sábado, 8 de fevereiro de 2014

" TU DORMIRÁS ... "



Meu amor, um dia destes vou sair pé ante pé,
naquele sussurro de andar, que não acorda ninguém,
naquele caminhar sobre nuvens de algodão ...

Aqui dentro, já não dá !
Há demasiado frio e escuridão, e eu tenho medo do escuro.
Lá fora chove, mas eu faço de conta que é Verão,
Até porque as gaivotas brincam nos céus bem à minha frente,
Os narcisos, as mimosas e as cantarinas já se enfeitaram por aí ...
Faço de conta que te tenho,
brinco de rebolarmos na erva fresca,
ou de apanhar carrapetas, nos carrasquinhos do monte ...
e cogumelos acabadinhos de acordar ...
Brinco de ter uma lareira que me aqueça a alma ...
ou então espero pela Primavera,
porque aí, sim,
já posso seguir nas asas de uma borboleta,
ou debaixo da asa de um pintarroxo !

Seja como for, eu prometo sair pé ante pé,
para que não fiques órfão dos meus braços,
saudoso do meu colo,
despido da minha pele,
amputado da minha nudez ...

Também podemos brincar de faz-de-conta ...
Eu faço de conta que acredito no amanhã,
faço de conta que não oiço a tempestade aqui no meu peito,
(abafada que é, pelo rugido do mar,
nessa savana, de algas, búzios e conchas ...)
Eu faço de conta que ainda te espero ...
mas isto, só porque quem nada espera, está morto e não sabe !...
Faço de conta que não estou louca,
já que distribuo gargalhadas, que voejam por sobre a copa das árvores ...
fazem eco nas clareiras sombrias,
e assustam as aves nocturnas !
Vou esquecer que já te esqueci,
quando esquecer que estou a brincar ...

Meu amor, promete que não me chamas,
porque os teus braços já não chegam p'ra me aninhar,
os teus beijos eram  papoilas dos campos do meu Alentejo ... e murcharam ...
e o teu calor gastou-se, abrindo as corolas das madressilvas ...

Até porque tu dormirás ...
e eu prometo sair nos bicos dos pés !...

   

Anamar

quinta-feira, 6 de fevereiro de 2014

" VÃO-SE OS ANÉIS ... "



"Vão-se os anéis ... fiquem os dedos" - o povo diz ... disse sempre ao longo dos tempos.
Reflecte o desespero dos que, como solução final, deitam mão dos últimos valores que detêm, para honrarem compromissos, para taparem "buracos", para sobreviverem  à precariedade dos tempos.

Nunca neste país se viu, como se vê hoje, tantos espaços abertos, de comercialização de ouro e jóias, àqueles que  têm que os vender para sobreviverem  ( às vezes bens familiares, com valor afectivo profundo, jamais recuperável ).
É um claro sinal dos tempos, e da maré demolidora que nos fustiga.
Essas lojas  começaram a grassar, como cogumelos, exponencialmente, em proporção directa, à gravidade da crise que atravessamos.

Lembram-me "urubus" espiando a carniça, do alto das árvores da savana africana, esperando calmamente a sua oportunidade ...
E revolto-me, e nauseio-me, e enfureço-me !

Também, nunca no país se viu nascerem e proliferarem como actualmente, em ritmo ciclópico, as imobiliárias, entupidas de imóveis para vender ou alugar, num mercado que está praticamente estagnado.
É o desespero, é o último recurso, a última cartada, a última tentativa, de quem, acaba espoliado, talvez do único bem realmente valioso de que dispunha, e que não consegue segurar mais entre os dedos .

Quando as luzes se apagam totalmente, neste túnel apertado que são os nossos dias de hoje, quando as pessoas sentem que não têm mais saída nenhuma, para satisfazerem a prestação do empréstimo assumido, perante os bancos ( e que foram os próprios bancos que lhos ofereceram de bandeja ), numa esparrela sem tamanho, de benefícios  fáceis, estimulados até ao tutano, há tempos atrás ... o desnorte toma-nos conta, o desespero de animal acossado instala-se, a depressão da angústia de quem está perdido, acentua-se, as pessoas tomam as mais variadas decisões em relação às suas vidas, para tentarem resolvê-las ...

E totalmente desprotegidos e indefesos, são exactamente aqueles que lhes ofereceram as maravilhas do crédito fácil, que agora o vêm miseravelmente cobrar, como aves de rapina voando por cima das nossas cabeças ... porque "os bancos não são a Santa Casa da Misericórdia", como foi dito na minha cara, por um gestor de topo, de uma instituição bancária ...

É então que, enquanto se pode ... vão-se os anéis e ficam os dedos, esbraceja-se e luta-se contra marés alterosas, que sabemos nos sucumbirão, mais cedo ou mais tarde ... não tem jeito !!!...

Na macro-realidade do país, passa-se o mesmo.
Assumidos que foram compromissos que não teríamos condições de honrar, mesmo alienando-se bens ou valores,  com que se pudessem  realizar os "milhões" necessários, rapando o "fundo ao tacho", onde ainda se cheiravam restos quase inexistentes ... mesmo  virando do avesso os bolsos dos cidadãos  ( dos que já eram os mais desfavorecidos, entre os desfavorecidos socialmente ), tenta "reduzir-se a patacos", como dizia o meu pai, os últimos níqueis que tilintem ainda ... lança-se o ónus da solução sobre os mais sacrificados, silenciados e desprotegidos, e em última análise, põe-se o país à venda, leiloa-se, penhora-se, miseravelmente, despudoradamente, provocadoramente ...

Matam-se os que ainda resistem e se recusam a desistir, enlouquecem-se os que se sentem perdidos sem capacidade de resistência, tentam cavar-se moedas de ouro, em terrenos onde só há couves plantadas ... com a condição de sempre se preservar, de não se tocar, de não se afectarem, de uma forma que seria a justa, os que têm efectivamente potencial para, proporcionalmente às suas grandes fortunas, serem taxados de forma isenta e transparente.
E assim, não se acabam com os vergonhosos "lobbies" económicos, não se trava a corrupção e os compadrios, as trocas de favores e as fraudes ...
E continuam a fechar-se  os olhos, e a assobiar-se  para o ar, no que concerne aos "feudos" de individualidades, que parecem ter nascido para serem intocáveis ...

Em resumo ... ninguém tem "cojones" para meter a mão em "vespeiros", e dignificar a repartição de bens, e as condições de subsistência, neste país.

Tudo isto, a propósito de quê ?

Tudo isto a propósito de algo que me surpreendeu, me indignou, me revoltou, me enojou, e em relação ao qual, o cidadão comum deste país, não tem voz, e simplesmente não pode reagir, apenas lamentar : a alienação inescrupulosa e criminosa, de uma colecção de valor inestimável de obras de arte, os oitenta e cinco quadros de Miró, que são nossos por direito, que são uma propriedade portuguesa inalienável,  que são património deste chão e desta gente que somos todos nós, e que serão disseminados aleatoriamente, Mundo fora, em leilão, que deverá ocorrer em Londres.
Apenas, porque há que realizar a qualquer custo, mais uns tantos milhões de euros, para tapar mais um "buraco" das responsabilidades governamentais assumidas, perante quem tem Portugal, neste momento, debaixo  da pata !!!
Pobre país, mendigo dos estrategas da finança, e dos interesses políticos e económicos, de uma Europa que ajoelha uma vez mais, depois de 45, perante uma Alemanha fria, indiferente, gigantesca, ditatorial ...
Um polvo monumental, que estende os tentáculos, e sufoca indiferente e insensivelmente, os seus parceiros da Comunidade.

De  facto,  anéis  já  não  temos ... Veremos  até  quando  duram  os  dedos !!!...

Anamar

terça-feira, 4 de fevereiro de 2014

" CASA ROUBADA ..."



À medida que as desgraças acontecem neste país, são levantados então os problemas que as originam, com carácter de urgência .

Seis jovens morrem estupidamente na praia do Meco, tragados pelo mar, com suspeita de terem sido sujeitos a um ritual de praxe académica, inqualificável.
Discutem-se então as praxes, obviamente com carácter de urgência.  Medidas a tomar, amplos debates sobre o tema, porque afinal, tendo embora ocorrido n relatos, lá para trás, de mortes causadas por abusos idênticos, por terem tido pouca visibilidade então, não suscitaram mobilização da sociedade.
Cada um ficou com os seus "prejuízos" ...

O poder da mediatização é um espanto, tal como o poder da ausência dela  pelos media, têm a capacidade de empolar ou desvalorizar os acontecimentos, como uma onda gigante, essa sim, incontrolável.!
Desde logo, exaustivamente, todos os canais televisivos abrem invariavelmente ( e já decorreram quase dois meses ), com notícias especulativas ou não, que o espectador avidamente consome.
Desde logo, os depoimentos dos pais, dos colegas universitários, colegas directos ou não, das esferas académicas e  governamentais envolvidas, de pedagogos nas diferentes áreas, de psicólogos, dos vizinhos da casa ocupada pelos jovens no fatídico fim de semana, do cidadão comum ... e na Net, este caso, tornou-se absolutamente viral, revestindo-se, quanto a mim, de riscos inevitáveis.

Desde a devassa da privacidade das famílias enlutadas, são incontrolavelmente veiculadas notícias fantasiosas, depoimentos anónimos, mails de quem não quer dar a cara, opiniões ( as mais variadas e credíveis ou não ) difundem-se como seguras, meras suposições bombásticas e sem consistência, criando-se um verdadeiro caldeirão do "diz que diz", e nada mais !

E o país entretem-se ...

Lembro, e todos lembrarão seguramente, a tragédia da derrocada da ponte de Entre-os-Rios, num famigerado 1 de Março, há já bastantes anos.
E lembro o que foi o poder do mediatismo de péssimo gosto, incontrolável, miserável mesmo, da comunicação social, que aproveitou esse triste "folhetim", para vender, vender, subir audiências ... entreter !
Como verdadeiros abutres, devassou-se sem escrúpulos, o âmago das famílias, os sentimentos dos reais sofredores do ocorrido, não respeitando o silêncio e o luto dos abrangidos ... e repetiu-se, repetiu-se o já visto, o já dito, vezes sem conta ... sem respeito !
Lembro que houve canais televisivos que cobriam ao milímetro tudo o que ocorria, em discursos empolados, ridículos e improvisados, de péssimo gosto, e jornalismo medíocre ... dias inteiros !
A ponte que já estava em mau estado há anos, por via da erosão nos pilares, pela subida e descida das águas, pelo desassoreamento das areias no leito do rio ... foi então, consertada !...

E o país entreteve-se ...

Lembro, e todos lembrarão, os horríveis, castigadores e dramáticos fogos, que recentemente assolaram a mata portuguesa, na canícula deste Verão, bem como a perda de oito vidas de jovens bombeiros, na defesa da floresta.
Novamente, a comunicação social, explorou até à exaustão, a notícia objectiva, a subjectiva, as aflições, os sentimentos, os medos, a dor, a revolta, que envolveu as aparentemente intermináveis calamidades, na exploração demagógica, do infortúnio e do desânimo, de quem perdeu quase tudo ...
Os funerais, ao pormenor, "renderam" que se fartaram, nos telejornais ;  as lágrimas dos pais e familiares, idem, as homenagens dos camaradas de profissão, também.
O Facebook, repleto de apelos de solidariedade, de divulgação, de partilhas, de angariação de ajudas, de rostos de cada um dos que partiram, com pormenores dispensáveis, das suas vidas pessoais, encheu páginas e páginas, murais e murais!

Claro que depois da floresta ser cinza e carvão, e a desolação se apossar dos "pulmões" do nosso país, inglória e impotentemente, ineficazmente por extemporâneo já ( pelo menos na circunstância ), iniciou-se então um alargado debate, do contraditório bombeiros-protecção civil, na assunção de responsabilidades, ou de gestão errada dos meios disponíveis, iniciou-se a responsabilização dos donos das matas, do próprio estado, detentor de matas próprias, pela negligência ( legislada, mas raramente fiscalizada, menos ainda punida ), da necessária limpeza dos terrenos, etc, etc, etc, vindo a terreiro o MAI, garantindo sérias e imediatas medidas preventivas, impeditórias de possível repetição de idênticas situações ...

E o país continuou a entreter-se ...

Na Madeira, as enxurradas arrastaram casas, monte abaixo, com prejuízo de vidas e de bens, em zonas, que toda a gente sabia, há muito, não terem capacidade de sustentabilidade das construções, e que também há  muito,  requeriam obras  de  reforço  e  resistência  dos  terrenos , logicamente  obrigatórias  e  nunca efectuadas !
Os "urubus" dos  media  voltaram  a  aproveitar  o "furo" jornalístico, em  cima  do  infortúnio  de  cada  um ... e  o  país  também  se  foi entretendo ...

Agora levantou-se recorrentemente, a referência à utilização de amianto, em construções de edifícios públicos, numa dada época, no país.
Em escolas e edifícios que há longos anos albergavam e albergam serviços, e onde consequentemente "habitam" longas horas por dia, muitos e muitos indivíduos, continua a conviver-se com a presença dessa substância.

É sabido que o amianto é uma substância química, potenciadora de desenvolvimento de doenças oncológicas, em quem a ele está longamente exposto.
Anda por aí, na comunicação social, este assunto, por via de denúncia e queixa, de pessoas comprovadamente vítimas do mesmo.
Só nos últimos tempos, o estado resolveu pegar na questão, e fazer obras de reabilitação desses espaços, retirando a substância cancerígena.

Trabalhei mais de 36 anos, numa dessas escolas, construídas nessa época, sob "figurino" todo idêntico.
Consequentemente, a minha escola sempre teve amianto, e creio que ainda tem ( não estou certa, já que me afastei há quase 4 anos ), nos tectos dos pavilhões e nas coberturas dos passadiços.
Recordo claramente a estatística negra, dos colegas, empregados auxiliares, e mesmo alunos, que ao longo dos tempos, faleceram de facto, com cancro ...
Nessa  altura,  ainda as vozes não se tinham levantado, a comunicação social ainda não "pegara" na denúncia ...
Eles ... partiram.  E foram muitos, objectivamente.
Se  houve  nexo de causalidade entre as suas mortes e a existência do amianto, não  poderei  garantir, contudo ...

E  o  país  continua  a  entreter-se,  enquanto  dura, e  é  fresca, a  notícia ...

"Casa roubada, trancas na porta" ... é algo mesmo muito nosso, muito português, de facto.
Somos um povo sereno, já dizia o outro !  Mesmo muito sereno !...

Afinal, a  nossa  realidade  é  tão desesperante  neste  momento, que se calhar é  legítimo  que  nos entretenhamos  com  algumas  "coisitas" !!!...

Anamar

segunda-feira, 3 de fevereiro de 2014

" COMO QUEM SE CONFESSA ..."



Gostava de ter histórias lindas para contar.  Ou pelo menos, gostava de ter histórias que envolvessem os leitores, pelo interesse que despertassem.
Gostava de ter criatividade, para ficcionar um enredo gostoso de se ler, um percurso que levasse alguém infinito fora ...

Mas não.
Concluo que criatividade, tenho pouca, memórias interessantes que se reportem a épocas, vivências pessoais ou sociais, passadas e curiosas, também são limitadas,  e  as  que  me  ocorrem,  por  saudosismo ou  efeméride,  já  as  contei  ( se calhar,  vezes  sem  conta ... ).
E resta-me falar de mim, da realidade que tenho colada ao coração, impressa na alma, viajante no sangue !
Da minha vida, dos meus anseios, dos meus sonhos, das poucas concretizações, dos meus amores e desamores, das minhas dúvidas, dos meus medos, das minhas experiências de vida ... afinal, daquilo com que convivo diariamente, talvez pouco enriquecedor, seguramente entediante demais ...

E contudo, olhando para trás, a minha vida, a real, a própria, a que sei cá dentro, a de todos os dias, de há demasiados dias, sem esquemas, camuflagens ou maquilhagem ... aquela que só eu destrinço ao pormenor, o meu lado solar, mas também o meu lado lunar, como se costuma dizer, talvez desse um bom enredo de qualquer coisa ... de um filme, de um livro que não sei escrever, de uma história que não ouso narrar ...
A minha história !

Tenho, tive, uma vida estranha, complicada, muito marginal, que infracciona deliberadamente  regras,  preceitos,  conceitos tradicionais, socialmente determinados pela cultura judaico-cristã em que nascemos, fomos criados e ainda permanece vigente, com mais ou menos influência, queiramos ou não.
Tive e tenho uma forma de ser, de me posicionar, de me interpelar, de me questionar, de me guerrear, que tenho a certeza ( isto não é mérito nem demérito ... é simplemente assim !... ), é pouco comum às outras pessoas, que atravessam este mundo, este planeta nesta minha época, que são da minha faixa etária, com a minha formação tradicional ( aquela que recebi ), com vidas de "figurino" enquadradas e "correctas", com vidas que eu vejo muito passadas a "papel químico" ... mas que não as contestam, que as aceitam com passividade, sem se debaterem ou se lamentarem.
Sem pressas de andar, sem medos de que se lhes esgote o tempo disponível, sem ânsias de ver o que as espreita depois daquela volta de estrada, daquele alto de monte, sem correrem em direcção a horizontes que delas se afastam, por cada passo que dão em direcção a eles.

Eu, pareço aquele vulcão, aparentemente extinto, e que um dia surpreende o mundo, porque as línguas de fogo, se levantam nos céus, e o gigante, apenas adormecido, vomita as raivas e a turbulência, que afinal, silenciosamente, sempre continuara latente, a existir nas suas entranhas ...
As minhas "entranhas" também se agitam, o meu coração não dorme, o meu espírito não se aquieta.
Sinto quase sempre, ser um barril de pólvora, que contém, a duras penas, a força  potencialmente explosiva, guardada no seu interior.
A contenção do meu "avesso", é uma manobra treinada, calculada e cansativa, e por isso me deixa exaurida, frustrada, arrastada por aqui ...

Às vezes abrem-se fissuras, que colmato como posso, porque "dizem" que deve ser assim ...
Outras vezes, a panela de pressão ameaça não aguentar, a válvula de escape é obrigada a deixar vazar o excesso de turbulência ...
É então que abro lutas comigo mesma, e me pergunto por que é a minha vida assim ?
Por que vivo insatisfeita, desajustada, esgotada, enraivecida ... ou então, anestesiada, distante, indiferente, de indiferença sofrida ?
Por que não consigo alterar a minha forma de sentir, as minhas convicções sobre o que me rodeia ?
Vivo sob reclamação permanente, com destinatário desconhecido ...

Umas vezes sou uma criança, com uma ingenuidade invejável, outras, uma  adolescente , crédula e sonhadora, outras ainda, uma velha revoltada e sem sossego ...
Sou um mar encapelado, em constante preia-mar, de tempestade imprevisível, destruidora, raivosa, mortífera ...
Sou alguém que não cabe na carcaça que lhe enfiaram, e que tem que viver dramaticamente com ela ...
E por isso, sou um ser de desespero, desequilíbrio e desconforto permanentes ...
Invento vidas, porque esta não me gratifica.  Sonho histórias futuras em que acreditei, ou lembro passados mais ou menos distantes, porque o presente não me preenche.
Os meus dias são bolorentos, bafientos demais.
Cheiram a algo putrefacto, como se fosse num pântano que eu tivesse os pés.
Estou cansada, muito cansada, como alguém que madrugada alta não enxerga que caminho tomar, numa encruzilhada da  serra ...
Perdida, por isso, também.

Sozinha, muito sozinha, sem ninguém por perto, que fale a minha língua ...
Labirinticamente perdida e extenuada, sem descortinar o caminho de libertação.
Tudo igual, tudo demasiado igual, tudo demasiado cinzento, como a cor da borrasca que o céu nos exibe, e como a tempestade que as gaivotas nos prometem !
Sentada num banco da estação, à espera de um combóio que jamais passará ...

Não sei estar por aqui !  Sinto-me castigada por ter que estar por aqui !...

Subo ao penhasco e olho o mar.  É a sua lonjura a perder de vista que me aquieta ;  É o azul de um céu diáfano que me aquece ;  É o voo da gaivota, do albatroz, ou da águia nos picos do monte, que me transporta e me acena liberdade lá longe ... sonho, lá longe ... fé em algo, lá longe ... alguma salvação ainda, lá longe !...
Como se eu acreditasse nisso, e respirando-o, me deixasse envolver por paz ...

Apenas tudo tão longe, que estou certa, jamais chegarei lá !!!...

Anamar

quarta-feira, 29 de janeiro de 2014

"A PRIMAVERA DO NOSSO DESCONTENTAMENTO"



Obriguei-me a vir escrever.
Vejam lá como as coisas andam !  Escrever sem rascunhar, ao sabor da irrelevância do momento, isto porque não faço ideia o que vou escrever, sobre o que vou escrever ... para que vou escrever !...

Sei que as mimosas já estão em flor.
As  mimosas, as  magnólias  e  as  cameleiras.  Estão  lindas  de  morrer !...
As mimosas, mais despretensiosas, bordejam as estradas, porque ninguém lhes pediu que nascessem ali, ou sequer as plantou ;  as magnólias e as cameleiras, com o seu "pedigree", estão num patamar "floralmente" acima .
Pronto, acabei de inventar um neologismo, em que aliás sou perita.
Para mim, não há barreiras à escrita, e se não encontro o "tal" vocábulo, que traduziria o que quero transmitir ... pois bem, invento-o !  Quem é que me impede?

O tempo atmosférico, está aquela  coisa de mandar os velhinhos para os anjinhos, de por as crianças de quarentena  sem  irem  às  escolas ( o  que  nos  intervalos  da  febre, elas  consideram  uma  bênção ) ... de nos obrigar a enfarpelar feito chouriços, a nós, os adultos, teoricamente mais resistentes, e que temos que tomar conta destas coisas ...

A minha gaivota ( hoje tenho a certeza que é ela, garbosa, que por aqui anda ), recuou da orla marítima, que mete medo até às gaivotas, abandonou os areais que as marés não deixaram, em praias totalmente descarnadas, e resolveu retomar os caminhos de terra, até melhores dias .

O país continua de borrasca, continua de Inverno carregado, apesar de haver gente esperançosa, que enxerga lá não sei onde, uma Primavera, que garante está p'ra chegar.
Os velhotes espreitam as résteas gratuitas de sol, quando ele, humildemente engana as nuvens encasteladas, e  jogam ao dominó nas mesas improvisadas de bancos de jardim, se há o mínimo de garantias de que não choverá nos próximos minutos...
Enquanto jogam, discutem os números das pedras do dominó, para esquecerem a ausência de dígitos na magra reforma que os esperará, ainda mais magra, a partir deste famigerado Fevereiro, que se avizinha a passadas largas !

Os menos velhotes,  que inerentemente deveriam estar mais lúcidos, porque o Alzeimer, a demência senil, ou a simples esclerose, ainda não deveriam tê-los atacado, parecem baratas tontas, a fazerem outras contas, com outros números, que não os das pedras dos dominós ...
"Vão-nos cortar quanto"?.... " Mas em Dezembro já retiraram xix ... e foi para quê"?  "E o desconto para a ADSE também subiu ... Vamos ficar em que escalão"?...

E a água, a luz, o gás, os transportes, as taxas moderadoras, os créditos existentes, e a comidinha de que desgraçadamente ainda não nos desabituámos, como o "cavalo do espanhol", subiram também ... e trememos por cada vez que abrimos as caixas do correio, que dantes nos surpreendiam com românticas cartas de amor, notícias felizes de alguém de quem tínhamos saudades, e que agora nos provocam úlceras de estômago, porque não há dia, em que as malfadadas não nos ofereçam uma conta p'ra pagar !...

E ninguém sabe nada, e ninguém percebe nada das fórmulas aplicadas ( nem dá p'ra saber, sequer ... tal a confusão, as notícias contraditórias, e a desinformação conveniente ) ...
E assim vamos vivendo, olhando a beleza da natureza, que mesmo madrasta, tem o espectáculo esmagador  dos castelos indomáveis do mar, tem o amarelo lindo das mimosas, o rosa campanular das magnólias, e as diversas cores das camélias ... e sonhamos ... sonhamos, porque o sonho ainda não mudou de escalão ... que estamos abençoados com uma qualquer Primavera de Praga, esquecendo o antes e o depois dessa Primavera !...

Anamar

sexta-feira, 24 de janeiro de 2014

A MÁGICA TECLA DE " DELETE" ...



A natureza humana tem desígnios estranhos.
Mecanismos ditados, que independem da vontade, e até da consciencialização que tenhamos sobre eles.

Reflectia eu ontem, num daqueles períodos em que mergulho, ou porque estou em silêncio, ou porque há demasiado silêncio à minha volta, ou porque por nada em particular, ou porque por tudo em particular ... somos assaltados por pensamentos desconectados da realidade, mas que nos caem aos trambolhões pela mente abaixo, e que buscam respostas, normalmente lógicas ( essa, é sempre preocupação nossa ) ... Reflectia eu ontem, dizia, assim do nada, como é possível o ser humano ter uma adaptabilidade espantosa, a situações que pareceriam intransponíveis, e que por vezes são ultrapassadas sem grandes mazelas ou marcas.

Refiro-me a questões objectivas, e outras nem tanto, refiro-me a questões materiais e questões emocionais.

A minha vida já é razoavelmente longa, e como tal, já passei por muitas coisas, já experienciei muitas situações, já senti muitos embates, que poderia chamar de traumatizantes, pela sua carga negativa em várias vertentes.
Tive uma vida para trás, dividida com muitas realidades diferentes, com locais diferentes, com pessoas diferentes. Cruzei vida, afinal, com muitas outras vidas ! 
E se me dissessem então, que eu sairia semi-incólume de tudo isso ... mais, se me dissessem que quando penso hoje, nessas realidades que vivi e experienciei, quase ponho em dúvida que elas tivessem existido.
Eu diria que era impossível, ou, a ser possível, então não posso estar de posse da minha sanidade mental !

Eu vivi em espaços que amei, que "nasceram" de mim, que guardam até hoje, em cada recanto, apontamentos ou marcas minhas e só minhas, que se relacionam com períodos até temporalmente longos da minha vida, períodos divididos com a minha família, onde as minhas filhas cresceram, brincaram, onde havia rituais inerentes a essas vivências ...
Contudo, olhando para trás, detecto um cordão umbilical totalmente cortado, lembranças que parecem pertencer a um filme a preto e branco, desfocado, distante e estranho ... nublado, e que me parece meramente uma reprise de ruim qualidade, e em que a protagonista nem sequer sou eu,

Não sinto, como talvez fosse espectável, nenhum "buraco" no peito, daquilo que apelidamos de saudade, nenhuma angústia pelo definitivo do nunca mais aceder a essas vivências, nenhum desespero por pensar : "bolas, tudo o que foi meu, não o é mais, mesmo as mais gratas e gostosas recordações, parecem  não  me afectar de todo ... Será  que  eu  vivi  mesmo,  tudo  aquilo ... ou  sonhei " ?...

Como se se desencadeasse em mim, um mecanismo de "deletar" algo que provavelmente me molestaria, um mecanismo de defesa da mente, e do coração ..

E vivo bem, sem ...

Este sentimento referente a realidades materiais, estende-se ao domínio do emocional e do afectivo.
A sabedoria popular costuma dizer, que "só faz falta quem está presente", ou que " quem não aparece, esquece " !
E sei por experiência própria, que a distância temporal, funciona de facto, como uma esponja que primeiro dilui um pouco, uma dor que tarda em nos deixar, para depois, chegarmos mesmo a por em causa efectiva, aqueles afectos ...
Parecia que sucumbiríamos à provação do afastamento traumatizante de alguém que foi fundamental nas nossas vidas ... mas depois ... depois, o desábito de termos esse alguém presente junto de nós, leva-nos a ir resistindo, a ir suportanto, a habituarmo-nos a novas realidades, e novos esquemas de vida ... e depois, um dia, acordamos e percebemos que a "película" não parece credível, que talvez não tenha sido bem assim, e que tudo aquilo que julgámos viver, se enleia numa manhã de nevoeiro cerrado !...

Estou certa, que se trata de facto de um subterfúgio do inconsciente sobre o consciente, como panaceia de maiores males.
O ser humano não quer "reviver" tudo outra vez, não quer magoar-se dolorosamente outra vez, não quer nem lembrar, que alguma coisa daquilo existiu.
Foi um sonho daqueles que esquecemos mal abrimos os olhos, foi outro alguém que atravessou aquela estrada ... Não eu !!!...

E por isso, uma vez mais, a sabedoria popular prima pela clarividência : "Quem não aparece, esquece" ou "Só nos faz falta, quem se faz presente "...
Os outros, são personagens das calendas gregas, que talvez não convenha acordar do "sono" profundo onde estão !!!...

Anamar

quarta-feira, 22 de janeiro de 2014

" UMA VIDA SUSPENSA "



O estado mais próximo do que eu considero ser uma hibernação, é a minha vida actual.
Com uma só diferença : durante a hibernação, e mercê dela, os animais perdem peso, que advém do consumo da gordura acumulada para o efeito, antes desse período letárgico.

E eu, ao contrário, mercê da minha "hibernação" actual, acho que acumulo gordura desgraçadamente, como compensação desta vida suspensa, que vivencio...

Efectivamente, venho a sentir-me de há já algum razoável tempo a esta parte, como o urso polar, que na época adequada ( e nisso a Natureza é absolutamente sábia, porque lhe prepara as condições para esse período ), recolhe à toca ... e adormece.
Desliga o comutador, faz o clique de apagar as "luzes" ... não está p'ra nada nem ninguém, e simplesmente fica num estado catatónico que me agrada bastante.

No Homem este estado associa-se à esquizofrenia ... mas palavrões àparte, parece-me muito abençoado, que quando a vida fica igual ao dia de hoje, por exemplo ... nós possamos recolher-nos, e fechar para "balanço".

Convém  dizer,  que  o  dia  de  hoje está  atmosfericamente  indescritível !
Todo o céu está por igual, cinzento tempestuoso, o vento desabrido e gélido, açoita para cima de nós uma chuva forte e ininterrupta, não há uma única frestazinha lá fora que nos anime, não há aves nos céus ( nem as gaivotas tão habituadas às intempéries marinhas, por aqui aparecem ), os animais sem abrigo bramem,  perante um desconforto tão impiedoso !...
São cinco da tarde e a noite aproxima-se a passos largos.

A minha vida está exactamente assim.
Não enxergo nada, mas mesmo nada, que me leve a deitar a cabeça de fora, que é como quem diz, que me motive a viver cada dia.
Tudo igual, tudo cinzento, tudo de borrasca, tudo cansativo ... tudo sem a mínima graça !
Dou por mim, diariamente, a sentir que o período mais feliz, confortável, e de maior fruição nos meus dias, é aquele que começa, no momento em que também eu, embora não sendo ursa ( tanto quanto sei ... apesar de às vezes duvidar ... ), entro na toca, desligo do mundo, esqueço essas trivialidades chatas que tanto maçam o ser humano, e "hiberno"... se desligar, é hibernar, de facto ...

E em cada dia que passa, mergulho nesta catalepsia, mais e mais cedo.
Passo a explicar : cinco da tarde, corro cortinas, porque entretanto anoiteceu acentuadamente ;  daí até às oito da noite, pairo, com mais ou menos paciência pelo computador, pela escrita ( quando se justifica ... o que está sintomaticamente a rarear ), ou leio um pouco, com os pés devidamente confortáveis, na abençoada escalfeta, que em boa hora adquiri, porque a verba para pagar à EDP, diminui na razão inversa do gasto da energia necessária a aquecer-me, neste Inverno tão frio ...

Às oito da noite, faço uma ponte com o Mundo, através do telejornal, que "grosso modo" me consegue deixar mais mal disposta, inquieta, penalizada, angustiada ... quiçá aflita, com as notícias que veicula.
Terminado o dito, inicio a preparação da toca, que é como quem diz, abro a cama com os adoráveis, macios, fofos e quentes, lençóis térmicos.
Faço então o saco da água quente, e aqueço a maior caneca que tenho, com leite, que ao longo do serão, será bebido aos poucos, passando portanto de quente, a natural ...
Visa ele substituir, na maior parte das vezes, o jantar que não me apeteceu comer, e simultaneamente  propiciar a conciliação ( dizem ) do sono.

O silêncio impera no meu quarto, os gatos já estão disciplinados de que acabou a hora do recreio, a televisão aos pés da cama passa só o que me interessa, e eu tapo-me até ao pescoço, tipo tartaruga debaixo da carapaça.

E este ritual está a acontecer, de dia para dia, cada vez mais cedo. Tem dias / noites em que dou por mim, a transpor a "porta do paraíso", às nove da noite ...

Claro que o dia seguinte, que se me inicia às onze da manhã ( ! ), é curto, convenientemente curto, para que eu não consciencialize por demais, esta preocupante indiferença perante a vida.
Quanto mais durmo, menos estou acordada logicamente, menos penso neste arrastar de dias, nesta solidão sem nada que me alicie, me sacuda ou me empurre.
Hoje, nada de diferente tenho de ontem ... nada de diferente espero de amanhã ...
Tenho portanto, uma vida suspensa !...

Quem me conhece minimamente, sabe que este marasmo, este arrastar, esta indiferença, me mata aos poucos.
Isto, porque p'ra que eu me sinta viva, tenho que ter um objectivo traçado, uma luta iniciada, obstáculos a vencer, projectos com que sonhar, esperanças a prometerem-se-me ... e sentir adrenalina nas veias, suficiente para me colorir a realidade.
Daí que, o cinzentismo da alma, à semelhança do cinzentismo deste céu que tenho especado bem frente à minha janela, é um estertor de um ser que preferiu adormecer, hibernar, recolher-se, como o lobo, ou o urso, ao covil, quando os tempos são adversos ...

Pode viver-se assim ?
Chama-se a isto ... "viver-se" ?
Que desfecho  tem  um  trilho tão sinuoso, enviesado e sem horizonte, que justifique o cansaço de o percorrer ?...

Se alguém souber ... que me responda !

Anamar

quarta-feira, 15 de janeiro de 2014

" A VIDA QUASE HÁ CEM ANOS ..."



A minha mãe nasceu em 1921, numa pequena vila, perdida no Alto Alentejo.
Era a filha do meio de cinco irmãos, duas raparigas e três rapazes.
Nessa altura, as pessoas oriundas de famílias modestas, e no Alentejo interior, viviam mal.
Ainda assim, os meus avós não subsistiam a partir da terra, porque os que trabalhavam para os latifundiários ( meia dúzia de famílias abastadas e detentoras das propriedades ), e que não detinham nada seu, a não ser a jorna quando trabalhavam, tinham uma vida de verdadeira escravidão.
O trabalho era de sol a sol, não existiam leis laborais que o regulassem, menos ainda, sindicatos ou reivindicações.
Um pai de família dava-se por muito feliz, se trabalhasse para algum lavrador, e conseguisse com isso, garantir na mesa, o pão dormido da açorda e o azeite na almotolia !
Os Invernos eram extremamente rigorosos, e havia meses e meses, em que as terras alagadas, não permitiam sequer, que nelas se entrasse .

Era o tempo da fome ...

Muitas crianças iam para a cama, com umas sopas de leite no estômago, porque o pão fazia-se em casa, para toda a semana, e o leite sempre vinha de alguma cabra, ovelha, ou vaca, que criassem, e que, com meia dúzia de "bicos" na capoeira, para os dias festivos, lhes compunham a mesa.

Existia na vila, um convento de freiras, que acolhia meninas órfãs, e que durante todo o ano, por iniciativa da mulher do Presidente da Câmara de então, garantia alimentação diária aos velhinhos do asilo - a "sopa dos pobres".
Pois bem, aí recorriam também os trabalhadores, que no período rigoroso do Inverno, por falta de trabalho,  não tinham do que viver.
E havia depois, como diz a minha mãe, a "pobreza envergonhada", de quem precisava e não pedia ... Mais dramátiva, portanto !

Os meus avós não viviam da terra, como disse.
O meu avô era sapateiro, e foi entretanto mobilizado para a guerra.
Fez a Grande Guerra de 14-18, e quando partiu, já cá deixara, a mulher e um filho.
Em condições precárias, a minha avó, foi então "servir", numa das casas ricas da terra, para garantir o seu próprio sustento, o da criança de meses, e ajudar a mãe que ficara viúva com trinta e um anos, e três meninas para criar.

Na Guerra, o meu avô,  incorporado nas tropas aliadas, esteve à morte, devido a um bombardeamento alemão, já então com armas químicas.
O "gás mostarda ou iperita ", tinha efeitos tremendos nas vias respiratórias, quando inalado, e queimava em profundidade o corpo.
E os alemães usavam-no !...
Salvou-se por mero golpe de sorte ; ainda recebeu a Extrema Unção, na eminência de morrer.
Ficou contudo, com sequelas para o resto da vida.
Isso ocorreu numa noite de passagem de ano, e desde então, ( ele que não era católico ), guardou um qualquer sentimento de gratidão e de respeito particular, por essa noite, enquanto viveu ...

Considerado um ferido de Guerra, muito grave, foi desmobilizado, e regressou a Portugal, com uma saúde tão precária e uma debilidade tão devastadora, que esteve à beira de uma tuberculose.

Decidiu então virar-se para o comércio, porque a saúde já não lhe permitia continuar com a sua profissão de origem.
Abriu um espaço polivalente, que era simultaneamente pensão de hóspedes, mercearia e cavalariça para recolha e guarda dos animais, e de quem viajava nos carros de canudo, ou nos carros de varais, pela planície adiante.
Ainda me lembro de ver lá alojados os "tendeiros", que eram feirantes de terra em terra, os ciganos que  negociavam pelas feiras, cavalos, mulas, e burros, e que se movimentavam, como nómadas que são, com toda a família e os animais, assentando acampamentos nos campos, onde lhes aprouvesse.
Às vezes, em noites tempestuosas, o meu avô dava graciosamente guarida, no palheiro ou na cavalariça, aos errantes, sem eira nem beira, que percorriam, como pedintes, as estradas do Alentejo.
Eram chamados de "frausteiros" ( que suponho ser uma adulteração popular, de forasteiros ).
A minha avó, às escondidas do marido, sempre lhes levava um prato de sopa, para aliviarem um pouco, a fome ...

Eram tempos muito difíceis, efectivamente !...

Depois do meu primeiro tio, nasceram mais quatro crianças, como também já disse.  Abaixo da minha mãe, vinham portanto dois rapazes.
A casa dos meus avós era de permanente labuta.  Havia alguma ou algumas "criadas", como se chamavam, mas as duas filhas raparigas, trabalhavam lado a lado, e em iguais condições que elas.
A minha avó era a cozinheira ( de mão cheia, ao que parece ), mas todo o restante trabalho, desde servirem à mesa, prepararem os quartos dos hóspedes, tratarem da casa, com todas as inerências que se conhecem, passavam pelas mãos das criadas e das filhas.
Todas as semanas se amassava o pão, e anualmente se faziam matanças de porcos, e se preparavam os enchidos ...

Por tais motivos, a minha mãe foi retirada da escola primária, a escassos dois meses de completar a terceira classe, porque havia que vir ajudar a criar os dois irmãos mais novos.
Apesar de ser uma aluna exemplar, e do interesse manifestado pela professora, de que ela continuasse, não houve qualquer sucesso, e talvez com oito ou nove anos, já ela era mãe substituta, porque a minha avó paria, mas não tinha condições objectivas para cuidar e criar as crianças !

Quando oiço a minha mãe contar memórias desses tempos, pasmo, de facto, e pergunto-me como viveriam os meninos de hoje, naquelas condições ...

Não existia luz eléctrica, nem água encanada.  Não existiam casas de banho ...
Os banhos eram tomados dentro de um alguidar de zinco, e a água era despejada sobre o corpo, com um jarro de esmalte.
As camas eram as tradicionais e bonitas camas de ferro, vendidas hoje, como antiguidades.
Tinham um estrado de arame, sobre o qual existia um enxergão de palha, e sobre este, um colchão feito de pedaços de trapos.
A palha do enxergão, era viveiro habitual e inesgotável de percevejos, parasitas que se alimentam do sangue obtido, pelas picadas no ser humano.
Tentavam debelá-los, ao que parece, com rodelas de cebola, ou petróleo ... mas infrutiferamente !

Nos quartos, existia um lavatório em loiça, com um balde por debaixo, para recolher a água, e um jarro ao lado, com essa mesma água..
Tanto quanto sei, em toda a pensão, existia um único bidé de esmalte, que circulava para os quartos, cujos hóspedes o reclamassem, e que não eram muitos ...
À cabeceira das camas, na mesinha de cabeceira, existia uma palmatória com uma vela, com a qual, o quarto era alumiado, e  uma garrafa de vidro com água, com um copo sobre o gargalo.
A maior parte dos cobertores, se assim se poderá chamar, era feita com bocados de tecidos, cosidos uns  aos outros, e havia ainda os cobertores de "papa", que era uma espécie de lã grossa, com pelo, alguns já com marcas das traças.
Remontam estes cobertores ao tempo do Marquês de Pombal, tendo existido, perto da Guarda, na aldeia de Macainhas, uma desenvolvida produção têxtil dos mesmos.
Hoje em dia, a última fábrica, na Serra da Estrela, fechou portas em Dezembro de 2012.
Eram feitos da lã da raça ovina churra, fiada especificamente para este fim, e eram imensamente pesados !
Como consequência, o peso da roupa sobre cada pessoa, jamais era proporcional ao aquecimento
produzido ...
Ainda nos quartos, existiam, para resolver as necessidades fisiológicas das pessoas, uns bacios  altos, de barro, com uma tampa em madeira.
Diariamente, eram os mesmos, colocados nas ruas, às portas das habitações, até que o Tio Rico ( assim se chamava a figura ... ), com um carro puxado por um boi, com uma canga de guizos a anunciar-se, os despejava, para dentro desse contentor.

O "destino" ... a minha mãe não sabe !   Talvez o campo, talvez adubasse terras ...

Os comensais fixos, na pensão, pagavam uma diária de 16$00, que incluía o quarto e as três principais refeições : pequeno almoço, com leite com café, e onde o queijo, a manteiga, os enchidos e o pão, se  faziam  presentes ;  o almoço, com sopa, prato de peixe, prato de carne, pão, vinho e fruta ... e o jantar,  de igual forma.

Havia quem apenas tomasse as refeições, e se deslocasse à Estalagem do sr. Barrancos ( como era conhecida ), devido aos pitéus da Sra. Brites, a  minha avó.
Incluiam-se  como tal,  figuras proeminentes da terra, destacadas para lá, a trabalho : o juíz em exercício, o escrivão do tribunal, alguns médicos, o delegado do Procurador da República, o Padre Serrão, e outras personagens com algum protagonismo ...

Ao tempo, não existiam sabonetes, gel de banho, shampôs e outros artigos de toillete.
Existia sim, para tudo, desde a lavagem criteriosa das tijoleiras de barro, da loiça, da roupa, e de tudo o resto, até mesmo às lavagens pessoais, exclusivamente o sabão azul e branco.

A iluminação caseira era feita por velas, como disse, por candeeiros de petróleo, ou candeias de azeite, espalhados pela casa.
Cozinhava-se em fogões de lenha  ( só mais tarde apareceram os de petróleo ), passava-se a roupa com ferros a carvão, por vezes difíceis de pegar, outras, queimando a roupa, porque algumas brasitas saíam para fora, ou com ferros que se aqueciam na chapa do fogão, simplesmente !

As ruas eram iluminadas com candeeiros de pé, os quais tinham um depósito, que diariamente era provido de petróleo, e assim se iluminavam.
Nas noites quentes do Verão alentejano, terminada a labuta diária, o local mais aprazível para as famílias se juntarem, era  as soleiras das portas, ou mesmo, os poiais das mesmas.
Para garantir a frescura, regava-se a rua previamente.
A água, claro, ou provinha do poço do quintal, ou era buscada diariamente, vezes sem conta, ao poço da Faia, que  ficava  na  estrada, já  fora  da vila, em  cântaros de  barro, à  cabeça  e  no  quadril ...
Muitas rendas do seu enxoval, e muitos livros, diz a minha mãe, ter feito e lido, à luz do candeeiro da rua ...

As roupas usadas, eram frequentemente de chita, ou de riscado.
Com a chita, confeccionavam-se blusas, saias, vestidos, sendo que  cada metro custava vinte e cinco  tostões ...
A roupa interior, as camisas de noite e as combinações ... eram feitas em casa, por quem sabia costurar, e eram exclusivamente de flanela.
O guarda-roupa era parco. Só o essencial, e uma roupita para os domingos, já estava bem!
O material escolar era transportado numa bolsa de flanela, feita em casa, e passava de irmão a irmão. Resumia-se ao livro, ao caderno, à tabuada, lápis e borracha, a ardósia e o ourelo para limpá-la.
As carteiras escolares tinham um tinteiro incorporado, e com uma caneta de aparo, aí molhada, escrevia-se a tinta ...

Bom, não me alongo mais.
Isto tudo, este "modus vivendi", é uma realidade tão longínqua, mas sobretudo tão irreal, que custamos a concebê-la .
Fui tentando descrevê-la, o mais fielmente possível, à medida que a minha mãe ma relatava.
A cada observação minha, a cada espanto meu, a minha mãe dizia-me : "Pois, filha ... mas era assim ! E tudo se criava !!!..."
É tudo tão surrealista, que nem a geração das minhas filhas ... que direi a dos meus netos ... o conseguirá conceber.
Olhando à nossa volta, pergunto-me, como os meninos dos Ipads, Iphones, computadores, telemóveis de última geração, toda a parafernália que nos rodeia, incluindo alimentação, hábitos caseiros, vestuário ... meninos que sabem que o Homem pisar a lua já nada tem de especial, que a concepção de crianças "in vitro", também não, que a clonagem e que a genética mudam o Mundo ...
Pergunto-me, que sentido tudo isto fará/faria, para eles???!!!

Seguramente,  achariam  tratar-se  de  um  filme  do  tempo  das  cavernas !!!...

Anamar 

segunda-feira, 13 de janeiro de 2014

"QUEREM VER QUE A CULPA FOI DAS PASSAS ?..."





Querem ver que a culpa foi das passas?

2013 a ir-se, 2014 a chegar ... 

Aquele, cansado, decepcionado, desgastado, velho ...  
E pior, bode expiatório de tudo quanto foi desgraça acontecida.
Este, fresco como uma alface, com a pujança, a fé, a ingenuidade e também a inconsciência dos jovens, prometendo  isto e aquilo, acena garbosamente com outras intenções, outros dias menos enevoados, outras realidades que jura irão cumprir-se, o que dará lugar a festejos ...

Do velhinho eu despeço-me, sem já lhe guardar raivas ou rancores, com aquela complacência com a vetustez, dos nossos, chegados ...
Já lhe perdoei as indelicadezas, os sofrimentos, as angústias, e mesmo as raivas que me fez sentir, e que de mim fizeram, uma pessoa pior ...
Enfim, resignei-me a esquecer a intolerância, e a deixá-lo partir, com a certeza que ele não ficará no meu álbum de memórias !...

Deixou-me acreditar em muita coisa, p'ra me defraudar a seguir. E isso, com o meu mau feitio, de flor que não se deva cheirar ... não perdoo. Reservo, guardo, e às vezes, as marinadas acabam azedando, como se sabe, e fica tudo estragado !...


Na passagem do testemunho ... obviamente a meia noite de 2013, manda a tradição que nos despeçamos,  prometendo esquecer, e que recepcionemos com pompa e circunstância, esperança e fé !
O novo ano fica assim, de imediato, completamente sufocado  com uma enxurrada de pedidos, de desejos formulados, por cada mês, por cada uma das doze badaladas da meia noite, por cada passa que se vai comendo, ao soar dessas badaladas.

Obviamente que não há viandante que se preze, que, acabado de chegar, possa ter de imediato um bom desempenho, se lhe cai tudo em cima ! Só pode mesmo sufocar, ou fazer "orelhas moucas" !!!
Por isso, o ano, à medida que se desenrola, vai sempre "dando bota"... digo eu !...

Nos tempos em que eu ainda fazia passagens de ano, mais ou menos felizes, as passas eram previamente contabilizadas, reservadas, e aguardavam que chegasse a hora adequada..
Depois, era aquela afobação, em que o ritmo das badaladas não dá, nem de perto nem de longe, para que se  mastiguem  as  passas,  se  façam  os  pedidos, e  se  felicitem  os  amigos ( tudo ao mesmo tempo ), a menos que as ditas, sejam simplesmente deglutidas, o que não me parece de bom tom ...
Passei então a fazer uma falcatrua, para simplficar a coisa : comia e mastigava as passas todas de uma vez só, e reduzia os pedidos, àqueles, sem os quais, isto ainda se torna uma desgraça maior.
A saúde, à cabeça, o amor em segunda preferência, e algum dinheiro, constituíam o meu cabaz, creio que pouco exigente, de desejos e anseios ...

E depois, é como uma chave fixa do euromilhões ...nuns anos somos mais premiados, noutros nem tanto ...

De  facto,  o  tempo,  tem  vezes  que  nos  magoa, e  outras  que  nos  cura ...
Tem vezes que nos afasta, e outras, que nos aproxima ...
Leva-nos a ignorar algumas coisas, mas a importarmo-nos com tantas mais ...
O tempo decepciona-nos impiedosamente , e leva-nos a perdoar essas decepções, miríades de vezes ..,.
E por isso lembramos as coisas, ou esquecemo-las, conforme o caminho ...
Tem dias  em  que  nos  mata, e faz desistir de  tudo...para  no seguinte, nos levar a uma persuasão sem limites, a não abdicar da luta ...
Faz-nos julgadores de gentes, momentos e  afectos ... ou inversamente, aceitadores incondicionais do que os mesmos têm para nos oferecer ...

Este ano, não tive "passagem", recusei réveillons, fiquei só, comigo mesma e com as minhas estórias ... as recentes, e as que já têm barbas ...
Constatei em desespero, que ao contrário do que supunha, não existiam passas, nesta casa ... Vinho, ainda se arranjava, passas é que não.
Conjecturei descer, para as comprar ... Mas para quê, se eu  não tinha amigos com quem as dividir, não tinha memórias a festejar, os únicos seres viventes ( os meus gatos ) já dormiam há muito ... e não me fazia nenhum sentido,  fazer os tais pedidos ??!!

E lembrei uma vez mais, o que para mim, é uma máxima : na verdade, o tempo tira-te hoje, o que te deu ontem  ... Sempre !

E é por isso que eu corro em contra-ciclo.  Para ter tempo ainda, de protelar para depois e depois, tudo o que eu sei que ele me vai tirar !
Queria  ser,  por  instantes  Alguém,  alguma  Coisa, Ninguém, sei  lá ... ( olhem que pretensão !!! ), uma peça do mecanismo do relógio ou da ampulheta que o regula, para brincar com ele.
Pará-lo, atrasá-lo, acelerá-lo, espreitá-lo à frente, re-olhá-lo atrás, apagá-lo, re-escrevê-lo ... saborear de novo o que me deixou  memória indelével no coração, cuspir para longe, o fel que me amargou tantos momentos ...

Reconheço agora, que afinal, esse poderia ser o único desejo a formular, na décima segunda badalada da meia noite, ano após ano, tempo após tempo ...

Só que, de facto ... eu não tinha passas, eu não tive passas !
  
Eu desconsiderei  intencionalmente, aquele momento místico, desvalorizei os segundos que leva a descolar o envelope da carta, cujo conteúdo não conhecemos, e que mesmo que nos armemos em fortes, sempre nos cola, por momentos, o estômago às costas, nos dá um nó no respirar, e nos acelera o ritmo do peito ... o reinício de  outra fatia desconhecida, do caminho que nos foi destinado ! 

Atrevi-me a medir forças com o tempo, como David contra Golias, desmistificando, indiferentizando, tentando insensibilizar e racionalizar, o que afinal talvez deva mesmo ser racionalizado, de facto :  o  romancear daquele lapso de tempo, em que as doze passas encerram um Mundo de sonhos, como se ele não fosse apenas e só, um lapso do tempo imparável, igual ao antes, ao depois, ao ontem, ao hoje, e certamente ao amanhã ...

Nada mais que Tempo !!!...

Anamar

terça-feira, 7 de janeiro de 2014

" TRINTA MIL ..."




Não escrevo, faz tempo.
Direi mesmo que há um ano !  Encerrei os meus escritos no fim de 2013.
Janeiro de 2014 iniciou-se, a vida regressou ao ritmo normal, com um tempo atmosférico arrasador, não só no país, como em todo o norte da Europa, Canadá e Estados Unidos, com manifestações naturais e atmosféricas, nítida e assustadoramente indiciadoras de uma mudança clara do clima, que já se detecta com uma nitidez, que não deixa margem para dúvidas, e que assusta !

O Homem, neste momento, é cada vez mais o artesão da sua própria desgraça, e da antecipação da finitude do planeta que habita.
As catástrofes que estão a fazer-se sentir, mostram-nos um domínio descontrolado da Natureza, com uma dimensão não vista antes, com consequências apocalípticas imprevisíveis ...
Ventos fortíssimos, temperaturas anormalmente gélidas, ondas até dezasseis metros, varrem e engolem tudo o que lhes aparece pela frente !
Lembro o tsunami de má memória, em 2004, na Tailândia e não só, com cicatrizes irrecuperáveis na devastação deixada, material e humana, numa zona já tão desfavorecida da Terra ...

Por cá, num país que está roto por todos os lados, só nos faltava que também o clima, sempre tão generoso, se tornasse carrasco, e espalhasse ainda mais, a miséria que já nos assola e nos deixa a viver em condições extremas, maioritariamente.

Bom, o início  deste post, parece um comunicado da Protecção Civil, ou um relato noticioso da metereologia ...
Efectivamente, ando exactamente como o céu que nos amanhece cinzento-chumbo, uniforme e ameaçador, com borrasca à vista !
As gaivotas corroboram a previsão, pois recolheram definitivamente a terra.
Nem elas, campeãs das ondas e das praias, se atrevem a desafiar as condições tão adversas.  Volteiam ao sabor da aragem, oportunisticamente aproveitam os golpes de vento, e de asas esticadas, passeiam-se por aqui, bem perto da minha janela !
E não é raro acordar com os seus grasnidos, o que me informa de imediato, quais as condições atmosféricas que me esperam !...

E não escrevo, faz imenso tempo, como dizia ...
Sinto que não tenho nada, de que valha a pena falar.
Entretanto, este meu espaço, registou  trinta mil entradas de leitores, o que não deixa de me espantar.
Não é um "sítio" divulgado, tem características de abordagens pontuais, específicas, são crónicas do imediato na maior parte das vezes, tem este ou aquele assunto que me "mexe" de alguma forma, artigos mais ou menos intimistas, mas ... nada de novo !...

Contudo, creio que tendo iniciado este blogue em 2008, atingi em 2013, vinte mil, e ainda em 2013, trinta mil acessos, de alguém que perdeu o seu tempo, lendo irrelevâncias, coisas comuns, meras formas pessoais e muito particulares na focagem dos assuntos ...
Afinal, um olhar, simplesmente ... o meu ... que vale o que vale !...
E sinto-me tão pequenina e tão insignificante, quando penso que me atrevo a escrever, face a "monstros" da escrita, com publicações empolgantes, geniais e brilhantes !

Li  recentemente dois livros que me preencheram, como há muito não acontecia ...
Duas obras de arte, seria assim que os classificaria ... Aquilo, sim, é que é escrever !
Perante eles, os meus trinta mil leitores, mesmo que tivessem acedido uma única vez, já constituem para mim, um deslumbramento, uma gratidão, e uma empolgação dos diabos !!!...
De repente, sinto-me uma "estrelinha" aos meus próprios olhos, sinto-me qualquer "coisita" no universo da literatura, sinto que terei semeado alguma coisa, por aí ...
E como já fiz um filho, já plantei uma árvore, e já tenho doze volumes, da reprodução em suporte de papel deste meu blogue, cumpri os desígnios do Homem, ao passar pelo planeta ...
E como trinta mil  "qualquer coisa ", é um valor que mentalmente custo a conceber, até parece que fiz o jackpot do euro-milhões !!!...

Só que  tenho um profundo "contragosto" :  Eu, que sou uma mulher de diálogo, de dialéctica, de partilha de emoções, pareço falar sozinha, como se pregasse no deserto ... porque são pouquíssimos os comentários que recebo às minhas opiniões, e até parece que não falo para ninguém ...

Dará assim tanto trabalho às pessoas que acedem, exporem-se, convergirem, divergirem, opinarem, positiva ou negativamente, face ao que exponho ??!!
Como sabem, podem fazê-lo sob pseudónimo, ou mesmo, anonimamente.
Com isso, eu sentir-me-ia mais estimulada, incentivada, desafiada mesmo, a escrever mais, talvez melhor, a superar-me ... em suma, até mesmo a ver o mundo com outros olhos !!!

Mas ainda assim, comentando ou não, não posso deixar de agradecer a todos quantos vêm espreitar, quantos passam por aqui, voltem ou não !!!

O meu  "MUITO OBRIGADA" !!!


Anamar

terça-feira, 31 de dezembro de 2013

" UMA SIMPLES ROTAÇÃO "...



O último dia de 2013 amanheceu cinzento e chuvoso, como aliás tem sido o tempo, neste Dezembro manhoso e castigador.
Cá estamos a encerrar o último capítulo da saga tradicionalmente vivida nesta altura : a passagem de ano.  A mudança do ano velho que nos deixa, para o ano novo que se  inicia, e de que não sabemos nada.

As pessoas saúdam-se com alguma euforia, com os tradicionais votos de "Bom Ano" !

O que será "Bom Ano", e porquê esta euforia ???

Reli o post que no ano passado ( já passaram trezentos e sessenta e cinco dias, portanto ), escrevi a propósito, também no dia de hoje, e juro-vos, fui tentada a fazer "copy-paste" do mesmo, porque se o fizesse, tudo encaixaria na perfeição, para o ano que agora parte.
Nada se alterou substancialmente, ou melhor, tudo quanto era negativo e assolava a nossa gente, se agravou e agravou-se dramaticamente ...
As vidas pioraram, o desemprego é uma chaga que não fecha, a miséria das famílias acentuou-se, as pessoas jogadas nas ruas, também, a precariedade fez disparar a emigração, os desajustes sociais são cada vez mais gritantes, o desespero e o cansaço têm levado gente demais, a atingir situações limite.
A  insatisfação  grassa,  o desânimo  também, a  tristeza  generalizada  ( ao  invés  dos  slogans governamentais ), instalou-se, e sente-se efectivamente um espírito desistente, entre todos.
Uma espécie de coisa consumada, uma qualquer maré alterosa e desgovernada, contra a qual já não adianta erguermo-nos.
O povo português está anestesiadamente conformado, parece-me.
O povo português está sem força anímica, porque sem esperança, ou  fé  na  reversibilidade  do  estrago feito ... Bem ao contrário, aliás !

Entretanto, o Algarve, a Estrela e não só, têm os hotéis lotados, têm ceias de réveillon a duzentos e muitos euros por pessoa ... que se esgotaram, e ainda que se quisesse, hoje, já não se conseguiria o lugar e o entretenimento, para meras escassas horas .
E são sempre os mesmos, que têm esses privilégios !

Acho que as pessoas se atordoam, brincam de serem felizes entre as dez da noite e a madrugada, num divertimento "plastificado" muitas vezes, creio, forçado, socialmente adequado à ocasião, ao evento e ao tipo de "sucesso", que normalmente essas pessoas sempre exibem, na vida ...
E depois amanhã, junto com o vestido de festa, despem também essa alegria postiça, retomam muitas vezes a infelicidade e o vazio que são as suas vidas,  tantas vezes sem muito mais significado, além da futilidade, do "faz de conta", da "peça teatral" que encenam, e exibem diariamente.
Penso que há gente demais, cujo registo é exactamente este ...

E depois há os outros.
Os que fazem as contas, ou não, e ainda conseguem engendrar uma festinha modesta e particular, em casa, rodeados de amigos, com a genuinidade do afecto, de amizades muitas vezes de largos anos, transversais a vidas partilhadas, em histórias que se foram cruzando, neste nosso caminhar ...
Apostaria, que estarão autenticamente mais felizes, no intimismo de uma lareira acesa, de um bom vinho, de algumas vitualhas na mesa, e gargalhadas e alegria espontâneas.
Os votos trocados são seguramente mais sinceros, o carinho circula pelas veias de todos, porque aquelas pessoas, são, por qualquer razão, pertença umas das outras !!!

Já tive passagens de ano exactamente assim, e recordo-as com profunda saudade ...

E depois há ainda, os que numa espécie de exorcismo, parecem querer  auto-punir-se, não sei bem de quê ( o ser humano, gosta de se vitimizar de quando em vez, saboreia um toque de masoquismo, numa chamada de atenção, que visa suprir desequilíbrios emocionais e afectivos ).
Esses, desligam telefones, dizem que tomam, ou tomam mesmo, um comprimido para dormir, e mimetizando um "sem abrigo" cinco estrelas, vão para a cama quentinha e confortável, antes que os minutos se escoem rápido, e a  meia  noite  chegue  depressa  demais, e  os  apanhe ainda  antes  da "função" estar em acção, o que seria chato !...

Amanhã acordam azedos, defraudados, magoados com a vida, e muito, muito infelizes.
E dizem para si próprios " Merda ... tudo exactamente igual !... "
E reiniciam o caminho de sempre, só que agora amanhecem num ano novo / velho...

Afinal, a Terra fizera apenas uma rotação sobre si mesma !!!...

Anamar

domingo, 29 de dezembro de 2013

" A DEPRESSÃO DAS FESTAS "



Cada vez se ouve dizer mais : "se me apanho em Janeiro, nem acredito" ! ou "estou morta que passe esta época " !... ou ainda, em jeito de alívio : "este, já passou" !...
Normalmente são mais mulheres que homens, que o dizem.
Chama-se a isto, a "Depressão das Festas", e é um fenómeno que se tem acentuado de ano para ano, particularmente nos últimos tempos.

Quando eu era criança, não lembrava "ao careca", que houvesse alguém a "rejeitar" o Natal ou a Passagem de Ano.  Ao contrário, o Natal que era sempre uma festa simples e despretensiosa, pelo menos no meu estrato social ( a dita e desaparecida "classe média" ), era uma festa de Amor.
Amor real, verdadeiro, privilegiado.  Sentia-se a alegria da reunião, sentia-se a partilha do afecto, no seio da família.
Havia poucos presentes, é verdade, havia uma roupita que se estreava, ou uns sapatos que se ganhavam, alguns chocolates para as crianças.  Os adultos não tinham presentes, tanto quanto me lembro.
Mas a noite era feliz, plena de momentos inesquecíveis ...

Era a Missa do Galo, pela mão da avó de xaile e lenço, no gelo da noite alentejana, era a lareira, acesa sempre com o maior madeiro que o meu avô reservava todo o ano, para o efeito, eram as iguarias que nos esperavam ( e que eram feitas pelos que ficavam em casa, a minha mãe e as tias, velhas ou novas ), o lombo, os enchidos e o entrecosto, fritos no lume do chão, as filhós, as fatias douradas, as azevias, os sonhos, os mexericos, a pinhoada, o arroz doce ... tudo acompanhado pelo bom tinto da região, e os cânticos ao Menino Jesus, entoados em uníssono, por todos ...

"Oh meu Menino Jesus, da lapa do coração, dai-me da Vossa merendinha, que a minha mãe não tem pão ..."
"O Menino chora chora, porque anda descalcinho, dá-lhe tu as meiazinhas, que eu Lhe dou os sapatinhos..."
"Nossa Senhora lavava, e S. José estendia, e o Menino chorava com o frio que fazia ..."

Todos, seguramente terão lembrado, e lembram, enquanto viverem, essa festa inesquecível ... e ninguém se deprimia !
As pessoas não ambicionavam mais, não sonhavam mais alto, não tinham frivolidades, não desvirtuavam o espírito de união, partilha, dádiva e amor ...
As pessoas eram felizes !

A Passagem do Ano, também não apoquentava ninguém.
Quando eu era adolescente, a passagem do ano era sinónimo de um bailarico, na Sociedade Filarmónica Harmonia, a mais bem frequentada da terra.
As raparigas da minha família, tinham por companhia e como responsável, uma das tias, que por não ter tido filhos, tinha uma pachorra incrível para nos aturar.
A minha mãe nunca ia, mas não era preciso, obviamente.  Estávamos todas bem entregues !

Era uma emoção só, aquele baile, aguardado a semana inteira.
A sala tinha um palco, onde tocava um conjunto musical ao vivo, o conjunto "Planície", lembro bem !
As cadeiras distribuiam-se em cercadura em torno do salão.  As meninas "comprometidas", ou seja, as que tinham namorado oficial, nunca se sentavam na fila da frente, já que não seria de bom tom, dançar com mais ninguém, além do namorado.
As "disponíveis", aguardavam os acordes da música, sentadas nas cadeiras da frente, com o coração aos pulinhos.

Ao fundo do salão, existia uma sala mais pequena, onde os homens se juntavam.  A chamada "sala de fumo", exactamente porque aí podiam fumar.
As mulheres e as raparigas, não !  Não se fumava na altura, ainda ...
Não esqueçamos que estávamos no Alentejo interior, conservador e castrador ...

Quando a música começava, como numa montra, as meninas eram escolhidas para dançarem, pelos rapazes, que se aprestavam a avançar pela sala, na sua direcção, "catrapiscadas" que o haviam sido já, do fundo da sala de fumo.
Proferia-se a célebre frase : " A  menina dança ??? "
E se a rapariga declinava o convite, ou seja, dava uma "tampa", o que não era de bom tom, tal, era vexatório para o "macho" interessado !

Dançava-se em pares, classicamente.  Não havia os ritmos actuais das discotecas, em que ninguém dança com ninguém ; é tudo  "à molhada" e fé em Deus !
E dançava-se com os corpos algo afastados,  e com rostos que por vezes, tentavam "colar-se", só tentavam ... porque se o "entusiasmo" os aproximava ( e acontecia muitas vezes ), lá estava o olhar fiscalizador da tia responsável, a chamar a jovem a entrar na linha ...

Eram bailes, sem dúvida, potenciadores de uma iniciação sexual.
A liberdade dos jovens então, coibia-os de experienciarem qualquer outro tipo de aproximação.
Os namoros eram controlados pela família, sair-se só com o namorado, não acontecia ...
Existia sempre alguém, que era obrigado a fazer o frete de ser o famigerado "pau de cabeleira", ou seja, uma presença incómoda, para os que ansiavam estar sozinhos.
Normalmente uma irmã mais nova, que o namorado convencia, com um qualquer regalo, a ir dar uma voltinha, regressando ao ponto de encontro, passado determinado tempo, e dando assim, alguma liberdade e privacidade ao par romântico ...
Mas nada de mais acontecia, além de um beijo mais caloroso, de um estreitar e de uma fugidia troca de calor dos corpos, ou de uma comprometedora percepção das respostas dos mesmos, à excitação do momento ...

Tempos aqueles !!!...

Não havia portanto,  também angústias, insatisfações, traumas, balanços ( os benditos balanços traumatizantes da vida, porque nos projectam sempre  a  magoadas recordações do passado, e ansiedades do futuro ) , atribulações existenciais, com dúvidas, medos, inseguranças e incertezas, que nos "matam", na actualidade !

A vida, parece-me, corria mansa.
Não se tinha muito.  Tinha-se o necessário, que era por isso, o suficiente !!!...

O ser humano era mais feliz, tenho a certeza !  Tal como em quase tudo, é o ser humano que cria as suas próprias condições adversas de vida, e a sua própria infelicidade.
É  ele  que  estraga, que  destrói, que  mata ... e  "morre"  às  suas  mãos !!!

Saudades ... saudades, tenho  sim, da simplicidade de então, do tempo em que esta quadra nos fazia rir, afastava a solidão e a tristeza, se teimassem instalar-se, e era desejada ansiosamente ao longo  de  todo  o ano !

Em suma, a doença moderna que mina mais e mais a espécie humana, a depressão, e que é consequência da vida e dos valores que o próprio Homem escolhe para si, não existia, menos ainda a aparente aberração dos tempos que correm :  a "Depressão das Festas" !!!...

Anamar

sábado, 28 de dezembro de 2013

" BATEM LEVE, LEVEMENTE ... "



Os dias parecem túneis mal iluminados.
O cinzento uniforme e tempestuoso, abate-se sobre tudo e sobre nós também.  Chove, há vento desabrido, neva nos locais habituais do país, deixando por todo o lado uma paisagem única ...
O desconforto chega-nos cá dentro.

As gaivotas recolheram ao interior, porque há tempestade no mar.  Fui acordada pelos grasnidos, das que pousam perto da minha janela.
Alguma delas será a "minha gaivota" ?
Sim, porque houve tempo em que eu tive uma gaivota ( que perambulava aqui por cima, e pousava junto de mim, mirando-me com aquele jeitinho de cabeça inclinada e olhinhos perspicazes ), e um farrusco que parava lá em baixo, no abandono dos terraços, e de que, do meu sétimo andar, eu só distinguia os olhões amendoados, na pelagem totalmente negra.

Eram companheiros meus, sem o saberem !
E era reconfortante, por estranho que pareça, quando chegava à janela, e procurava com os olhos, os encontrava, um em cima, outro em baixo a olharem-me também ...  Sempre  me  aflorava  um sorriso  ao rosto !
Era no tempo em que a Rita já estava no fim da linha, velhinha e doente, e havia demasiado silêncio na minha casa.
O silêncio persiste, e tem dias em que eu diria, que um frio de neve, penetra no meu espaço, intencionalmente restringido ao quarto e à cozinha, e a sua brancura, que estranhamente acho aconchegante, deixa-me nostálgica, entristece-me  a alma, emudece-me o coração .

Nunca vivi em locais de tradicionais nevões.
Contactei  com a neve, ao vivo, por escassas ocasiões ;  não aprecio mexer-lhe, sofrer-lhe o frio, brincar com ela.  Mas extasia-me e emociona-me olhá-la, simplesmente, por detrás de uma vidraça, através da lente duma câmara, ou no registo de uma fotografia.
Acho que essas imagens têm muito a ver comigo, com o meu "eu" interior, o meu estado de espírito, transmitem-me uma doce solidão, que afinal já existe dentro de mim, faz parte da minha forma de sentir e estar.
E uma paz, que eu gostaria também de vivenciar, e que a vida não me traz ...

As imagens apenas corporizam os sentimentos, e descrevem-nos,  mudos, com palavras não ditas, mas eloquentes !
As imagens têm pulsão cardíaca, têm cheiro, têm som, ou melhor, têm silêncio audível ...
As imagens envolvem ...  Aquele cobertor branco e macio, acaricia e aninha ...

Será  mesmo  assim, ou  eu, que  não sou  lá  muito  certa, sinto-o  assim ??!!
Será normal sentir isto, ou não passo de um ser estranho, no isolamento em que me posiciono, por dentro e por fora, no mundo que me rodeia ??!!
Não sei !...
Reconheço-me "sui generis", bicho raro, meio adoidada, e percebo também, que não me percebam, porque eu própria me sei desenraizada, não enquadrada, não muito ligada a esta terra, por aqui !
Ainda não descobri a que mundo deveria pertencer, mas sei que neste, me sinto incómoda, defraudada, desconfortável, desinserida ... não "pertença" !...

A neve é silenciosa, como eu o sou no meu âmago.
A neve é envolvente e aconchegante, é uma carícia da Natureza, por cada floco que tomba nas folhas que restam, das árvores despidas.
A neve é uma canção dolente, uma melopeia, talvez um mantra ...
É uma música de deuses, tem uma beleza etérea e diáfana, é uma tela que o Arquitecto pinta, com a mescla de todas as cores existentes no Universo : o branco !...

Branco de paz ...
Seguramente, esse é o sentimento real que ela me transmite ...  Mas também silêncio e solidão, como disse.
Três formas de sentir, que levam o Homem ao encontro de si próprio, conduzem-no ao seu equilíbrio pessoal, mergulham-no no seu espírito, sintonizam-no no reencontro da meditação, transportam-no a um patamar superior, de ascetismo transcendental e deificante, na busca imparável da perfeição, e no caminho da melhoria !!!...

Anamar

quinta-feira, 26 de dezembro de 2013

" NO RESCALDO ... "



Mais um Natal que já foi ... Metade da "odisseia" está resolvida !

Percebem ao que me refiro, com certeza...ou seja, à obrigatoriedade calendarizada, de se festejar algo a que chamam de Quadra Natalícia.
Abomino esta época, pelos seus rituais, pela imposição feita pela civilização judaico-cristã, em que quase todos fomos criados, e que estabelece um "figurino" a que até os mais resistentes se submetem.
Eu  entro  impositivamente  nos  moldes  tradicionais e convencionais, sempre  impositivamente,  como  digo, porque  tenho  uma  família ( pequena,  apesar  de  tudo ), conservadora, onde existem três crianças,  que vivenciam a época, através do que lhes é veiculado, quer em casa, quer no colégio que frequentam, de índole eminentemente católica.

Assim, este evento não é para mim, nem mais nem menos importante que qualquer outro, e tem o mérito, e é apenas  esse que lhe reconheço, de reunir quem se gosta e se quer bem.
Eu retirar-lhe-ia qualquer outra conotação, e reservar-me-ia o direito de o revivenciar, sempre, só  e quando, me desse na "bolha" .... não mais!
Escuso de dizer que toda a parafernália material alucinada, com ele relacionado, desde a loucura das doses industriais de comida, às doses loucas de presentes e mais presentes, indiscriminadamente reclamados por crianças que teriam já obrigação e alguma consciência, ( mercê da idade ), de não ignorarem a realidade que nos cerca ... eu enjeito, rejeito e contesto ...
Mas enfim !...

Este ano, a minha mãe, pela primeira vez na vida, não quis estar presente.
Com quase noventa e três anos, já lhe é penoso aguentar uma noite que se reclama de longa, aguentar a barulheira de três miúdos em completo desvario e ansiedade, pela chegada do presumível Pai Natal ( há um deles que ainda acredita ), aguentar a deslocação do conforto de casa, ainda para mais, neste ano, com a intempérie que se fez sentir ... enfim, aguentar o sair da sua rotina diária, de nove horas da noite em vale de lençóis, jantar bem leve, e sossego de cabeça.
Dizia-me ela : "Um dia vão mesmo passar sem mim ... ", e portanto, pragmaticamente, não achou nenhum despautério, não estar presente já este ano.
Eu entendo-a lindamente, e certamente um dia, quando ela tiver efectivamente partido, talvez nao sintamos tanto a sua ausência.
Afinal, verdadeiramente, e isto o que p'ra mim é o Natal, é a possibilidade de festejarmos a Vida, quer dos presentes, quer dos ausentes, porque eles nunca morrem nos nossos corações ...

A minha filha mais nova, numa das profissões de carácter humanitário, no ramo da saúde, esteve também de Banco, durante esta noite.
Orgulho-me muito disso, apesar de não a ter tido connosco, à mesa do jantar ... Não estava ... mas estava !
E deve ser muito gratificante, particularmente nessa noite, ajudar a chegar a este Mundo, um novo ser, que inicia, sem o saber, o seu percurso, por aqui !

Há pouco, contava-me a Larissa, que é ucraniana, que por tradição, na terra dela, na mesa da consoada, sempre é posto um prato, um talher, e um copo, a mais.
No prato, "esquecem" um pedaço dos bolos tradicionais, no copo, colocam um pouco do vinho que degustam, sendo que, tudo isto permanece na mesa ao longo das festas.
Sobre  as campas, deixam migalhinhas  do  pão  e dos bolos da ceia,  para  que  os  passarinhos  as encaminhem ...
"Corporizam" dessa forma, a memória dos que não estão mais entre nós !...

Enfim ... o que se sonha, o que se deseja, o que se concretiza, o que se recorda ... o que se espera ... ou o que já não !...
Tudo  isto  será  Natal !...
E  se  reduzirmos  o  seu  significado, ao  seu  REAL  significado ... tudo  isto  será AMOR !!!...


Reflectindo a propósito, remeto-me a um pequeno texto de Pessoa, que me chegou às mãos, como prefácio de um livro que me ofereceram :

"Cada um cumpre o destino que lhe cumpre,
E deseja o destino que deseja ;
Nem sempre cumpre o que deseja,
Nem deseja o que cumpre "
                                                                                                             Fernando Pessoa

Anamar                                     

sábado, 21 de dezembro de 2013

A "TERRA"...



Costuma dizer-se, que quem nasceu em Lisboa, não tem terra .
Isto, porque a capital é um puzzle de peças, de todo o país.  Foi portanto trazida à cidade, uma multiculturalidade tão diversa, que penso que verdadeiramente sua, em tradições e costumes, é inexistente.

Estou a pensar na quadra que atravessamos, o Natal, que como exemplo, continua a levar as pessoas " à terra " para o passarem, porque lá encontram os seus, as suas raízes, tradições, as vivências que os terão acompanhado ao longo da vida.
A " terra" ... aquele torrão onde nasceram, que as viu crescer, onde se perceberam gente, um dia, e onde estão enterrados os que já partiram, onde as coisas e as memórias lhes fazem sentido.
Os cheiros são nossos, as cores são nossas, os sons também são nossos, e sempre se opera um milagre de uma tão grande fusão, que nos aquece por dentro !

Vêm os emigrantes, chegam os migrantes, busca-se um sentido de vida, apelativo a partilha, sobretudo, e muita cumplicidade ... porque há uma linguagem, uma qualquer corrente emocional e afectiva, comum a todos, que nunca nos deixam  indiferentes.
Essa, a razão de uma urgência na viagem, uma pressa de chegada, uma alegria interior que nos põe o coração aos pulinhos.
Há um entrosamento que não passa por religião, por evento social, pela exigência de calendário, pela hipocrisia que se vive na cidade grande, tão anónima, indiferente e "fria" !
A " terra ", a bendita terra, ainda guarda a ingenuidade, a pureza, e a autenticidade das coisas simples, para receber quem a busca.

Eu sou alentejana, logo, teoricamente, eu tenho " terra ".
Apenas, tristemente, nessa terra que agora me surge lá tão longe, resta-me um único familiar.
Todos os outros, são memórias, são fotografias, são vozes que ainda se escutam, são hábitos  que ainda se  recordam ... são  sítios,  apenas !
As casas estão lá, embora agora pareçam "fantasmas" nas nossas vidas.  Aquelas casas descaracterizadas, fecharam as portas que tantas vezes atravessámos, desde meninos, ao longo dos tempos;  imaginamo-las deserdadas de todo o recheio que tocávamos, inodoras dos petiscos da avó e das tias mais velhas ou mais novas, órfãs de todas as canções de Natal, partilhadas então à lareira, geladas, porque o calor dos corações já não pulsa naqueles espaços, e as alegrias já não têm veias para circularem ...

E sentimo-nos repentinamente espoliados, roubados injustamente.  Parece que o justo, seria que tudo aquilo continuasse a ser nosso, tivesse sido nosso "ad eternum" , fosse pertença intocável ... as coisas, os sentimentos, as vivências, mas sobretudo as pessoas ... E que tudo o mais, não faz sentido !...

Já não vou portanto, à "terra" ...

Agora, como filhós de contrafacção, como rabanadas atamancadas pelo fabrico em série, sonhos, que muitas vezes, de tão enzeitados, viram pesadelos, azevias a fingir que são as " nossas ", roubadas no recheio de grão, e que eram feitas por aquelas mãos sábias, que se foram .
E mesmo o bolo-rei, que ainda tinha prenda e fava, e que lá não existia, começa agora aqui, a ser já enteado na mesa da consoada ... Ninguém lhe pega !...

Aqui, é frequente o bacalhau comprar-se já empratado, porque não há tempo para confecções ( as pessoas trabalham no próprio dia da consoada ), e também já não é com as couves, as batatas e os ovos, regado com o bom azeite alentejano ( o  que  já  não  garante,  obviamente,  a  almejada  "roupa velha"  no  dia seguinte ) ... mas sim um "rafiné" bacalhau "à qualquer coisa" ... ;
o perú chega-nos feito também, e com um bocadinho de jeito, até fatiado mesmo, porque é muito mais prático ser só aquecê-lo no forno, em cima da hora ;
os doces, serão três ou quatro, e não a prodigalidade que decorava aquelas mesas gulosas, de antanho.
Não incluem seguramente o arroz doce, bordado desmesuradamente  com canela, pela avó, nem a aletria, nem o leite-creme, que serão substituídos por algo menos "prosaico", e consequentemente mais criativo e "requintado" ...

O cheiro da caruma a crepitar não se ouve já, os fumos a saírem das chaminés na noite gelada, também não se vêem mais ...
O aquecimento central, de muitos apartamentos de hoje em dia, pretendem substituir as "nossas" cúmplices lareiras, são confortáveis, impecavelmente "clean", e adequados ao requinte da casa ...
Por isso tudo,  fica aquela coisa "desasada", desenxabida, insossa, do Natal das pessoas sem "terra" !!!...

Bom, mas depois há ( e são cada vez mais ), os que têm por tecto, as estrelas quando brilham, qualquer portada mais resguardada ( onde os deixem ficar ) como cama, os cartões e alguns cobertores com que se cobrem, os andrajos que nunca despem, e o gelo da noite que nunca perdoa ...
E  ... que pelo menos o sono misericordioso os invada, e os proteja de pensarem ou recordarem, a " terra ", e o Natal que um dia tiveram, ou não !!!...

Anamar