas das árvores das costas desertas, abrigando-se dos ventos, cozinhando em fogueiras improvisadas, de madeiras perdidas ; as águas lavam e dão o "pão" de cada dia ;  o céu é a abóbada de protecção ...  de sonhos não, porque os "VEZO"  não os têm.
Não têm a noção do tempo, não têm preocupações de futuro ... Vivem cada dia de "per si", regidos exclusivamente pelas leis da Natureza, que implacavelmente as dita ...
Chegam a ser comoventes o desprendimento, a simplicidade, a alegria e a felicidade que transbordam, na liberdade que encarnam.

Liberdade é isso mesmo, creio.
Liberdade não tem definição, do meu ponto de vista.  É um estado de alma, é um estádio de vida, é uma opção, ou nem chega a sê-lo ...  É tão só um determinismo do destino.
Nasce-se com, ou sem ela, sobretudo na alma ...
Interrogo-me por que desígnio inatingível, se nasce aqui ou ali no planeta que dividimos ?  É-se isto ou aquillo ? Temos esta ou aquela  " formatação " de génese ??!!
A mesma  matéria, uma bio-diversidade alucinante, esmagadora, fascinante, inexplicável ...

Sempre invejamos o que não temos.  O ser humano sempre se sente incompleto, insatisfeito ... sempre anseia o que não detém.  Faz parte da nossa natureza, creio, ou pelo menos da minha, na eterna inquietação e turbulência interiores.

Os "VEZO" vivem a vida inteira integrados em paraísos terrestres, inteiramente graciosos ;  acordam e dormem com verdes exuberantes por sobre as cabeças, esbanjam nasceres e pores-de-sol ;  a chuva acaricia-os, o vento curte-lhes a pele canela.  Os cheiros já não lhes importam, talvez nem sequer os percebam !
Do salgado da maresia aos adocicados dos frutos do sul, nada os surpreende, nada os extasia ... é a sua realidade ...  Nada de novo !
Não exprimem emoções.  Pelo menos naquilo que constitui o nosso repositório de emoções.
Penso que talvez possam vivenciar o medo, por terem noção da sua vulnerabilidade ( enquanto seres desprotegidos ), o afecto, embora de uma forma absolutamente particular ( em especial pela valorização do núcleo familiar ou clã , realidade da qual nunca se desvinculam ), o temor e submissão sos deuses ( enquanto seres promotores dos seus destinos ; deuses que habitam o mar, lugar sagrado onde os espíritos se acolhem ) ... a alegria, sem dúvida, na partilha, nas gargalhadas e risos que semeiam ingénua e displicentemente ...

De resto, têm uma total aceitação permanente e indiscutida, do que desfrutam.
Se a pesca foi generosa, os deuses foram protectores ... se foi precária a apanha nessa noite, come-se menos, simplesmente.
As crianças talham as suas próprias canoas de brincar nas ondas, arpões incipientes para peixes "incipientes", na rebentação ... uma bola adquirida na "civilização" ... e mar, muito mar aos pés, para viver!

Aos meus olhos ( de utopia, com certeza ), os " VEZO " representam-me em particular na actual realidade social, antropológica e pessoal, um "éden" individual e colectivo, a paz global, a ausência de conflito interior, a ausência de questionação existencial destrutiva, da insatisfação permanente, da dúvida e insegurança exponencialmente projectadas, a ausência daquele medo que advém da ansiedade do ter, a pureza de valores e sentimentos, almas e consciências não corrompidas ... enfim, se calhar o que eu "realizo" no meu espírito ... o que talvez nem exista !!
Seguramente o convite,  ou a proposta despudorada, de uma "fuga" sem volta !!!...

                               
Anamar

sexta-feira, 8 de junho de 2012

" LOCAIS DE PASSAGEM "


NOTA : Esta história é baseada num caso verídico


Entrei naquele espaço meio atordoante, meio desesperado, meio sufocante.
Eu próprio também o estava.
A cada tentativa que fazia mais, o coração sempre me disparava no peito, porque a esperança é a última que morre, creio.

DIVA desaparecera na Serra.

Nunca se sabe por que um cão procura a liberdade ... tendo connosco tudo o que nos parece ser o bastante ...
Mas a liberdade é a liberdade, os cães são animais nobres, e a nobreza de um animal, como a nobreza de qualquer ser vivo, deverá exigir-lhe a sua busca, sempre ...

Por isso DIVA não tinha sido ingrata ... simplesmente procurara a sua própria liberdade naquele dia.
A minha "via sacra" começou então ; o anseio de voltar a ter o seu convívio, a esperança de a retomar, era tudo o que me dava força para alucinadamente ter percorrido todos os caminhos prováveis e improváveis, ter solicitado todas as ajudas, ter movido todos os meios ao meu alcance, para que DIVA fosse recuperada.
Nesse dia era apenas uma tentativa mais, talvez a última, de que por um golpe do destino, ela pudesse ocupar alguma das boxes daquele canil, sinal de que estava viva, existia, tinha sido encontrada.

Mas os canis - quem já os visitou, sabe bem - são locais de agonia, de uma agonia atroz, corredores de morte.
Não daquela morte que o Homem cumpre por determinação dos seus pares ( senhores e donos do que acham ser justiça ), mas locais de condenação de seres indefesos que a esperam ( não porque tenham cometido um crime, ou tenham lesado a sociedade ), mas porque o Homem, por leis absurdas, arbitrárias e monstruosas, assim o decide.
São celas de espera ... locais de passagem, simplesmente.

E também aí, como nos humanos, cada ser tem a sua individualidade própria, a sua forma de ser, estar, de sentir ... de se rebelar ou não, de sentir raiva, medo, ou simplesmente impotência e desistência ...
Tenho absoluta certeza que atrás daquelas grades, naquela contagem decrescente, cada cão, cada gato, "sabe" exactamente que o seu destino foi aleatoriamente traçado, injustamente decidido pelos que deveriam ter sido os seus melhores amigos, os seus companheiros de percurso, e que pouco ou muito pouco, há já a fazer ...
E por isso também as suas posturas mostram claramente o seu carácter.

Os meus olhos bateram no azul-lilás glaciar do olhar daquele "husky", aparentemente distante, indiferente quase, deitado no chão da box que ocupava.
Penso  que "sorria" com  a  mesma  complacência  com que  Cristo  quando  na  hora da Sua  "passagem"   ( elevando o espírito ao Pai ), terá intercedido pelos Seus algozes : "Pai, perdoai-lhes porque não sabem o que fazem "!...  diz a Bíblia.

Os sons daquele "inferno" eram indescritíveis, aterradores ...
A movimentação dos animais em desespero, nos espaços exíguos que ocupavam, dantesca, irrazoável ...
Havia um uníssono pedido de socorro que ecoava, ribombava, fazia estremecer, como tempestade a aproximar-se ...
Havia um clamor angustiado e doído de abandono e de terror.
Havia uma dor pungente, que era impossível não nos assaltar o coração, fazendo-nos sentir pequeninos, medíocres, incapazes, fazendo-nos assumir vergonha até na alma ...
O ser humano no seu pior !!!...

A postura altiva daquele animal chamou-me a atenção.
Era inusitada, não era espectável, era superior.  Sem dúvida reveladora de um particular carácter.

A minha visita ao canil mostrara-se uma vez mais infrutífera.  DIVA também não estava por ali ...
Sentia-me atordoado, meio "adormecido", derrotado, meio "morto" por dentro.
Segui até ao fim dessa rua de jaulas.
Os cães em alvoroço ensurdecedor, saltavam o quanto podiam às grades, chamando, apelando, parecendo pedir clemência, analisando possivelmente o "facies" dos visitantes, como se cada um pudesse representar um possível salvador, um possível futuro, uma vida outra vez, uma derradeira "chance".
Cada pessoa, e eram sempre excessivamente poucas, não era mais que o limbo entre a Vida e a Morte, naquele mundo aterrador e fantasmagórico.

No regresso teria que passar de novo junto àquele cão que me fascinara, desafiara de certo modo ... me enternecera e me "tocara".
O meu coração havia acelerado ;  uma sensação estranha invadiu-me, uma "ordem" interior, martelava-me a cabeça.
Qualquer coisa que dentro de mim já se tornara distinta e irreversível, instalara-me um nó na garganta, comprimia-me o peito ...
Ele mantinha-se imóvel.  Apenas me olhava no azul cristal líquido das suas íris distantes, gélidas ...  Aparentemente impassível ... derrotado, não creio ...
Apenas "morrendo de pé", com a altivez e o orgulho das árvores, seguramente ...

Abeirei-me, olhei-o nos olhos e sussurrei-lhe ao ouvido :  "Se a DIVA não for encontrada, venho buscar-te na próxima semana" !...
( Estava marcado que esse animal seria abatido dentro de dias ).

A DIVA não mais fez parte da minha vida.
O destino decidira que seria assim.  Da  DIVA nunca mais tive rasto..
Apenas, também o destino decidira que as minhas lágrimas por ela, seriam secas pela partilha do amor que se iniciara nesse dia.
Assim é a vida ... Não se descreve, não se explica ... aceita-se e vive-se ...

ZEUS viveu comigo os anos que a saúde lhe permitiu.
Foi um dos maiores AMIGOS que tive o privilégio de possuir, um dos maiores companheiros, cúmplices ... um dos maiores, incondicionais e magnânimos afectos da minha vida., um dos seres mais "inteiros" que cruzaram o meu caminho !!

Deu-me um amor como só os animais sabem oferecer.
Uma grandeza de alma ( que eu sei que ele tinha ), num "rosto" e num coração de cão, que nenhum ser humano jamais alcançará !!!...

Anamar

quinta-feira, 7 de junho de 2012

" DIVAGAÇÃO "


Um domingo mais, de Inverno de "penetra", quase num Verão pelo calendário.
Tudo a desoras, tudo desencontrado, tudo às avessas.
O Mundo às avessas, a Vida às avessas ... as pessoas a fazerem o que não querem, a viverem o que não querem, a sonharem o que não têm.

Mas os sonhos são isso, não?
Os sonhos são exactamente o que se inventa, o que se desenha em écrans inexistentes, próprios para verdades inexistentes.
Os sonhos são fantasminhas que atordoam as noites, mas também atordoam os dias. E os dias são difíceis de partilhar com fantasmas, já que nas noites os nossos olhos estão fechados, e consequentemente a alma também, mas nos dias as pupilas deixam passar muito mais luz, e sempre teimamos em estar dispertos ...
E depois, os dias são compridos ...  Os dias valem duas noites pelo menos, e o fôlego falta, pois são verdadeiras montanhas a escalar.

E a soma dos dias faz semanas, e estas, meses ... e estes, anos ... e os anos, vidas.
E ao contrário dos dias, as vidas passam num instante e são cheias de contradições.  Zombam connosco.  Brincam de "baralhar e voltar a dar", e quando julgamos que já dominamos aquele jogo, é tudo mentira ... não conhecemos merda de jogo nenhum.

Sempre somos aprendizes desta história.
Sempre somos aprendizes de marionetas.
As marionetas são mexidas por cordéis entre dedos habilidosos.  Mas as marionetas são simplesmente mexidas.  Como bonecos, não têm vontades.
Têm vida, pela aleatoriedade da vontade de quem com eles brinca.
Ganham vidas de fingir, e fingimos que temos vidas !

E arrancamos gargalhadas em dias de sol.  Apenas ... o sol não brilha muito, porque agora parece ser Inverno outra vez.
E há o mar, aquele berço de ninar que sempre embala para cá e para lá ...
Mas o mar agora está muito longe, e só serve de berço a cinzas.  Mas para isso é preciso dormir em paz.  E quem tem pesadelos ainda não dorme em paz !

E há a serra, há as mimosas, as madressilvas, as margaridas silvestres, as tâmaras maduras ... ou há simplesmente o ruído das marés a bater nas rochas sonolentas, ou o grasnido das gaivotas e das andorinhas do mar aproveitadoras do vento distraído.

E depois o céu insiste em ficar cinzento, que é aquela cor que é e não é ... e que é muito pior que ficar negro ... e claro, muito pior que ficar azul límpido e trasparente, porque isso só acontece em dias em que a Vida brinca de Vida e não de Morte.  E esses, não são muitos ... aliás, são raros !...

As montanhas desenham limites que parecem limites, mas não são !
As montanhas são as portas do céu que se abrem em leque, ou em corolas de malmequeres a desfolharem o bem e o mal me quer ; ou ainda como pedras de dominós que se derrubam, com a facilidade de castelos de cartas a empurrarem-se ... ou farrapos de nuvens que deslancham, como claras em castelo ...
Mesmo assim, as montanhas são absolutamente fiéis, porque são perenes e verdadeiras.  Precisam milénios para fugirem e se esconderem de nós.  E nós não temos milénios para as ver ir !!!...
Por isso, os condores as habitam, os falcões as amam, as águias as buscam.
Pelas suas janelas corre a aragem fresca, e o Mundo espreita.
Quem atravessa as suas portas esbarra na liberdade do outro lado, e sufoca-se com a paz e o desprendimento.

O arco-íris, que é aquele trampolim com que os diabinhos se divertem, sempre surge quando as lágrimas se misturam com sorrisos.
E costuma aparecer lá por detrás das montanhas, quando o coração resolve adormecer no mar, e o céu pega fogo ...
É a hora em que a lua cheia acaba de se enfeitar, e decide vir ao salão de baile, escutar as óperas de Mozart, que tocam só para nós !
Os corais explodem então em mil cores esfuziantes, as anémonas sacodem vaidosas as "plumas" de pavão, e as conchas e os búzios vêm até à praia espreguiçar-se ...
Nos  templos, as  ladainhas  rodopiam nas abóbadas, sobem aos pináculos, passam  muito para lá dos torreões, violam os vitrais,  entontecem  nas rosáceas ... e  os salmos e os "glorificat" ecoam até  aos infinitos ...

Lá ... onde os sóis nascem e se põem, indiferentes !!!...



Anamar

quarta-feira, 6 de junho de 2012

" O RAPAZ DAS AMORAS "




Não se precisa do que não se conhece.
Sofre-se com o que se conhece, queríamos, podíamos ter e não temos ...

Ontem perdi estupidamente um casaco de malha de que gostava muito.
Estupidamente como afinal acontecem todas as perdas, e particularmente as que ocorrem por desatenção, falta de cuidado, ausência de concentração ... dispersão de espírito, da nossa parte.
O tal casaco foi pertença de uma das minhas filhas, creio, ou pelo menos, tanto quanto sei, ela ofereceu-o à avó, não sei se por "prenda" mesmo, se porque não o vestindo e pretendendo aliená-lo, entendesse que ele era adequado, e ficaria bem, no corpo da avó.
Contudo, sendo embora muito bonito, de uma malha de seda e um cair clássico impecável, não correspondeu ao entendimento estético da minha mãe.
Deixara-o portanto "adormecido" no roupeiro.

Aqui há uns tempos, não muitos ( creio que só tive o privilégio de o vestir talvez duas vezes ... tão curto o tempo que o detive ), a minha velhota resolveu sugerir-me que o trouxesse, para que o usasse ... "Uma pena estar ali enfiado" !...
Assim fiz, e achei-me sortuda por ter uma peça "nova" no meu guarda-roupa.
Ontem, pela tarde, indo para fora de casa talvez até à noite, e tendo-se instalado uma aragem meio desabrida, resolvi prevenir-me e levá-lo comigo, para o "que desse e viesse".
Coloquei-o entre as asas da mala, em tão má hora, e num daqueles gestos que fazemos quase mecanicamente sem que os consciencializemos, que terá caído sem que tivesse "gritado por socorro" !...

Essas posturas do ser humano, em que a cabeça se "despega" do corpo, sempre dão "bota".
As coisas tornam-se como que invisíveis, estão lá onde as colocámos, mas nós é que já lá não estamos ... e pronto ... fácil, fácil, deixam também de estar ...
Cresceu-me uma raiva imensa contra mim própria, pela incúria, desatenção, falta de previsibilidade ... tontice.

Contudo, perante alguma coisa que por mais que eu quisesse reverter não mais seria possível, pensei : " Não tinha que ser meu !  Por portas travessas veio ter-me às mãos, sem que tivesse estado inicialmente destinado a ser propriedade minha.  Aconteceu algo que foi absolutamente inalterável.  Nada a fazer !...
Neste momento, a sua história continua ... noutras mãos, alindando outro corpo ... abrindo certamente um sorriso noutro rosto " !!

Deixou de me fazer falta.
Não se precisa do que já não é nosso !  Não se deve sofrer por já o não termos, embora o tivéssemos amado.
O ser humano um dia parte, e pouco ou nada leva.
O desapego é uma virtude.  Quanto menos temos, menos ansiamos, menos sentimos falta ... mais completos nos encontramos, menos infelizes, porque menos insatisfeitos !
Como referi num post anterior ... assim disse Pessoa !!!

Devíamos treinar a simplicidade, a ausência de ambição desmedida pelo material, a ausência de prolixidade em que sempre tendemos a submergir-nos.
Em suma, devíamos ser como o "menino das amoras", da história que uma amiga mais ou menos me contou ...

Pedro e Samuel eram dois meninos da mesma idade, que haviam nascido no mesmo dia e viviam realidades opostas.
Pedro vivia num mundo de sonho, de super-abundância, de ostentação, de excesso ... de facilidade.
Habitava uma casa maravilhosa, rodeada de jardins mais maravilhosos ainda, com relvados perfeitos a perder de vista, flores cuidadosamente dispostas em ornamentação estudada, com lagos pejados de peixes vermelhos.
Pedro tinha as melhores roupas, os melhores sapatos, os melhores brinquedos, uma alimentação privilegiada, empregados a rodearem-no.

Samuel era um menino muito pobre, solto nos campos, entregue a si mesmo, tendo como únicos tesouros, os pássaros, as plantas, o sol e o vento que lhe desalinhava os cabelos, nas brincadeiras livres.
Do topo das érvores onde amarinhava ( rasgando os pés descalços e esmurrando os joelhos ), tinha o Mundo ao seu dispor ...
Samuel não conhecia para lá dos horizontes da sua aldeia.  Conhecia de  cór o nascer e o por do sol, e as poças de água, de chapinhar em dias de chuvadas insistentes.
Tinha o ribeiro para os mergulhos nas tardes quentes, e como brinquedos, a sua flauta de cana e o pião de guita, que o sr. Chico da mercearia lhe oferecera, num dia de boa disposição.
Tinha as fisgas que construía para fingir que apanhava pássaros, brincava com as rãs nos charcos e metia-as nas calças, para pregar partidas matreiras às irmãs ;  era o maior a caçar os grilos e os gafanhotos, e também jogava com os berlindes que cerravam os pirolitos da loja do sr. Chico.
Bolas, tinha quantas queria ... das meias muito rotas lá de casa.
Samuel ainda não ia à escola ; comia as maçãs das árvores altas, as maçarocas do milho, que tomava à socapa dos milheirais da vizinhança, e assava numa fogueirinha ...
Comia uvas das latadas, o prato de sopa ao dormir e o leite que sobrava da venda ... quando sobrava ...
Ah, claro ... e as amoras selvagens que apanhava  nos caminhos, e que não eram de ninguém ...

Por sobre os muros dos jardins da mansão onde Pedro vivia, conheciam-se através de conversas trocadas.
Tinham vidas completamente diferentes, corações infantis iguaizinhos, olhos puros, a ingenuidade e a nobreza das crianças.
Pedro era um menino triste, sem sonhos, sem horizontes, sem vontades.
Samuel era um "potro" livre, que inventava de ser feliz, que se comprazia com o nada de que dispunha, e com as amoras silvestres que apanhava às mãos cheias.

No dia dos respectivos aniversários, Pedro quis que o seu amigo vivesse um dia surpreendentemente diferente.  Por isso convidou-o a passá-lo consigo, desfrutando da sua casa e dum lanche, na sua "gaiola dourada".

Tudo foi oferecido a Samuel, que extasiava incrédulo, curioso, com os olhinhos amendoados, arregalados, no rosto bem vermelho pela surpresa e emoção.
Comeu até fartar, de tudo o que conhecia, não conhecia, nunca vira ou sequer sonhara.
Brincou com brinquedos que jamais imaginara, ouviu outra música que não a dos pássaros, fez corridas de bicicleta, assistiu às séries infindáveis de desenhos animados que preenchiam o tédio das longas tardes de  Pedro.  Pasmou com as figurinhas lindas e coloridas, dos livros que povoavam o imaginário do menino ...
As bolas de jogar, estranhamente eram de borracha.  Não tinham a "sensibilidade" das suas, inventadas, de trapos ...
E os soldadinhos não tinham fisgas nas mãos, mas fusis e espadas ...
Não sujou os pés na terra, porque estava obviamente calçado com as únicas botas que possuía.
Não caçou pássaros, nem apanhou grilos ou gafanhotos ... menos  ainda rãs, porque na casa de Pedro não havia charcos.
Não ficaria bem subir às árvores do jardim, e por isso, os joelhos foram poupados.  A emoção, também !...

O dia chegou ao fim, e com ele chegou a hora de regresso de Samuel.
Cansado, eufórico, com o "João Pestana" a pesar-lhe nos olhinhos e o coração ainda aos saltos, o menino despediu-se do amigo.

Como última gentileza, os anfitriões procuraram saber da satisfação de Samuel pelo dia que passara na sua casa, inquirindo da sua alegria e sugerindo à criança que comesse  algo mais, antes de partir ;  alguma coisa que ainda fizesse gosto ...

O rapaz ficou repentinamente sério e circunspecto, como que analisando no seu interior, o que poderia faltar-lhe, no meio de tudo e de tanto.
Instado a responder, arqueou as sobrancelhas, elevou os ombros, e depois de uns minutos em silêncio, disse, timidamente baixinho :

" o que realmente me apetecia ainda ... eram só umas AMORAS " !!!...

Anamar

" O SER HUMANO "

PREÂMBULOTenho tido o meu computador avariado, razão pela qual há bastante tempo aqui não venho.    
Tenho, contudo, escrito alguma coisa, que recomeço aqui a publicar hoje.



Que coisa mais estranha ... Deixei de conseguir escrever !
Deixei de sentir dentro de mim razão de ser, para por no papel alguma coisa, porque pareço estar insensível ao que me rodeia, e era razão de exprimir emoções.
Desvalorizo sistematicamente todo e qualquer assunto, porque de repente, as coisas que me mexiam, eram gigantes e precisavam vazar, continuam a precisar vazar, mas esbarram por sistema em comportas que não abrem.
A "albufeira" vai lotando, lotando, o que me instala um sofrimento, um desconforto, uma falta de ar ... e um "dia é dia", como costuma dizer-se ...
Assim são as catástrofes naturais, quando a chuva é intensa e os lagos não comportam o excesso de caudal.

O computador entretanto avariou, embora ultimamente eu tenha deixado de ter uma relação muito saudável com ele.
Penso que saturei, ou me desinteressei, ou me incomoda, de alguma forma.
O ser humano é bem complicado ... eu sou bem complicada !

Hoje perdi a última esperança de fazer algumas férias lá fora, como todos os anos.
Normalmente as minhas viagens eram suportadas economicamente em grande parte, pelos subsídios e pelo acerto do IRS, que recebia exactamente agora no Verão.

Este ano, como sabemos, não só os subsídios não foram e não serão pagos, como o meu acerto do IRS é absolutamente ridículo.
À semelhança de um mail irónico que circula, simbolizando as "férias dos portugueses" ( assim se chama ) - em que se vê uma personagem em trajes de praia, sob um chapéu de sol e um copo de refresco na mão, frente a um televisor onde passam imagens de ilhas tropicais - também "viajo" todas as noites, compulsivamente, no Travel Channel.
E como invejo os realizadores desses programasa, que à conta de os produzirem, conhecem o Mundo inteiro !...

Não é justo que eu coloque aqui este estado de espírito ; aliás, é provocatório, descabido e egoísta.
Numa época em que o planeta se debate, mais que nunca, com todo o tipo de dificuldades  para sobreviver ... numa época em que as famílias se desdobram, inventam, lutam em desespero para subsistir ... numa época em que o comum dos mortais apenas quer saber se estará ainda empregado no dia seguinte, se terá dinheiro para manter a escolaridade dos filhos, "responder" às necessidades de saúde e alimentação sua e dos seus familiares ... em que os sem-abrigo aumentam exponencialmente sob o céu escuro ... em que os suicídios e depressões grassam, e nunca tantos portugueses recorreram ao psiquiatra ... numa época em que até o sol parece ter-se apagado por cima de Portugal ... em que até ele parece ter deixado de ser gratuito e generoso para todos, aqui no nosso cantinho ... bolas, falar em férias ... nesta época ... exactamente nesta "altura do campeonato", parece uma blasfémia, óbvio !
E é ... claro que é !!!...

Mas também é verdade que continuamos a ver assimetrias sociais gritantes ; continuamos a ver gente ( e são sempre os mesmos ), a "dar-se" muito bem na vida ; a manter os privilégios e os esquemas, à custa de muita coisa mal, ou não explicada ; continuamos a ver que as oportunidades afinal não são nem foram iguais para todos, que as arbitrariedades estão e continuarão instaladas, que não é quem trabalha honesta e transparentemente, que enriquece e deixa de ter sobressaltos de vida ... 
E isso faz-nos sentir um amargo de boca, uma revolta interior, uma raiva que amordaçamos, sempre amordaçamos ( porque os portugueses, de uma maneira geral, são "boa gente", pacífica, cordata e sofredora por excelência ) ...

No café de todos os dias, em que as pessoas se partilham momentos desses dias ... em que as pessoas não se conhecendo objectivamente, criam afinidades, criam laços, de certo modo, trocam escassas palavras de cumprimento e raramente de algo mais ... em que as pessoas por hábito, já sabem quem está "a faltar", e se questionam por que o será ... e até se inquietam, até inquirem " o que terá acontecido" aos ausentes ... chega a experimentar-se "alegria" se regressam, se os rostos voltam a fazer parte dos desígnios dos destinos ... que se cruzam, se descruzam, se dividem ...

Hoje regressou à bica do pequeno almoço, um utente do espaço, que "desaparecera" há cerca de dois meses, e que quando "sumiu", aparentava estar com problemas de saúde.
Um senhor beirando os oitenta anos, tipo inglês, distinto, discreto, extremamente correcto, um senhor bastante alto, seco de carnes, "low profile".
Não fui só eu a sentir a sua ausência, apesar de apenas trocarmos alguns diálogos de pura cordialidade.
O "doutor", como é tratado ( não sei do quê ... Eu "fazia-o" ex-militar ... general, brigadeiro ... nunca menos ... rsrsrs ), sempre me oferece, depois de o ler, o jornal desportivo diário, que compra . 
Reencaminha-o para a minha mãe, que nos seus noventa e um anos, como já tenho dito, sabe mais que muitos, sobre futebol e não só.
Sabe largamente do seu Sporting, que lhe dá dores de cabeça continuadas ( e para cujos insucessos sempre tem uma explicação justificadora ), e fica diariamente reconhecida, por ter acesso gracioso às "frescas", que a distraem pelas tardes ociosas.

E dei por mim, ao bater os olhos nele, a ter uma espécie de alívio, de tranquilização de alma, de alegria.
Porque afinal, o "senhor" não morrera, como eu já havia imaginado  ( embora tenha estado longamente doente ) ;  
E mesmo depauperado, voltou ao nosso convívio.

Parece exagero o que aqui escrevo. Pode parecer uma postura "atoleimada", descabida, até pretensiosa talvez, da minha parte.
Mas afianço-vos que senti tal qual assim, porque o "doutor" já é pertença minha, já há muito faz parte da minha realidade diária, de cada uma da vinte e quatro horas que me vão sendo disponibilizadas, na estrada que me é dada percorrer.

O ser humano é assim ... enquanto for HUMANO ... espero !!!...

Anamar

domingo, 6 de maio de 2012

" SOMBRAS "


O cheiro das madressilvas inebriava o carro, ainda que a braçada acabada de colher estivesse no porta-bagagens.
Havia um sol meio envergonhado num céu com nuvens espalhadas, se bem que a sua luminosidade chegasse para "acender" o mar, entre o verde e o cinzento, a rebentar perto das falésias.

Deixei-me invadir pela paz de uma paisagem verde de pinheiro manso, mato rasteiro com urzes em floração, macela nunca plantada, tojo a esmo, tudo em doce preguiça, até ao alcantilado da serra, em recorte no horizonte.
Um equilíbrio perfeito, momentos de harmonia rara e plenitude, de um estado de graça que não sabia onde começava, nem de onde vinha, mas que me tomava, me fazia sentir a correr pelos campos, atrás dos tordos e tentilhões, como em menina, de cabelos em desalinho e coração "na boca" ...
Nunca são muitos os lampejos assim, de uma felicidade sonhada, que me povoam os dias, sendo que também nunca são necessários muitos "condimentos", para que seja transportada, e me deixe ir com ela.

Mas essa tarde conjugara-os !

As gaivotas planavam ao sabor da aragem, displicentemente, de asas bem esticadas ... tal como eu, apenas "deixando-se ir " ...
De quando em vez, concediam-se o direito de um poiso de descanso  no alto de um poste, tentando equilibrar-se nos golpes de vento mais fortes, que sopravam.
Embora bem altas, miravam o chão com aquele ar altaneiro de quem desconfia e dá pouca confiança, levantando ao primeiro movimento estranho, ou à aproximação de alguém.

Fernando Pessoa disse : " Quem quer pouco, tem tudo .... Quem não quer nada, é livre .... Quem não tem e não deseja ... Homem ... é igual aos deuses" !
A compreensão de todas as "maneiras" profundas do ser humano ... sempre presente na sabedoria do Mestre !!!

Pensava exactamente isto num destes dias, ao contemplar o meu "farrusco do fiambre", nos terraços lá de baixo.
Ele e qualquer gato, dormem o sono dos que não anseiam, não querem, não se angustiam, não sentem insatisfação ... Vivem apenas !
Os gatos são praticamente deuses em simbiose de alma com o Homem, com o ser com quem se dividem e que sempre reconhecem como "amigo" ... porque "dono", é estatuto que, estou certa, nenhum felino sabe o que é.
Nessa matéria, a sua inteligência e sensibilidade, estão a anos-luz das do entendimento humano, que sempre se julga ser dono de alguma/muita coisa, algumas/muitas almas, de alguns/muitos corações.
O Homem, teoricamente um ser "livre" ( porque inteligente ), nunca o é.
O "livre arbítrio" é um "bluff" que enfatiza, porque na essência sempre está condicionado por real "formatação" pessoal, material, familiar, social, ética, religiosa, espiritual mesmo.
Até aqueles que se julgam ideologicamente mais libertos, menos conservadores ou submetidos, mais provocadores, os mais alicerçados em convicções largamente "trabalhadas", os mais pragmáticos em princípios, filosofias de vida, trilhos de percurso ... até aqueles que visionam as realidades de uma forma mais objectiva e as conseguem despir de emoções, devem acreditar, que jamais alcançaram  ou alcançarão, esse "estado de graça" !...
A única liberdade que lhe é conferida é a do "SONHO".
Através dele, estende as pontes que lhe são permitidas entre si e os deuses ... e "aqueles" ninguém lhos desvenda, ninguém lhos alcança ... ninguém lhos "censura" ou comanda ... Ainda !... 

O Homem vive com grilhetas nos pés, é escravo da Vida, arrastando pesadas correntes à volta do coração.
Não possui "sensor" de obstáculos, o que lhe daria imenso jeito, quer na marcha-atrás, quer no progresso de caminho.  Por isso "existe", com peias constantes, perde-se com frequência no trajecto e esfola a alma até sangrar ... vezes demais !
E dorme com a intranquilidade da insegurança, da apreensão e do medo, dorme com as cicatrizes da destruição pelo inalcançado, do sonho pela metade, do desejo irrealizado, da insatisfação e da frustração que o consomem ...

Não tem de facto a "sabedoria" dos gatos ... nunca vai ter !...

Há muito tempo que não escrevo. Há tempo demasiado. Tempo suficiente para me matar por dentro, porque não escrever, é "auto-racionar-me" o oxigénio.
Hoje mesmo teci aqui uma série de banalidades, numa sequência de conclusões demasiado óbvias, superficiais, desinteressantes de irrelevância e insatisfação.
Vários factores me estão a "secar" por dentro, por forma a esterilizar-me o encadeado de ideias, a tolher-me a torrente de emoções que habitualmente me domina, funcionando como mordaça colocada na alma e na vontade, por sentir que "vale pouco a pena" ...

Este espaço, apesar de público ( porque nunca o restringi ), na verdade é semi-público, pelo simples facto de por vontade própria, terem acesso a ele, apenas aqueles que achei merecedores disso mesmo, merecedores de "tocarem" a minha intimidade, e a quem facultei o endereço.
Aqueles que por um acaso nele toparam ( e sempre pasmo por ver quantos o fazem, dos cantos mais recônditos do Mundo ) ... não passou disso mesmo ... mero acaso.

Este espaço, como o refiro em preâmbulo ou nota de apresentação, é privilegiadamente intimista, é um falar de mim para mim, muito mais que para outrém.
Não tem veleidades de ser espaço cultural, tribuna de opinião de nenhuma ordem, cátedra de veiculação de conhecimentos, divulgação de ideias ou filosofias de vida.
Não tem a prosápia de pretender "catequisar" ninguém, alardear superioridades balofas, ou ser "fazedor" de correntes de conduta, ou formas de ser e estar.

Sempre reconheci a minha pequenez, tenho perfeita noção que o magistério já o exerci em local próprio especializado, e não mais, não tenho formação académica em Letras, sou uma auto-didacta da escrita, culturalmente sou o que sou, nunca entendi dar lições de nada a ninguém ... nem pretendo !
Não considero ter certezas de Vida, nem me espaldo ou "redutibilizo" nas minhas convicções.
Não sou "autista" nas posições que assumo. Habituei-me a questionar-me contínua e persistentemente, como exercício saudável, no dia a dia.

Por isso sempre vocacionei este meu canto, como subtil meio de alívio de "pressão interior", local de reflexão, de "paragem", de "poiso".
Por isso nele me exponho, demasiado, talvez ... tão só, coerentemente como sei viver, sem máscaras, subterfúgios, retoques, excesso de defesas, quiçá com muita imprudência !...

Apenas, não gosto de me "sentir" ou saber abusivamente devassada ou violada, com intencionalidade objectiva, por quem não reconheço com direito de me "bater à porta", ou sequer saber o nome da "minha rua" ...
Porque na "minha casa" só recebo quem quero, quem gosto, quem convido ... em suma, quem tenho como amigo, quem julgo "bem vindo" ... e não mais !

É incómoda a sensação tendenciosa de ser espreitada por detrás do pano, ser escutada por detrás da porta, em surdina, ser olhada de viés, por quem não tem "rosto", por quem cirurgicamente "esquarteja", por curiosidade pessoal inescrupulosa e doentia, não tem nome, não tem coragem, não tem frontalidade, é cobarde ...
...embora eu não perca de vista que " Não só quem nos odeia ou nos inveja, nos limita e oprime.  Quem nos ama não menos nos limita" .... ( F. Pessoa )

E por isso reflecti seriamente, em correr as "persianas", fechar as vidraças ... encerrar para "balanço" ... mudar de "terra" !!!...

Não se perderia grande coisa, estou convicta.
Eu, perderia ... seguramente !

Mas também concluí que talvez não tenha o direito de o fazer, por todos quantos me acompanham e têm acompanhado desde 2008, nas escritas mais e menos felizes, tradutoras de momentos reais mais e menos positivos, da minha vida.
Não devo talvez fazê-lo, a todos quantos me expressam incentivo, reconhecimento, admiração, estímulo e apoio, no que acham na verdade valer-me a pena ...  a tradução por palavras, sem barreiras, quase sempre fiéis, da partilha das minhas fraquezas, alegrias, preocupações, dúvidas, ansiedades, desassossegos ... enfim, dos meus estados de alma.
Não quero por isso defraudar os meus companheiros e amigos de percurso, presentes desse lado, "visíveis" em muitas horas menos boas, e a quem sempre me sinto grata, mesmo quando não me fazem eco, ou não concordam comigo.

Assim, penso ir continuando por aqui, procurando de facto racionalizar as questões, não me deixando fragilizar, susceptibilizar ou sequer influenciar ... porque "SOMBRAS" só existem, se permitirmos que o sol as crie, e o meu SOL é forte demais para perder "brilho",  a criar sombras pelos caminhos !!!...


Anamar

quarta-feira, 25 de abril de 2012

" OUTRA VEZ ABRIL" ( reflexão )


E "Abril " nasceu de novo ... sempre nasce, ainda que tenha cor, ainda que seja cinzento e penumbrento, como hoje.
Nasce à revelia de todos ; dos que o querem, dos que o não querem ... dos que têm memória, dos que já a perderam !

Não conjecturara  escrever mais sobre uma realidade que provavelmente se esbateu, se "esvaziou" ... diz pouco  ou muito pouco, às gerações actuais, porque a não viveram, a não sentiram, a  não desejaram ... como rio que nos correu nas veias ...

Abril de 74 faz todo o sentido p'ra quem ocupava nessa altura os bancos das faculdades, p'ra quem via nascer os dias atrás das grades de Caxias, p'ra quem sofria  com a ausência do irmão, do amigo, do namorado ... perdidos nas matas da Guiné, de Angola, de Moçambique ...
Rostos e corpos de meninos a quem tinham posto no ombro uma G3, e a quem tinham dito que os "turras" eram p'ra abater, indiscriminadamente ... só porque defendiam as suas terras !...

Abril de 74 faz todo o sentido, p'ra quem conhecia na vida a marca das garras da Pide, p'ra quem conhecia o significado da palavra "clandestinidade",  o significado do afastamento compulsivo e por sobrevivência, dos seus, do seu chão, dos seus sonhos,  vendo à distância o seu país a esfarrapar-se, a sua gente a sangrar mais e mais ...

Abril de 74 faz todo o sentido, p'ra quem apostou na palavra Liberdade, p'ra quem acreditou que a igualdade de oportunidades poderia ser para todos, para quem jurou que bastava já de mordaça na boca e na alma, e achou que era chegada a hora ... Para quem sonhou, que o futuro dos seus filhos iria ser menos carrasco que o seu próprio ...

E Abril de 74 faz sentido por miríades de coisas, que nos acordaram, nos deram fôlego, nos fizeram sorrir, sair às ruas e darmos as mãos a quem não conhecíamos,  caminharmos no compasso daquele estranho, só porque o mesmo riso  lhe iluminava o rosto, a mesma fé que nós lhe enchia o peito ... a mesma coragem e a mesma esperança que nós, nos empurravam a todos p'ra frente,  p'ra condução dos nossos destinos colectivos !...
Só porque, de repente, todos sabíamos de cor a mesma canção !...

Passaram muitos anos ...
Há gente desta geração que se atreve a opinar, a depreciar, a ridicularizar, a desrespeitar ... a achar que os "cravos vermelhos" foram uma simbologia patética, de uma revolução que afinal nos trouxe ao Hoje !...

É atrevimento  mesmo !...
Não estiveram lá para a viver, não podem perceber com rigor por que foi feita, não sentiram no coração nem o antes nem o depois de tudo ... tudo o que nós, os daquela época, realmente sentimos !...

E mesmo Abril "doendo" hoje ... pensemos como Salgueiro Maia : "O difícil está feito ... e o impossível só leva mais tempo !...

Anamar

sexta-feira, 20 de abril de 2012

" O HOMEM DAS ROSAS "- PARTE II



Maribel sempre continuava junto ao portão.

Já não lembrava há quanto tempo esborrachava o narizito na cancela.
Pelas cinco, mais coisa menos coisa, esticava o pescoço, alongava o olhar até ao fundo da estrada ;  até lá onde os seus olhitos enxergavam, ela perscrutava atentamente.

Maribel não percebera, se aquela rosa branca havia sido uma despedida ou antes, uma promessa de regresso.

O "homem das rosas", que passava emudecido pelo caminho, sempre apressado, sempre silencioso, sempre fechado em pensamentos, aquele que carregava o mundo nas costas ( que Maribel bem via ... ), deixara de aparecer.

Ele já estava na sua vida, mesmo que o não quisesse ; era ele que a levava ao portão pelas tardinhas, depois da rega !
Habituara-se à sua presença ;  afinal, ela enchera-lhe a vida ;  afinal, ela dera-lhe um significado ;  havia uma razão para que o seu coração pequenino disparasse, quando o dia  começava a tombar e a fresca se instalava .

Aquela personagem era um mistério. 
Era uma personagem hermética, com o seu cabelo branco, o seu passo urgente, aquele olhar miudinho, aquele silêncio desalentado, aquela rosa que sempre levava consigo ...

Todos os mistérios têm o poder de espevitar a curiosidade, fazem cócegas nos miolos.
E afinal, Maribel era uma criança e as crianças ainda são mais "espevitadas", mais criativas, mais sonhadoras .

A menina "decidira", que fosse quem fosse, o "homem das rosas" já era seu !!!
E era-o  porque já lhe entrara na vida, pelas palavras mais sábias, mais profundas e mais doces, que se podem dizer ... as que constituem a linguagem do coração.
Essas, são as palavras que não precisam pronunciar-se para se entenderem, não precisam balbuciar-se para se sentirem ...
Basta o olhar ... e esse, sempre que o "homem das rosas" o trocava com Maribel, deixava-lhe uma mensagem, fazia-lhe uma promessa, aquecia-lhe a alma.
O sorriso tímido que esboçava e com ela partilhava, era também um afago, um embalo, um carinho ...

E "decidiu" uma vez mais, como todas as crianças sempre decidem, que, se entrara, também não sairia nunca mais, porque o que é das crianças normalmente é para toda a Vida!
Ele era o seu segredo, era o seu "tesouro", era o seu mistério a decifrar ... porque,  era por ele que ela esperava todos os dias ... cada dia !!!...

E passaram dias, e mais dias, muitos dias ...

As cameleiras voltaram a adornar-se de rosa, as magnólias abriram as campânulas aos colibris atrevidos ... os castanheiros encheram-se de folhas, de flores, e depois, de ouriços, no seu caminho.
Aos Invernos seguiram as Primaveras, e de novo as Primaveras e de novo as Primaveras !...
Depois das chuvas, veio o sol, as primeiras flores amarelas sem nome, reabriram na falésia ...
E tudo sempre recomeçou.

Recomeçou, como o sonho recomeça todos os dias, sempre que o quisermos.
E os sonhos, nas crianças, são os mais legítimos sonhos, porque  são sonhos  puros, não sonhos serôdios, cansados, improváveis, como o são os sonhos esquecidos  de  gente grande, que já se desiludiu muito, que já sofreu muito ... gente a quem  tiraram o luar da cabeceira  da cama  e a quem apagaram as estrelas no céu ...

Algo dizia à menina, que valia a pena esperar ...
Uma andorinha tinha-lho sussurrado ao ouvido, assim que chegou da ausência sazonal.  As borboletas, recém-saídas dos casulos, dançavam voluptuosamente ao seu redor, e Maribel pressentia mais que nunca, que aquela rosa branca, que inesperadamente  um dia  lhe aquecera o coração, não tinha sido realmente uma despedida ... mas sim, uma promessa de regresso !...

Naquela tarde, como em todas as tardes da sua vida de menina, pelas cinco, mais coisa menos coisa, esgueirou-se uma vez mais até à cancela.
O caminho por entre os pinheiros  alongava-se silencioso, rumo à curva próxima, completamente vazio ... absolutamente vazio.
A amenidade da fresca já descia ... a tarde declinava ... e seria só mais uma tarde, se não se tivesse iluminado repentinamente, se o aroma das glicínias em flor, não tivesse subido no ar, perfumando intensamente o jardim, se os pássaros não tivessem saído inesperadamente do silêncio letárgico pela aproximação da noite, se um imenso arco-íris não se tivesse desenhado no céu ( mesmo não havendo sol nem chuva ) ... se o "homem das rosas" não tivesse dobrado o cotovelo da estrada ...

... finalmente com um sorriso rasgado no rosto, finalmente não ensimesmado, finalmente não carregando mais em si, a imensidão do Mundo, finalmente "saboreando" cada pedra do percurso, lentamente, sem pressas, como quem tem finalmente um destino determinado na sua estória, a cancela onde Maribel sempre o esperava ...

Tinha-o esperado  tarde após tarde, dia após dia ... Primavera após Primavera ... sem cansaço, sem desistência, simplesmente porque já era feliz só por "saber" que ele chegaria um dia, só por acreditar que, tal como no seu sonho, ele lhe iria depositar nas mãos, não uma, mas uma braçada de rosas vermelhas ...

Tinha valido a pena !!!...

Anamar

domingo, 15 de abril de 2012

"TIME TO SAY GOODBYE "


Começa a chegar o pessoal para a bica do almoço.
Há um período, entre a manhã e a tarde, em que gente normal não está obviamente, nem a tomar o pequeno almoço, nem ainda o café pós-almoço.
Afinal, estamos entre a uma e as duas !

Gente tonta como eu, terminou o pequeno almoço ;  sinto o vazio de um café que se despovoa por algum tempo ( se bem que o odeio cheio,  quando aqui chego ) ;  oiço os "até amanhã" ditos em despedida aos empregados, e escrevo não sei o quê, nem para quê.
Escoamento nítido e absoluto de insanidades, por necessidade absoluta de abrir os diques em barragens na "cota máxima" ...

"Chamada de atenção" - foi-me dito um dia destes.  Porque, "se o não fosse, este espaço não seria público".

Acho que não !...
Acho que não quero chamar a atenção de ninguém, porque não quero nunca incomodar ninguém.
Apenas, ao escrever sinto-me acompanhada.  Tenho um objectivo ... algo real entre as mãos, mesmo que seja para ninguém ler, mesmo que seja apenas para ter a sensação quente, de abrir por momentos uma janela, mesmo que saiba que nada disto tem relevância, interesse sequer ( como é o caso de hoje ), mesmo que nada disto me satisfaça, realize ou alivie.

Afinal, abrir uma janela, sempre é ver céu, sol ou não, chuva ou não, pássaros ou não ... mas sentir Vida lá fora, inspirar o ar mais até ao fundo, absorver cheiros até ao âmago, sufocar-me do vento que corre, ou embalar-me no frio ... sei lá !!!

À noite, quando por saturação ou desinteresse desligo o computador, é um "até amanhã" silencioso para muitos e para ninguém, é um bater a porta, é a sensação de uma maior solidão e isolamento que se instala naquele quarto, na minha vida ...
É o ficar eu e a Rita, mesmo sós ... ninguém mais !

Deixar de escrever aqui, escrever e guardar, ou escrever e deitar fora simplesmente ... uma hipótese sugerida, que às vezes considero.
Mas aí fico sem nada, sem o resto que me sobrou, sem o pouco que tenho, porque na verdade, pouco tenho mesmo ...
Ninguém imagina a amputação que isso me representaria ...
É como se metade de mim já tivesse ido, e a metade que ficou, estivesse a ir ...

"Vais acabar sozinha" - sentenciava-me a minha filha noutro dia, acusando-me de me furtar frequentemente ao convívio, e me "enfiar na concha" ...
"Acabar" como ... se já o estou ???!!!...

Queria ser como a outra gente.

A Teresa tem ímpetos religiosos. "Respira" igreja ... a dela !
A Fátima organizou uma forma de existir, de subsistir ... de resistir.  Teve que ser, desde que a mãe partiu e ela ficou só.  Tenta sair, tenta conviver, viaja ...  Nunca recusa uma proposta de programa ...
A Bia faz trabalho social, exerce voluntariados, é feliz !
A Ema pertence à Legião de Maria e ao Banco Alimentar contra a Fome ... e é feliz !
A Lena, não tem vida própria ... vive a dos outros. Desdobra-se, transcende-se, ajuda, solidariza-se ...é feliz também !
Outros fazem "voluntariado" compulsivo, junto de filhos e netos.  Reclamam, mas sempre riem. São felizes !
Depois, há quem conviva pacificamente com a solidão, ou nem dê por ela.  Arranjam carapaças rijas.  Lêem, almoçam, lancham e jantam televisão ... e não se questionam, nunca se questionam ... nunca questionam o que é realmente viver, ou sequer a lógica que preside à mera sequência de dias iguais, esperando apenas que passem, que passem indiferentemente ... sabendo que os "amanhãs" são piores que os "hojes" ... e os "hojes" piores que os "ontens"...

E sempre a descontar, mantendo-se inconscientemente adormecidos, anestesiados ... porque as anestesias foram feitas para evitar as dores, até mesmo a sensibilidade.
Estar anestesiado é uma espécie de ante-câmara de estar morto.
E estar morto, deve ser a doce sensação de estar em paz.  Por alguma razão, nas lápides tumulares se escreve : " Repousa em paz"!...
É porque alguém sabe que só assim se alcança a paz ...
Bolas ... e se é assim, andamos nós todos com medo de a alcançar ... porquê ???!!!  Não se percebe !!!

A minha mãe teve ontem a sua festa dos noventa e um anos.
Olho para ela e vejo-a naquela mansa inconsciência ( sei lá se é !!!  E também, de que lhe serviria, se o não fosse ???!!! )
Que tanto futuro pode ter alguém com noventa e um anos??  Que "tanto", e "que" futuro ???!!!
A estrada termina logo ali !...

Eu "esgatanho-me" diariamente, numa impotência de luta desesperada com tanta perda de dias, com tanto desperdício de tempo, com tanta vida não vivida ...
E não consigo fazer nada ... Não consigo dar um passo à frente, que não dê dois para trás, na mudança de rumo ...
Ela vive, simplesmente ...
Se calhar a biologia humana é isto.  Encarrega-se de pôr as pessoas à sesta, antes que chegue o sono da noite.
Vai-as embalando, naquele estado de vigília, que já é, e ainda não é sono profundo ...
O tal estado de anestesia de Paz.  Pelo menos, não se degladiam de manhã à noite.
Porque ninguém aguenta uma disputa, de vinte e quatro sobre vinte e quatro horas ... inglória, destrutiva, ineficaz, mortífera !!!

Faz hoje um século, o naufrágio da História ...
O Titanic, o invencível, o gigante dos mares, o "inafundável" ... sucumbiu !
Um iceberg matreiro, dissimulado ... por destino, à sua espera, pôs fim ao sonho.  Bastaram duas horas e o fundo oceânico deu-lhe berço ... paz !!!

O meu "rombo" hoje é maior ...
O meu naufrágio, também ... Só que felizmente, eu afundo sozinha!...



                              
Anamar                       

quinta-feira, 12 de abril de 2012

" NON SENSE "


E o dia ficou cinzento ...
Ficou um dia "daqueles" !...

A minha gaivota andava mesmo por aqui.
Rasou a vidraça várias vezes, parou no terraço vizinho, bem à vista ...

Afinal, chovia !  O dia fechara, uniforme, doentiamente uniforme.  O tipo de dia que me faz mais feliz se estou feliz, me torna dolorosamente triste, se não tenho horizonte ...
E hoje, não tenho horizonte !

Sintra não se via, aliás não havia "linha" para lá dos prédios mais próximos.
Para lá dos prédios mais próximos e para lá de mim ...
Não havia simplesmente linha !!!...

Tenho saudades da que eu era ...  Da que eu era, ou da que eu nunca fui ??!!

Complicada dúvida esta !!!

Ontem, alguém narrava o "seu" dia, no Facebook.
Desde as cinco da manhã em que acordara, até à noite.  E dizia com ar desalentado: " E amanhã, outro dia igual e sempre igual ... até quando ?... "

Parece a leitura do condenado no corredor da morte, em contagem decrescente.  Dias sem outro horizonte, que não aquele ... Mais dias sem "linha" ...
E quando não há nada lá ao fundo, quando não há por que ir contando, quando não há perspectiva ou sentido, espera-se o quê?

A Vida devia ser só para os simples, para os que a sabem e suportam viver, sem demais exigências ou conturbações.  Porque os outros, os que têm grilhetas nos pés e no coração, não vivem, percorrem apenas caminhos de calvário, sem sentido.

O ser humano é por natureza um ser de sonho, porque é ele que lhe "comanda a Vida".
Porque é através dele, que avança, que "se" dá significado ... lógica, razão !
Hoje vive-se por isto, amanhã por aquilo ...
São as fasquias a alcançar que impulsionam o caminhar, valem o esforço, alegram e animam a alma.
É o que se quer atingir, grande ou pequeno, muito ou pouco, o desiderato por que em cada dia nos superamos, acordamos, entramos na "roda do hamster" e nela rodamos até ao dia seguinte ... em que nova tarefa ou odisseia, nos permite dar um passo mais além, e não apenas viver tudo de novo.

E assim, dia após dia, até ao topo da montanha, donde se divisará o mundo, o mundo que queremos alcançar.
E depois dessa montanha, a cordilheira sempre tem mais picos, mais cumes inexpugnáveis, até que a força do Homem os desvende.
E enquanto não os desvenda, enquanto lhes vai subindo as encostas, é feliz, luta, tem um objectivo que olha e volta a olhar ... aquele lugar iluminado por sol, muito sol ... o sol do seu sonho !
É a vontade de o alcançar que o levanta quando cai, é ela que o impulsiona quando quer desistir, é ela que o espicaça no valer a pena de continuar, para se sentir vivo e livre, nessa busca.
É uma bússola, sem a qual fica atordoado no meio de um deserto sem referências, sem limites, sem "linha"..
Tudo uniforme e cansativamente igual, sem rumo ... sem vereda, caminho ... razão ...

E assim, sucumbe-se ... não se vive, morre-se.
Morre-se todos os dias um bocadinho.

Eu já tenho poucos bocadinhos para morrer.
Estou muito cansada deste labirinto, que sempre me leva à mesma casa de partida ;  estou exausta desta rotunda tonta, onde circulo ;  estou saturada destas ruas de volta atrás confusas, escuras, com becos sobre becos, com esquinas e mais esquinas, como naqueles pesadelos aterradores, dos quais queremos acordar e que repegamos, repegamos, repegamos ...
E por aqui estou ... acho que apenas vendo desfilar a Vida, não mais !...

Desculpem o "non sense" deste post.
Isto hoje está como nos "bons velhos tempos" ...
Eu acho que infelizmente, sempre vou ter aos "bons velhos tempos", e que os meus dias de escalada de picos de montanhas ensolaradas, são tão efémeros, tão escassos, tão diminutos, que não fazem sequer história ... não escrevem seguramente a Minha História !...

Anamar

quarta-feira, 11 de abril de 2012

DIGNO DE SER LIDO ...

 
 
Não é meu...mas não resisti!
Carlos Drummond de Andrade não carece apresentações.
 
Olhem só que texto lindo e clarividente !! Tive que 
partilhar convosco ! 
 
*CASA ARRUMADA*
 
Carlos Drummond de Andrade* 
(1902-1987)*
 
Casa arrumada  é assim:
Um lugar organizado, limpo, com espaço livre p'ra 
circulação e uma boa entrada de luz.
Mas casa, p'ra mim, tem que ser casa e não um centro
cirúrgico, um cenário de novela.
Tem gente que gasta muito tempo limpando, 
esterilizando, ajeitando os móveis, afofando
as almofadas...
Não, eu prefiro viver numa casa onde eu bato
o olho e percebo logo:
Aqui tem vida...
Casa com vida, p'ra mim, é aquela em que os livros
saem das prateleiras e os
enfeites brincam de trocar de lugar.
Casa com vida tem fogão gasto pelo uso, pelo abuso
das refeições fartas,
que chamam todo mundo p'ra mesa da cozinha.
Sofá sem mancha?
Tapete sem fio puxado?
Mesa sem marca de copo?
Tá na cara que é casa sem festa.
E se o piso não tem arranhão, é porque ali 
ninguém dança.
Casa com vida, p'ra mim, tem banheiro com vapor 
perfumado no meio da tarde.
Tem gaveta de entulho, daquelas que a gente 
guarda barbante, passaporte e vela de aniversário, 
tudo junto...
Casa com vida é aquela em que a gente entra 
e se sente bem-vinda.
A que está sempre pronta p'ros amigos, filhos...
Netos, p'ros vizinhos...
E nos quartos, se possível, tem lençóis revirados 
por gente que brinca ou namora a qualquer hora 
do dia.
Casa com vida é aquela que a gente arruma 
p'ra ficar com a cara da gente.
Arrume a sua casa todos os dias...
Mas arrume de um jeito que lhe sobre tempo 
p'ra viver nela...
E reconhecer nela o seu lugar.
 
Anamar   

segunda-feira, 9 de abril de 2012

AS "ESTRELAS" QUE NÃO ESTÃO NO CÉU


Quando  se  faz  das crianças  pequenas  vedetas, está   tudo estragado !...

Senti na pele desde muito cedo, a carga emocional, a responsabilidade objectiva, o peso que é, a não correspondência às expectativas em nós colocadas.
Acho, ou melhor, tenho a certeza de ter até hoje em mim, estigmas da postura da minha mãe, visto ter sido ela a única responsável pela questão.  O meu pai era outra "praia" ...

Não estou a exprimir em relação a ela nenhuma ingratidão, nem objectivamente a lançar nenhum ónus sobre a culpa da imperfeição que sou hoje.
Ela orientou-me como pôde, como sabia, o melhor que conseguiu, em termos de educação e preparação para a Vida, de acordo com as suas próprias limitações, de acordo com o seu possível horizonte de vida.
Ela caiu, como muitos pais caem, na tentação de projectar nos filhos aquilo que não foram e gostariam, aquilo que quereriam ter alcançado e não conseguiram, a concretização do que em si não passou de sonhos, porque não puderam ou não foram capazes de ir mais além ... até a tentativa de sublimar as suas próprias e ancestrais frustrações.

Não sei se isto é humano ... legítimo, sei que não é !

A  minha  mãe  não  tinha  cultura, instrução, grandes conhecimentos ( fez a quarta classe já adulta, e por necessidade ... Eram outros tempos ... ) !!
Mas parece que esta forma de estar e ser, acaba infelizmente por ser muito mais transversal às gerações e aos tempos, do que o desejável.
Se calhar eu fi-lo, e se calhar a minha filha também o faz, mais ou menos inconscientemente, se calhar mesmo inconscientemente.

Afinal, ser-nos-ia exigível maior criticidade, mais senso, mais inteligência, mais responsabilidade, mais "savoir-faire", porque estamos / estaríamos mais artilhadas de conhecimentos didáctico / pedagógicos, maior informação, mais apetrechadas em experiência de vida, pertencemos e vivemos uma era de horizontes mais alargados, de maior ecletismo cultural, em que tudo é questionado, tudo é objecto de estudo, de análises, debates, discussões, fóruns, conferências, tratados, convenções, etc, etc, etc, numa procura quase obsessiva de linhas, directrizes, caminhos que levem a maiores acertos, a  uma maior humanização, a posicionamentos mais correctos, pessoal e socialmente, a maior felicidade integral do Homem.

Eu, actualmente faço juízos de valor, reflexões, auto-crítica, distanciada que estou, em idade, em geração, até por exigência profissional.
Sempre trabalhei com, e no meio de jovens, seres em formação, numa fase crucial da vida ;
Por razões óbvias, deparei-me, vivenciei, tentei compreender, se possível ajudar em situações idênticas, vividas por adolescentes e pré-adolescentes, no núcleo familiar, e por arrastamento, em sociedade.

Por outro lado, da minha própria experiência, sei que aquilo que senti na pele, fez de mim um ser em permanente conflito interior, na busca de um perfeccionismo utópico, um ser com alguma / muita insegurança e até falta de auto-estima, um ser que ainda hoje sempre receia defraudar, que se posiciona em sofrimento, por recear não corresponder ( de acordo com elevadíssimas e idiotas fasquias ), às expectativas que sobre si recaem.

À nossa revelia, construímos sobre nós próprios uma imagem deformada, profundamente insatisfatória, e propiciadora de amargura e sofrimento.
E isto fica, garanto-vos, por mais clarividência que se tenha, por muito que se racionalize, por muito pragmáticos que sejamos ... para todo o sempre, com todas as inerentes consequências.

Por sua vez, a sociedade hoje em dia, ainda é mais exigente, trucidante, aguerrida, castigadora.
A competição desenfreada, a comparação, a necessidade de afirmação, desumaniza ainda mais as pessoas, e destrói ainda mais as relações humanas, colocando-as continuamente debaixo de fogo.
Hoje, como sabemos, por um lado vale tudo, ou quase tudo para se atingir determinado fim ;  por outro, uma selecção ou triagem acirrada, impera, na escolha dos melhores, para tudo.
Todo este "cocktail" explosivo, é mais que suficiente para colocar "cargas" detonadoras nas vidas das pessoas.
Se para além disso, desde cedo, o indivíduo estiver permanentemente submetido a provas ilógicas, por exigência pessoal, familiar e social, confrontado com a necessidade imperiosa, mesmo inconsciente, de corresponder ... teremos criado um ser em constante e crescente sofrimento, incapaz da gestão de insucessos, incapaz de uma convivência pacífica com as suas próprias e naturais limitações, e consequentemente, sem armas para as ultrapassar e superar.
Em última análise, está criado um ser insatisfeito, com grave distúrbio psicológico, desequilibrado, profundamente infeliz !...

Mais do que nunca, os pais, sobretudo os pais, deveriam estar atentos, e nunca fomentar este estado de coisas, deveriam tentar desmistificar e nunca criar "idolozinhos", pequenas vedetas, crianças tristemente convencidas e "snobes", porque serão forçosa e inerentemente à Vida, "santos com pés de barro".
A própria Vida, de uma forma implacável, se encarregará  obviamente de os "apear", deixando-lhes um amargor e uma auto-decepção arrasadores, com consequências pessoais imprevisíveis.

Deveriam sim, incentivar pela positiva, desenvolver a responsabilidade e o desejo de uma constante auto-melhoria e de um aperfeiçoamento, motivar uma luta por desenvolvimento de capacidades, com trabalho sistemático e persistente, sem deslumbramentos absurdos, suscitar uma auto-confiança e auto-estima reforçadas, mesmo quando os resultados não são favoráveis nem atingem a excelência ... mostrando-lhes que sempre os amamos, e que a Vida é constituída por dificuldades, trambolhões, êxitos mas também fracassos, desafios que podem ser vencidos ou não ( dependendo, e sobretudo também do seu empenhamento ) ...

... mas que o ideal é todos sermos afinal SERES NORMAIS ... e não ESTRELAS !!!...

Essas, têm à noite o firmamento para brilhar !!!...

Anamar