domingo, 22 de julho de 2012

O MUNDO DOS " MORTOS-VIVOS "


 Julho outra vez !...

Já aqui referi ser um mês muito marcante para mim.
Dentro de uma semana fará vinte anos que o meu pai partiu, fará três que o Óscar também me deixou.
Não estou a por em paralelo obviamente as duas perdas ; mas pelo facto do Óscar ter sido meu companheiro de cerca de quinze anos, e por me ter sido oferecido para colmatar a primeira grande perda da minha vida ( tão mal fiquei ), o Óscar, como seguramente qualquer animal que eu tenha ou tenha tido, transformou-se em mais um membro familiar.
Por isso, a sua ausência é sentida por mim, profundamente, até hoje.
O mês de Julho, no meu espírito, está associado a um mês de perdas, a um mês em que a Vida já me defraudou de muitas maneiras.

A nossa existência sempre está irremediavelmente ligada a perdas.
Não há como não !...
Os caminhos que percorremos, foram desenhados para que na viagem fossem sendo deixados em desvios, em sombras de árvores, ou mesmo em esquinas, os nossos pertences, os nossos anigos, os nossos amores.
É inevitável que assim seja, e consequentemente nos nossos percursos, sem apelo nem agravo, coleccionamos "mortos-mortos", mas também coleccionamos "mortos-vivos" ...
Estes, são aqueles que "contra natura", por desígnio de destinos, vamos abandonando ou nos vão abandonando, pela estrada.

Ambos são processos muito destrutivos, muito dolorosos, muito traumatizantes.
São processos que sempre nos amputam, que sempre carregam consigo pedaços de nós, que sempre nos empobrecem, que sempre nos deixam órfãos ...
Depois de uma perda ou de um abandono, nunca mais ficamos os mesmos, nunca mais seremos a pessoa inteira que éramos ;  isto, porque quem passa por nós, deixa, mas também leva boa parte de nós mesmos.

Os "mortos-mortos", como lhes chamei, são aqueles que por razões da inevitabilidade da vida, se vão, nos deixam, contra vontade, seguramente contra vontade, mercê da impotência que nos transmite o que não pode ser nunca,  mutável ou irreversível.
Tudo se soluciona, excepto a morte ... diz-se.
E este abandono, aquele desespero, aquela solidão, aquele sofrimento, aquela incapacidade mortificante, que sentimos quando acompanhamos alguém na sua última viagem, mata-nos ...

Mas percebemos que o inimigo que tivémos à frente, era o único contra o qual não podemos, não pudémos lutar.
Não existem armas para ele ...
Nem a súplica, nem a esperança, nem a fé, nem sequer a revolta, a raiva, o senso de injustiça  às vezes ... nem sequer o AMOR ...
Esse, que move montanhas, também dizem, é inútil perante o determinado.
E por isso, resta-nos o quê ? Abrir os braços, que entretanto já perderam as forças, e deixar ir em paz, aquele ser, como que arrastado numa corrente em que o segurámos enquanto deu, enquanto pudémos ... e esperar que o tempo, o tal milagreiro das causas impossíveis, aplaque, colmate, abata a dor, à medida que a terra também abate, lá no campo santo, ou à medida que o vento leve à terra de novo, o pó que afinal sempre fomos ...

Depois, nas nossas vidas existem os "mortos-vivos", como dizia.
Esses são perdas absolutamente desesperantes de gerir, mais ainda de aceitar.
Eu diria que esses abandonos são de uma agressividade incomparavelmente maior, que a causada pelos acontecimentos inevitáveis dos destinos.
Esses são "mortos" que morrem a conta-gotas, nunca morrem de uma só vez, às vezes simplesmente NUNCA morrem mesmo ...
Para esses, o luto é eterno ;  não há terra, não há vento, não há argumentação que nos ampare a alma, nos acaricie o coração ... porque afinal esses "mortos" estão mortos, estando vivos, bem vivos ...  mais perto, mais longe, mas vivos!

Essas partidas, esses abandonos que provocamos ou nos provocam, matam ...  esses matam mesmo, porque nos sangram até nos exaurirmos, e são uma chaga que NUNCA sara, uma ferida que nunca cicatriza.
E são-no, porque invariavelmente são provocados unilateralmente, por razões por vezes incompreensíveis, para as quais sempre achamos que haveria solução, que não precisariam ( feito "almas penadas" ), passarem a assombrar-nos a existência.
Esses são os amigos, os amores, as paixões, os afectos todos, que nos foram ficando pelos caminhos, e de que tivémos que nos distanciar, olhando sempre para trás, até dobrar a última volta de estrada ...
Esses são os desencontros, as incompreensões, as razões às vezes inexplicáveis ...
Mas sempre "abandonos" que consideramos injustos, doídos, devastadores, que nos maltratam, que nos secam, que nos destroem, que nos aniquilam ...
E para esses pareceria haver outra solução ou saída ... sempre nos parece poder haver ...

Mas não !
São "mortos" que se "recusam" a ir, cujo luto, por isso mesmo, é interminável ;  e mesmo quando pensamos que já estamos a "aliviá-lo", como se diz no Alentejo ... é mentira !
Se olharmos a preceito e com honestidade para dentro de nós próprios, lá estão os seus "fantasminhas" a povoarem-nos dias e noites, a "atazanarem-nos" a propósito de tudo e de nada ... de uma música, de uma palavra, de um momento, de uma flor, de uma pedra ... sei lá !...
Continuam grudados em nós ... e doem, doem horrores, e não há analgésico que lhes valha ...
Fazer o quê ?
Como lutar contra o que parece uma ironia de mau gosto do destino, se nem sequer "livro de reclamações" existe ??!!...

Esses só somem, se os fizermos passar de "mortos-vivos" a "mortos-mortos", nos nossos corações, no nosso ser ... no nosso espírito.
Mas esse é um processo tão difícil, tão complicado, tão independente do racional e da vontade, do lógico e do objectivo, que penamos, penamos, enquanto que a nossa alma entra em escuridão adensante, que parece não ter fim ou solução, e que tirando-nos a vontade de lhes sobreviver, nos inculca uma vontade de desistência ( tal o cansaço e exaustão ), que somos mesmo nós próprios, que queremos tornar-nos "mortos-mortos" !!!...

Anamar

" POR PATAMARES "


"Nada acontece por acaso"... diz-se ...
Outras vezes, ao contrário, tudo parece aleatório, fruto de circunstância, ocasional, acidental ... lotaria de Vida ... com probabilidades iguais de êxitos e insucessos.
Outras ainda, acreditamos "ler" sinais aqui e ali, formas de comunicação para quem as saiba interpretar.

Achamo-nos tão importantes que damos por nós a perguntar-nos : "porquê eu?"... "porquê a mim?"...

Hoje estou mais e mais convicta que a aprendizagem é ao momento, que erramos para percebermos que a seguir não devemos ir por ali ... daquela forma ...
Acredito que tropeçamos e caímos, para percebermos que ainda temos forças para nos levantar ...
Que choramos e nos desesperamos, para valorizarmos o sorriso que esboçamos, ou o riso que soltamos a seguir ...
Que achamos que morremos, para vermos que sempre continuaremos  bem vivos, nem que seja em corações e em espíritos que nos cruzaram ...
Estou convicta que semeamos, e se o fizermos bem, somos capazes de colher em abundância ...
Estou convicta ( e essa sensação vem a reforçar-se em mim, de dia para dia ), que somos "sobreviventes", todos o somos.
E essa sobrevivência depende da  nossa sabedoria de gestão das  dificuldades, da consciencialização das capacidades  que possuímos, da  força  que temos ( muitas vezes que nem sabíamos que a tínhamos ), da assumpção clara e absoluta de que cada ser humano só pode, à partida, contar consigo mesmo, só deve, à partida, contar consigo mesmo ...

Já passei muita coisa na minha vida.
Coisas emocionalmente muito difíceis e dolorosas ...
Nunca foram as materiais que verdadeiramente me molestaram ou molestam, mas sim as do coração ...
Quem me lê, já me conhece, e sabe que é exactamente assim ...

Mas juro-vos que quando sobre isto reflicto, quando olho o meu percurso para trás, o considero tão abençoadamente rico de experiência, aprendizagem, derrotas e vitórias, alegrias e dores, amores e ódios, medos e coragem, enriquecimento pessoal ... mas sobretudo com uma riqueza pictórica, tão, mas tão incomensurável ... que foi tudo isso que me conferiu a estatura da "gigante" que hoje sou.

Não me interpretem mal.
"Gigante", não porque seja "maior" que ninguém, em nada ... simplesmente bem "maior" do que aquela que eu já fui.

E constato com tristeza ... mas se calhar tinha que ter sido assim, porque "nada acontece por acaso" ... que o meu "crescimento" apenas pecou pela forma serôdia com que se desenvolveu, que a minha maturidade apenas brotou quando o trilho já vai bem para lá de metade, que a consciencialização da "força" que possuo, me faça sentido só agora ...

Mas como acredito piamente em reincarnações, em vidas em continuação de vidas, em patamares que, como numa montanha, o alpinista vai alcançando a pulso, parando de quando em vez  para respirar com mais profundidade e menos dificuldade, ver o Mundo a seus pés, partilhar com a águia altaneira, os céus lá no topo ... acredito piamente, dizia, que neste momento estou  a  trepar mais um degrau que me leve a  uma plataforma  de repouso,  cada vez mais perto do pico, de um pedestal qualquer donde divisarei,  cada vez com  maior lucidez, com um horizonte  mais abrangente e definido, o Mundo e a Eternidade aos meus pés ... como um presente supremo !!!...

Anamar

sábado, 21 de julho de 2012

" HOUVE TEMPO "

Este texto não é meu.
Achei-o contudo digno de divulgação, reflexão, muita, muita análise séria.
Ele constata infeliz e objectivamente, a realidade que vivemos nos tempos que correm ... Mas ele também, e sobretudo, obriga-nos a colocar a mão na consciência, obriga-nos a olharmo-nos de frente e sopesarmos séria e honestamente as nossas responsabilidades, omissões, irresponsabilidades tantas vezes, como pais, filhos, professores ... concidadãos, deste espaço que dividimos e se chama sociedade colectiva, num espaço ainda maior que se chama Terra !


Agradeço a quem me fez chegar este artigo ao conhecimento.
Bem-haja!

 
A trapeira do Job
José António Barreiros, advogado
"Isto que eu vou dizer vai parecer ridículo a muita gente.
 
Mas houve um tempo em que as pessoas se lembravam, ainda, da época da infância, da primeira caneta de tinta-permanente, da primeira bicicleta, da idade adulta, das vezes em que se comia fora, do primeiro frigorífico e do primeiro televisor, do primeiro rádio, de quando tinham ido ao estrangeiro.
 
Houve um tempo em que, nos lares, se aproveitava para a refeição seguinte o sobejante da refeição anterior, em que, com ovos mexidos e a carne ou peixe restante, se fazia "roupa velha". Tempos em que as camisas iam a mudar o colarinho e os punhos do avesso, assim como os casacos, e se tingia a roupa usada, tempos em que se punham meias-solas com protectores. Tempos em que ao mudar-se de sala se apagava a luz, tempos em que se guardava o "fatinho de ver a Deus e à sua Joana".
 
E não era só no Portugal da mesquinhez salazarista. Na Inglaterra dos Lordes, na França dos Luíses, a regra era esta. Em 1945 passava-se fome na Europa, a guerra matara milhões e arrasara tudo quanto a selvajaria humana pode arrasar.
 
Houve tempos em que se produzia o que se comia e se exportava. Em que o País tinha uma frota de marinha mercante, fábricas, vinhas, searas.
Veio depois o admirável mundo novo do crédito. Os novos pais tinham como filhos uns pivetes tiranos, exigindo malcriadamente o último modelo de mil e um gadgets e seus consumíveis, porque os filhos dos outros também tinham. Pais que se enforcavam por carrões de brutal cilindrada para os encravarem no lodo do trânsito e mostrarem que tinham aquela extensão motorizada da sua potência genital. Passou a ser tempo de gente em que era questão de pedigree viver no condomínio fechado, e sobretudo dizê-lo, em que luxuosas revistas instigavam em couché os feios a serem bonitos, à conta de spas e de marcas, assim se visse a etiqueta, em que a beautiful people era o símbolo de status, como a língua nos cães para a sua raça.
 
Foram anos em que o Campo se tornou num imenso ressort de Turismo de Habitação, as cidades uma festa permanente, entre o coktail party e a rave. Houve quem pensasse até que um dia os Serviços seriam o único emprego futuro ou com futuro.
 
O país que produzia o que comíamos ficou para os labregos dos pais e primos parolos, de quem os citadinos se envergonhavam, salvo quando regressavam à cidade dos fins de semana com a mala do carro atulhada do que não lhes custara a cavar e às vezes nem obrigado.
 
O país que produzia o que se podia transaccionar, esse, ficou com o operariado da ferrugem, empacotados como gado em dormitórios, e que os víamos chegar mortos de sono logo à hora de acordarem, as casas verdadeiras bombas-relógio de raiva contida, descarregada nos cônjuges, nos filhos, na idiotização que a TV tornou negócio.
 
Sob o oásis dos edifícios em vidro, miragem de cristal, vivia o mundo subterrâneo de quantos aguentaram isto enquanto puderam, a sub-gente. Os intelectuais burgueses teorizavam, ganzados de alucinação, que o conceito de classes sociais tinha desaparecido. A teoria geral dos sistemas supunha que o real era apenas uma noção, a teoria da informação substituía os cavalos-força da maquinaria pelos megabytes de RAM da computação universal. Um dia os computadores tudo fariam, o Ser-Humano tornava-se um acidente no barro de um oleiro velho e tresloucado que, caído do Céu, morrera pregado a dois paus, e que julgava chamar-se Deus, confundindo-se com o seu filho e mais uma trinitária pomba.
 
Às tantas, os da cidade começaram a notar que não havia portugueses a servir à mesa, porque estávamos a importar brasileiros, que não havia portugueses nas obras, porque estávamos a importar negros e eslavos.
 
A chegada das lojas-dos-trezentos já era alarme de que se estava a viver de pexisbeque, mas a folia continuava. A essas sucedeu a vaga das lojas chinesas, porque já só havia para comprar «balato». Mas o festim prosseguia e à sexta-feira as filas de trânsito em Lisboa eram o caos e até ao dia quinze os táxis não tinham mãos a medir.
 
Fora disto, os ricos, os muito ricos, viram chegar os novos ricos. O ganhão alentejano viu sumir o velho latifundário absentista pelo novo turista absentista com o mesmo monte mais a piscina e seus amigos, intelectuais, claro, e sempre pela reforma agrária, e vai um uísque de malte, sempre ao lado do povo, e já leu o New Yorker?
 
A agiotagem financeira, essa, ululava. Viviam do tempo, exploravam o tempo, do tempo que só ao tal Deus pertencia, mas, esse, Nietzsche encontrara-o morto em Auschwitz. Veio o crédito ao consumo, a Conta-Ordenado, veio tudo quanto pudesse ser o ter sem pagar. Porque nenhum Banco quer que lhe devolvam o capital mutuado, quer é esticar ao máximo o lucro que esse capital rende.
 
Aguilhoando pela publicidade enganosa os bois que somos nós todos, os Bancos instigavam à compra, ao leasing, ao renting, ao seja como for desde que tenha e já, ao cartão, ao descoberto-autorizado.
 
Tudo quanto era vedeta deu a cara, sendo actor, as pernas, sendo futebolista, ou o que vocês sabem, sendo o que vocês adivinham, para aconselhar-nos a ir àquele Balcão bancário buscar dinheiro, vendermo-nos ao dinheiro, enforcarmo-nos na figueira infernal do dinheiro. Satanás ria. O Inferno começava na terra.
 
Claro que os da política do poder, que vivem no pau de sebo perpétuo do fazer arrear, puxando-os pelos fundilhos, quantos treparam para o poder, querem a canalha contente. E o circo do consumo, a palhaçada do crédito servia-os. Com isso comprávamos os plasmas mamutes onde eles vendiam à noite propaganda governamental e, nos intervalos, imbelicidades e telefofocadas, que entre a oligofrenia e a debilidade mental a diferença é nula. E, contentes, cretinamente contentinhos, os portugueses tinham como tema de conversa a telenovela da noite, o jogo de futebol do dia e da noite e os comentários políticos dos "analistas" que poupavam os nossos miolos de pensarem, pensando por nós.
 
Estamos nisto.
 
Este fim-de-semana a Grécia pode cair. Com ela a Europa.
 
Que interessa? O Império Romano já caiu também e o mundo não acabou. Nessa altura, em Bizâncio, discutia-se o sexo dos anjos. Talvez porque Deus se tivesse distraído com a questão teológica, talvez porque o Diabo tenha ganho aos dados a alma do pobre Job na sua trapeira. O Job que somos grande parte de nós."

Anamar

" LOS NIÑOS "


"Los niños" são crianças iguais em qualquer lugar do Mundo.

Os putos, dum extremo ao outro da Terra, são feitos da mesma massa, têm o mesmo sorriso rasgado, humilde e doce, como que agradecendo que tenhamos reparado neles.
Os meninos de Bali são exactamente iguais aos meninos de Samaná.

São traquinas, são tímidos alguns, atrevidotes outros.
Adoram ser fotografados e adoram ver o trabalho pronto, sempre rindo por se verem assim, exactamente daquele jeito, no quadradinho daquela caixa mágica ...

Andam nus ou semi-nus, andrajosos, inventam brincadeiras do nada, criam brinquedos do nada também.
A areia das praias intermináveis, é o seu "país das maravilhas"...
A sua criatividade não tem limites ; imaginam histórias, amigos inexistentes, constroem bolas de jogar com trapos, ou mesmo com bagas que a maré arrasta ao areal.
Vendem cocos que apanham no chão, espalhados a esmo e graciosamente pela natureza, que os dá.
E quando não vendem ... quase nunca vendem ... balbuciam : "Um dólar ...", pedindo com aquele ar inocente, que a boa vontade do turista lhes permita levarem para casa algumas migalhas que ajudem, ou possam presentear-se com um agradinho a que não estão habituados.

Deambulam pelas praias, brincam nos charcos ou nas piscinas naturais, mergulham desde os ramos das árvores, como pranchas, directos à água fresca ... e gargalham, gargalham, gritam, correm, saltam e são felizes !

Os meninos quase sempre são felizes !

Não têm nada, ou muito pouco, mas nada querem para lá do que o seu mundo comporta.
É aquele que conhecem ...

Mas sonham, também sonham.
Um deles dizia-me que sonhava um dia ir viver num país com neve e frio, e não percebeu a minha cara de espanto, como que a dizer-lhe que só podia estar louco ... ele que nascera, vivia e crescia naquela água acariciantemente morna, embaladora de banhos intermináveis, na sombra dos coqueirais, naquela liberdade oferecida, naquilo que para mim, era um paraíso !

Eu sei que todos reservamos mais ou menos dentro de nós, esta criança que um dia fomos ...
É uma frase feita, mas real.

Essa criança solta-se quando menos nos policiamos, quando fechamos os olhos e deixa de nos importar o que nos rodeia.
Quando, como num exercício de meditação absoluta, conseguimos alienar-nos destes dias por vezes demasiado descoloridos, que são quase sempre os nossos.
É então que atingimos um vazio mental, de regras, convenções, conveniências, apreensões, infelicidades, sonhos desfeitos que povoam as nossas vidas ...
E libertos, como aquela garça que plana lá bem alto na aragem, dominamos outra vez o Mundo, achando que podemos ...
Jogamos à bola na praia, esquecendo que a agilidade e a leveza já foram ...
Apanhamos do chão aquela florzinha tão singela, tão simples, tão pequena, quase invisível que desponta no meio dos rochedos, crendo ser um tesouro ...
Extasiamo-nos com a beleza de uma concha que nos veio beijar os pés, do búzio que nos deixa "ouvir" o mar ... extasiamo-nos com a simetria perfeitamente geométrica e equilibrada, de uma casca de ouriço pousada adormecida no meio dos corais, nos recifes ... ou com a cor indescritível dos peixes, inventados pelo criador de tudo isto ...
Deixamos que o cabelo se desalinhe com a aragem que nos afaga ...
Deixamos que a água morna nos aninhe, nos embale e acaricie o corpo semi-nu, e achamos que nada existe além de nós, daquele céu azul bem por cima, e do silêncio que tem o condão de apagar tudo quanto é ruído, e só deixa chegar-nos três sons que nos aquecem a alma : o trinado dos pássaros que não se vêem mas nos falam, o sussurrar da brisa passante, sabe-se lá para onde, e o marulhar do que nunca foi onda ...

E esses sons misturam-nos, miscigenam-nos, mimetizam-nos com a Natureza, dão-nos paz, plenitude, um preenchimento no coração e uma emoção, que não se descrevem mas nos fazem feliz, e nos tornam crianças outra vez !

Que pena não podermos ficar assim, como se a "engrenagem" tivesse parado, a imagem do "filme" se tivesse fixado ... como se tivéssemos feito "pausa" para sempre, e nunca pudéssemos esquecer como "foi" !!!...




Anamar

sábado, 14 de julho de 2012

" A CAIXA DE PANDORA "



Longe, já estou longe, mas subi ao paraíso ... sem dúvida.

Se há lugar na Terra que seja um paraíso, esse será com certeza, Samaná !

Não vou repetir o que sempre experimento no privilégio de dias "fora do Mundo", nos destinos que habitualmente escolho.
As cores, os cheiros doces, os sons, sejam do mar que "brinca" de bater na areia, sejam dos pássaros que noite e dia se fazem ouvir, sejam dos ritmos envolventes e bamboleantes do Caribe ...
Tomar o pequeno almoço ao ar livre, "embrulhada" em verdes ( que nunca pensei houvesse tantos ! ), com o gorgolejar de água a escorregar entre pedras, com o calor ainda ameno das sete da manhã, com Enya ( imagine-se ) a presentear o meu dia ... bom, se isto não é o paraíso, o que o será então ???

E para merecer isto, apenas existo !!!

Ao contrário das outras noites em que tenho dormido placidamente, como recompensa das seis horas que sempre já me encontram na praia, para caminhar sem tempo, algumas horas em silêncio, do que pode ainda chamar-se madrugada ( apesar de a luminosidade ser tanta que dificilmente o acreditamos ), e pela tarde até o sol dormir no mar lá ao fundo ... nesta, tive um sono persistentemente agitado, que me perturbou com um pesadelo absolutamente vívido.
Tão vívido, que lhe lembro ainda todos os pormenores, o que não é vulgar, como se sabe.
Sei que acordei e o retomei em insistência assustadora.

Sempre sou premonitória nos sinais da Vida, sempre os entendo exactamente como isso ... sinais !...

A seguir àquele sonho, continuar a ser surpreendida por Enya, a mulher cuja voz mais me repousa o coração, acredito ser isso mesmo, um sinal destinatório !

Lembro que se tratava de um desmoronar.
Não o desmoronar de um edifício, o desmoronar de terras ou de qualquer outra avalanche.
Era o desmoronar da minha vida, mesmo ...
Vida material, é verdade, coisas, objectos de que vivi rodeada, e a que me ligava um laço afectivo ;  e era feita por pessoas que a atravessaram, embora não lhe pertencessem directamente, perfeitamente identificadas, que como que ensandecidas, numa demência que se denunciava como vingança, raiva, quase ódio, o faziam.
E degustavam o que provocavam !  Saboreavam como uma espécie de ajuste de contas, isso mesmo, o sofrimento que me infligiam, maquiavelicamente.
Lembro que não era a perda dos bens materiais, físicos, objectivos em si,  que me molestava, mas o que alguns deles me representavam, afectiva e emocionalmente.
Era como se fosse a minha vida do coração, que se derramava como uma enxurrada que se ia, se perdia num vórtice destruidor.

Sonho estranho, num local improvável de o ter ... se os sonhos obedecessem a alguma probabilidade.

Que para eles arrastamos as nossas realidades, é óbvio, faz sentido.
Normalmente são preocupações, ansiedades, sofrimentos, ou mesmo alegria, felicidade que experimentamos nos nossos dias, que continuam a povoar-nos, agora já no domínio do sub-consciente, ao longo das noites.
E aí, os fantasminhas brincam à solta e mesclam-se como querem, constroem e desconstroem coisas, mais ou menos lógicas umas, aberrantes, outras.
Algumas que parecem deixar-se "ler", outras que são absolutamente surrealistas e inexplicáveis.

A interpretação dos sonhos é mesmo uma questão do domínio da psicologia, das ciências da mente, do hermetismo de todos os "conscientes" que possuímos.  E querer fazê-la, leigos que somos na maioria, um atrevimento e uma presunção sem tamanho.
Até porque temos tendência a "lê-los", de acordo com o que nos sugestiona, de acordo e como consequência de vivências que nos perturbam, pela positiva ou pela negativa, como se se tratasse de exercícios de senso e linearidade espantosos.

O que é facto, é que psicanalistas,  parapsicólogos,  psicoterapeutas, em suma, os especialistas em nos "escarafunchar" por dentro, recorrem a eles como ferramenta de diagnose e terapia, o que nos leva a concluir que o "saco dos sonhos" é uma "caixa de Pandora", de onde pode sair o " X " de muitas questões !...



Anamar

domingo, 1 de julho de 2012

" A PROSÁPIA DE SE SER HUMANO ... "


Este será o meu último post antes de me afastar alguns dias, como o referi em post anterior.
Os últimos posts têm sido posts reflexivos, sobre aspectos de fundo do ser humano, e da Vida.
Encerro este ciclo, abordando o aspecto mais definitivo, objectivo e frio ... a  MORTE !
Faço-o pela voz do "Mestre",  Pessoa, no heterónimo Álvaro de Campos.
Quem melhor que ele nos pode falar desassombradamente desta prosápia, desta ilusão, desta importância incomensurável e insubstituível, que o ser humano se dá, enquanto ser humano ??!!...
O total desassombro, a verdade nua e crua, a insignificância ... a pequenez que deveria reduzir-nos à nossa real dimensão, neste extraordinário poema, magistralmente dito pelo "diseur" que não carece apresentações : Paulo Autran !


   " SE  TE  QUERES  MATAR "

Se te queres matar, por que não te queres matar?
Ah, aproveita! Que eu, que tanto amo a morte e a vida, se ousasse matar-me, também me mataria ...
Ah, se ousares, ousa!
De que te serve o teu mundo interior que desconheces?
Talvez  matando-te, o conheças finalmente...
Talvez acabando, comeces...
E não cantes, como eu, a vida por bebedeira,
Não saúdes como eu, a morte em literatura!
Fazes falta? Ó sombra fútil, chamada gente!
Ninguém faz falta ; não fazes falta a ninguém ...
Sem ti, correrá tudo sem ti.
Talvez seja pior para outros, existires, que matares-te...
Talvez peses mais durando, que deixando de durar...
A mágoa dos outros?... Tens remorso adiantado de que te chorem?
Descansa ... pouco te chorarão !...
O impulso vital apaga as lágrimas pouco a pouco, quando não são de coisas nossas, quando são do que acontece aos outros, sobretudo a morte, porque é coisa depois da qual nada acontece aos outros...
Primeiro é a angústia, a surpresa da vinda do mistério, e da falta da tua vida falada...
Depois o horror do caixão visível e material,
E os homens de preto que exercem a profissão de estar ali.
Depois a família a velar,  inconsolável e contando anedotas, lamentando a pena de teres morrido.
E tu, mera causa ocasional daquela carpidação!
Tu, verdadeiramente morto, muito mais morto que calculas...
muito mais morto aqui, que calculas,
mesmo que estejas muito mais vivo além...
Depois, a trágica retirada para o jazigo ou a cova ...
E depois o princípio da morte da tua memória.
Há primeiro em todos, um alívio da tragédia um pouco maçadora de teres morrido...
Depois a conversa aligeira-se quotidianamente,
E a vida de todos os dias retoma o seu dia...
Depois, lentamente esqueceste.
Só és lembrado em duas datas, aniversariamente :
quando faz anos que nasceste, quando faz anos que morreste.
Mais nada, mais nada, absolutamente mais nada.
Duas vezes no ano pensam em ti.
Duas vezes no ano suspiram por ti  os que te amaram,
e uma ou outra vez suspiram, se por acaso se fala em ti.
Encara-te a frio, e encara a frio o que somos...
Se queres matar-te, mata-te...
Não tenhas escrúpulos morais, receios de inteligência!...
Que escrúpulos ou receios tem a mecânica da vida?
Que escrúpulos químicos tem o impulso que gera as seivas, e a circulação do sangue, e o amor?
Que memória dos outros tem o ritmo alegre da vida?
Ah, pobre vaidade de carne e osso chamada Homem.
Não vês que não tens importância absolutamente nenhuma?
És importante para ti, porque é a ti que te sentes ... 
És tudo para ti, porque para ti, és o universo,
e o próprio universo e os outros, satélites da tua subjetividade objetiva.
És importante para ti, porque só tu és importante para ti.
E se és assim, ó mito, não serão os outros assim?
Tens, como Hamlet, o pavor do desconhecido?
Mas o que é conhecido? O que é que tu conheces, para que chames desconhecido a qualquer coisa em especial?
Tens, como Falstaff, o amor gorduroso da vida?
Se assim a amas materialmente, ama-a ainda mais materialmente ... Torna-te parte carnal da terra e das coisas!
Dispersa-te, sistema físico-químico de cédulas nocturnamente conscientes, pela nocturna consciência da inconsciência dos corpos, pelo grande cobertor não cobrindo nada das aparências, pela relva e a erva da proliferação dos seres, pela névoa atómica das coisas, pelas paredes turbilhonantes do vácuo dinâmico do mundo...

                                                Álvaro de Campos

Anamar

sábado, 30 de junho de 2012

" INEVITÁVEL "...


" Tudo o que não tem remédio, remediado está ", diz a voz do povo.

É bem verdade !
Quando sentimos que nada mais passa por nós na resolução do que quer que seja, apenas há que encarar, interiorizar a impotência, tentarmos por-nos de novo em pé e seguir adiante.
Perante uma dificuldade, deveremos simplesmente parar e pensar se esgotámos ou não, tudo o que dependia do nosso empenhamento para a solucionar.
Se sim, a inevitabilidade está instalada, ou seja, dali para a frente, o rumo dos acontecimentos não será mais, ónus nosso.

Perante a contrariedade, há pelo menos uma sensação de alívio, de trabalho feito, de cumprimento tentado.
E tudo isso, sendo aparentemente pouco, cria em nós capacidades de resistência face aos reveses, e artilha-nos psicologicamente para os encarar e os viver, sobrevivendo-lhes ...

O "viver" treina-se diariamente, resulta de quedas e recuperações, resulta de fracassos e vitórias, resulta de perdas e ganhos.  É necessário é que o cômputo seja positivo, o balanço proveitoso ... e isso depende, para lá de muita outra coisa, de um trabalho pessoal de mentalização, de esforço e aposta em nós mesmos, de valorização pessoal e de uma fé nas nossas próprias capacidades e valores.

Acho que atingi já uma fase da vida, em que entre muitas desvantagens inerentes, pelo menos me proporciona um "know-how", um estatuto que tende a ser equilibrante, um "savoir-faire" que me obriga a encarar e a relativizar tudo e todos.

Por outro lado, as aprendizagens acumuladas terão que forçosamente dar frutos.
E aquilo que seria um drama, talvez já o não seja, e aquilo que me matava, talvez já tenha antídotos dentro de mim, inoculados pela própria Vida.

Os seres vivos, todos, mesmo os considerados irracionais, mesmo as plantas e os microorganismos, estão "monitorizados" é o termo, para todo o tipo de situações, às quais, por sobrevivência, têm que ter capacidade de resposta.
Todos estão munidos de artifícios naturais, condições de adaptabilidade, mimetizações, defesas ... as mais variadas, para que não sucumbam às "intempéries" da existência.

Ao Homem, ocupando que está o topo da pirâmide, acrescem-lhe responsabilidades, são-lhe exigidas respostas de inteligência, racionalidade, pragmatismo, clarividência .

Não é fácil !  Nunca é fácil nem simples !...

Eu, e se calhar qualquer pessoa, sou de altos e baixos, ou seja, perante este "discurso" exaustivo de racionalismo, até parece que arregaço as mangas e avanço com toda a determinação, força e ânimo, para o que se me depara ...

Nada disso !

Esforço-me para isso, devo reconhecer, sinto em mim mais alguma robustez mental e anímica para partir à luta, mas penso que isso se deve mais a alguma / muita "endurance" e carapaça que a Vida me obrigou a criar, do que propriamente a uma inteligente modificação de personalidade ou forma de ser e estar.
Essa, com muitas mazelas e cicatrizes,  é intrinsecamente a que morrerá comigo, tenho a certeza !

Só que, até quem é atirado à água sem saber nadar, tenta fazê-lo, não é verdade ??!!

Por outro lado, penso que o desencanto, o cansaço, a perda do que costumo chamar de ingenuidade, que é aquela forma "naïve", ainda incólume, doce, crédula ( por não magoada ), com que começamos as nossas caminhadas, foi esmorecendo, vai-se diluindo dolorosamente por cada aprendizagem negativa por que passamos, e o ser humano vai ficando pior, amargo, ( se calhar só tristemente realista, isso sim ... ), desinveste, começa a escolher solidões a companhias e afectos, em que já não acredita muito, e constata que afinal, como diz a minha mãe nos seus sábios noventa e um anos ... " A Vida é uma ilusão ...  Quando somos novos é que julgamos que não " !!!...

E dessa forma e com essa convicção, creio que continuaremos até ao fim, porque a "idade dos milagres" já lá vai há muito, e porque na verdade, inevitavelmente, como eu afirmava lá atrás ... " tudo o que não tem remédio, remediado estará " !!!...

Anamar

quinta-feira, 28 de junho de 2012

" OS HERMÉTICOS DESÍGNIOS ..."


Costuma dizer-se que só não há remédio para a morte. 
Que para tudo o resto sempre se pode dar um jeito, sempre se pode encontrar uma saída ou solução, mais ou menos difícil de alcançar ...

Hoje, entendo que não !

Há efectivamente becos nas vidas, que são vias estreitas de marcha atrás, nas quais não existe sequer espaço útil, para fazer qualquer inversão de marcha.
São aquelas vielas em que o sentido é único, e só nos sobra, largar o carro e voltar a pé ...
São caminhos ínvios, que devem ter a dureza e o sofrimento que Cristo experimentou, ao carregar a cruz até Gólgota.
Ele fê-lo como último sacrifício pela humanidade, pela salvação do Homem.
Há quem lhe siga a Via Sacra aqui na Terra, também, como se de uma predestinação se trate, uma inevitabilidade que não há forças que possam reverter.

Parecem missões, ou então, armadilhas ditadas por destinos sem lógica.
São desencadeadas por pavores, manipulações emocionais que actuam cirurgicamente em terrenos que se sabem vulneráveis ;  são subreptícias formas de persuasão, imposição, arquitectadas chantagens psicológicas, exercidas sobre estruturas sem defesa.

É uma espécie de luta desigual, e portanto, injusta.
É como se açoitássemos alguém que tenha uma incapacidade física de reacção, como resposta ... é como se pisássemos quem já está no chão ...
É desumano, é imoral, raia a malvadez e a safadeza.

Aproveitam-se e apela-se muitas vezes, miseravelmente, a valores, princípios ( sociais, familiares, éticos ou outros ), à integridade moral ...
Exploram-se muitas vezes as culpabilidades e os fantasmas irrazoáveis que as pessoas carregam, razões de vida que objectivamente não poderiam nem deveriam carregar !
São formas maquiavélicas, sádicas e inescrupulosas de se alcançarem desígnios, de se explorarem infelicidades, de se instalarem culpas, em benefício próprio ... julga-se !...
Escarafuncham-se feridas que ainda doem, acordam-se fantasmas, sonega-se a paz, para vulnerabilizar o alvo a atingir.
É verdadeiro terrorismo mental e emocional, mais ainda, quando orquestrado com uma intencionalidade e uma má fé bem estudadas.

Conheço de perto situações como as que descrevo, e sei dos malefícios, dos danos irreversíveis, das infelicidades espalhadas, por quem não se coíbe de as infundir a qualquer preço, e utilizando quaisquer métodos, naquilo que julga ser ou vir a ser, um benefício pessoal.
Instalada a insegurança, a angústia e a culpabilidade, pensa-se que a "presa" está na mão ...

Só que nesta vida, ninguém está nunca na mão de ninguém, porque há uma coisa, que faça-se o que se fizer, sempre fica intocada ... que é a "compra" de um coração, ou a transacção de uma alma ...
E os sentimentos também não são vendáveis, pela simples razão que não têm preço ... embora, tristemente, também haja quem não se inquiete com isso!!!...

Por isso hoje estou ciente, que para lá da morte, há de facto destruições sem remédio, mas que "virando o santo contra a esmola", acredito que apenas consigam semear ódios, raivas, indiferenças, mágoas inultrapassáveis, direccionadas contra quem as tenta usar em vantagem pessoal, ou como alimento do seu próprio desequilíbrio, ou da sua incurável loucura !!!...

Anamar

quarta-feira, 27 de junho de 2012

" AS NOSSAS COMPLEXIDADES "

A vida é só uma, dizem ;  pelo menos uma de cada vez.

Terá o ser humano direito de a maltratar?
A resposta óbvia parece ser não, aliás deverá ser este, o tratamento que deve dispensar-se a tudo quanto é precioso, singular, único.
No entanto, masoquistamente nem sempre assim fazemos.  Não só não o fazemos, como permitimos aparente e passivamente, que no-lo façam.
E bolas, é tudo tão curto, tão precário, que deveríamos desvelar cada dia, cada hora, cada minuto, porque são de facto irrepetíveis ... E não o consciencializamos, nunca o consciencializamos !

O mau trato psicológico é uma qualquer forma de mau trato, não inferior, talvez superior, ao mau trato físico, que é mais visível e objectivo.
E aquele, é infligido segundo entendimento meu, por duas ordens de razões :  ou conscientemente, portanto por omissão ou desvalorização pessoal assumida, ou sentimo-lo mas ignoramo-lo, encolhendo os ombros, fazendo de conta, deixando seguir.

Ambas as razões são muito graves, se bem que do meu ponto de vista, uma resulta da outra.

Um indivíduo que tenha uma baixa auto-estima, se tenha em pouca conta, enquanto pessoa, tem tendência a deixar-se tratar mal, ou porque irracionalmente acha que o merece ( e como que se auto-pune ), ou porque toma esse estado de flagelação como uma espécie de determinismo da vida, contra o qual não consegue lutar.
Esse indivíduo põe-se de facto "a jeito", e por isso são normalmente repetidas,  situações e experiências absolutamente recorrentes e similares.
Parece "esbarrar" ou "escolher a dedo", como "soi dizer-se", a repetência das vivências e dos sofrimentos.
Parece que isso acaba por ser uma sua segunda pele, integra a sua personalidade, passa a fazer parte do seu perfil psicológico.
A vida desse indivíduo passa a contemplar uma vitimização, e uma necessidade masoquista de sofrimento, que serão do domínio do subconsciente, mas que talvez, patologicamente o equilibrem.

Agora ... porquê ? Por que quererá alguém sofrer ou ser infeliz, mesmo que não tenha uma noção clara da situação ?

A minha interpretação é que essa pessoa necessita, de alguma forma, chamar a atenção do Mundo, se calhar a atenção até do seu lado inteligente e racional, sobre si própria, "acarinhar-se" de algum modo, "mimar-se" ...
São pessoas extremamente sensíveis, extremamente carentes, pessoas sofridas, pessoas de pouco pragmatismo, pessoas que dependem de uma vida mais espiritual e afectiva, e não propriamente de um equilíbrio material.  São pessoas para quem os bens materiais são meros complementos  dos emocionais, afectivos, de coração ... e não o contrário.
Têm uma maturidade emocional precária, ou mal direccionada, são "Peter Pans" da Vida ...

A segunda razão pela qual alguém sente e aceita um mau trato psicológico, adormecidamente, ou aparentemente adormecidamente ( porque não reage consentâneamente em proporção ), pode dever-se a uma impotência de capacidade, na ruptura de afectos.
É aquela pessoa que tem à sua frente uma história de sonho, com contornos maquiavélicos, e não quer lê-la com objectividade.
Apenas "lê" o que lhe interessa e o que precisa para respirar, para viver, para "se" fazer de conta que está feliz.
Esse indivíduo é "manipulado" por contextos e conjunturas exteriores a si próprio, conhece-os, analisa-os, escalpeliza-os, enjeita-os, mas não lhes reage ... não é capaz de o fazer.
Kafka foi mestre na abordagem deste processo.

Esse indivíduo está apanhado numa "teia", que foi sendo urdida pelas circunstâncias da vida, mansamente, fio a fio à sua volta, linha a linha em seu redor ;   e essa doce protecção é tão perfeita, tão bem articulada, que é ele próprio que se culpabiliza por lá ter caído ;  é ele que se martiriza por inépcia, incapacidade atempada de reacção, dependência emocional, falta de amor próprio e auto-valorização, por se ter permitido chegar tão longe ...

Esse indivíduo  está preso, está acoado, está enredado, e quando vê com clareza que não pode, que não deve continuar naquele emaranhado, já não adianta esbracejar, rebelar-se até contra si próprio, contra o que considera erradamente a sua "má sorte" ...

É na "teia" que tem ainda assim o alimento, mesmo precário, de que precisa para viver, é na teia que adormece e repousa baloiçando-se entre as ramagens, é à teia, que em certos dias chegam os escassos raios de sol que o iluminam.
Sair dela, aos seus olhos, seria morrer ...
Esse, é o tal que tenta então .ignorar, que encolhe os ombros, que faz de conta, que deixa seguir ...
Esse, é o tal que se auto-flagela, e auto-inflige um mau trato psicológico tremendo, injusto, extremamente gravoso, porque se alicerça na sua fragilidade emocional ... 
E o emocional e o psicológico, são os campos menos "domáveis" e controláveis em qualquer ser humano !...

Bom, este tema é por demais "quente" e passível de reflexão, parece-me.
Gostaria de lhe suscitar a discussão.

Muitas pessoas lêem os meus escritos, que eu sei, mas frustra-me que muito poucas ou nenhumas venham à liça, opinar, rebater, enfim, entrar no que considero uma dialéctica saudável, assaz importante para abertura de espíritos e clareza de ideias.
Sinto-me quase sempre a falar sozinha.
Perco-me nas minhas ideias feitas, nas exposições visionadas e fundamentadas unilateralmente, quando afinal todos sabemos que qualquer assunto ou tema, tem sempre tantas formas de abordagem, tantas "verdades", igualmente válidas e defensáveis, quantas as pessoas e os olhos que o lêem, e eu lamento não ter de facto o que seria para mim, esse importante e estimulante "feed-back" !!!...

Anamar

segunda-feira, 25 de junho de 2012

" A MAIS BONITA FLOR DE HIBISCO "


 Afinal fiquei louca de todo !

Irrecuperavelmente insana, resolvi viajar durante alguns dias.
Este maldito espírito de cigana de vida, acho que o herdei do meu pai, que como já tenho dito, era viajante de profissão ... nómada de coração !
Estes "bichos carpinteiros" que nunca me largam, começaram a avolumar-se, a perturbar-me os neurónios, e depois, sabem como é ...   Como diz um amigo meu, "passou-se-me um pano vermelho" pela frente, e pronto, arrisquei a maluqueira de ir gastar o dinheiro que me faz falta ...

Mas também, eu sei lá se cá estou numa próxima ... e "candeia que vai à frente, alumia duas vezes" !!...

Vou como sempre à procura do sol, daquele sol que se tem feito regatear em Portugal, num tempo "nem carne nem peixe" ... pelo menos aqui por Lisboa.
Vou em busca de paz e de silêncio ... do marulhar da água em rebentação mansa nas areias brancas, do sussurro do vento nos coqueiros, do mar turqueza e do céu sempre azul, dos cheiros doces, dos corpos nus, da mornidão envolvente de uma natureza generosa e pujante ...

Vou ...  Vou porque sou viciada em, de repente, me tornar anónima no meio de muita gente.
Sou viciada em suspender a minha vida entre parêntesis, pendurando o destino durante uns tempos, para o ver melhor, de fora para dentro.

Vou para pensar ... vou para sentir ... vou para "ME" sentir, nas horas de silêncio, que são quase todas, e nos passeios aos nasceres e aos pores de sol, na babugem salgada a afagar-me os pés ... do outro lado do Mundo.

Vou impregnar-me da luz da lua cheia no coqueiral, sobre um mar escuro, apenas incendiado pela poalha estelar.

Preciso ir, porque comecei a respirar mal por aqui, comecei a sossobrar a um cansaço de alma, que tenho que curar, preciso curar ... e o mar lava, expurga, pacifica ...

Voltarei ... talvez mais retemperada de forças, determinação de vida, mais certezas, espero.

Até lá, deixo-vos como sempre, a minha herança . 
As minhas flores ( as que gostam mais, e as que gostam menos de mim ), a Rita, que levo no coração, sempre compungida pela solidão a que a voto ...  a minha gaivota, que agora já em estância balnear, teima em não me ligar nenhuma ...  e o meu "farrusco do fiambre" ... o gato preto de olhões doces, que me namora do terraço das traseiras.

Estes são os meus tesouros, porque são eles que dividem comigo as horas, as boas e as menos boas, são eles os espectadores das minhas dúvidas, angústias e alegrias.
São espectadores das minhas euforias em horas felizes, e só não me enxugam as lágrimas ( porque não sabem ), quando despencam ainda que eu não queira ...

Cuidem bem deles todos, por mim, por favor.

Prometo trazer-vos como gratidão, na corola da mais bonita flor de hibisco que encontrar ... uma Anamar renascida ... gostaria !!!...

Anamar

domingo, 24 de junho de 2012

" UMA FLOR QUE JAMAIS MORRERRÁ "



Início de Julho ...

Por tradição, na minha escola, os professores da noite sempre confraternizaram num jantar de fim de ano, que era simultâneamente um "até breve", e uma homenagem aos que se haviam aposentado nesse ano lectivo.
Quem o criou apelidou-o de "Jantar da Begónia", porque para lá de um cartãozinho de felicitações assinado por todos, sempre era oferecida com imenso carinho, aos que mudavam de "equipa", uma begónia, aquela flor linda, em floração espectacular nesta altura do ano, que se veste de muitas e variadas cores.

Era uma confraternização particular e muito nossa, dos professores do ensino nocturno, porque a realidade de uma escola à noite, pouco tem a ver com a realidade mais incaracterística, do dia.
À noite há menos alunos, menos turmas, portanto, menos professores ;  depois, desde logo são alunos numa faixa etária e com interesses completamente diversos dos dos estudantes "profissionais", chamemos-lhes assim, ou seja, dos miúdos em escolaridade normal.
São na generalidade pessoas que trabalham, muitos com famílias constituídas, que frequentam a noite quase só como única hipótese de adquirir algum grau académico, que lhes permita ascensão na vida profissional.
Estudam com um sacrifício acrescido, depois de um dia de trabalho, com todas as dificuldades inerentes.

A relação professor-aluno é consequentemente intensa, porque afinal são pessoas mais próximas em idade, em maturidade, em posturas, em linguagem, em interesses.
Criam-se laços absolutamente estreitos de amizade, companheirismo, cumplicidade ... quase familiares.
Por sua vez o corpo docente, reduzido em número, forja também entre si uma unidade forte, alicerçada em partilha, em permuta, em entreajuda, divisão de tarefas, troca de alegrias e tristezas.
Essas, sendo de um, acabam por ser se todos ...

Leccionei à noite durante vinte anos, digamos que mais de metade da minha carreira.
Quando ingressei na noite, habituada que estava aos ritmos diurnos, fi-lo algo apreensiva, e fi-lo por razões de ordem familiar, que acabaram por me "empurrar" para essa alternativa.
De facto, o meu pai acabara de acamar, era necessária disponibilidade para o tratar e apoiar durante o dia, e sendo filha única, essa foi a forma que encontrei de o poder fazer.

E surpreendentemente, esses anos vieram a constituir a recordação mais gratificante, mais doce, mais preenchedora, que tive ao longo da minha actividade profissional.
A "minha gente", como sempre considerei os colegas que rapidamente se tornaram amigos indeléveis, é o espólio mais rico e emocionante da minha profissão.

A "Festa da Begónia", para lá de um jantar perdido nas horas, tinha sempre um espaço lúdico ou cultural a animá-la, e encerrava com as homenagens aos "begoniandos", com a entrega da begónia, do cartão de felicitações, e com a distribuição das palmas e dos beijinhos, o tirar de fotografias e mais fotografias, tudo misturado com alguma "inveja", dos que ainda não haviam atingido esse patamar, e de certa forma o ansiavam, e ... tenho a certeza ... já de algum saudosismo,  nostalgia e aperto no coração, dos que de "begoniandos" passavam a "begoniados" nessa noite ...

Os anos foram passando, fomos vendo ir amigos atrás de amigos ...  a Celeste, o Sobral, o Rutílio, o Álvaro, o Arlindo, o Moisés, a Emília, o Henrique, a Ester, a Helena Cavaco Silva, a Helena Carneiro, a Evelyse, a Conceição, a Maria José, a Ema, a Ana Frade, a Fátima, a Graciete, a Teresa Sobreira, o Sampaio, o Tavares, a Joaquina, a Patrocínio, o Noronha, a Isabel Lagoa, a Fernanda Coelho e o Calisto ...  e tantos mais a quem pediria perdão se me lessem, por os não nomear, apenas porque a memória também me acompanha inevitavelmente o BI ... ( só que em proporção inversa, claro ), e não por desconsideração ou falta de afecto.

No ano seguinte todos eram de novo convocados a comparecer, para que ao menos nessa noite se distribuíssem abraços, carinhos, risos, se trocassem novidades ( começava já a falar-se dos netos, obviamente ... ), para que se partilhassem as alegrias mas também as amarguras, se contassem as apreensões e as incertezas, as dificuldades e já as saudades ... porque a Escola, queiramos ou não, ficou em todos, entranhada no sangue, tenho a certeza.

Começou a haver "desertores", porque a Vida é a Vida, o tempo é o tempo, e a sua implacabilidade, isso mesmo ... implacável !!!...
Ia-se sabendo deste e daquele, por alguns.  De outros, nem isso !
O tempo começava a fazer os seus "estragos" ... a poeira começava a fazer perder as pessoas umas das outras ...

Chegámos a mais um Julho, quase.

A maioria da equipa "sénior" já se desagregou ;  neste momento, à noite, na minha escola, dizem-me que haverá duas ou três pessoas dos que existiam, ainda só há dois anos atrás ...

Espantosa a "sangria" que ocorreu na Educação, neste país, em tão curto espaço de tempo !!!...

Como tal, estou a sentir que a  inevitabilidade do tempo e das suas marcas deixadas nas existências do ser humano, está a dar sinais.
Não tenho notícias ainda, de que esteja previsto o tradicional evento anual, e afinal estamos a beirar o mês de Julho.
Ficarei extremamente triste, se de facto se confirmar o meu cepticismo actual, porque então isso vai significar que as pessoas começam a "depor as armas", e começam a deixar com algum indiferentismo que a manipulação da vida se instale, que a acomodação do dia a dia as insensibilize, as afaste, lhes passe borrachas nas memórias, mas sobretudo nos corações ...

E isso dói-me, acreditem !

Seria mais uma das últimas amarras afectivas, que injustamente iria ser cortada, deixando os barcos à deriva, perdidos, fora do molhe ... seria deixar morrer à míngua de água, uma qualquer begónia por aí !!!...

Anamar

quarta-feira, 20 de junho de 2012

" É ASSIM, OU NÃO É ?? "



O início de um romance, é sempre um romance ...

E um romance é um "mix" de ficção, criatividade, sonho, que nos transporta a patamares quase sempre irreais e que sempre vemos com alguma desfocagem.
Mas não há melhor período da vida do comum dos mortais, que a fase do romance.

Qualquer ser vivo parece ter sido fadado, para viver um ou mais romances.
É interessantíssimo ver os rituais de conquista e de acasalamento de muitas espécies do reino animal, e os artifícios com que a Natureza reveste esse período e dota os seus intervenientes.
O objectivo é óbvia e primordialmente a garantia da preservação das espécies, ou seja, da procriação, embora eu me interrogue se mesmo nesses seres considerados irracionais, o afecto estará completamente banido ...

No Homem, é um "estado de graça", são tempos doces, emocionalmente exacerbados, com a adrenalina e as hormonas em picos ...
São tempos sem peias, limites, barreiras, em que se respira romance, se vive do romance ... quase se morre pelo romance ...
Tudo é privilegiado aos nossos olhos.
As cores explodem numa Primavera em plenitude, os sons são acordes melódicos aos nossos ouvidos, os cheiros impregnam-nos os sentidos, os dias de sol são um afago para a alma e os de chuva, um embalo para o coração !
Os minutos de espera são horas intermináveis, o reencontro um presente dos céus, o afastamento, um buraco cavado bem dentro de nós.
O ser humano desenvolve toda uma panóplia de posturas e desempenhos, com a vivência de uma adolescência instalada em qualquer idade.
Tudo vale a pena, para tudo se dá um jeito, tem-se, mas quer-se sempre mais.  Tornamo-nos por vezes, ridícula mas espantosamente, seres de eleição, só porque se vive um romance !!
Tudo é encantatório, tudo é de menos para o tanto que estamos a viver ;  alguma deturpação e favorecimento do objecto amado, é inerente ao sonho que sonhamos ...
Vive-se "pendurado" de um olhar, de uma frase, de uma carícia, de um telefonema, de uma mensagem ...
Pega-se dez vezes no telefone, só para ter a certeza que afinal a dita não entrou ...
As pulsações aceleram se o silêncio do outro lado se arrasta para lá do espectável .
A ansiedade toma-nos, se simplesmente sentirmos perigar esse estado "miraculoso" !
Alindamo-nos só porque passa a valer "mais a pena", norteamos os nossos gostos e interesses, pelos gostos e interesses do outro ...  "adivinhamos" o que o outro ainda nem sequer sonhou, e sorrimos e trauteamos "aquela" música, sem sequer darmos por isso ...
Um local, uma flor, um pôr-de-sol, têm o rosto da personagem do nosso romance.
As cumplicidades cinzelam-se para todo o sempre, e juraríamos que esse "sempre" existe, e não é pura ficção !!!...

Apenas, como todos os êxtases, o "sempre" é efectivamente ficção, porque nas existências nada perdura e tudo é mutável ...
Apenas, como em todos os sonhos,  há sempre um acordar com a tomada de consciência da realidade.

E de escaldante, o romance começa a amornar.
É como se saíssemos da dimensão 3D de um filme, em que os efeitos especiais deixam de ser tão especiais assim ;
em que estendemos as mãos para apanhar as borboletas que vinham ter connosco voando pela sala, e elas, afinal, já não descolaram do écran.
O fascínio começa a assumir dimensões reais, e as personagens descem dos pedestais, e ficam simplesmente com a dimensão humana.  E os humanos afinal são gente comum, com insuficiências, omissões, falhas ... nem sempre sorriem, nem sempre estão presentes, nem sempre relembram o abecedário das palavras açucaradas, que se gastavam até à exaustão.

É um pouco como a Cinderela, que de princesa voltou à andrajosa criada, no fim do baile do príncipe, mal soaram as badaladas da meia-noite, e o sonho foi desfeito !

E as pessoas começam então a reequacionar muitos factores ;  começa-se a usar metro e balança para aferir posturas e sentimentos.
Começa a analisar-se, do valer ou do não valer a pena  pôr em causa estruturas criadas, conjunturas existentes...
Começa a olhar-se para a tela tão nossa conhecida, e as cores já desbotaram um pouco, tendendo a sumir na poeira do tempo ...
Começa a racionalizar-se o que não o era ... não o poderia ser !!!
O risco já se calcula.  Já não nos jogamos da falésia, acreditando seguramente sempre encontrar um chão atapetado à nossa espera, lá em baixo ...
A inocência começa a perder-se, a ingenuidade também, e se calhar o encanto, com elas ...

E pronto !

O sol desce no ocaso, começa a escurecer ... a noite anuncia-se porque já não é Primavera, e o Inverno já se instalou outra vez nas nossas vidas !!!...

Anamar 

terça-feira, 19 de junho de 2012

" A DIFÍCIL TAREFA "

Tomar decisões é das coisas mais complicadas na vida, penso.
E no entanto, muitos se degladiam para deterem o poder decisório, inclusive de muitos destinos que não só os próprios.

Esse, o papal dos políticos diariamente, dos líderes, dos chefes de grupos sejam de que natureza forem, dos xamãs de clãs ou tribos ...
Os próprios animais, sempre têm à frente do seu colectivo, os indivíduos "alfa", que determinam aspectos muitas vezes vitais para os grupos, em termos de território, de caça, de migrações, até de acasalamento.
Para se ser um indivíduo "alfa", seja em que contexto for, é necessário ter um carisma próprio, é necessário ser um elemento de referência, é necessário impor-se à comunidade, reunindo consensos sobre determinação, segurança, capacidade de decidir ( por vezes em situações limite, passíveis em caso de erro, de serem penalizantes para quem ou para os que o seguem ).

É necessário saber pautar-se com transparência e verdade nas escolhas que faz.
Deverá tratar-se de alguém com responsabilidades obviamente acrescidas, com perfil ( pelo menos em tese ) exemplar, irrepreensível nos posicionamentos, na coerência e bom senso que demonstra, na clarividência do que decide, e com uma segurança tal, que consiga transmiti-la, por difíceis que sejam as questões ...
Alguém com uma personalidade forte, combativo, ideologicamente assertivo.

Por outro lado, decidir, significa logo à cabeça, aceitar e conviver com fracassos e sucessos, com boas ou más escolhas, com as inerentes consequências para si e para os outros.
Decidir é uma escolha que não deverá ser feita pela força ou sob restrição de liberdade, mas sim pela persuasão, pela inteligência, pelo poder convicto de uma argumentação consistente e credível, como justa e sustentável, com lucidez e objectividade.

Um líder decisório deverá, em todas as circunstâncias, manter equilíbrio emocional ( e por isso penso que deverá ser uma personalidade com forte pregmatismo, distanciamento e até frieza em relação às questões ), não ser especulativo nem alarmista ( porque transmitiria uma insegurança não desejável ), e depois, mais importante ainda, do meu ponto de vista, ter a humildade de, perante uma má decisão, saber aceitar o ónus da mesma, carregar sobre os ombros as consequências inerentes, e seguramente apostar numa próxima melhoria.
Escolher implica também perder, como digo, e perdendo, ter o espírito olímpico na pureza do seu significado, ter o "fair play" necessário, e sempre manter uma postura digna e respeitosa para com quem de imediato apontará um dedo acusatório, nem que esse dedo seja a sua própria consciência !

Eu jamais poderia ser líder, fosse em que campo fosse!
É uma capacidade nata ... Ou se tem ou não, e isso revela-se, de uma forma interessante e clara, quase sempre desde tenra idade.
Claro que será depois treinável e passível de aperfeiçoamento, mas na essência, deve fazer parte do perfil psicológico de um indivíduo.
São características indiscutivelmente personalísticas, que já nascem ou não, connosco.

De facto não reconheço em mim qualquer traço, sequer aproximado, do que seria um líder carismático, capaz de mobilizar massas, arregimentar seguidores, sensibilizar opiniões.
E no entanto, a minha postura na vida parece transmitir uma realidade diferente, para os que comigo convivem, o que não deixa de ser curioso, me intriga e me espanta.

Analisando a questão ( muitas vezes me interrogo a propósito e sobre ela reflicto ), penso que é exactamente por insegurança, timidez e defesa, que transmito força, segurança, e desenho um perfil de aparente liderança.
Parece algo incoerente, paradoxal ou contraditório ... mas é de facto assim !!!

Reconheço ser frontal, reconheço ter alguma coragem "suicida" por vezes, dou a cara em muitas circunstâncias com inerentes e onerosas consequências ( raiando uma utopia romântica ou inconsciência pura ), procuro ser coerente, não sou diplomata se defendo um valor ou princípio em que acredito.
Tudo isso já tem feito de mim, em algumas ocasiões, bandeira ou estandarte de causas, ideias e opiniões.

Mas depois sou um ser visceralmente emocional e sanguíneo, e portanto nunca me é fácil separar o racional e necessário, do irracional mas intuitivo.
Em causa própria, normalmente decido por cansaço ou desgaste de uma situação, que assumindo uma fasquia insustentável, me precipita a decisão.
Até lá, "empurro com a barriga", como "soi dizer-se", por dúvida e pavor de fazer escolhas e tomar decisões de forma errónea.

A meu favor sei ter aquilo que talvez possa classificar de uma qualidade :  uma vez escolhido o caminho, tomada a decisão, arquivo o assunto, e raramente ( arriscaria a dizer "nunca" ), volto a reequacionar a questão, ou a martirizar-me com ela.
Bem ou mal, encerro-a, viro a página, dobro a esquina !
É como se deixasse de me molestar e de me atormentar a alma ;  e é de alívio quase sempre, a sensação que experimento em consequência.

Bom, quer em termos globais, quer estritamente em termos pessoais, ter que decidir é mesmo do pior que há !!!...
Chegar a uma encruzilhada e convictamente saber que caminho seguir, sem ficar a olhar para trás ... é "obra" ... e apanágio de alguns poucos "eleitos", estou certa !

Na minha vida, quase sempre eu sou mais de circular em rotunda ... percebem ??!!...

Anamar

domingo, 17 de junho de 2012

" NUNCA "

Há um ano atrás estava a dois dias da minha viagem até às Ilhas Maurícias.
Recordo com alguma nostalgia essa época.  Não é a primeira vez que trago aqui este tema, que de relevante não tem nada, é provocador como já tenho sobejamente dito, e que tenho rebuço em abordar.
Felizmente não parece parar por aqui alguém, que há tempos atrás, se insurgia com o que talvez tenha achado ser insensibilidade minha, face à crise instalada ...  Mas também não se trata disso !

Apenas, penso que tenho dentro de mim um espírito viajeiro inquieto e imparável.  Um espírito e uma necessidade de mudança incontroláveis.
Desde miúda me habituei a ouvir a minha mãe acusar-me de que eu me saturo rapidamente de tudo na minha vida, de que a estagnação, o imobilismo, o repetitivo, a ausência de novidade, desafio ou emoção, me perturbam e me mexem.
Eu também sinto notoriamente essa instabilidade em mim.

Estas formas de ser e sentir revelam, creio, uma imaturidade emocional, uma utopia desajustada, um desejo absurdo de aventura, não cabíveis na idade que tenho, nem na razoabilidade que deveria ter, e que pareço de facto não possuir ...

A vida comum, aquela que se tem e que as pessoas vivem, aquela que se "vive simplesmente", como a minha filha me diz, é incompleta demais para o meu "eu" interior, insatisfatória demais para o que preciso "beber" diariamente ... triste demais como combustível de alma.
Eu de facto sou um turbilhão de emoções que eu própria não entendo nem controlo, penso que nunca irei entender enquanto viver. Sou uma utópica de destino e sou uma insatisfeita de sonhos ...

Parece que nada do que vivo chega, para que eu o classifique de VIDA ;  parece que, se isto o é ... não lhe encontro significado, razão ou lógica.
Sinto que o ser humano  terá sido largado aqui, se calhar para fazer a aprendizagem de encontrar alguma significância para a sua existência, e que é exactamente isso que eu não consigo descortinar.
Parece-me tão absurda e tão sem sentido esta existência, tão sem objectivo que não o de caminhar não se sabe para onde, nem porquê, nem até quando ... que como dizia um amigo meu, sinto sermos apenas meros ensaios de proveta !...

Os animais são mais felizes seguramente ...
Um cão vive com uma esperança de vida que desconhece, um gato viverá uma quinzena de anos, talvez, e não o sabe ...  Há seres que existem apenas horas.  Parecem chegar, desempenhar a função para que chegam, e partem ...  Nunca saberão porquê !!

O ser humano questiona ...  EU questiono lógicas, razões de ser, motivos, explicações, que talvez nem existam ...
Eu procuro um sentido, um nicho de encaixe que se afigure óbvio, e não encontro ...  Se calhar não tinha que encontrar, por ser inexistente !

É uma simples aleatoriedade isto do viver ... tenho para mim !
Chegamos não se sabe de onde, nem porquê, passamos por cá uns tempos ( novamente aqueles que alguma aleatoriedade desconhecida, permite ) e partimos, muitas vezes quando já somos só tristes arremedos de seres humanos, farrapos de gente, esgares de pessoas, carregando para nada, nem para ninguém, nem para lugar nenhum, toda a "bagagem" de conhecimento, todo o recheio cultural, de valores, de emoções, afectos, de mais valias, que arregimentámos, quantas vezes a duras penas, neste nosso caminhar.

E pronto ... partimos em silêncio ... sem livro de reclamações ... sem sequer nos pronunciarmos, concordarmos ou não ...  sem "estrilho" !!!

Neste momento haverá quem me leia, e se sinta já incomodado e compungido comigo, e com o que achará ser a minha "pobreza" interior.
Sentirá pena do meu desnorte, provavelmente da minha solidão, talvez do fel que me pressente ... em suma, da minha "perdição".
Sobretudo, quem tiver como esperança, a promessa de uma vida compensatória do "lado de lá", depois desta passagem de penitência e expurgação, por aqui.
Porque o Homem agarra-se quantas e quantas vezes a essa fé e a esse crer, sem o discutir, o pôr em causa, como amarra de porto seguro, como âncora de barco em mar revolto ... como forma de aligeirar a carga a que é submetido, remédio amargo que se tem que tomar para que se atinja de novo a saúde ... penso.

E esses são felizes, tenho a certeza !!!

"Felizes os que acreditam, porque deles será o reino dos céus" - ainda sei, assim me impingiram em menina, nos tempos da catequese, das missas, das comunhões, das penitências - e eu não esqueci ...

Apenas, eu não creio ...
A minha formação científica prevalece-me sempre, domina-me, orienta a minha forma de pensar e me posicionar ... e portanto ... MEU, nunca será o reino dos céus !!!...

O pior, é que seguramente o da Terra também não !!!...

Anamar

sábado, 16 de junho de 2012

" AINDA ONTEM !... "

 
As minhas crianças estão a crescer !

A Vitória completou ontem 8 anos, o António nos seus quase 11, tem o perfil de um "gentleman" em ponto pequeno.
É o tipo de rapazinho calmo, "low profile", muito "na dele", com postura protectora dos irmãos.
É um miúdo muito interessado em tudo o que ouve, conhece, lê ... em tudo o que o rodeia.
Eu diria que tem um nível de conhecimentos, superior à mediania para a sua faixa etária.  Lê muito, aliás nunca adormece sem que um livro lhe "feche a pestana" ...
Desde cedo o António voa entre Portugal e a Suiça, onde reside o pai, entregue à tripulação de bordo dos aviões.  Fazem quase parte da sua rotina, estas viagens frequentes.
Por vezes permitem que voe na cabina dos comandantes, o que vai ao encontro da sua curiosidade, e o que lhe suscita desde já, o gosto pela aviação, a ausência total de medo, e a vontade já expressa de ter como profissão, um dia, os comandos de uma aeronave.

A Vitória parece ter nascido ontem e já é uma mulherzinha em ponto pequeno, também.
Talvez por ser mulher, e eu ter tido apenas filhas, o meu relacionamento com ela, flui fácil.
Vocacionada para o exercício físico, desde bem pequenina, é uma desportista nata e uma promissora ginasta.
Percebe-se que tem como referência o irmão mais velho.  Penso que se esforça para, escolarmente, não lhe ficar atrás.
É uma criança desinibida, conversadora, de fácil relacionamento com qualquer pessoa.
Não é raro que numa conversação, ultrapasse alguma timidez do irmão, e se apreste a dar respostas prontas, opiniões, esclarecimentos, a alguma pergunta que lhes seja dirigida.

Sempre que me chega às mãos um e-mail que lhes possa interessar, ou que eu julgue importante na sua formação, reencaminho-o para a mãe, a fim de que lho mostre.
Num destes dias enviei um pps sobre gatos.
O gato é um animal que eles particularmente conhecem.  A tia tem dois, eu tenho um, coisa que sempre os deixou "loucos", quando vêm a minha casa, e com ele querem forçosamente brincar.
Esses dias são dias de "terror" para a Rita, que habituada ao sossego de uma casa sem crianças, corre a enfiar-se no reduto onde se sente mais protegida, o que sempre os frustra, obviamente.

Neste momento eles próprios detêm uma gata persa, a Kuka, que muito mais que gata, é um verdadeiro boneco de peluche, o que os delicia no seu quotidiano.

Não resisto aqui a transcrever o e-mail com que a Vitória respondeu ao meu, e que me deixou embevecida, devo dizer ...

" Avó Margarida
Os gatos são muto preguiçosos. Passam horas a dormir. Quem me dera que fosse assim para os humanos. Quem me dera que não houvesse crise e fossemos como os gatos, mas pelos vistos não somos.
Adorei as fotografias que enviou, porque é verdade que eles são assim.
Beijinhos e tive satisfaz bem que é o máximo no teste de aferição de língua portuguesa.
Beijinhos
Vitória "


As minhas crianças estiveram comigo há dois dias atrás, o que, até por não ser muito frequente, sempre me gratifica e simultaneamente me enternece.
Como estou demasiado tempo sem os ver, ocupo uma posição privilegiada, para que não só aproveite de um comportamento de educação e obediência  - que advém do respeito que se tem com quem não se está frequentemente - como também estou em condições excelentes, para observar e analisar o seu crescimento, o seu desenvolvimento, as facetas da sua evolução .

E realmente, dou por mim a pensar que ainda "ontem" a mãe e a tia tinham aquelas idades, aquele tamanho ... aquelas "figurinhas" ... e ainda "ontem" era eu que vivia as ansiedades, as preocupações, as esperanças, as expectativas no futuro ... que ainda só espreitava !...

Ainda "ontem" !!!...

Anamar