quinta-feira, 14 de junho de 2012

" A MALA DOS SONHOS "


Nunca mais voltei ao meu local de trabalho.

A pasta com os últimos livros, os últimos dossiers, os últimos papéis, as últimas esferográficas já secas, foi desfeita e as coisas arrumadas, há apenas alguns dias.
"Jazia", é o termo, nas costas de uma cadeira da minha sala de trabalho, desde o último dia que a utilizei ... Quase três anos atrás !!!...

Incrível!

Olhei para ela vezes sem conta, mas não consegui mexer-lhe, menos ainda esvaziá-la, como se se tratasse de uma daquelas peças tão invioláveis que não ousamos mexer-lhes, sequer soprar-lhes o pó dos tempos.
Mais que uma vez tive essa intenção ; avançava dois passos na sua direcção, mas algo me impedia de lhe mexer, apesar de, de acordo com o meu sentido estético e de arrumação, ser absolutamente inconcebível, o facto de ter uma mala pendurada numa cadeira da sala, "ad eternum".

Aquela mala parecia "queimar-me" as mãos.  Desfazê-la e arquivá-la, no meu subconsciente devia representar-me um desfazer e arquivar de uma parte da minha vida.  Daí a resistência a fazê-lo.

O ser humano é espantoso !  É um intrincado de mecanismos tão complexos, de códigos tão incompreensíveis e incoerentes por vezes, ou aparentemente incoerentes, que raramente se lhes encontra um fio condutor lógico.

Hoje tento lembrar-me se no último dia que ali a deixei, ou seja, no último dia que lhe utilizei o conteúdo, que é como quem diz, que fui para as aulas, tive consciência disso.  Penso que não.
Tratou-se de um período extremamente conturbado em termos de saúde, em que a partir de fins de Novembro de 2009 fiquei em casa com atestado médico, dia 31 de Dezembro entreguei o pedido de aposentação antecipada, e a 28 de Maio de 2010 ela foi-me concedida.

Foi um período algo tenebroso na minha vida, um período em que penso que não vivia, flutuava, planava por sobre as realidades, quando não dormia sob o efeito de medicamentos.
E talvez graças a eles e ao entorpecimento por eles provocado, não consciencializei que estava a bater a porta definitivamente.
E por isso, aquela viragem na minha vida não foi avaliada em consciência, creio.

À escola voltei uma única vez, no fim de 2010, para a habitual reunião geral, em que por tradição são homenageadas as pessoas que cessaram funções nesse ano.
Nem nesse dia me emocionei, ao receber as flores e o presente da praxe, nem sequer ao ler uma pequena dissertação alusiva à ocasião e que dirigi particularmente aos novos professores, àqueles que ali estavam tal como eu estive, trinta e seis anos antes, numa reunião idêntica, só que de abertura de ano escolar, com um sorriso no rosto, uma ansiedade gostosa no coração, e uma pressa de que tudo começasse rápido, para que extravasasse aquela vontade de me dar, de me disponibilizar, de amar, ajudar, e se possível orientar aqueles putos, tímidos uns, reguilas outros, curiosos quase todos ...

Tinha então vinte e três anos, usava mini-saia, já era mãe mas não parecia, e sentia-me a encarnar aqueles seres sentados à minha frente, como quando era eu que ocupava as carteiras então.
Carregava os livros, os dossiers, as cadernetas ... mas sobretudo um monte de sonhos e ilusões, um monte de expectativas e vontades, uma força imensa de ensinar mas também de aprender todos os dias, sempre !

Cumpri uma vida naquela escola, à excepção de um único ano, em que por força da lei, fui obrigada a ir à província.
Além da docência, fiz de tudo também.
Não vou repetir o que tem sido lembrado exaustivamente por tantos como eu, cujo sacerdócio foi o mesmo.
Também não vou lembrar, até porque me dói, todo o maquiavelismo utilizado a desmembrar uma das mais nobres profissões do mundo, tornando-a, como alguém escreveu, uma "doença terminal" ...
Guardo para todo o sempre o que me deixaram ... a amizade e companheirismo partilhados com tantos colegas com quem me cruzei, mas sobretudo a dádiva incondicional e inestimável, de tantas gerações de jovens que por mim passaram.

Para além disso, guardo uma mágoa sem tamanho, uma raiva pela impotência perante a subalternização miserável a que todos fomos votados, uma preocupação e uma frustração imensas, por observar os caminhos ínvios e sem volta, a que estão a remeter a educação neste país !!!

Nunca mais voltei ao meu local de trabalho ;  custei a desfazer a mala ...

Agora sei bem porquê ...
Lá dentro ainda estavam, já bolorentos claro, os sonhos, as ilusões, as expectativas, as vontades ... e todo o amor que nela transportava generosamente, no meu primeiro dia, como professora !...

Anamar

4 comentários:

Anónimo disse...

Ao ler o teu post voltei lá em pensamento.
O meu processo de "desligamento"foi diferente. No espaço de uma semana "despachei" tudo: livros, cadernetas, enunciados... e no entanto no dia em que recebi a "ordem de marcha" chorei baba e ranho...
O ser humano é mesmo complicado, não é?
Beijinhos.

anamar disse...

Olá Anónimo

Sim...o ser humano tem tanto de diferente, de complicado, como de imprevisível.

Se te disser que a carta com o "veredicto" anda "perdida" algures numa mala, certamente de Verão, porque foi em fim de Maio !!!!....

Bom....não adianta especular nada, afinal!
Beijinhos
Anamar

Anónimo disse...

Não sei se a vida se fractura em antes e depois. Os sonhos que já passaram, e que se realizaram ou não, deixaram marca mas não desapareceram. Se foram nossos, ainda cá estamos e são parte da bagagem que vamos acumulando. O depois é apenas uma parte do fio condutor que nos vai levar não sei onde, e que provavelmente começou com a existência dos sonhos. Só será triste se nos tornarmos vegetais um dia, mas isso não se escolhe...
Malmequer

anamar disse...

Olá Malmequer

Só agora dei pelo teu comentário.

Concordo que os nossos sonhos, como o nome indica, são e serão nossos, independentemente de tudo.

Apenas há sonhos que são só sonhos e sonhos que quiseram ser realidade e ficaram sonhos doídos, para todo o sempre.

Eu tenho medo de esquecer ambos !!!

Beijinhos

Anamar