domingo, 1 de julho de 2012

" A PROSÁPIA DE SE SER HUMANO ... "


Este será o meu último post antes de me afastar alguns dias, como o referi em post anterior.
Os últimos posts têm sido posts reflexivos, sobre aspectos de fundo do ser humano, e da Vida.
Encerro este ciclo, abordando o aspecto mais definitivo, objectivo e frio ... a  MORTE !
Faço-o pela voz do "Mestre",  Pessoa, no heterónimo Álvaro de Campos.
Quem melhor que ele nos pode falar desassombradamente desta prosápia, desta ilusão, desta importância incomensurável e insubstituível, que o ser humano se dá, enquanto ser humano ??!!...
O total desassombro, a verdade nua e crua, a insignificância ... a pequenez que deveria reduzir-nos à nossa real dimensão, neste extraordinário poema, magistralmente dito pelo "diseur" que não carece apresentações : Paulo Autran !


   " SE  TE  QUERES  MATAR "

Se te queres matar, por que não te queres matar?
Ah, aproveita! Que eu, que tanto amo a morte e a vida, se ousasse matar-me, também me mataria ...
Ah, se ousares, ousa!
De que te serve o teu mundo interior que desconheces?
Talvez  matando-te, o conheças finalmente...
Talvez acabando, comeces...
E não cantes, como eu, a vida por bebedeira,
Não saúdes como eu, a morte em literatura!
Fazes falta? Ó sombra fútil, chamada gente!
Ninguém faz falta ; não fazes falta a ninguém ...
Sem ti, correrá tudo sem ti.
Talvez seja pior para outros, existires, que matares-te...
Talvez peses mais durando, que deixando de durar...
A mágoa dos outros?... Tens remorso adiantado de que te chorem?
Descansa ... pouco te chorarão !...
O impulso vital apaga as lágrimas pouco a pouco, quando não são de coisas nossas, quando são do que acontece aos outros, sobretudo a morte, porque é coisa depois da qual nada acontece aos outros...
Primeiro é a angústia, a surpresa da vinda do mistério, e da falta da tua vida falada...
Depois o horror do caixão visível e material,
E os homens de preto que exercem a profissão de estar ali.
Depois a família a velar,  inconsolável e contando anedotas, lamentando a pena de teres morrido.
E tu, mera causa ocasional daquela carpidação!
Tu, verdadeiramente morto, muito mais morto que calculas...
muito mais morto aqui, que calculas,
mesmo que estejas muito mais vivo além...
Depois, a trágica retirada para o jazigo ou a cova ...
E depois o princípio da morte da tua memória.
Há primeiro em todos, um alívio da tragédia um pouco maçadora de teres morrido...
Depois a conversa aligeira-se quotidianamente,
E a vida de todos os dias retoma o seu dia...
Depois, lentamente esqueceste.
Só és lembrado em duas datas, aniversariamente :
quando faz anos que nasceste, quando faz anos que morreste.
Mais nada, mais nada, absolutamente mais nada.
Duas vezes no ano pensam em ti.
Duas vezes no ano suspiram por ti  os que te amaram,
e uma ou outra vez suspiram, se por acaso se fala em ti.
Encara-te a frio, e encara a frio o que somos...
Se queres matar-te, mata-te...
Não tenhas escrúpulos morais, receios de inteligência!...
Que escrúpulos ou receios tem a mecânica da vida?
Que escrúpulos químicos tem o impulso que gera as seivas, e a circulação do sangue, e o amor?
Que memória dos outros tem o ritmo alegre da vida?
Ah, pobre vaidade de carne e osso chamada Homem.
Não vês que não tens importância absolutamente nenhuma?
És importante para ti, porque é a ti que te sentes ... 
És tudo para ti, porque para ti, és o universo,
e o próprio universo e os outros, satélites da tua subjetividade objetiva.
És importante para ti, porque só tu és importante para ti.
E se és assim, ó mito, não serão os outros assim?
Tens, como Hamlet, o pavor do desconhecido?
Mas o que é conhecido? O que é que tu conheces, para que chames desconhecido a qualquer coisa em especial?
Tens, como Falstaff, o amor gorduroso da vida?
Se assim a amas materialmente, ama-a ainda mais materialmente ... Torna-te parte carnal da terra e das coisas!
Dispersa-te, sistema físico-químico de cédulas nocturnamente conscientes, pela nocturna consciência da inconsciência dos corpos, pelo grande cobertor não cobrindo nada das aparências, pela relva e a erva da proliferação dos seres, pela névoa atómica das coisas, pelas paredes turbilhonantes do vácuo dinâmico do mundo...

                                                Álvaro de Campos

Anamar

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