domingo, 24 de junho de 2012

" UMA FLOR QUE JAMAIS MORRERRÁ "



Início de Julho ...

Por tradição, na minha escola, os professores da noite sempre confraternizaram num jantar de fim de ano, que era simultâneamente um "até breve", e uma homenagem aos que se haviam aposentado nesse ano lectivo.
Quem o criou apelidou-o de "Jantar da Begónia", porque para lá de um cartãozinho de felicitações assinado por todos, sempre era oferecida com imenso carinho, aos que mudavam de "equipa", uma begónia, aquela flor linda, em floração espectacular nesta altura do ano, que se veste de muitas e variadas cores.

Era uma confraternização particular e muito nossa, dos professores do ensino nocturno, porque a realidade de uma escola à noite, pouco tem a ver com a realidade mais incaracterística, do dia.
À noite há menos alunos, menos turmas, portanto, menos professores ;  depois, desde logo são alunos numa faixa etária e com interesses completamente diversos dos dos estudantes "profissionais", chamemos-lhes assim, ou seja, dos miúdos em escolaridade normal.
São na generalidade pessoas que trabalham, muitos com famílias constituídas, que frequentam a noite quase só como única hipótese de adquirir algum grau académico, que lhes permita ascensão na vida profissional.
Estudam com um sacrifício acrescido, depois de um dia de trabalho, com todas as dificuldades inerentes.

A relação professor-aluno é consequentemente intensa, porque afinal são pessoas mais próximas em idade, em maturidade, em posturas, em linguagem, em interesses.
Criam-se laços absolutamente estreitos de amizade, companheirismo, cumplicidade ... quase familiares.
Por sua vez o corpo docente, reduzido em número, forja também entre si uma unidade forte, alicerçada em partilha, em permuta, em entreajuda, divisão de tarefas, troca de alegrias e tristezas.
Essas, sendo de um, acabam por ser se todos ...

Leccionei à noite durante vinte anos, digamos que mais de metade da minha carreira.
Quando ingressei na noite, habituada que estava aos ritmos diurnos, fi-lo algo apreensiva, e fi-lo por razões de ordem familiar, que acabaram por me "empurrar" para essa alternativa.
De facto, o meu pai acabara de acamar, era necessária disponibilidade para o tratar e apoiar durante o dia, e sendo filha única, essa foi a forma que encontrei de o poder fazer.

E surpreendentemente, esses anos vieram a constituir a recordação mais gratificante, mais doce, mais preenchedora, que tive ao longo da minha actividade profissional.
A "minha gente", como sempre considerei os colegas que rapidamente se tornaram amigos indeléveis, é o espólio mais rico e emocionante da minha profissão.

A "Festa da Begónia", para lá de um jantar perdido nas horas, tinha sempre um espaço lúdico ou cultural a animá-la, e encerrava com as homenagens aos "begoniandos", com a entrega da begónia, do cartão de felicitações, e com a distribuição das palmas e dos beijinhos, o tirar de fotografias e mais fotografias, tudo misturado com alguma "inveja", dos que ainda não haviam atingido esse patamar, e de certa forma o ansiavam, e ... tenho a certeza ... já de algum saudosismo,  nostalgia e aperto no coração, dos que de "begoniandos" passavam a "begoniados" nessa noite ...

Os anos foram passando, fomos vendo ir amigos atrás de amigos ...  a Celeste, o Sobral, o Rutílio, o Álvaro, o Arlindo, o Moisés, a Emília, o Henrique, a Ester, a Helena Cavaco Silva, a Helena Carneiro, a Evelyse, a Conceição, a Maria José, a Ema, a Ana Frade, a Fátima, a Graciete, a Teresa Sobreira, o Sampaio, o Tavares, a Joaquina, a Patrocínio, o Noronha, a Isabel Lagoa, a Fernanda Coelho e o Calisto ...  e tantos mais a quem pediria perdão se me lessem, por os não nomear, apenas porque a memória também me acompanha inevitavelmente o BI ... ( só que em proporção inversa, claro ), e não por desconsideração ou falta de afecto.

No ano seguinte todos eram de novo convocados a comparecer, para que ao menos nessa noite se distribuíssem abraços, carinhos, risos, se trocassem novidades ( começava já a falar-se dos netos, obviamente ... ), para que se partilhassem as alegrias mas também as amarguras, se contassem as apreensões e as incertezas, as dificuldades e já as saudades ... porque a Escola, queiramos ou não, ficou em todos, entranhada no sangue, tenho a certeza.

Começou a haver "desertores", porque a Vida é a Vida, o tempo é o tempo, e a sua implacabilidade, isso mesmo ... implacável !!!...
Ia-se sabendo deste e daquele, por alguns.  De outros, nem isso !
O tempo começava a fazer os seus "estragos" ... a poeira começava a fazer perder as pessoas umas das outras ...

Chegámos a mais um Julho, quase.

A maioria da equipa "sénior" já se desagregou ;  neste momento, à noite, na minha escola, dizem-me que haverá duas ou três pessoas dos que existiam, ainda só há dois anos atrás ...

Espantosa a "sangria" que ocorreu na Educação, neste país, em tão curto espaço de tempo !!!...

Como tal, estou a sentir que a  inevitabilidade do tempo e das suas marcas deixadas nas existências do ser humano, está a dar sinais.
Não tenho notícias ainda, de que esteja previsto o tradicional evento anual, e afinal estamos a beirar o mês de Julho.
Ficarei extremamente triste, se de facto se confirmar o meu cepticismo actual, porque então isso vai significar que as pessoas começam a "depor as armas", e começam a deixar com algum indiferentismo que a manipulação da vida se instale, que a acomodação do dia a dia as insensibilize, as afaste, lhes passe borrachas nas memórias, mas sobretudo nos corações ...

E isso dói-me, acreditem !

Seria mais uma das últimas amarras afectivas, que injustamente iria ser cortada, deixando os barcos à deriva, perdidos, fora do molhe ... seria deixar morrer à míngua de água, uma qualquer begónia por aí !!!...

Anamar

4 comentários:

merryl disse...

Margarida,
tambem eu estava triste com a falta de notícias sobre a nossa reunião das Begónias...Mas soube hoje, que o encontro será a 13 ou 14 de Julho. A Manela vai confirmar.
Tenho muita pena que alguns dos nossos tenham "desertado" .Quem sabe este ano aparecem?
Gostei muito do que escreveste, porque foste de encontro ao que eu sinto sobre essa "vivência" que foi a Noite.
Beijinhos.
Merryl.

anamar disse...

Merryl

Pois...desolada fico eu agora (mais) porque vou para fora entre 4 e 18 de Julho.

Teve que ser esse período para acertos de datas com as minhas filhas, por causa da minha mãe.

Só me confirmaram há pouco....

Estarei seguramente com vocês em pensamento, já que com muita pena minha, não poderei estar fisicamente

Beijinhos

Anamar

Anónimo disse...

Oh, que pena! Quem vai agora fazer os versos que costumam encher o coração de toda a gente e nos fazem ficar, ao mesmo tempo,tão divertidos?
Malmequer

anamar disse...

Olá Malmequer

Pois...felizmente ninguém é insubstituível...

Por certo alguém se encarregará com todo o mérito, da vertente "cultural" do evento.

Beijinhos

Anamar