quarta-feira, 25 de abril de 2012

" OUTRA VEZ ABRIL" ( reflexão )


E "Abril " nasceu de novo ... sempre nasce, ainda que tenha cor, ainda que seja cinzento e penumbrento, como hoje.
Nasce à revelia de todos ; dos que o querem, dos que o não querem ... dos que têm memória, dos que já a perderam !

Não conjecturara  escrever mais sobre uma realidade que provavelmente se esbateu, se "esvaziou" ... diz pouco  ou muito pouco, às gerações actuais, porque a não viveram, a não sentiram, a  não desejaram ... como rio que nos correu nas veias ...

Abril de 74 faz todo o sentido p'ra quem ocupava nessa altura os bancos das faculdades, p'ra quem via nascer os dias atrás das grades de Caxias, p'ra quem sofria  com a ausência do irmão, do amigo, do namorado ... perdidos nas matas da Guiné, de Angola, de Moçambique ...
Rostos e corpos de meninos a quem tinham posto no ombro uma G3, e a quem tinham dito que os "turras" eram p'ra abater, indiscriminadamente ... só porque defendiam as suas terras !...

Abril de 74 faz todo o sentido, p'ra quem conhecia na vida a marca das garras da Pide, p'ra quem conhecia o significado da palavra "clandestinidade",  o significado do afastamento compulsivo e por sobrevivência, dos seus, do seu chão, dos seus sonhos,  vendo à distância o seu país a esfarrapar-se, a sua gente a sangrar mais e mais ...

Abril de 74 faz todo o sentido, p'ra quem apostou na palavra Liberdade, p'ra quem acreditou que a igualdade de oportunidades poderia ser para todos, para quem jurou que bastava já de mordaça na boca e na alma, e achou que era chegada a hora ... Para quem sonhou, que o futuro dos seus filhos iria ser menos carrasco que o seu próprio ...

E Abril de 74 faz sentido por miríades de coisas, que nos acordaram, nos deram fôlego, nos fizeram sorrir, sair às ruas e darmos as mãos a quem não conhecíamos,  caminharmos no compasso daquele estranho, só porque o mesmo riso  lhe iluminava o rosto, a mesma fé que nós lhe enchia o peito ... a mesma coragem e a mesma esperança que nós, nos empurravam a todos p'ra frente,  p'ra condução dos nossos destinos colectivos !...
Só porque, de repente, todos sabíamos de cor a mesma canção !...

Passaram muitos anos ...
Há gente desta geração que se atreve a opinar, a depreciar, a ridicularizar, a desrespeitar ... a achar que os "cravos vermelhos" foram uma simbologia patética, de uma revolução que afinal nos trouxe ao Hoje !...

É atrevimento  mesmo !...
Não estiveram lá para a viver, não podem perceber com rigor por que foi feita, não sentiram no coração nem o antes nem o depois de tudo ... tudo o que nós, os daquela época, realmente sentimos !...

E mesmo Abril "doendo" hoje ... pensemos como Salgueiro Maia : "O difícil está feito ... e o impossível só leva mais tempo !...

Anamar

sexta-feira, 20 de abril de 2012

" O HOMEM DAS ROSAS "- PARTE II



Maribel sempre continuava junto ao portão.

Já não lembrava há quanto tempo esborrachava o narizito na cancela.
Pelas cinco, mais coisa menos coisa, esticava o pescoço, alongava o olhar até ao fundo da estrada ;  até lá onde os seus olhitos enxergavam, ela perscrutava atentamente.

Maribel não percebera, se aquela rosa branca havia sido uma despedida ou antes, uma promessa de regresso.

O "homem das rosas", que passava emudecido pelo caminho, sempre apressado, sempre silencioso, sempre fechado em pensamentos, aquele que carregava o mundo nas costas ( que Maribel bem via ... ), deixara de aparecer.

Ele já estava na sua vida, mesmo que o não quisesse ; era ele que a levava ao portão pelas tardinhas, depois da rega !
Habituara-se à sua presença ;  afinal, ela enchera-lhe a vida ;  afinal, ela dera-lhe um significado ;  havia uma razão para que o seu coração pequenino disparasse, quando o dia  começava a tombar e a fresca se instalava .

Aquela personagem era um mistério. 
Era uma personagem hermética, com o seu cabelo branco, o seu passo urgente, aquele olhar miudinho, aquele silêncio desalentado, aquela rosa que sempre levava consigo ...

Todos os mistérios têm o poder de espevitar a curiosidade, fazem cócegas nos miolos.
E afinal, Maribel era uma criança e as crianças ainda são mais "espevitadas", mais criativas, mais sonhadoras .

A menina "decidira", que fosse quem fosse, o "homem das rosas" já era seu !!!
E era-o  porque já lhe entrara na vida, pelas palavras mais sábias, mais profundas e mais doces, que se podem dizer ... as que constituem a linguagem do coração.
Essas, são as palavras que não precisam pronunciar-se para se entenderem, não precisam balbuciar-se para se sentirem ...
Basta o olhar ... e esse, sempre que o "homem das rosas" o trocava com Maribel, deixava-lhe uma mensagem, fazia-lhe uma promessa, aquecia-lhe a alma.
O sorriso tímido que esboçava e com ela partilhava, era também um afago, um embalo, um carinho ...

E "decidiu" uma vez mais, como todas as crianças sempre decidem, que, se entrara, também não sairia nunca mais, porque o que é das crianças normalmente é para toda a Vida!
Ele era o seu segredo, era o seu "tesouro", era o seu mistério a decifrar ... porque,  era por ele que ela esperava todos os dias ... cada dia !!!...

E passaram dias, e mais dias, muitos dias ...

As cameleiras voltaram a adornar-se de rosa, as magnólias abriram as campânulas aos colibris atrevidos ... os castanheiros encheram-se de folhas, de flores, e depois, de ouriços, no seu caminho.
Aos Invernos seguiram as Primaveras, e de novo as Primaveras e de novo as Primaveras !...
Depois das chuvas, veio o sol, as primeiras flores amarelas sem nome, reabriram na falésia ...
E tudo sempre recomeçou.

Recomeçou, como o sonho recomeça todos os dias, sempre que o quisermos.
E os sonhos, nas crianças, são os mais legítimos sonhos, porque  são sonhos  puros, não sonhos serôdios, cansados, improváveis, como o são os sonhos esquecidos  de  gente grande, que já se desiludiu muito, que já sofreu muito ... gente a quem  tiraram o luar da cabeceira  da cama  e a quem apagaram as estrelas no céu ...

Algo dizia à menina, que valia a pena esperar ...
Uma andorinha tinha-lho sussurrado ao ouvido, assim que chegou da ausência sazonal.  As borboletas, recém-saídas dos casulos, dançavam voluptuosamente ao seu redor, e Maribel pressentia mais que nunca, que aquela rosa branca, que inesperadamente  um dia  lhe aquecera o coração, não tinha sido realmente uma despedida ... mas sim, uma promessa de regresso !...

Naquela tarde, como em todas as tardes da sua vida de menina, pelas cinco, mais coisa menos coisa, esgueirou-se uma vez mais até à cancela.
O caminho por entre os pinheiros  alongava-se silencioso, rumo à curva próxima, completamente vazio ... absolutamente vazio.
A amenidade da fresca já descia ... a tarde declinava ... e seria só mais uma tarde, se não se tivesse iluminado repentinamente, se o aroma das glicínias em flor, não tivesse subido no ar, perfumando intensamente o jardim, se os pássaros não tivessem saído inesperadamente do silêncio letárgico pela aproximação da noite, se um imenso arco-íris não se tivesse desenhado no céu ( mesmo não havendo sol nem chuva ) ... se o "homem das rosas" não tivesse dobrado o cotovelo da estrada ...

... finalmente com um sorriso rasgado no rosto, finalmente não ensimesmado, finalmente não carregando mais em si, a imensidão do Mundo, finalmente "saboreando" cada pedra do percurso, lentamente, sem pressas, como quem tem finalmente um destino determinado na sua estória, a cancela onde Maribel sempre o esperava ...

Tinha-o esperado  tarde após tarde, dia após dia ... Primavera após Primavera ... sem cansaço, sem desistência, simplesmente porque já era feliz só por "saber" que ele chegaria um dia, só por acreditar que, tal como no seu sonho, ele lhe iria depositar nas mãos, não uma, mas uma braçada de rosas vermelhas ...

Tinha valido a pena !!!...

Anamar

domingo, 15 de abril de 2012

"TIME TO SAY GOODBYE "


Começa a chegar o pessoal para a bica do almoço.
Há um período, entre a manhã e a tarde, em que gente normal não está obviamente, nem a tomar o pequeno almoço, nem ainda o café pós-almoço.
Afinal, estamos entre a uma e as duas !

Gente tonta como eu, terminou o pequeno almoço ;  sinto o vazio de um café que se despovoa por algum tempo ( se bem que o odeio cheio,  quando aqui chego ) ;  oiço os "até amanhã" ditos em despedida aos empregados, e escrevo não sei o quê, nem para quê.
Escoamento nítido e absoluto de insanidades, por necessidade absoluta de abrir os diques em barragens na "cota máxima" ...

"Chamada de atenção" - foi-me dito um dia destes.  Porque, "se o não fosse, este espaço não seria público".

Acho que não !...
Acho que não quero chamar a atenção de ninguém, porque não quero nunca incomodar ninguém.
Apenas, ao escrever sinto-me acompanhada.  Tenho um objectivo ... algo real entre as mãos, mesmo que seja para ninguém ler, mesmo que seja apenas para ter a sensação quente, de abrir por momentos uma janela, mesmo que saiba que nada disto tem relevância, interesse sequer ( como é o caso de hoje ), mesmo que nada disto me satisfaça, realize ou alivie.

Afinal, abrir uma janela, sempre é ver céu, sol ou não, chuva ou não, pássaros ou não ... mas sentir Vida lá fora, inspirar o ar mais até ao fundo, absorver cheiros até ao âmago, sufocar-me do vento que corre, ou embalar-me no frio ... sei lá !!!

À noite, quando por saturação ou desinteresse desligo o computador, é um "até amanhã" silencioso para muitos e para ninguém, é um bater a porta, é a sensação de uma maior solidão e isolamento que se instala naquele quarto, na minha vida ...
É o ficar eu e a Rita, mesmo sós ... ninguém mais !

Deixar de escrever aqui, escrever e guardar, ou escrever e deitar fora simplesmente ... uma hipótese sugerida, que às vezes considero.
Mas aí fico sem nada, sem o resto que me sobrou, sem o pouco que tenho, porque na verdade, pouco tenho mesmo ...
Ninguém imagina a amputação que isso me representaria ...
É como se metade de mim já tivesse ido, e a metade que ficou, estivesse a ir ...

"Vais acabar sozinha" - sentenciava-me a minha filha noutro dia, acusando-me de me furtar frequentemente ao convívio, e me "enfiar na concha" ...
"Acabar" como ... se já o estou ???!!!...

Queria ser como a outra gente.

A Teresa tem ímpetos religiosos. "Respira" igreja ... a dela !
A Fátima organizou uma forma de existir, de subsistir ... de resistir.  Teve que ser, desde que a mãe partiu e ela ficou só.  Tenta sair, tenta conviver, viaja ...  Nunca recusa uma proposta de programa ...
A Bia faz trabalho social, exerce voluntariados, é feliz !
A Ema pertence à Legião de Maria e ao Banco Alimentar contra a Fome ... e é feliz !
A Lena, não tem vida própria ... vive a dos outros. Desdobra-se, transcende-se, ajuda, solidariza-se ...é feliz também !
Outros fazem "voluntariado" compulsivo, junto de filhos e netos.  Reclamam, mas sempre riem. São felizes !
Depois, há quem conviva pacificamente com a solidão, ou nem dê por ela.  Arranjam carapaças rijas.  Lêem, almoçam, lancham e jantam televisão ... e não se questionam, nunca se questionam ... nunca questionam o que é realmente viver, ou sequer a lógica que preside à mera sequência de dias iguais, esperando apenas que passem, que passem indiferentemente ... sabendo que os "amanhãs" são piores que os "hojes" ... e os "hojes" piores que os "ontens"...

E sempre a descontar, mantendo-se inconscientemente adormecidos, anestesiados ... porque as anestesias foram feitas para evitar as dores, até mesmo a sensibilidade.
Estar anestesiado é uma espécie de ante-câmara de estar morto.
E estar morto, deve ser a doce sensação de estar em paz.  Por alguma razão, nas lápides tumulares se escreve : " Repousa em paz"!...
É porque alguém sabe que só assim se alcança a paz ...
Bolas ... e se é assim, andamos nós todos com medo de a alcançar ... porquê ???!!!  Não se percebe !!!

A minha mãe teve ontem a sua festa dos noventa e um anos.
Olho para ela e vejo-a naquela mansa inconsciência ( sei lá se é !!!  E também, de que lhe serviria, se o não fosse ???!!! )
Que tanto futuro pode ter alguém com noventa e um anos??  Que "tanto", e "que" futuro ???!!!
A estrada termina logo ali !...

Eu "esgatanho-me" diariamente, numa impotência de luta desesperada com tanta perda de dias, com tanto desperdício de tempo, com tanta vida não vivida ...
E não consigo fazer nada ... Não consigo dar um passo à frente, que não dê dois para trás, na mudança de rumo ...
Ela vive, simplesmente ...
Se calhar a biologia humana é isto.  Encarrega-se de pôr as pessoas à sesta, antes que chegue o sono da noite.
Vai-as embalando, naquele estado de vigília, que já é, e ainda não é sono profundo ...
O tal estado de anestesia de Paz.  Pelo menos, não se degladiam de manhã à noite.
Porque ninguém aguenta uma disputa, de vinte e quatro sobre vinte e quatro horas ... inglória, destrutiva, ineficaz, mortífera !!!

Faz hoje um século, o naufrágio da História ...
O Titanic, o invencível, o gigante dos mares, o "inafundável" ... sucumbiu !
Um iceberg matreiro, dissimulado ... por destino, à sua espera, pôs fim ao sonho.  Bastaram duas horas e o fundo oceânico deu-lhe berço ... paz !!!

O meu "rombo" hoje é maior ...
O meu naufrágio, também ... Só que felizmente, eu afundo sozinha!...



                              
Anamar                       

quinta-feira, 12 de abril de 2012

" NON SENSE "


E o dia ficou cinzento ...
Ficou um dia "daqueles" !...

A minha gaivota andava mesmo por aqui.
Rasou a vidraça várias vezes, parou no terraço vizinho, bem à vista ...

Afinal, chovia !  O dia fechara, uniforme, doentiamente uniforme.  O tipo de dia que me faz mais feliz se estou feliz, me torna dolorosamente triste, se não tenho horizonte ...
E hoje, não tenho horizonte !

Sintra não se via, aliás não havia "linha" para lá dos prédios mais próximos.
Para lá dos prédios mais próximos e para lá de mim ...
Não havia simplesmente linha !!!...

Tenho saudades da que eu era ...  Da que eu era, ou da que eu nunca fui ??!!

Complicada dúvida esta !!!

Ontem, alguém narrava o "seu" dia, no Facebook.
Desde as cinco da manhã em que acordara, até à noite.  E dizia com ar desalentado: " E amanhã, outro dia igual e sempre igual ... até quando ?... "

Parece a leitura do condenado no corredor da morte, em contagem decrescente.  Dias sem outro horizonte, que não aquele ... Mais dias sem "linha" ...
E quando não há nada lá ao fundo, quando não há por que ir contando, quando não há perspectiva ou sentido, espera-se o quê?

A Vida devia ser só para os simples, para os que a sabem e suportam viver, sem demais exigências ou conturbações.  Porque os outros, os que têm grilhetas nos pés e no coração, não vivem, percorrem apenas caminhos de calvário, sem sentido.

O ser humano é por natureza um ser de sonho, porque é ele que lhe "comanda a Vida".
Porque é através dele, que avança, que "se" dá significado ... lógica, razão !
Hoje vive-se por isto, amanhã por aquilo ...
São as fasquias a alcançar que impulsionam o caminhar, valem o esforço, alegram e animam a alma.
É o que se quer atingir, grande ou pequeno, muito ou pouco, o desiderato por que em cada dia nos superamos, acordamos, entramos na "roda do hamster" e nela rodamos até ao dia seguinte ... em que nova tarefa ou odisseia, nos permite dar um passo mais além, e não apenas viver tudo de novo.

E assim, dia após dia, até ao topo da montanha, donde se divisará o mundo, o mundo que queremos alcançar.
E depois dessa montanha, a cordilheira sempre tem mais picos, mais cumes inexpugnáveis, até que a força do Homem os desvende.
E enquanto não os desvenda, enquanto lhes vai subindo as encostas, é feliz, luta, tem um objectivo que olha e volta a olhar ... aquele lugar iluminado por sol, muito sol ... o sol do seu sonho !
É a vontade de o alcançar que o levanta quando cai, é ela que o impulsiona quando quer desistir, é ela que o espicaça no valer a pena de continuar, para se sentir vivo e livre, nessa busca.
É uma bússola, sem a qual fica atordoado no meio de um deserto sem referências, sem limites, sem "linha"..
Tudo uniforme e cansativamente igual, sem rumo ... sem vereda, caminho ... razão ...

E assim, sucumbe-se ... não se vive, morre-se.
Morre-se todos os dias um bocadinho.

Eu já tenho poucos bocadinhos para morrer.
Estou muito cansada deste labirinto, que sempre me leva à mesma casa de partida ;  estou exausta desta rotunda tonta, onde circulo ;  estou saturada destas ruas de volta atrás confusas, escuras, com becos sobre becos, com esquinas e mais esquinas, como naqueles pesadelos aterradores, dos quais queremos acordar e que repegamos, repegamos, repegamos ...
E por aqui estou ... acho que apenas vendo desfilar a Vida, não mais !...

Desculpem o "non sense" deste post.
Isto hoje está como nos "bons velhos tempos" ...
Eu acho que infelizmente, sempre vou ter aos "bons velhos tempos", e que os meus dias de escalada de picos de montanhas ensolaradas, são tão efémeros, tão escassos, tão diminutos, que não fazem sequer história ... não escrevem seguramente a Minha História !...

Anamar

quarta-feira, 11 de abril de 2012

DIGNO DE SER LIDO ...

 
 
Não é meu...mas não resisti!
Carlos Drummond de Andrade não carece apresentações.
 
Olhem só que texto lindo e clarividente !! Tive que 
partilhar convosco ! 
 
*CASA ARRUMADA*
 
Carlos Drummond de Andrade* 
(1902-1987)*
 
Casa arrumada  é assim:
Um lugar organizado, limpo, com espaço livre p'ra 
circulação e uma boa entrada de luz.
Mas casa, p'ra mim, tem que ser casa e não um centro
cirúrgico, um cenário de novela.
Tem gente que gasta muito tempo limpando, 
esterilizando, ajeitando os móveis, afofando
as almofadas...
Não, eu prefiro viver numa casa onde eu bato
o olho e percebo logo:
Aqui tem vida...
Casa com vida, p'ra mim, é aquela em que os livros
saem das prateleiras e os
enfeites brincam de trocar de lugar.
Casa com vida tem fogão gasto pelo uso, pelo abuso
das refeições fartas,
que chamam todo mundo p'ra mesa da cozinha.
Sofá sem mancha?
Tapete sem fio puxado?
Mesa sem marca de copo?
Tá na cara que é casa sem festa.
E se o piso não tem arranhão, é porque ali 
ninguém dança.
Casa com vida, p'ra mim, tem banheiro com vapor 
perfumado no meio da tarde.
Tem gaveta de entulho, daquelas que a gente 
guarda barbante, passaporte e vela de aniversário, 
tudo junto...
Casa com vida é aquela em que a gente entra 
e se sente bem-vinda.
A que está sempre pronta p'ros amigos, filhos...
Netos, p'ros vizinhos...
E nos quartos, se possível, tem lençóis revirados 
por gente que brinca ou namora a qualquer hora 
do dia.
Casa com vida é aquela que a gente arruma 
p'ra ficar com a cara da gente.
Arrume a sua casa todos os dias...
Mas arrume de um jeito que lhe sobre tempo 
p'ra viver nela...
E reconhecer nela o seu lugar.
 
Anamar   

segunda-feira, 9 de abril de 2012

AS "ESTRELAS" QUE NÃO ESTÃO NO CÉU


Quando  se  faz  das crianças  pequenas  vedetas, está   tudo estragado !...

Senti na pele desde muito cedo, a carga emocional, a responsabilidade objectiva, o peso que é, a não correspondência às expectativas em nós colocadas.
Acho, ou melhor, tenho a certeza de ter até hoje em mim, estigmas da postura da minha mãe, visto ter sido ela a única responsável pela questão.  O meu pai era outra "praia" ...

Não estou a exprimir em relação a ela nenhuma ingratidão, nem objectivamente a lançar nenhum ónus sobre a culpa da imperfeição que sou hoje.
Ela orientou-me como pôde, como sabia, o melhor que conseguiu, em termos de educação e preparação para a Vida, de acordo com as suas próprias limitações, de acordo com o seu possível horizonte de vida.
Ela caiu, como muitos pais caem, na tentação de projectar nos filhos aquilo que não foram e gostariam, aquilo que quereriam ter alcançado e não conseguiram, a concretização do que em si não passou de sonhos, porque não puderam ou não foram capazes de ir mais além ... até a tentativa de sublimar as suas próprias e ancestrais frustrações.

Não sei se isto é humano ... legítimo, sei que não é !

A  minha  mãe  não  tinha  cultura, instrução, grandes conhecimentos ( fez a quarta classe já adulta, e por necessidade ... Eram outros tempos ... ) !!
Mas parece que esta forma de estar e ser, acaba infelizmente por ser muito mais transversal às gerações e aos tempos, do que o desejável.
Se calhar eu fi-lo, e se calhar a minha filha também o faz, mais ou menos inconscientemente, se calhar mesmo inconscientemente.

Afinal, ser-nos-ia exigível maior criticidade, mais senso, mais inteligência, mais responsabilidade, mais "savoir-faire", porque estamos / estaríamos mais artilhadas de conhecimentos didáctico / pedagógicos, maior informação, mais apetrechadas em experiência de vida, pertencemos e vivemos uma era de horizontes mais alargados, de maior ecletismo cultural, em que tudo é questionado, tudo é objecto de estudo, de análises, debates, discussões, fóruns, conferências, tratados, convenções, etc, etc, etc, numa procura quase obsessiva de linhas, directrizes, caminhos que levem a maiores acertos, a  uma maior humanização, a posicionamentos mais correctos, pessoal e socialmente, a maior felicidade integral do Homem.

Eu, actualmente faço juízos de valor, reflexões, auto-crítica, distanciada que estou, em idade, em geração, até por exigência profissional.
Sempre trabalhei com, e no meio de jovens, seres em formação, numa fase crucial da vida ;
Por razões óbvias, deparei-me, vivenciei, tentei compreender, se possível ajudar em situações idênticas, vividas por adolescentes e pré-adolescentes, no núcleo familiar, e por arrastamento, em sociedade.

Por outro lado, da minha própria experiência, sei que aquilo que senti na pele, fez de mim um ser em permanente conflito interior, na busca de um perfeccionismo utópico, um ser com alguma / muita insegurança e até falta de auto-estima, um ser que ainda hoje sempre receia defraudar, que se posiciona em sofrimento, por recear não corresponder ( de acordo com elevadíssimas e idiotas fasquias ), às expectativas que sobre si recaem.

À nossa revelia, construímos sobre nós próprios uma imagem deformada, profundamente insatisfatória, e propiciadora de amargura e sofrimento.
E isto fica, garanto-vos, por mais clarividência que se tenha, por muito que se racionalize, por muito pragmáticos que sejamos ... para todo o sempre, com todas as inerentes consequências.

Por sua vez, a sociedade hoje em dia, ainda é mais exigente, trucidante, aguerrida, castigadora.
A competição desenfreada, a comparação, a necessidade de afirmação, desumaniza ainda mais as pessoas, e destrói ainda mais as relações humanas, colocando-as continuamente debaixo de fogo.
Hoje, como sabemos, por um lado vale tudo, ou quase tudo para se atingir determinado fim ;  por outro, uma selecção ou triagem acirrada, impera, na escolha dos melhores, para tudo.
Todo este "cocktail" explosivo, é mais que suficiente para colocar "cargas" detonadoras nas vidas das pessoas.
Se para além disso, desde cedo, o indivíduo estiver permanentemente submetido a provas ilógicas, por exigência pessoal, familiar e social, confrontado com a necessidade imperiosa, mesmo inconsciente, de corresponder ... teremos criado um ser em constante e crescente sofrimento, incapaz da gestão de insucessos, incapaz de uma convivência pacífica com as suas próprias e naturais limitações, e consequentemente, sem armas para as ultrapassar e superar.
Em última análise, está criado um ser insatisfeito, com grave distúrbio psicológico, desequilibrado, profundamente infeliz !...

Mais do que nunca, os pais, sobretudo os pais, deveriam estar atentos, e nunca fomentar este estado de coisas, deveriam tentar desmistificar e nunca criar "idolozinhos", pequenas vedetas, crianças tristemente convencidas e "snobes", porque serão forçosa e inerentemente à Vida, "santos com pés de barro".
A própria Vida, de uma forma implacável, se encarregará  obviamente de os "apear", deixando-lhes um amargor e uma auto-decepção arrasadores, com consequências pessoais imprevisíveis.

Deveriam sim, incentivar pela positiva, desenvolver a responsabilidade e o desejo de uma constante auto-melhoria e de um aperfeiçoamento, motivar uma luta por desenvolvimento de capacidades, com trabalho sistemático e persistente, sem deslumbramentos absurdos, suscitar uma auto-confiança e auto-estima reforçadas, mesmo quando os resultados não são favoráveis nem atingem a excelência ... mostrando-lhes que sempre os amamos, e que a Vida é constituída por dificuldades, trambolhões, êxitos mas também fracassos, desafios que podem ser vencidos ou não ( dependendo, e sobretudo também do seu empenhamento ) ...

... mas que o ideal é todos sermos afinal SERES NORMAIS ... e não ESTRELAS !!!...

Essas, têm à noite o firmamento para brilhar !!!...

Anamar

sexta-feira, 6 de abril de 2012

" PENSANDO EM SURDINA "

O café quase vazio, contra o que eu esperava.
Afinal é feriado ... feriado, igual a fim de semana, e nesses dias, as mesas que eu gosto, a fila junto à parede, sempre está ocupada.

Hoje, estranhamente, não !

O dia, absolutamente cinzento. Já caíram algumas gotas de chuva, só ameaçadoras e não mais.
Pela uma hora da manhã, nesta noite chovia torrencialmente, e caía um granizo bravo.
Ouvi-o da minha cama, a açoitar as vidraças, frente a um televisor que passava bichos e bichnhos da savana africana, com a Rita ronronante, a dormir aninhada no meu braço, como ela gosta.

Hoje as pessoas dizem umas às outras : "Boa Páscoa, boa Páscoa " !...
A D. Madalena passou por aqui a tomar um café, e anunciou, no seu misto de bonomia com patetice nata, que ia almoçar a Linda a Velha, com a filha, e que no domingo almoça sozinha ...

Anunciou aos quatro ventos, decibéis acima, para a meia dúzia de ocupantes das mesas, como se isto fosse assunto que interessasse a alguém ...
Interessava-lhe a ela, e ela é uma pessoa só, e precisa falar, comunicar, ouvir-se ... pensando que a ouvem, coitada !

A D. Madalena já nem sequer tem o companheiro de quatro patas, faz tempo, e padece da síndrome dos seres isolados neste mundo.
Quando dão por si ( acho que nunca dão ... ), falam sozinhos nos corredores dos supermercados, falam sozinhos na rua, falam sozinhos ao volante do carro, e se calhar em casa, entre as quatro vazias paredes !!!
A ninguém interessa o que dizem, aliás, ninguém ouve o que dizem, aliás, não dizem verdadeiramente nada a ninguém !!!...

E é Páscoa, mais uma Páscoa, e eu pergunto: O que é isso de "Boa Páscoa", que toda a gente se deseja ??

Para mim, como já afirmei, ser ou não Páscoa, Natal, Carnaval ... é inócuo e idêntico.
Apenas me funciona como forma de "fatiar" o ano, e de me fazer sentir o quão célere o tempo voa, e como rapidamente seguimos de "marco" em "marco", até esgotá-lo ...

Esgotado o tempo, está esgotada a Vida ... E a Vida ... foi isto ??!!...
Foi isto que nos foi destinado vir cá  fazer ?!

Ganhar ou pensar que ganhamos, para perder a seguir ??
Perder muito mais que ganhamos, num balanço em que o "deve" e o "haver" estão quase sempre em perfeito desequilíbrio ??!!

E esta injustiça de Vida ... porque é uma injustiça de facto, lembra-me uma roleta em que aposto todas as minhas fichas, sempre estou disposta a "fazer jogo", mas esse jogo, desafiadoramente, sempre me sai completamente branco ... como se, jogada após jogada, se testasse a minha capacidade de resistência !!...

Destino ??...   Má sorte ??...  Ingenuidade??...  Imaturidade ??...
Talvez um misto de tudo isto ... sei lá !

Cansaço ...  Um cansaço absolutamente cinzento, como são todos os cansaços, afinal ... seja ou não Páscoa, ou outro dia qualquer !!!

Anamar

" O MEU PRÓPRIO CASTELO "


Desapego-me facilmente das coisas, dos bens materiais, até de algum relativo conforto.

Sempre vivi rodeada dele, talvez em excesso, com caminho demasiado atapetado e fofo, que sempre me defendeu das "arestas" da Vida.
Não fui portanto, traquejada a enfrentar grandes dificuldades, reais dificuldades.  Não fui treinada a prescindir de comodidades, a ter que saltar obstáculos, a superar incertezas ou problemas que se prendam com coisas, lugares, ou mesmo dinheiro.

Fui portanto, e hoje então à luz da actualidade, uma privilegiada, sem dúvida !!

Não pedi para ser assim ... foi o meu destino ... foi a minha vida .
Os dados foram sendo lançados, sem que sequer eu tivesse necessidade de congeminar jogadas.  Foi simplesmente sendo assim, e ponto !

A minha vida já é relativamente longa ; talvez, em muito boa perspectiva, já tenha vivido dois terços da mesma.
As vidas não são mais do que cursos de água, que vão correndo de nascente a juzante.
O caminho ... absolutamente imprevisível.  Imprevisível pelo acidentado do percurso, pelas condições ambientais, climatéricas ou outras, pela intervenção humana até.
Mas a corrente vai-se fazendo, desafiando a sua própria força e determinação ...

As vidas, também !

Com mais ou menos tropeços, mais ou menos angústias, mais ou menos incertezas, escolhos ou dificuldades, vamos sempre sendo muitas vezes, apenas "sobreviventes".
Ao longo do percurso ganhamos, perdemos, deixamos, recuperamos ... tropeçamos ... desistimos ou não !
Às vezes apostamos e acertamos, outras apostamos e erramos.
Às vezes há sol, noutras atravessamos tempestades bravas ... Mas há que continuar, ainda assim !...

Na minha travessia e nas voltas que ela levou, vários caminhos me foram sendo propostos em alternativa.
Caminhos de encruzilhadas, caminhos de sentido único, caminhos de volta atrás, caminhos nebulosos de floresta cerrada, outros que desembocavam sobre desfiladeiros abruptos ( em que em desespero de causa, havia que parar no último instante ) ... caminhos ínvios e espúrios, sem sinais toponímicos, muitas e muitas vezes.

A intuição, a inteligência, a prudência, a sensatez, a análise e reflexão, deverão guiar-nos.
A experiência e a aprendizagem, também.

Comigo nem sempre assim foi.
Sou extremamente relapsa como "aluna", extremamente resistente à aceitação de logicismos ou de posturas e escolhas adequadas, às vezes.
Sou pouco racional, demasiado emocional, e consequentemente funciono muito por impulsividade, por percepção, por "sentido" ... Não por realidade ou objectividade .

Não me considero destituída intectualmente.  Tenho no entanto, seguramente, uma inteligência emocional mal resolvida, pouco domada, erradamente direccionada, com frequência ...
E todos sabemos que, quando a emoção domina a razão, o ser humano "abre guardas", perde clarividência, vulnerabiliza-se, torna-se frequentemente irrazoável, paradoxal, "suicida"...

Tenho-o sido vezes demais ao longo da minha vida, com consequências dolorosas, nefastas, penalizantes, excessivamente penalizantes por vezes.
E obviamente, as "facturas" pagam-se ... sempre se pagam !
E as "facturas" são brechas que se abrem, são mazelas incuráveis com alguma frequência, são feridas, cujas cicatrizes teimosas, nunca mais desaparecem.
As "facturas" implicam perdas, abandonos, afastamentos, recusas inevitáveis.

Olhando para a estrada que me está para trás, constato que sou bem resistente perante as minhas perdas materiais ... Muito frágil perante os meus desapegos emocionais e afectivos.
Posso dizer que convivo pacifica e surpreendentemente sem demais sofrimento, com a separação de muito do que tive, que realizei, que concebi, que partilhei, com que vivi e me parecia absolutamente determinante e imprescindível, enfim, que recheou a minha existência ... mas subsisto muito mal a tudo o que efectivamente me preencheu o coração e a alma.

O desapego destes "bens", voluntário ou como consequência de vida, é que sempre e para sempre me faz e fará  sofrer, sempre e para sempre me fará sangrar por dentro, sempre será uma lâmina afiada a dilacerar-me, sempre e para sempre me irá matando aos poucos ...
Esses são os bens que não consigo substituir, que não consigo nunca "deletar" ( ainda que se percam no tempo ), para os quais nunca encontro alternativas credíveis, antídotos adequados ... dos quais nunca me "distraio", ao longo dos meus dias !

Um pouco como Pessoa, as "pedras no caminho" são para mim portanto, todos aqueles com quem me dividi, com os quais escrevi a minha história, aqueles que não me saem nem sairão de dentro, pelo simples facto que me marcaram a fogo, porque me representaram o Mundo, em alguma hora da minha vida ...

É com todos esses que construirei, tenho a certeza, o "meu próprio castelo" !!!...
                                    
                  
Anamar                         

quarta-feira, 4 de abril de 2012

" MEMÓRIAS DOS JARDINS SECRETOS "


As águas de Março fecharam o Inverno por cá, podemos dizer.

Como convém a qualquer tempo quaresmal, e como é de tradição, os dias nublaram, acinzentaram, ficaram aquele pardo enfarruscado, que pelo menos a mim, me deixa desasada.
Mas choveu alguma coisa ... bem menos que o necessário, neste ano estival, por demais .

Sexta-feira "é de lei", que em solidariedade religiosa, o tempo atmosférico sofra também a Paixão de Cristo.
Não sou católica, logo não cultivo os preceitos, hoje de "Ramos" *, na próxima semana, todos os devidos à Páscoa.
Já falei aqui das minhas memórias infantis ( porque se prendem efectivamente com a infância, as únicas que detenho com alguma relevância ), desta época festiva.
Época que me é perfeitamente incaracterística, nada comparável ao Natal, por exemplo.
Ainda assim, sempre quadras que espontâneamente refuto.

Vou tentar recuperar essas memórias remotas, para vo-las contar .


A Páscoa, pelos meus seis, sete, oito anos, era passada em casa dos meus avós, numa pequena vila do Alto Alentejo.
Lembro dias de brincadeiras, em interrupção escolar, lembro cerimónias religiosas, com alguma imponência, carregadas de significado, aquele significado que eu conhecia da Catequese.
Tudo muito solene, muito pesado, muito sofrido ...

Uma Paixão que objectivamente se iniciava na tarde de 5ª Feira Santa, com a visita pascal do pároco aos presos, na cadeia, para distribuição da Eucaristia, seguida, já na igreja, da cerimónia do "Lava-Pés".
O sacerdote lavava  o pé direito de doze homens, simbolizando o feito por Jesus, na Última Ceia.
Este gesto apelava ao espírito de "serviço", de caridade e de humildade face ao Seu semelhante.
Lá, no meu Alentejo, na minha Páscoa, os doze homens eram doze velhinhos do Asilo, o que tornava ainda mais comovedora esta cerimónia.

À noite, saía uma procissão ... procissão meio religiosa, meio pagã, constituída apenas por homens, os membros da Irmandade da Misericórdia.
Era realizada pelas ruas da vila, saindo da Igreja do Calvário  para a Igreja Matriz, onde decorreriam ao longo dos restantes dias da semana, todas as solenidades da Paixão e Ressurreição, com as Aleluias, no sábado pelo meio dia.
A curiosa procissão de 5ª Feira, era feita à luz de archotes transportados pelos homens vestidos com as opas da irmandade ( que incluíam capuzes pelas cabeças ), era feita em passo estugado, no silêncio profundo da escuridão das ruas, sendo batida continuamente uma "matraca" em madeira.
Pelo barulho que produzia, penso que só poderia ter o papel de espantar almas demoníacas, que vagueassem por ali.

"À boca pequena", como "soi dizer-se", esta procissão era chamada a "procissão dos bêbedos", porque se dizia que por debaixo das opas, à surrelfa, eram transportados garrafões da boa pinga, que ia molhando as goelas durante a caminhada, normalmente em tempo ainda frio de início de Primavera, mas em pleno Alentejo .

Outra particularidade, prendia-se com o facto da mesma ir parando nos diferentes "Passos" da Via Sacra, onde estavam preparadas umas pequenas camas, quase uns berços, com linhos e rendas antigas, totalmente enfeitadas com flores, pelas mãos das fiéis dessa rua.
O padre deitava por instantes na caminha, a imagem do Menino Jesus ou um Crucifixo que transportava, fazia umas rezas em latim, e a procissão continuava de "Passo" em "Passo", até ao destino.
Não sei o significado destes rituais.  Era muito criança, nunca mos explicaram, creio que a minha mãe também os não conhece.  Viveu-os meramente como rituais de toda uma vida, e não mais.
Lembro-me que se gerava quase um espírito de competição sobre o adorno das caminhas ... rsrsrs !
O ser humano "no seu melhor", sucumbindo ao pecado da Inveja !!! rsrsrs

6ª Feira Santa tinha como corolário das cerimónias, a procissão do "Enterro do Senhor", também à noite, com as imagens de S. João Baptista e da Virgem, totalmente cobertas com os mantos de luto.
A tradicional imagem de Cristo, ajoujado sob o peso da cruz, e com o rosto sangrante pela coroa de espinhos na fronte, percorria as ruas da vila.
Em determinados pontos do percurso, a procissão parava, os andores eram descidos dos ombros, e surgia a figura de uma mulher bíblica, Verónica, que soltando um cântico em latim, desenrolava e exibia lentamente, uma toalha, sudário ou Santo Rosto, em que o rosto de Cristo, em sofrimento lancinante, surgia estampado.
Diz a Bíblia, que Verónica era uma mulher do povo, uma lavadeira, infiltrada no meio dos soldados.
No percurso do Calvário, à passagem de Cristo, perante o seu sofrimento, rompeu as guardas, e enxugou-Lhe o rosto suado e ensanguentado.
A história de Verónica integra, aliás, a 6ª Estação da Via Sacra, de acordo com a Igreja Católica.


A voz daquela mulher era qualquer coisa do "outro mundo" ...
Ecoava num silêncio absoluto de verdadeiro e compungido velório.
O seu cântico, também chamado de "vos omnes", é o verso das lamentações de Jeremias Profeta 1:12 , e é uma profecia da Paixão de Cristo :  "O vos omnes" .... diz... " Não vos comove isto a todos vós que passais pelo caminho?  Atendei e vede, se há dor como a minha dor, que veio sobre mim, com que o Senhor me afligiu, no dia do furor da Sua ira ?"


No sábado pelo meio dia, os sinos de todas as igrejas da vila, repicavam.
Eram as "Aleluias" !!!

A minha recordação de então, é de mãos cheias de amêndoas atiradas à criançada, que na rua se degladiava para as apanhar ...
... nos tempos em que o "chão", pelos vistos, ainda era "sagrado", e a saúde  não corria riscos de maior ...

A minha recordação de então, prende-se a raminhos de alecrim nas lapelas dos casacos, a ovinhos da Páscoa em forma de pintainhos, que a tia velha, solteirona, sempre paciente para a pequenada - a tia Catarina - confeccionara, nos dias que haviam antecedido a Páscoa ( quando os tabuleiros e mais tabuleiros de bolos, para consumo interno e para oferecer a amigos, deixavam à beira de ruptura, a capacidade de cozedura do forno comunitário da vila ).


O domingo de Páscoa é, de toda a Semana Santa, o dia de maior solenidade para a Igreja Católica.
E porque Páscoa significa "passagem", e Cristo ressuscitou, vive-se a alegria do Seu triunfo sobre a morte.
Por definição é um dia de festividade.
Guardo bem nítido na minha memória, tratar-se de um domingo que se iniciava com um banho tomado num alguidar de "folha" ( em casa dos meus avós, à época, não existia casa de banho com banheira ), com a minha mãe a despejar água quente sobre mim.
Era um dia em que sempre estreava uma roupa nova, e em que assistia à missa ( que era sempre longa e cheia de cânticos ).
Na Igreja Matriz, adequadamente engalanada, os santos já não se encontravam cobertos como até aí, com os mantos roxos ( símbolo da tristeza, dor e penitência vividas ), mas tinham os andores decorados com flores da época, velas, muitas velas, e a talha dourada dos altares rejubilava em luz, e no colorido das jarras floridas, profusamente espalhadas.
Era dia de comunhão "obrigatória", e eu acreditava então, também renascer para qualquer coisa que não sabia, mas sentia ...

Esperava-me em casa o almoço de família, com família completa, à roda do ensopado de borrego, ou do borrego assado no forno, com batatas e salada ( porque já se podia comer carne de novo, terminada a abstinência imposta pela quaresma ), o arroz doce da praxe enfeitado caprichadamente com canela, pela avó , os bolos de folha, os folares, os bolos fintos, as queijadas e as merendeiras ...


De tarde saía às ruas, a última procissão, acompanhada já alegremente pela banda filarmónica e pelo estalar dos foguetes ;  filas de crentes com velas nas mãos, ladeando os andores, as mulheres na maioria com a cabeça coberta com véus e mantilhas, rezando terços ... e os anjinhos ... crianças vestidas a rigor, por vezes descalças, com coroas e asinhas a abanar, transportando pequenos cestos com pétalas de flores.
As janelas e sacadas ornamentavam-se de colchas de seda antigas - do rosa mais vivo, ao vermelho-cardeal, do amarelo-açafrão ao azul turquesa - ou mesmo colchas mais modestas, simplesmente de algodão ou de damasco pesado.
Nas esquinas das ruas por onde a procissão passava, o povo ajoelhava à passagem dos andores, e havia um misto de contrição e súplica, de promessa e fé, nos rostos que transmitiam recolhimento e emoção ...

Também fui anjinho nessa procissão, não sei exactamente com que idade.
Recordo a trabalheira quase intransponível que foi ( para duas ou três pessoas que ajudavam à minha preparação ), o prender as asas nas costas, com os tradicionais alfinetes de dama ... e a impaciência que isso me causava, pois não via a hora de seguir orgulhosamente à frente do andor de Nossa Senhora de ao Pé da Cruz ( o nome da mãe de Jesus, para as gentes daquela terra ) !

Bom, acho que fico por aqui.  Já me alonguei demasiado!...

Só que as memórias são como as conversas, e estas, como as cerejas ... Difícil acabá-las !...

No meio do aroma do alecrim, das glicínias e da flor da Páscoa ...
No meio do cheirinho aos coentros, ao borrego assado ... ou aos bolos acabados de cozer ...
No meio do cheiro do incenso ou da cera derretida das velas ... nos meus ouvidos ecoando com nitidez a campainha, a chamar os fiéis à comunhão ...
As gargalhadas da tia Catarina, a voz da avó a chamar para a mesa, ou tão simplesmente os chocalhos dos rebanhos pelos campos, com os balidos das ovelhas em pastoreio ...

... recordo que tudo isto foi Páscoa, tudo isto foi família, tudo isto foi Alentejo ... tudo isto fui eu ... há já tanto tempo, que quase esqueci !!!...






Anamar

* Este post foi escrito no passado dia 1 de Abril, Domingo de Ramos

sábado, 31 de março de 2012

" A VISITA "


O meu " pequeno príncipe" esta noite aterrou-me na almofada.

Com os seus olhos doces de menino grande, trazia na mão uma rosa amarela, da cor do sol.
Conversou longamente comigo, com cuidados de não me tirar do sono, e sussurrou tantas coisas aos meus ouvidos, que embora continuasse dormindo, acredito ter acordado.

Coisas de menino ... coisas de príncipe ...

Vinha do país do sonho, do asteróide do amor ( que eu julgo na verdade já só existir num asteróide ).
Trazia consigo uma rosa dos jardins que plantara, mas contou-me dos miosótis azuis que lhe povoavam a vida.
Como todas as crianças, o rosto era iluminado, os olhos riam, as palavras bailavam-lhe nos lábios como diabinhos à solta, e as histórias saltavam-lhe da boca, à medida que o coração se lhe abria.
Sim, porque o "pequeno príncipe", ao contrário de nós, não tinha cadeado no coração ... o que aliás eu achei profundamente estranho !

Falou-me da beleza das histórias nas primeiras páginas, e de como elas também levam os príncipes pelo mundo da fantasia.
Disse-me como era feliz, por brincar de roda com as raposas, os gansos e os estorninhos, e como a alegria lhe inundava a alma, quando de manhã, de regador na mão, tinha mais madressilvas a despontar pela relva !

O meu príncipe não era exigente.
Pequenas coisas enchiam o seu reinado.
Coisas de "criança - príncipe de asteróide" ... e não coisas de Homens ...

As crianças sorriem todos os dias, basta que o sol nasça, que a lua enfeite o escuro pelas noites, ou que o grande arco de todas as cores, desenhe no céu um trampolim de salto ...
Claro que a chuva ou até mesmo o orvalho, nos musgos das montanhas, também as fazem rir em gargalhadas, rebolando-se neles displicentemente ...

Os Homens são demasiado sérios.  Carregam pesos que não suportam, nas costas e no peito, e julgam que podem ... Mas não !...  E por isso sempre choram ... choram muito !...
Também não têm tempo para os jardins de rosas e miosótis.
Correm o tempo todo, sempre de olhos fechados, e por isso vêem pouco à sua volta !
Sempre de cadeado nos corações, nunca deixam que os primeiros raios de sol, em cada manhã, lhos aqueçam !...

Os Homens já não acreditam em muitas coisas.  Não acreditam mesmo em quase nada !...

Não acreditam em recomeços, em estradas largas com horizontes, em marés que vão, mas que voltam de novo.
Não têm mais esperança sequer, que por cada Primavera, os pássaros cheguem, ou que as tamareiras voltem a ter frutos, primeiro verdes, depois laranja, de maduros ...
Não sabem mais ouvir histórias ...
Esqueceram todas as que lhes contaram à cabeceira, quando crianças ... e histórias novas, não fazem o seu estilo !...
Os Homens já não sabem onde ficaram as crianças que outrora foram, e não querem voltar a sê-lo outra vez !...

Os Homens têm medo, muito medo ... coisa que o "meu príncipe" não sabe bem o que é !
Afinal, ele tem Amigos, e com os amigos a gente divide o riso e o choro.
O medo não deixa que os Homens caminhem, para-lhes os movimentos.
O medo não deixa os Homens serem felizes, porque sempre desconfiam que o não serão ...
E faz com que fique escuro no seu planeta, tão escuro que não enxergam sequer, como é bonita a aurora que se espreguiça no firmamento, ou como o seu jardim se engrinaldaria de alegre, com uma simples palavra ou carícia !...

Contei-lhe da minha gaivota ... o que não o surpreendeu.  Afinal, como ele, eu "cativara-a", e "sempre se é responsável pelo que se cativa " - lembrou-me !
Falou-me de como as rosas sempre o esperam para lhe contarem as novidades, de como a raposa o espreita na curva do caminho ... descontando por cada batida do seu coração, cada instante que está sem ele !  E como já fica esfuziante de felicidade, só por saber que ele virá, ou pelo menos por saber que ele está lá, que ele existe e a ama ...

Os Homens não entendem nada destas coisas, de batidas de corações, de risos e gargalhadas, só porque se tem AMIGOS ou se sente AMOR ...

E o "meu príncipe" foi ficando.
Eu ouvia-o e não o ouvia.  Eu, não o ouvia, mas sentia-o !...

E a Rita sentou-se ao lado dele, na minha almofada.
Essa, é bicho ... e bicho entende lindamente coisas de crianças, e mais ainda, de "crianças - príncipes sábios" !...
A Rita percebia tudo, porque também ela às vezes não me entende.  Afinal, eu pertenço ao tal mundo dos Homens, seres esquisitos, feios e doentios!...
Esses são os dias em que ela chega em silêncio, muito séria, sorrateiramente, fica perdida a olhar-me, com os bigodes franzidos, e com um ponto de interrogação em cada olho.
Deita-se coladinha a mim, como se quisesse aquecer-me o coração, visto que ela o sente absolutamente gelado ... E abana a cabeça quando as lágrimas  me descem, como quem diz :  "Vá-se lá entender esta gente " !!!...

A Rita não fala como o "meu príncipe",  mesmo na calada das madrugadas.  Não fala, mas conhece !...

Também ela é sábia, também ela é mágica, também ela sabe miríades de coisas ... mesmo não tendo jardins  de rosas e miosótis azuis, não dançando danças de roda ...

... mesmo não vivendo nem no país do sonho, nem no asteróide do Amor !!!...

Anamar

sábado, 24 de março de 2012

" O FIM DO RECREIO "



Ontem um dia de sol, absolutamente primaveril.  Hoje um dia de chuva absolutamente imprevisível !

O tempo, como a Vida.
Altos, baixos ... sempre imprevisibilidades.

Hoje não estou para amar !
Nos fins de semana sobra-me tempo, e sobrando-me tempo, penso demais.  Seria desejável, se não fosse em excesso.  Os excessos nunca são úteis.

A certeza de não ter certezas, desgasta-me. O que é facto é que não ter certezas de nada, é uma das características do existir.
Tenho a mania das arrumações e da organização, talvez da sistematização ... ( defeito de fabrico ... ), e não me sentir "arrumada", deixa-me uma inquietude demasiado "desassossegada".  Mal gostosa !...
Só me sinto tranquila, se encarar, resolver, decidir ... arrumar ...  na prateleira, na gaveta, na cabeça, no coração ...
Tudo quanto fica a pairar, tudo quanto fica suspenso, tudo para que não tenho resposta, alguma resposta, seja lá qual for, não faz parte da minha índole.

Sempre sou de radicalismos.
Quando quero, quero muito ... só sei querer a cem por cento ... ou então não quero nada.
Custo a fazer concessões à Vida, não sei "negociar", não sou política ... decididamente !
E a Vida não é assim que se faz, as regras do jogo não são seguramente essas.  A diplomacia nunca foi o meu forte, a contemporização também não ...
Para mim, ou é preto ou é branco ; as cores difusas do comprometimento ... as cinzas da paleta, não pintam as minhas telas.  Hoje o céu está uniformemente cinzento ...

E dizem-me que não é assim.  Dizem-me que sempre o copo estará meio cheio ou meio vazio, depende de como o olhemos, e que nem tudo é branco totalmente, nem tudo é preto totalmente.
Quero acreditar, mas lá no fundo, não acredito mesmo !
A maior parte dos meus dias, é efectivamente ou de chuva, ou de sol primaveril, e o meu "copo" ou está pleno a transbordar, ou está vazio de dar dó !
Hoje, está vazio !!!

Não aceito o "talvez" no meu vocabulário ... custo a aceitá-lo pacificamente.
Porque o "talvez", precisa de tempo para se tornar "sim" ou "não" ... e tempo é o que eu já não tenho muito.

E cada pedacinho de tempo que é e deixa de o ser, não é mais do que uma parcela da soma que me concederam.
E de repente, estou a fazer vertiginosamente contas de subtrair e jamais de somar.
Todos os dias se encarregam de me lembrar que convém despachar-me, na busca do "sim" ou do "não" de vida.  Porque cada dia, a qualidade da mesma, também é o resultado de contas de "menos" e nunca contas de "mais".

E um dia acordamos de supetão, e o espelho, que sempre tem a capacidade de nos ler o rosto e a alma, vai mostrar-nos claramente que acabou o tempo "regulamentar", e batota não se pode fazer ...

Deixámos para trás as últimas árvores do caminho, deixámos para trás os últimos riachos onde sempre nos poderíamos refrescar, deixámos para trás a cauda do último cometa, que como cometa, é volátil na passagem, e por isso já foi ... e à frente, o trilho pedregoso que se desenha, não tem horizonte lá ao fundo, não tem paisagem merecedora a ladeá-lo, e o céu por cima, é cinzento uniforme, como o de hoje.

E aí a história é implacável.
É mesmo a história do copo inapelavelmente vazio, é mesmo a história da história que se esgotou, sem retorno.
Foi o toque da campainha do fim do recreio.
Foi o correr da cortina da boca de cena, sem que os actores retornem ao palco, porque foi simplesmente o último acto da peça !!!..

Anamar   

sexta-feira, 23 de março de 2012

" QUEM DIRIA ! "

 
As coisas que eu descubro sobre mim !!...

Há cerca de oito anos que não cozinhava em casa.
Anteriormente até me elogiavam a confecção dos alimentos, fossem iguarias de primeiro e segundo prato, fosse doçaria.
Não gostava, mas lá me ajeitava ( com sucesso, ao que parece ).  Nunca provei o que fazia.  Sempre pelo cheiro, "tirava" do tempero.

A minha avó era excelente cozinheira, toda a vida ouvi dizer.  Das duas filhas que teve, a minha tia foi também exímia cozinheira ( lembro bem ), a minha mãe, um desastre.
Não gostava, fazia-o contrariada, não alinhava em sofisticações.  Para ela, os alimentos eram tão simplesmente isso mesmo, alimento do corpo, necessário diariamente.
O meu pai nunca foi pessoa de apreciar nada muito elaborado, e como tal, o que sempre se confeccionava em casa, "dava p'ro gasto" ... coisas simples, muito simples mesmo.
Casei e obviamente fazia parte das "prendas domésticas" à altura, também ser cozinheira.
E fi-lo durante anos e anos, durante uma vida.
Também não gostava.  Costumava dizer que o tempo mais mal aplicado que dispendia diariamente, era o que passava junto ao fogão.  Mas nada a fazer !...
Mesmo durante férias ou fins de semana, quando saíamos da casa-mãe e íamos para os espaços alternativos que detínhamos, esperava-me uma cozinha, e ... emoção das emoções ... "outros" tachos e "outras" panelas ...
Destino ??... O mesmo !... (rsrsrs)

Licenciei-me em Química.
Química é experimentação, química é laboratório, química é "cozinhado" científico também.
E cozinha é laboratório obviamente ;  é tentativa, é sucesso ou insucesso ... de preferência sucesso, senão lá vamos todos ter que comer pizzas ( rsrsrs) !
Um dos anseios que sempre tive, consequentemente, era um dia poder deixar de cozinhar.  Achei que seria conquista máxima a alcançar, ver-me livre da "bateria" malfadada.

E assim aconteceu.

Quando fiquei só, a minha boca a única a degustar os pitéus, e tendo descoberto perto de minha casa um espaço de restauração, caseirinho, módico, agradável, resolvi : " Parou ! Cozinhar, ainda por cima só para mim ... não ! "
Iniciou-se então uma nova vida, culinariamente falando ( e não só ).
O almoço passou a ser também ver gente, conviver ( até porque a esse restaurantezinho,  muitas colegas de trabalho iam almoçar também ) ... desanuviar ... não ter trabalho !
Os meus jantares tornaram-se extremamente simples ;   Qualquer sopa, queijo fresco, tostas e uma compota o compunham, e mesmo a sopa, trazia-a para casa, diariamente diferente, diariamente fresca, da D. Zita.

E assim decorreram como vos disse, sete, oito anos.

A minha cozinha tornou-se "sala de estar", sempre impecavelmente arrumada.  A placa de gás e o exaustor tiveram que ser trocados porque estavam velhos e meio estragados, e adquiri outros mais atraentes, embora assumissem o estatuto de peças decorativas.
O frigorífico também avariou ( cá para mim, porque estava demasiado vazio ... um "deserto" de géneros ... rsrsrs ), e comprei outro novo, mais "maneirinho", mais jeitoso para as minhas necessidades.  Enfim, tudo absolutamente limpo por não servir, tudo organizado sempre, em qualquer dia, a qualquer hora !!!

O requinte de malvadez era de tal ordem, que quando os meus pequeninos vinham passar o dia ou o fim de semana comigo, era necessário repor uma base alimentar para o evento, e as refeições principais eram tomadas por nós ... obviamente na D. Zita !
Tenho uma amiga que brincava comigo, quando eu lhe contava da "pobreza" franciscana que se vivia na minha cozinha :  "Está bem ... vou lanchar contigo ! Tu dás o chá ... eu levo o resto" !!! rsrsrs

Bons tempos !!!....

No Natal passado tomei uma decisão.
Este ano, pela primeira vez depois de bastantes anos, o almoço de Natal, seria familiarmente na casa-mãe, como antigamente.  Seria eu que congregaria à roda da minha mesa, as quatro gerações ainda existentes ...  Da minha mãe com os seus noventa anos ... ao Frederico com os seus quatro anos.

E assim fiz.

Escuso de vos dizer que também comprei uma máquina de lavar loiça ( também se havia avariado ... rsrsrs ), e escuso também de vos dizer que, como imaginarão, da "água ao sal" tive que reabastecer a minha cozinha "fantasma".

Dei então por mim a reaprender a cozinhar.
Dei por mim cheia de dúvidas "metaculinárias", como nos meus primeiros tempos de casada :  "Como fazia eu ...isto ... ou aquilo"??!!   "Eu cozinhava carne assim, esparguete assado ... e era bom !...  Como era ?  O que levava ??"...
E aos poucos, do "baú das memórias", começaram a levantar-se "edifícios comestíveis", tacteando, perguntando à minha mãe também, fazendo ...

E cheguei à conclusão que neste momento estou a reabituar-me à coisa ... experimento, invento, misturo ... ( "há-de dar alguma coisa ... veremos !" )
Não estou propriamente no laboratório, de novo em experimentação científica ...
Estou aliás mais p'ra bruxa frente ao panelão fervente ( sim, porque gato, no décor já existe ... não é preto, mas compõe ... rsrsrs ) e ... espanto dos espantos, em cozinhados "de bonecas", quantidades small ... parece coisa de brincar, estou a explorar, estou a recrear, estou a gostar ... apetece-me, imaginem ...

Enfim, estou pela primeira vez, creio, a conviver "pacificamente" com a minha cozinha !!!...
Realmente ...  As coisas que eu vou descobrindo sobre mim !!!...  

Anamar

quinta-feira, 22 de março de 2012

" CADA LOCAL, UMA MARCA "


Queria ser viajante do Mundo.  Sim, porque viajante dos sonhos, já sou há muito !

O meu pai foi viajante, viajante do burro à camioneta da carreira, da carruagem ao comboio que deitava fumo pela chaminé, e fazia "hu-hu" ... "pouca-terra" ... "pouca terra" ...
O meu pai foi viajante na época em que se faziam assaltos nas estradas, pelas madrugadas.  O cocheiro tinha que parar por emboscada, nessas estradas do Alentejo, que era ainda mais, de planícies sem fim.
E os pertences, sonegados.  Nada a fazer !

Hoje temos o Mundo todo aos nossos pés, com uma segurança quase total, com uma disponibilidade quase total, a oferecer-se em espanto, aos nossos olhos.
É um crime os nossos bolsos não o comportarem.  É um crime não se poder aterrar, para levantar a seguir, quase logo a seguir, de mala feita em perenidade ...
Porque o Mundo é imenso e os cantos e recantos, as cores e os cheiros, sempre estão lá à nossa espera ... e o tempo é curto.

O sol ou a chuva, os nevoeiros de golas altas ou a nudez dos corpos escaldantes, continuam nos mesmos lugares, à espera do nosso "flash" visual ;  porque as melhores fotografias são as que ficam nos olhos e na alma, e não as que se guardam nas gavetas, nos vídeos, nos DVDs, nas mesas das nossas salas, a quilómetros e quilómetros de distância.
Aquelas, espantosamente nunca perdem as cores, nunca esbatem os tons ;  os sorrisos nunca ficam amarelos, as neves nunca degelam nos picos, as flores nunca perdem o cheiro, nem sequer o mar silencia nas areias ;
as vacas nunca calam os chocalhos, nos picos dos Picos da Europa, nas pradarias junto aos lagos ... o gelado comido à ganância nas ruas de Estocolmo, também não derrete antes do tempo ...
O coração deixa fugir, vai deixando desgraçadamente fugir algumas / muitas coisas de então, mas se fizermos muita, muita força, conseguimos voltar a perscrutar, com nitidez bem aceitável e resolução razoável, muito do tanto que os dias tentam levar-nos, para o mundo das sombras.

E a viagem do viajante faz-se de novo com a sua cabeça, com a continuação do que sonhou e foi só interrompido, com a memória dos registos que nunca serão apagados, com a liberdade que lhe é facultada pelas avenidas, pelas praças, pelo silêncio das catedrais, pelo repicar dos sinos esse mundo afora, pelos rostos de gente que se cruzou e não mais o fará, na sua vida ...  Enfim, pela sua história escrita e largada avulsa, pedacinho a pedacinho, aqui e ali.

Mas para se ser viajante é preciso ganhar por inteiro a palavra liberdade, e perder por inteiro a palavra saudade.
Ganhar a liberdade, que a aventura, a ânsia da descoberta, a vontade do saber nos transmitem ...
Perder a saudade que acontece bater-nos, só pelo facto de que lá é lá, e cá é cá ... e sempre o nosso "chão", num chamamento silencioso, nos  acelera às vezes, as batidas do coração !

Já fiz algumas viagens, ou melhor ... já fui a alguns lugares,  desses longes que nos acenam.
Todos me ficaram !...
Todos têm uma marca, um rótulo, uma tatuagem.  Se pensar em todos eles, há seguramente uma palavra, uma frase, uma ideia, uma imagem que os traduz ...
Assim sem grandes esforços, sem exageros, poderei dizer que a todos, está associada alguma coisa que se salvou, que ficou, que impregnou e que passou tão para debaixo da pele, tão para dentro de mim, que tenho a certeza, sempre mas sempre ( a menos que a Vida me apanhe em alguma curva mais desonesta do caminho ), completará a minha memória, o recheio da minha sacola de viandante ...

Luanda é a argila vermelha, a "boca da fornalha" ... as acácias em flor.  Mas também traineiras, com pencas de gaivotas rodopiantes, sobre o peixe fresco, na baía.

Caldelas, mais atrás, em menina,  pais em lazer de termas, "recupera-me" do "baú", os brinquedos de madeira, com que se faziam as tardes no Hotel.
Recupera-me as vacas barrosãs em manada, pela estrada, em busca da fonte para se dessedentarem.  Recupera-me as latadas de sombra abençoada, para passeios intermináveis, o cântico gorgolejante dos regatos, e os "barquinhos", feitos não de papel ( como são os barquinhos dos meninos nos riachos ), mas tão simplesmente das folhas das hortênsias que ladeavam os caminhos, e que me emocionavam as "regatas" ...

Caraíbas sempre são sol imenso, mar turqueza, areia branca e fina, e uma vida espreguiçada a render, a render ...
São cheiros adocicados e mornos, na exuberãncia das cores de tudo o que existe.
Bob Marley  e o "reggae" ... corpos bamboleantes e suados em ritmo ininterrupto, os pores-de-sol de fogo, e o cheiro da "erva" pelo espaço, noite adiante.
E uma vida que parece  correr mansa, porque corre despreocupada. Hoje é o hoje ... amanhã se verá !...  A despreocupação de quem pouco tem, e por isso, pouco ... se perder.
"Devagar, devagarinho ... parado ..." o registo de quem não se afoba, senão para sobreviver.

A Europa civilizada faz-me aportar a Estocolmo, leva-me aos cumes dos "igloos", nas terras dos samis, na gelada Lapónia, junto de glaciares que não se mexem, e leva-me aos gelados divinais, a substituirem almoços de arenque ou salmão fumado, que não "desciam" de nenhuma forma ...
Também me transporta à imponência e grandiosidade da ancestral Praga, e na Ponte Carlos, o pedido de sorte a Santo Nepomuceno, padroeiro da cidade ( tocando-lhe a estátua ) ... ao relógio astronómico frente à casa dos cristais da Bavária, e à feira de "bric-a-brac" na pracinha.

A Europa civilizada leva-me ao mundo de outro mundo dos fiordes, entre falésias abruptas ... leva-me aos abetos, aos pinheiros das florestas de coníferas, montanha acima.
Mas também às pradarias salpicadas de boninas, de mirtilos, de framboesas, de musgos e líquenes ... de toda uma multicor flora selvagem, e à presença sentida por perto, dos ursos polares, dos alces, dos veados, do lobo e da raposa do Ártico, na Noruega inesquecível !...

A Europa civilizada encaminha-me de novo à irrepreensível e sonhadora Viena, numa Áustria de Danúbio a correr lânguido, de concertos ao ar livre, com Strauss a dançar dentro de nós ...
Aos "edelweisses" de Salzburg, desenhada contra os picos do Tirol, da música de todos os corações, com sonatas de Mozart a enfunarem-nos a alma ...

E Peste, vista do alto de Buda, na Budapeste que não me sai da memória !
A Budapeste das águas em que se espelha, das dez pontes que enleiam, por sobre o Danúbio, as duas margens, fazendo uma só cidade, um só povo, uma só maravilha !...

Copenhaga tem o rosto do almoço saboreado rés-vés ao canal, e o cosmopolitismo de uma cidade com uma profusão e uma miscigenação de gentes, de cores, de línguas ... uma promiscuidade de civilizações !...

O Brasil sabe a Rio, sabe a Baía de Todos os Santos, com Jorge Amado por ali ;  sabe ao bondinho do Cristo Redentor, amarinhando quase até ao céu ;  sabe à Rocinha, paredes meias com o luxo e com a assimetria da injustiça social.
Tal como Natal sabe a dunas de areias incertas, a águas esmeralda, a "buggies" correndo soltos, de cabelo ao vento ...

E Tailândia sabe a misticismo, a recolhimento de templos, com paz que não se explica mas se sente.
O despojamento, o voto de pobreza, a meditação dos monges nos locais sagrados, inóspitos, empoleirados, de que só se divisam as cúpulas douradas no meio da vegetação, fazem-nos reequacionar a Vida, os valores e os princípios ocidentais.
Nada a ver !...
Tailândia, "terra de homens livres", sempre me traz à memória o silêncio daquela madrugada sobre o rio Kok, a acender-se no fogo dos laranjas no nascer do sol, nas águas repentinamente iluminadas, com os trinados dos primeiros pássaros acabados de despertar, e a brisa fresca duma manhã que me colheu sonhadora e meio adormecida, na varanda do meu quarto, bem no alto do hotel ...

E Óbidos ... leva-me uma e mil vezes, ao chouriço, ao queijo e ao pão caseiro, frente a um tinto de excelência, com remate a ginginha, uma e outra vez ...  Como o Gerês me traz a Caniçada, a bordar as terras do Agrinho ... como a Estrela me traz a "Casa do Burro" e aquela lareira cutucada pela noite fora ... e Monsanto me traz uma noite de gelo, em cama aquecida por corpos ... e Marvão, claro, Marvão sempre será o castelo, as águias, o gato preto e a noite de breu ....  Sempre será a varanda sobre o telhado, o corpo semi-despido, numa madrugada ardente, de um Alentejo igualmente abrasador ...

E Geia, entre serras, sempre será lareira até horas perdidas, sempre será Piódão, e uma paz de descoberta e ausência de horas e pressas ... sempre será os jantares no João Brandão ...

Bali ... apenas a Ilha dos Deuses, a Ilha das Flores ... a Ilha dos Amores ...
Não se passa por Bali sem lá viver uma grande paixão ... diz a lenda ...  Será??!!

Bom, recuso continuar ...

Os mecanismos humanos são estranhos, herméticos, inexplicáveis !!!...

Por que será que cada local é um "rosto" e não outro, cada vivência uma determinada "marca" e não outra, cada sítio um cheiro, uma cor, o timbre de uma voz??!!...

São essas marcas indeléveis, que não me desgrudam dos olhos, do coração e da alma, que me fazem eterna viajante do Mundo, mesmo que não saia do meu canto de sempre, mesmo que só tenha os telhados e o casario sem expressão, frente à minha janela ... e apenas a minha gaivota voe tão longe e tão livre, como os sonhos e as memórias que me povoam !!!...

Anamar

domingo, 18 de março de 2012

" NUNCA SERÁ TARDE " !


" Separei-me ... não sei se em definitivo "

Esta frase foi-me largada ontem no FB, depois de uma "amiga" ter posto no seu mural o seguinte texto : "Tudo tem um tempo certo. O tempo de virar uma página, depende da determinação em se querer muito, recomeçar"...
Comentei-o, escrevendo :  "Parece tão óbvio ... difícil é chegar lá, às vezes "!
Seguiu-se um silêncio, tendo surgido depois, a frase supra-citada.  Essa frase foi para mim, longe que estava da questão em si, uma espécie de pedrada lançada na água.

Coloquei amiga entre aspas ... repararam ...
É que a pessoa em causa, não faz exactamente parte do elenco das mulheres que considero amigas, amigas. Esse é constituído por quatro, supimpas, o que me torna verdadeiramente sortuda.
Também, não posso dizer que a mulher em causa é simplesmente conhecida, porque privei com ela, com alguma regularidade, em alguns dos melhores anos da minha vida e também em alguns dos mais aterradores para mim.

Bom, nessa altura, a Isabel, chamemos-lhe assim, vivia um casamento aparentemente sólido, com dois filhos adolescentes, estudantes, detinha uma vida profissional segura e de muito bom nível, e era já então ( e já passaram talvez cinco ou seis anos ), uma mulher de sucesso, nos seus cinquenta ou cinquenta e muito poucos anos.

De tudo o que então pude auscultar nessa época, e da minha própria análise, Isabel sempre fora uma mulher emancipada, segura, de figura agradável, moderna, despretensiosa, afável nos relacionamentos, pragmática também !
O marido, um indivíduo mais novo que ela ( alguns anos, julgo ), bonacheirão, bem disposto, um permanente brincalhão, um "bon vivant", um relações públicas nato, no negócio de restauração que detinham - com imenso bom gosto, requinte, intimista, de qualidade ... reconhecido.
Efectivamente, pareciam reunidas as condições para que aquele casal fosse tudo, menos problemático.

Apesar de nos termos afastado, mercê de alterações na minha vida pessoal, sempre ambos pertenceram à minha lista de "amigos", ao alcance de um e-mail, e obviamente, agora que reactivei o FB ... ao alcance do mesmo.
Ontem Isabel "entrou", como vos disse, e largou-me aquela frase, que para lá de tudo o que possa significar, me pareceu um grito de "help"...

As mulheres "entendem-se" às vezes por meias palavras, porque os sentires são comuns, a forma de estar e ver a vida, também idêntica, porque o coração e a alma de todas, são obviamente femininos.
Umas com mais "força" que outras, algumas com maior pragmatismo no encarar das vissicitudes da vida que outras, algumas com menos resistência anímica que outras.
As diferenças advêm substancialmente e quase só, das diversas personalidades, porque na essência, serão seguramente mais as semelhanças, ditadas pelo género, estou convicta.

Da situação em si, de lamentar ou não ( penso que será sempre de lamentar), só Isabel poderá ter a dimensão do verdadeiro estrago.
Infelizmente é mais comum que o desejável, e todos o sabemos, e também não foi por isso que aqui vim escrever alguma coisa, mas sim pela reflexão que a mesma me provocou uma vez mais.

Nos tempos actuais, a incidência de divórcios de pessoas na faixa etária de Isabel, é manifestamente elevada ;  tem crescido exponencialmente nas últimas décadas, quase sempre ou em grande percentagem é desencadeada pela mulher, e remete-nos para as razões que a determinam.

Eu própria, a minha história, será em quase tudo, encaixável neste "figurino".

Trata-se normalmente de relações longas, com a existência de filhos, com vidas que embora aparentemente estáveis, sem sobressaltos e invejáveis muitas vezes do ponto de vista material, deixaram de fazer sentido, emocional e afectivamente, enquanto vida a dois.
Foram ligações que se arrastaram, com a anulação de ambos os cônjuges ( mas seguramente muito mais da mulher, devido ao seu perfil psicológico ), que se foram mantendo, quase sempre na procura da manutenção de uma estabilidade possível dos filhos do casal, das suas seguranças pessoal, material, afectiva e espiritual, se possível.
Este desiderato muitas vezes não é alcançado, pelo desgaste, pelo desânimo, pelo fosso que se cava entre as pessoas, pela indiferença doída que se instala, pelo vazio, até pela animosidade progressiva e notoriamente crescente, que se desencadeia.

Mas ainda assim, a duras penas, sobretudo a mãe, abdica da sua própria vida de mulher inteira, e em sofrimento silencioso, vai carregando uma espécie de "cruz", que a maternidade ( uma lei biológica inevitável ditada pela Vida ), lhe impõe.
Os homens, até pelas inerentes exigências sociais e profissionais, têm mais possibilidade de "defesa".
Tradicionalmente, nas pessoas da minha geração, não foram seguramente eles que asseguraram o dia a dia multifacetado e complexo, das crianças e dos adolescentes.
Mantêm portanto mais facilmente, um "estatuto", uma vida "fora de portas", preenchedores de todas as vertentes que a sociedade lhes determina e permite, profissional, social e até emocional, compreendidos, tolerados e aceites pelos desígnios machistas que ainda nos norteiam.

Por essa razão, o homem vive mais acomodado aos cinzentismos da relação, deixa arrastar um "stato quo" desinteressante e desmotivador, mas ainda assim, cómodo ( porque sem grandes atribulações ) ;  adapta-se a uma ausência de colorido afectivo ( até porque facilmente o compensa, frequentemente de uma forma extra-conjugal ) ;  aceita uma falta de exigência de qualidade de vida, enquanto parte interessada no relacionamento.

E os tempos vão passando, e as coisas vão-se arrastando, e as pessoas vão "morrendo" aos poucos ... até ao dia ...

Aquele dia em que, com filhos crescidos, já fora de casa, adultos, com as suas próprias vidas estabelecidas, independentes e autónomas ... aquele dia em que o "cordão umbilical" que vinha afrouxando, afrouxando, se corta finalmente ...

E a mulher então acorda !!!...

E acorda normalmente ( por vezes do nada e por razão nenhuma em especial, que não a de sentir dentro de si um  imenso "sismo", que a faz por em causa, equacionar e rever toda a sua existência ), e pergunta-se se vai continuar a pseudo-viver o resto dos seus dias ( e já passou entretanto cerca de dois terços da sua vida ) naquelas cinzas de fogueira há muito extinta, se vai continuar a anular-se naquele marasmo injusto e desumano, se vai arrastar-se num "faz de conta" sem volta ... se está disposta, em nome do nada que se mantém, a hipotecar para sempre os desejos, os sonhos, as vontades, a liberdade ansiada, a Vida que ainda detém, e sente pulsar dentro de si ...
Enfim, pergunta-se se tudo aquilo representa ainda alguma coisa, ou se já não faz nenhum sentido ...

E é então nesse dia, que com a coragem, a força, a determinação, a capacidade de sofrimento, o acreditar ... que coerente e honestamente, põe um basta no estado de coisas que a mantiveram em hibernação há longos e longos anos, a adormeceram, a robotizaram e quase a insensibilizaram ... e coloca o ponto final que estava faltando nessa história, com demasiadas reticências em fim de frase !...

E aí temos nós, mulheres de cinquenta ou mais de cinquenta anos, dispostas a ainda terem futuro, que enjeitam continuar com os olhos lá atrás, que não abdicam das suas emoções, dos seus sonhos, das suas esperanças, dos seus anseios ...
Mulheres dispostas a "virar a banca", que não se permitem mais serem trucidadas pelo "bulldozer" que lhes foi a Vida, que recusam serem espectadoras passivas da mesma ... que não se envergonham de repegar o futuro ( o que lhes restar ), outra vez pelos cornos ...
Que não se coibem de ostentar, se calhar com uma pontinha de orgulho, de novo, uma faceta "naïve", romântica, adolescente ...

... pela única razão de que estão dispostas a recomeçar ... ou tão simplesmente, a COMEÇAR uma vez mais !!!...

Anamar

quinta-feira, 15 de março de 2012

" E SEMPRE ASSIM SERÁ !... "



Há coisas que são e não são.
Coisas que foram e deixaram de o ser.
Coisas que existiam porque as sentíamos, e na volta do tempo voltaram também.  Não se sabe para onde.

Ontem foi o ontem, amanhã irá ser o amanhã. Por agora temos o hoje.  E no hoje, às vezes não se percebe, mas pressente-se ...

Estranho, o puzzle labiríntico de vielas no meio de vielas, de praças e de becos, tudo a começar não se sabe bem quando, e tudo previsivelmente a acabar também, não se sabe bem onde !

De repente a língua deixa de fazer sentido, porque passámos a ser estranhos dentro de nós mesmos.  E há uma imperfeição, uma incompreensão que é isso mesmo ... algo que deixa de entender-se, nos perturba, mas sabemos que já não é.
E o único denominador comum a tudo, é apenas o tempo, que faz com que as coisas voltem, nas voltas que ele dá.
Os olhares cruzam-se, mas não são os mesmos olhares. Os desejos afloram, mas já não são mais aqueles.
E os caminhos são às vezes caminhos só de ida, e as estradas desembocam em rotundas, e as rotundas são caminhos de volta atrás.

Quantas vezes nos tornamos apenas pessoas de "vésperas" !
Vésperas do que poderia ser, vésperas do que inventáramos, vésperas do que tínhamos a certeza, aconteceria.
No entanto, apenas véspera ....
e da véspera ao dia seguinte, medeiam horas demais ...

Somos muito actores de ante-estreia, e como o nome indica, a ante-estreia pode não chegar sequer à estreia !
E o Mundo fica ainda maior, ainda que já seja enorme e ainda que nós sejamos grãos de areia insignificantes.
E as multidões que nos cruzam, são muito mais anónimas, porque sendo multidões, passam por nós em praças a perder de vista !...

E tudo fica diferente ...

Até a cor do sol nos surpreende com outros tons.  Os tons dos nossos olhos ...
Até a cor do mar nos espanta, e o seu ruído também, porque já não são exactamente os tons do nosso coração !...

Uma coisa permanece, tenho a certeza ...  Os pássaros, que não nos defraudam nunca !...
Agora, hoje, ontem ...  Sempre aquela garça voeja de asas estendidas ...
Aquela, a "minha" gaivota, continua aqui por cima da rebentação mansa, a planar na brisa da tarde.
E também aqui se trata da "minha" gaivota ... porque se eu sou dona de alguma coisa, é das gaivotas soltas e livres, como eu julgo ser !...

E há dias em que acreditamos com a força toda, que não vamos deixar mudar o que é mutável, só porque foi nosso.
Mas o vento e a tempestade que leva as gaivotas para longe da costa, varre das soleiras, as folhas de Inverno ... E nas molduras das mesas, as fotografias a sépia, vão esbatendo as imagens.
Nas molduras das mesas e dentro de nós !...
O inevitável ... Há sempre o inevitável !...

Ainda que as flores amarelas sem nome, continuem a alindar os caminhos e nasçam nas pedras, com o seu cheiro a fruta madura ...  Salpiquem o mato, as carrasquinhas, os tojos ... mesmo a nudez absoluta das falésias ...
Ainda que o mar continue imenso e perdido no horizonte ...  ainda que espume de raiva, de dor ou de embalo - nunca sei - nos rochedos abruptos semeados aos nossos pés ...
Ainda que prendamos com grilhetas, ao nosso coração, tudo o que nos preenche, nos inunda e nos transborda, para que não corra o risco de se perder nos dias ( na ilusão de que as âncoras serão seguras, fortes e perenes ) ...  as mãos abrem, os olhos cansam ... o coração claudica e cede ... e deixa ir torrente abaixo, tudo o que albergava, feito barquinho de papel, que nunca alcançamos ...

E apenas o nosso olhar o segue, na brincadeira de o ver encalhar, soltar, avançar, em vertigem de rápidos de viagem, do caminho que se faz, embora nunca possamos segui-lo e menos ainda prendê-lo ...

... porque os barquinhos de papel dos meninos, como o sonho e o desejo dos Homens, navegam sem prisões e sem amarras, à revelia de estrelas, faróis ou bússolas ... porque são barquinhos de papel na correnteza desbragada, e sonhos, e desejos de corações e almas livres e soltas, como as gaivotas !...

E sempre assim será !!!...

Anamar

sábado, 10 de março de 2012

" QUANDO O TEMPO DEIXA DE O SER ..."



Se hoje os dias acabassem, e o tempo deixasse de ser tempo, como seria olhar tudo aqui à volta, que ia ficar, quando eu já estivesse na estação das horas??!!

Iria sentar-me calmamente no banco da gare, e começaria por rever as primeiras páginas do livro ...
Desfolhá-lo, ia ser lento, embora eu não tivesse toda a lentidão disponível para o fazer!
Ia perder-me primeiro, no tempo das tranças, dos joelhos esfolados, das letras a soletrarem-se e magicamente a criarem palavras.
De certeza ia escutar risos e gargalhadas ... exactamente os risos e as gargalhadas que as Primaveras sempre permitem.  E ia extasiar-me com o olhar lânguido e doce, de tantos quantos já não vejo há séculos.
E ia interrogá-los ...  Ia perguntar-lhes como é exactamente, quando o tempo deixa de ser tempo ??!!
Apenas, eles não me ouviriam, o que não deixava de ser estranho !!!
Entravam naquele palco, desfilavam naquela "passerelle" onírica, e seguiam, sempre lenta e imperturbavelmente, tão lentamente como os gansos nos lagos, ou como as tamareiras demoram a ter frutos ...

O bibe ia ficar no cabide, e o ontem seria um pouco adiante ...

As outras páginas já não eram tão coloridas ...  Parecia que as tintas estavam a rarear, ou que o pintor já não atinava tão bem com a tela.

Mas surgiam então outras personagens, e íamos ter mais bibes, mais tranças, mais canções de ninar, mais sonhos, mais esperanças, mais amor, mas também algum desencanto, algum cansaço ...

Acontecia por vezes, voltarmos as costas uns aos outros, e depois cada um derivava para seu caminho.
Às vezes os caminhos eram paralelos, outras, eram linhas oblíquas a abrir ângulo, e portanto essas, nem no infinito se encontrariam.
Mas também havia trilhos que se cruzavam, mesmo que só se intersectassem, para se descruzarem a seguir ...

Claro que isso era numas folhas à frente ...

Ainda gritávamos, chamávamos, barafustávamos ... mas que adiantava ??!!.... O tempo era de Verão, e no Verão, o silêncio da planície é total ... nem as papoilas acordam !!!

Sol ... havia !  Havia sim !
Por entre as nuvens, no céu limpo ... ou mesmo em firmamentos de relâmpagos e trovões.  Sempre dávamos um jeito de o espreitar, e sempre tínhamos a capacidade de acreditar, que na página seguinte, tudo ia mudar a história.

O dia ainda ia a meio ...
O movimento era escasso.  Não havia passageiros em excesso naquele dia, naquela gare ... Nem todos traziam sob o braço, um livro, para queimar a espera, ou também nem todos estavam ainda interessados em saber, como era, quando o tempo deixa de ser tempo ...

Por isso, optaria de certeza, por passar página a página bem devagarzinho, a absorver o cheiro do papel envelhecido, a admirar a beleza das ilustrações, a devanear sobre o conteúdo de cada frase escrita ...

Aquela estação e aquele banco, estavam no meio dos verdes que já não eram esperança ;  mas também tinham na linha do horizonte, a penedia que despencava no mar.
E o mar sempre é alguma coisa que queremos "colar" a nós, para os dias mais desesperançosos e menos azuis ...  Só que eu já estava na estação das horas, e não podia dar-me ao luxo de o arrecadar, e levar dali !
Por isso optei por deixar vaguear os olhos até lá, ensonadamente, com a calma que ainda me era permitida ...

Espantosamente o livro cresceu, ganhou relevo ... As gravuras desenharam-se em 3D dali em diante, e foi a vez de caçar borboletas que me roçagavam o nariz, de apanhar cogumelos no bosque dos cedros, de dar migalhas à gaivota, que mercenariamente se deixou comprar pelas minhas promessas ...
Foi a vez de tentar juntar ramalhetes de flores silvestres, brancas, amarelas, róseas ... todas as que baloiçavam junto de mim, na aragem da tarde ...

Sim, porque a noite já vinha aí, os sinos dos campanários já se escutavam ao longe, e urgia juntar os minutos que ainda sobravam.

Virava as últimas folhas com alguma pressa, antes que a palavra "fim" me colhesse de surpresa, e me terminasse a espera antes da hora ...

Nesses restantes parágrafos, vos pergunto ...  esperava-me o fim da história, ou apenas o princípio de uma nova história ??!!...

Anamar