quarta-feira, 6 de junho de 2012

" O RAPAZ DAS AMORAS "




Não se precisa do que não se conhece.
Sofre-se com o que se conhece, queríamos, podíamos ter e não temos ...

Ontem perdi estupidamente um casaco de malha de que gostava muito.
Estupidamente como afinal acontecem todas as perdas, e particularmente as que ocorrem por desatenção, falta de cuidado, ausência de concentração ... dispersão de espírito, da nossa parte.
O tal casaco foi pertença de uma das minhas filhas, creio, ou pelo menos, tanto quanto sei, ela ofereceu-o à avó, não sei se por "prenda" mesmo, se porque não o vestindo e pretendendo aliená-lo, entendesse que ele era adequado, e ficaria bem, no corpo da avó.
Contudo, sendo embora muito bonito, de uma malha de seda e um cair clássico impecável, não correspondeu ao entendimento estético da minha mãe.
Deixara-o portanto "adormecido" no roupeiro.

Aqui há uns tempos, não muitos ( creio que só tive o privilégio de o vestir talvez duas vezes ... tão curto o tempo que o detive ), a minha velhota resolveu sugerir-me que o trouxesse, para que o usasse ... "Uma pena estar ali enfiado" !...
Assim fiz, e achei-me sortuda por ter uma peça "nova" no meu guarda-roupa.
Ontem, pela tarde, indo para fora de casa talvez até à noite, e tendo-se instalado uma aragem meio desabrida, resolvi prevenir-me e levá-lo comigo, para o "que desse e viesse".
Coloquei-o entre as asas da mala, em tão má hora, e num daqueles gestos que fazemos quase mecanicamente sem que os consciencializemos, que terá caído sem que tivesse "gritado por socorro" !...

Essas posturas do ser humano, em que a cabeça se "despega" do corpo, sempre dão "bota".
As coisas tornam-se como que invisíveis, estão lá onde as colocámos, mas nós é que já lá não estamos ... e pronto ... fácil, fácil, deixam também de estar ...
Cresceu-me uma raiva imensa contra mim própria, pela incúria, desatenção, falta de previsibilidade ... tontice.

Contudo, perante alguma coisa que por mais que eu quisesse reverter não mais seria possível, pensei : " Não tinha que ser meu !  Por portas travessas veio ter-me às mãos, sem que tivesse estado inicialmente destinado a ser propriedade minha.  Aconteceu algo que foi absolutamente inalterável.  Nada a fazer !...
Neste momento, a sua história continua ... noutras mãos, alindando outro corpo ... abrindo certamente um sorriso noutro rosto " !!

Deixou de me fazer falta.
Não se precisa do que já não é nosso !  Não se deve sofrer por já o não termos, embora o tivéssemos amado.
O ser humano um dia parte, e pouco ou nada leva.
O desapego é uma virtude.  Quanto menos temos, menos ansiamos, menos sentimos falta ... mais completos nos encontramos, menos infelizes, porque menos insatisfeitos !
Como referi num post anterior ... assim disse Pessoa !!!

Devíamos treinar a simplicidade, a ausência de ambição desmedida pelo material, a ausência de prolixidade em que sempre tendemos a submergir-nos.
Em suma, devíamos ser como o "menino das amoras", da história que uma amiga mais ou menos me contou ...

Pedro e Samuel eram dois meninos da mesma idade, que haviam nascido no mesmo dia e viviam realidades opostas.
Pedro vivia num mundo de sonho, de super-abundância, de ostentação, de excesso ... de facilidade.
Habitava uma casa maravilhosa, rodeada de jardins mais maravilhosos ainda, com relvados perfeitos a perder de vista, flores cuidadosamente dispostas em ornamentação estudada, com lagos pejados de peixes vermelhos.
Pedro tinha as melhores roupas, os melhores sapatos, os melhores brinquedos, uma alimentação privilegiada, empregados a rodearem-no.

Samuel era um menino muito pobre, solto nos campos, entregue a si mesmo, tendo como únicos tesouros, os pássaros, as plantas, o sol e o vento que lhe desalinhava os cabelos, nas brincadeiras livres.
Do topo das érvores onde amarinhava ( rasgando os pés descalços e esmurrando os joelhos ), tinha o Mundo ao seu dispor ...
Samuel não conhecia para lá dos horizontes da sua aldeia.  Conhecia de  cór o nascer e o por do sol, e as poças de água, de chapinhar em dias de chuvadas insistentes.
Tinha o ribeiro para os mergulhos nas tardes quentes, e como brinquedos, a sua flauta de cana e o pião de guita, que o sr. Chico da mercearia lhe oferecera, num dia de boa disposição.
Tinha as fisgas que construía para fingir que apanhava pássaros, brincava com as rãs nos charcos e metia-as nas calças, para pregar partidas matreiras às irmãs ;  era o maior a caçar os grilos e os gafanhotos, e também jogava com os berlindes que cerravam os pirolitos da loja do sr. Chico.
Bolas, tinha quantas queria ... das meias muito rotas lá de casa.
Samuel ainda não ia à escola ; comia as maçãs das árvores altas, as maçarocas do milho, que tomava à socapa dos milheirais da vizinhança, e assava numa fogueirinha ...
Comia uvas das latadas, o prato de sopa ao dormir e o leite que sobrava da venda ... quando sobrava ...
Ah, claro ... e as amoras selvagens que apanhava  nos caminhos, e que não eram de ninguém ...

Por sobre os muros dos jardins da mansão onde Pedro vivia, conheciam-se através de conversas trocadas.
Tinham vidas completamente diferentes, corações infantis iguaizinhos, olhos puros, a ingenuidade e a nobreza das crianças.
Pedro era um menino triste, sem sonhos, sem horizontes, sem vontades.
Samuel era um "potro" livre, que inventava de ser feliz, que se comprazia com o nada de que dispunha, e com as amoras silvestres que apanhava às mãos cheias.

No dia dos respectivos aniversários, Pedro quis que o seu amigo vivesse um dia surpreendentemente diferente.  Por isso convidou-o a passá-lo consigo, desfrutando da sua casa e dum lanche, na sua "gaiola dourada".

Tudo foi oferecido a Samuel, que extasiava incrédulo, curioso, com os olhinhos amendoados, arregalados, no rosto bem vermelho pela surpresa e emoção.
Comeu até fartar, de tudo o que conhecia, não conhecia, nunca vira ou sequer sonhara.
Brincou com brinquedos que jamais imaginara, ouviu outra música que não a dos pássaros, fez corridas de bicicleta, assistiu às séries infindáveis de desenhos animados que preenchiam o tédio das longas tardes de  Pedro.  Pasmou com as figurinhas lindas e coloridas, dos livros que povoavam o imaginário do menino ...
As bolas de jogar, estranhamente eram de borracha.  Não tinham a "sensibilidade" das suas, inventadas, de trapos ...
E os soldadinhos não tinham fisgas nas mãos, mas fusis e espadas ...
Não sujou os pés na terra, porque estava obviamente calçado com as únicas botas que possuía.
Não caçou pássaros, nem apanhou grilos ou gafanhotos ... menos  ainda rãs, porque na casa de Pedro não havia charcos.
Não ficaria bem subir às árvores do jardim, e por isso, os joelhos foram poupados.  A emoção, também !...

O dia chegou ao fim, e com ele chegou a hora de regresso de Samuel.
Cansado, eufórico, com o "João Pestana" a pesar-lhe nos olhinhos e o coração ainda aos saltos, o menino despediu-se do amigo.

Como última gentileza, os anfitriões procuraram saber da satisfação de Samuel pelo dia que passara na sua casa, inquirindo da sua alegria e sugerindo à criança que comesse  algo mais, antes de partir ;  alguma coisa que ainda fizesse gosto ...

O rapaz ficou repentinamente sério e circunspecto, como que analisando no seu interior, o que poderia faltar-lhe, no meio de tudo e de tanto.
Instado a responder, arqueou as sobrancelhas, elevou os ombros, e depois de uns minutos em silêncio, disse, timidamente baixinho :

" o que realmente me apetecia ainda ... eram só umas AMORAS " !!!...

Anamar

Sem comentários: