Começa a chegar o pessoal para a bica do almoço.
Há um período, entre a manhã e a tarde, em que gente normal não está obviamente, nem a tomar o pequeno almoço, nem ainda o café pós-almoço.
Afinal, estamos entre a uma e as duas !
Gente tonta como eu, terminou o pequeno almoço ; sinto o vazio de um café que se despovoa por algum tempo ( se bem que o odeio cheio, quando aqui chego ) ; oiço os "até amanhã" ditos em despedida aos empregados, e escrevo não sei o quê, nem para quê.
Escoamento nítido e absoluto de insanidades, por necessidade absoluta de abrir os diques em barragens na "cota máxima" ...
"Chamada de atenção" - foi-me dito um dia destes. Porque, "se o não fosse, este espaço não seria público".
Acho que não !...
Acho que não quero chamar a atenção de ninguém, porque não quero nunca incomodar ninguém.
Apenas, ao escrever sinto-me acompanhada. Tenho um objectivo ... algo real entre as mãos, mesmo que seja para ninguém ler, mesmo que seja apenas para ter a sensação quente, de abrir por momentos uma janela, mesmo que saiba que nada disto tem relevância, interesse sequer ( como é o caso de hoje ), mesmo que nada disto me satisfaça, realize ou alivie.
Afinal, abrir uma janela, sempre é ver céu, sol ou não, chuva ou não, pássaros ou não ... mas sentir Vida lá fora, inspirar o ar mais até ao fundo, absorver cheiros até ao âmago, sufocar-me do vento que corre, ou embalar-me no frio ... sei lá !!!
À noite, quando por saturação ou desinteresse desligo o computador, é um "até amanhã" silencioso para muitos e para ninguém, é um bater a porta, é a sensação de uma maior solidão e isolamento que se instala naquele quarto, na minha vida ...
É o ficar eu e a Rita, mesmo sós ... ninguém mais !
Deixar de escrever aqui, escrever e guardar, ou escrever e deitar fora simplesmente ... uma hipótese sugerida, que às vezes considero.
Mas aí fico sem nada, sem o resto que me sobrou, sem o pouco que tenho, porque na verdade, pouco tenho mesmo ...
Ninguém imagina a amputação que isso me representaria ...
É como se metade de mim já tivesse ido, e a metade que ficou, estivesse a ir ...
"Vais acabar sozinha" - sentenciava-me a minha filha noutro dia, acusando-me de me furtar frequentemente ao convívio, e me "enfiar na concha" ...
"Acabar" como ... se já o estou ???!!!...
Queria ser como a outra gente.
A Teresa tem ímpetos religiosos. "Respira" igreja ... a dela !
A Fátima organizou uma forma de existir, de subsistir ... de resistir. Teve que ser, desde que a mãe partiu e ela ficou só. Tenta sair, tenta conviver, viaja ... Nunca recusa uma proposta de programa ...
A Bia faz trabalho social, exerce voluntariados, é feliz !
A Ema pertence à Legião de Maria e ao Banco Alimentar contra a Fome ... e é feliz !
A Lena, não tem vida própria ... vive a dos outros. Desdobra-se, transcende-se, ajuda, solidariza-se ...é feliz também !
Outros fazem "voluntariado" compulsivo, junto de filhos e netos. Reclamam, mas sempre riem. São felizes !
Depois, há quem conviva pacificamente com a solidão, ou nem dê por ela. Arranjam carapaças rijas. Lêem, almoçam, lancham e jantam televisão ... e não se questionam, nunca se questionam ... nunca questionam o que é realmente viver, ou sequer a lógica que preside à mera sequência de dias iguais, esperando apenas que passem, que passem indiferentemente ... sabendo que os "amanhãs" são piores que os "hojes" ... e os "hojes" piores que os "ontens"...
E sempre a descontar, mantendo-se inconscientemente adormecidos, anestesiados ... porque as anestesias foram feitas para evitar as dores, até mesmo a sensibilidade.
Estar anestesiado é uma espécie de ante-câmara de estar morto.
E estar morto, deve ser a doce sensação de estar em paz. Por alguma razão, nas lápides tumulares se escreve : " Repousa em paz"!...
É porque alguém sabe que só assim se alcança a paz ...
Bolas ... e se é assim, andamos nós todos com medo de a alcançar ... porquê ???!!! Não se percebe !!!
A minha mãe teve ontem a sua festa dos noventa e um anos.
Olho para ela e vejo-a naquela mansa inconsciência ( sei lá se é !!! E também, de que lhe serviria, se o não fosse ???!!! )
Que tanto futuro pode ter alguém com noventa e um anos?? Que "tanto", e "que" futuro ???!!!
A estrada termina logo ali !...
Eu "esgatanho-me" diariamente, numa impotência de luta desesperada com tanta perda de dias, com tanto desperdício de tempo, com tanta vida não vivida ...
E não consigo fazer nada ... Não consigo dar um passo à frente, que não dê dois para trás, na mudança de rumo ...
Ela vive, simplesmente ...
Se calhar a biologia humana é isto. Encarrega-se de pôr as pessoas à sesta, antes que chegue o sono da noite.
Vai-as embalando, naquele estado de vigília, que já é, e ainda não é sono profundo ...
O tal estado de anestesia de Paz. Pelo menos, não se degladiam de manhã à noite.
Porque ninguém aguenta uma disputa, de vinte e quatro sobre vinte e quatro horas ... inglória, destrutiva, ineficaz, mortífera !!!
Faz hoje um século, o naufrágio da História ...
O Titanic, o invencível, o gigante dos mares, o "inafundável" ... sucumbiu !
Um iceberg matreiro, dissimulado ... por destino, à sua espera, pôs fim ao sonho. Bastaram duas horas e o fundo oceânico deu-lhe berço ... paz !!!
O meu "rombo" hoje é maior ...
O meu naufrágio, também ... Só que felizmente, eu afundo sozinha!...
Anamar