sábado, 13 de julho de 2013

" INTERMEZZO"



Escrevi  muito pouco durante a minha estadia em Zanzibar.
Foram, aliás, umas férias, digamos, um pouco atípicas.
Dir-se-ia que entrei na modorra de África, e fui engolida por uma espécie de adormecimento do espírito.
Embebedei-me da beleza natural, atordoante, senti a displicência da despreocupação inerente a tudo o que me rodeava ... e fui deixando apenas, transcorrer o tempo.

Pela primeira vez  em circunstâncias idênticas, creio, senti-me dominada por alguma angústia.  As notícias político-sociais de Portugal caíam-me em cima, através do ciber-espaço, que sempre nos atropela, não nos poupa, e não nos deixa indiferentes em lugar nenhum do Mundo.
Como seria abençoado, piedoso, saudável mesmo, que nos deixassem esquecidos no outro lado do planeta, ignorando que a laranja tem duas metades !...
Mas cada vez menos, isso é possível !
E cada vez mais, as realidades que vivemos nos atropelam inapelavelmente, e conseguem desestabilizar o nosso "eu" interior.

Depois, confirmou-se o que eu estou farta de saber, e que toda a gente sabe : nós carregamos as "nossas coisas", que pesam arrobas, nós damos-lhes outros ares, nós damos-lhes banhos, que julgamos de felicidade imaginada ( ou sonhada ), e voltamos a trazê-las, mais pesadas, se possível ...
Arejadas, mas não limpas, lavadas mas não asseptizadas ... igualmente irresolúveis !!!...

E quando saímos da bênção que é, partilharmo-nos com a Natureza gratuita e livre, mergulharmos no "pote de vitaminas" que tudo aquilo é ... e regressamos às quatro paredes do nosso quarto, à colmeia  que  é  o  nosso  edifício,  à  "marabunta"  que  é  a  nossa  cidade ...

Quando o betão começa outra vez a elevar paredes, e a agigantar-se, fechando-nos os horizontes ...

Quando o sol começa a empalidecer, os cheiros a esmorecerem, as cores a acinzentarem ...

Quando o som do silêncio que nos sufoca nas horas de solidão, aumenta desmesuradamente os decibéis de volume ...

... percebemos que exaurimos o balão ansioso, das espectativas criadas, esvaziámos as reservas das ilusões cultivadas, gastámos até esgotar, a fé ( que na verdade o não chegou a ser ... sempre soubemos ) , e que tudo não passou de um "intermezzo" inventado, de uma frase largada entre parêntesis, de um daqueles sonhos efémeros, que acaba sempre, no melhor ponto da história !!!...

Anamar

sexta-feira, 12 de julho de 2013

" ÁFRICA"



Iniciei alguns, dos poucos apontamentos escritos durante a minha estadia no arquipélago de Zanzibar, com o texto que constitui o meu post anterior, que colhe e encerra a emoção dos meus primeiros momentos em África.

África ... um continente que não mais voltei a pisar, desde os meus vinte anos, e que por isso faz parte do meu imaginário de juventude.
Contudo, reencontrei a "velha" África, com o misticismo, a magia, o carisma, que não se descrevem. Apenas se sentem !

São  irrepetíveis  em qualquer outro lugar do mundo, todas as sensações, toda a emoção, todo o despertar de alma, que só ali se vivenciam ...
Não há outro local, onde os cheiros sejam aqueles, onde a terra que pisamos tenha o vermelho daquela, como o das flores das acácias, onde as cores tenham a intensidade que ali nos exibem, desde as da natureza selvagem e virgem, às dos panos, com que as mulheres se envolvem, da cabeça aos pés ...
Não há outro canto do planeta, onde a vida corra mansa, amodorrada na sombra dos coqueiros, dos embondeiros, dos baobás, das palmeiras, das acácias, das miríades de árvores, centenárias e generosas no aconchego ...

Lá, onde as areias são brancas e finas, como farinha nas nossas mãos, o mar tem todos os tons de turquesa, azul, esmeralda, verde, prateado,  que a mente humana nem concebe, e que nenhum pintor reproduz.
As águas são absolutamente transparentes e cristalinas.
Os fundos adivinham-se, e esses jardins submersos, encerram uma multiplicidade de cores, de formas e de vida, que nos extasiam !
Se a maré está baixa e os leva até lá longe, os pescadores, munidos de arpões, "catam", junto ao recife de coral, o sustento diário ...
Ou embarcam nos "dohws" ou nas "ngarawas", embarcações rudimentares e artesanais, com que, a poder da força dos braços, impulsionadas por um pau, ou com a tradicional vela triangular de Zanzibar, navegam à bolina.


As populações são paupérrimas, as condições de vida, coisa de verdadeira sobrevivência.
Vive-se da terra que tudo dá, vive-se do mar que tudo dá, vive-se com a alegria do sol quente, estampada nos rostos, sem ansiedades, ou inseguranças, com a postura de quem sabe, que a simplicidade e a sapiência da vida, se resume a vivê-la ... diariamente !...

A língua nacional é o dialecto "swahili", e a religião, vivida com o fundamentalismo que lhe conhecemos, é, obviamente, a muçulmana.
Ela condiciona a vida, os hábitos, os trajes.
A burka, a abaya, o khimar, o hijab, são permanentes na vivência feminina, desde a infância, e escondem rostos lindos de todas as idades

A cultura é polígâmica.
Cada homem tem relações maritais com várias mulheres, e de todas elas, tem todos os filhos que vierem.
A mulher é socialmente subalternizada.  O islamismo confina-a  a um lugar muito específico.
Ela é objecto de procriação, e garante da manutenção da  família.  Ela desempenha todos os trabalhos domésticos, familiares, e desce aos campos para os amanhar.
Também avança pelo mar adentro, na recolha de algas, para secar e vender, se as águas as oferecerem.

Zanzibar é a "ilha das especiarias".
O seu aroma picante e adocicado, impregna o ar, tempera os alimentos, magistralmente confeccionados,  conforta o espírito e desperta os sentidos.
Por ela os portugueses passaram e deixaram marca, na demanda da Índia, nos idos anos do século XVI.

E é numa praia deserta, olhando para o azul turquesa do oceano, que Zanzibar mostra todo o seu charme.
para nos apaixonarmos por esta ilha, cheia de mistérios, não é preciso mais do que isto !!!...


              "Karibu,  Zanzibar" !....  "Djambo !...



Anamar

quinta-feira, 11 de julho de 2013

" E VOLTEI ... "



Quando eu vejo o mar,
este mar lascivo e sedutor, que apenas se deita e espreguiça, lânguido, num convite sem pudores ...

Quando eu piso a areia, de mansidão, e bebo a brisa que passa ...

Quando oiço os pássaros no coqueiral,  e em todas as mil árvores e plantas que desabrocham, em explosão de verde ...

Quando o sol me beija e embala, sem pressas ...

Quando os cheiros de todas as especiarias do mundo, se misturam, picam o ar, e o adocicam ...

Nessa altura então, eu esqueço o Mundo, e sinto claramente, que aqui cheguei numa maré qualquer, há gerações e gerações ... e aqui fui largada, no meio das algas, das conchas e dos corais ...
e adormeço em paz ...

... quando eu vejo o mar !...

Anamar

terça-feira, 25 de junho de 2013

" ATÉ JÁ ! "



Estou sem tempo.
Hoje falta-me o tempo útil que me sobra quase sempre.  Aquele que me leva a pensar, maturar ideias, reflectir, sentir, balancear tudo ... demais ... exaustivamente.

Estou de partida, pois como vos disse, houve um dia lá atrás, em que me deu "a louca" ... lembram-se ?
Um dia em que senti aquela inadiável certeza, que teria que  "fugir" daqui, sem apelo nem agravo. Teria que levar os meus problemas a banhos ... teria que pôr o coração de molho, para o refrescar e apaziguar !...

E vou.
Vou para a  terra das especiarias, das areias brancas e águas cristalinas, vou para os mares cortados pelos "dhowas" ... vou para o calor quase equatorial ... onde se apela aos sentidos, seguramente.

Contar-vos-ei !

Por  ora,  vou  perseguir  esperançadamente, a convicção  de  Saramago :  "É preciso andar muito, para se alcançar o que está perto " !....

Tenho a certeza que ele sabia do que falava !!!...

Deixo-vos o meu abraço bem apertado ... e ... até já !!!

Anamar

domingo, 23 de junho de 2013

" O LABIRINTO "



O sol deu lugar à lua.
Esperou que ela despertasse e se elevasse, imponente, no céu.
Era um sol imenso, uma bola de fogo laranja, a arder no firmamento, descendo lá para onde estará o mar ...
Do outro lado, uma bola de prata erguia-se, desde Monsanto ( uma super-lua cheia em perigeu, neste solstício de Verão, como não se verá nos próximos tempos ), a fazer-me sentir ainda mais só ...

E de repente, o tempo deixou de ter tempo, e sempre falta tempo para sentirmos que afinal há vida ...
As cerejas pousadas na mesa, o vinho esgotado na garrafa, os pratos vazios, o CD ainda na aparelhagem.
Os olhos humedecidos pelas lágrimas que correm ... sempre correm, na impotência de fazer parar o tal  tempo.
O que foi dito, e o que infinitamente ficou por dizer, e nunca será dito, porque o tempo é isto ...

No canto da alma, a certeza do outro, tão perto e tão longe ...
E o rio de permeio, de corrente alterosa, águas agigantadas e revoltas, sem pontes já erguidas, a mostrar onde ficas tu e onde fico eu.
E passarão dias e noites, e sóis e luas ... e o lugar daquela cama, guardará o calor do teu corpo, e a expressão do teu rosto estará para sempre, nos espelhos desta casa.
O contorno das mãos que me passeiam a alma e o corpo, escondem segredos que só elas conhecem ... e vão escondê-los para sempre.

Porque há um "para sempre" entre nós, e há um "nunca" também !...

E os caminhos seguiram-se a outros caminhos, e o emaranhado das veredas da serra, confusas e labirínticas, cerraram-se à nossa volta, com as raízes cobertas de musgo, das árvores centenárias, a sufocarem-nos, como tentáculos de polvos gigantes.
E a luz difusa do fim  de  tarde, coada por entre as ramagens, foi escurecendo os atalhos, e as clareiras deixaram de ter flores silvestres a despontar, porque não havia mais luz que chegasse.
Nem o sol nem a lua, nos iluminaram as vidas ...

E andámos perdidos tempos demais.
Cansei-me de deixar fiapos do meu vestido, nos carrasquinhos, a marcar os destinos ...
Cansei-me de te gritar a minha solidão, como o lobo uiva em noites de lua, no silêncio da penedia ...
Cansei-me de soluçar em estertores de morte, junto às fontes da floresta ...
Cansei-me de pedir às ondas das ravinas, que te acenassem recados, que nunca vinham devolvidos nas marés ...
Cansei-me de apanhar ramos de todas as flores que eu conhecia, perdidas nas falésias sobranceiras ao mar, que era azul e verde e prata e cinza ...

E até as flores amarelas sem nome, as margaridas selvagens, as madressilvas, as pedras e as conchas, definharam nas minhas mãos ... porque se foram esquecendo de como era sonhar ...

E fui adormecendo um sono sem cor ... um sono sem sonhos ... um sono sem desejos, vontades ou creres ...
Porque passou tempo demais, e eu fiquei entorpecida do cansaço da espera, fiquei entontecida da exaustão do percurso, fiquei esgotada do labirinto insolúvel,  desesperançado, sem ar e sem volta, que é a minha existência ...


 


Anamar

sábado, 22 de junho de 2013

" AS MÃOS "



Olhei as minhas mãos ... Não as conheço !
Fugiram de mim sem me avisar.

Estas mãos estão cobertas por uma folha de papel ressequido, e pregueado pelos instantes que declinaram na linha do tempo, ano após ano.
Sobra pele, mirrou o conteúdo, e por isso, aquela teve que se encolher em quadrículas labirínticas, desenhando um reticulado de padrão uniforme.
Por ele, circulam linhas azuladas mais ou menos salientes, no descarnado da estrutura.  São arbóreas, correm como rios que soubessem exactamente onde é a foz.  São como troncos de árvores, que tivessem perdido a folhagem, no pico do Inverno.

As manchas castanhas do "sarapintado" da vida, salpicam-nas. São sempre mais.  Todos os dias são mais ...
Não me incomodam.   São manchas que não doem, não ardem, não causam prurido.  Nada .
São apenas manchas silenciosas de sinalização.  São "lembretes" diários, ali, frente aos meus olhos.
Implacáveis ... a recordarem-me que são viajantes chegados agora.  Não vieram comigo.  Assaltaram-me o percurso, quando o percurso já ia longo !

Lembro as mãos do meu pai, pouco antes de morrer ...
Mal lembro o rosto, mas lembro as mãos pálidas, largadas ao abandono da cama.
Lembro a estrutura óssea adivinhada, que mantinha aquela pele que as cobria, onde não havia carne, só pregas, e "estradas" azuis que enchiam e esvaziavam, conforme a posição que ocupavam.

Penso nas mãos da minha mãe, que deixaram de ser sensíveis, deixaram de ter firmeza ou capacidade de preensão.
Mãos que seguraram, que prenderam, que abraçaram com determinação, abrem-se hoje como uma rosa envelhecida que deixa cair as pétalas, inevitavelmente ...

As mãos contam histórias ... demasiadas histórias .

Quando se nasce e ainda não se abriram os olhos, já com elas se agarra um dedo que nos estendam.
Não sabemos quem nos deu esse suporte, não lembramos quem nos estendeu esse dedo, nem porquê, nem para quê ... mas sabemos que o agarrámos ... seguramente o prendemos.
Foi então a primeira vez que agarrámos o Mundo !...

Com as mãos fizemos tudo. Elas foram olhos, mente e coração !
Elas tacteiam mesmo, as almas que nos cruzam.
Embalam, acariciam, falam-nos do calor do que tocamos, cumpliciam-nos poemas, sussurrados no silêncio do amor ;  balbuciam-nos ao ouvido, na doçura do afago, a certeza de estarmos juntos, quando nelas envolvem outras mãos, que por isso são nossas também ...
Prendem os nossos afectos, e cerram-se à sua volta, em nós fortes, para os não deixarem partir ...

Chegam connosco e connosco se vão ...
Como tudo em nós, carregam a marca indelével dos tempos, contam as histórias das existências, têm as memórias dos caminhos ...

Quando finalmente elas abrem, e desistem exangues, estaremos seguramente de partida ...

Anamar

terça-feira, 18 de junho de 2013

" 17 DE JUNHO DE 2013 - SEGURAMENTE UM MARCO NA HISTÓRIA DESTE PAÍS "



O meu post de hoje, insere-se naquele princípio que tenho, de que este meu espaço, além de ser prioritariamente destinado ao meu "débito de alma", deverá ser também, uma tribuna de opinião dos que a quiserem utilizar, e bem assim, um espaço de divulgação de tudo o que,  por o considerar  importante,  deverá por isso fazer notícia, e consequentemente ser divulgado.

Sendo assim, e porque ocorreu ontem o culminar de uma jornada de luta social, política e também moral, da classe docente, tão vilipendiada sobretudo nos últimos tempos, pelas medidas implementadas e a implementar pelo Governo deste país , as quais em última análise visam desmantelar e aniquilar o ensino público, trucidando, como se sabe, a classe docente, e a sua dignidade ... jornada essa que se centrou na Greve Geral aos exames do Ensino Secundário, que começavam ...

Quis aqui deixar, p'ra memória futura, alguns artigos que considerei bem escritos, objectivos e isentos, publicados por algumas personalidades, públicas ou não, para que, daqui a uns anos, nos lembremos, e releiamos os testemunhos actuais.



QUEM  TEM  MEDO  DOS  PROFESSORES ?
 
Quando a classe se une; quando a inércia se sacode; quando a doentia tendência que os professores têm para cumprirem tudo, aceitarem tudo sem um queixume, se transforma na revolta de quem já não aguenta mais; quando os professores tomam consciência do poder que detêm e o exercem, o país treme ...
Tremem os políticos ao verem escapar-se-lhes debaixo das garras dominadoras, a classe que ( justificadamente, diga-se ... ) acreditavam mais submissa, a mais sensível à chantagem emocional. Os direitos dos jovens, pois claro !
Tremem os pais ao verem ameaçados basicamente, os seus organizadinhos planos de férias, pois que outra coisa
Hipócritas, uns e outros !


Não os comovem as crianças com fome, a única refeição diária retirada das escolas, a ASAE que há anos se pôs a medir batatas e encerrou ou inviabilizou as boas cantinas escolares, agora reféns da normalizada fast food de empresas duvidosas.
Não os comovem as escolas fechadas, as crianças deslocadas, as escolas-fábrica em que cada aluno não é sequer um número, o interior do país desertificado, as longas viagens de e para casa, o tempo com a família, inexistente.
Não os comovem os livros deitados fora, que deixaram de servir porque sim: o novo programa de matemática para quê se o outro dava mostras de funcionar, o (des)acordo ortográfico para benefício de quem...
Não os comovem os professores massacrados que lhes aturam os filhos todo o dia: «Já não sei o que fazer dele, dela.., em casa é a mesma coisa.. ».
Não os comovem os alunos que querem aprender e não podem, a indisciplina na sala de aula e os professores esgotados, deprimidos, muitas vezes doentes, os professores que desabam a chorar no meio da aula, a tensão, as pulsações que disparam... e como é que se pode ensinar assim?

Não os comovem os professores hostilizados publicamente por ministras, escritores, comentadores, opinadores - e já lá vão anos de enxovalhamento!
Não os comovem as políticas aberrantes do ministério da Educação, as constantes alterações aos curricula, aos programas, as disciplinas de uma hora semanal a fingir que existem e os professores que se adaptam aos caprichos todos, formações atrás de formações, obrigatórias todas, pagas do próprio bolso algumas.
Não os comovem as condições de trabalho e de saúde de quem lhes zela pelos filhos, as horas insanas passadas na escola, as tarefas sem sentido e as outras, o tempo e a disposição que depois faltam para tudo o resto que fazem em casa, preparar aulas, orientar trabalhos, corrigir testes, as noites que não dormem e... amanhã aguenta-te que não são papéis que tens à frente, mas sim pessoas!

Não os comovem vidas inteiras de andar "com a casa às costas", 10, 20, 30 anos contratados (dantes chamavam-se 'provisórios'), de Trás-Os-Montes ao Algarve e é se queres ter emprego. SEMPRE assim foi até conseguirem um lugar no quadro de efectivos numa escola - e agora aos 40, 50, à beira de vínculo nenhum! - as regras que mudam, a reforma que se alonja, a carreira de há muito congelada, os sucessivos cortes no salário, os impostos uns atrás dos outros e depois... cara alegre que tens a responsabilidade de ensinar, formar, educar os nossos jovens, futuro deste país ou de outro para onde imigrem, será mais certo.

E eu digo, professora que fui, professora que serei sempre e já não vos aturo: VÃO-SE FODER com as vossas preocupações da treta, a vossa chantagem e as vossas ameaças, os vossos apelos aviltantes. E não, não peço desculpa pela linguagem, que outra não há que dê a medida da raiva.

Quem é que vocês, políticos, associações de pais, pensam que são?

Vocês, que destroem tudo o que de bom se tinha conseguido neste país? Que promovem o regresso à miséria, ao cinzentismo, à ignorância? Que se estão borrifando para os alunos e as famílias, a qualidade do ensino nas nossas escolas públicas? Que tiram ao Estado para darem aos privados? Que acabam com apoios onde eles eram vitais, aos alunos mais pobres, aos alunos com deficiências? Que despedem psicólogos e professores do ensino especial? Que, em exames, recusaram tempo extra aos alunos que a ele tinham direito? Que não fazem nada para promover a educação, os vossos podres serviços públicos reféns do vosso oportunismo, da vossa falta de valores, do vosso cinismo?

Vocês, que atacam os professores mas lhes confiam os vossos filhos? Que não os educam em casa, mas esperam que eles o façam na escola? Que agora defendem a "mobilidade especial" quando antes defendiam a estabilidade, se queixavam de que as crianças mudavam de professores todos os anos? Que não percebem que um professor maltratado é um profissional menos disponível para os alunos que tem à frente? Que a luta dos professores é a luta pelos vossos filhos, pela qualidade da sua educação, pelas oportunidades do seu futuro?

E vocês, opinadores "de bancada" que continuam a achar que os professores trabalham pouco e ganham muito, por que se queixam agora desta greve (três meses de férias, é?!), quando nunca antes se queixaram das condições miseráveis em que vocês próprios sempre viveram? Por que não se queixam dos dinheiros mal-gastos destes políticos? Por que não se queixam de um serviço público de televisão que vos embrutece e vos torna prisioneiros de quem vos engana todos os dias, vos impede de terem pensamento próprio? Por que não se queixam da razia deste governo sobre os funcionários públicos, dos serviços que vão funcionar muito pior, das horas de espera que vão aumentar nos hospitais, nos centros de saúde, nos correios e nas repartições todas, a "má-cara" de quem, maltratado, vos vai atender com pouca paciência e muito cansaço?

A vocês que, pelos vistos não sabem o que é uma greve, nunca vos vi defenderem os professores do vosso país. Vi-vos aplaudirem uma ministra que vos "ganhou", "perdendo-os". Vi-vos porem-se contra eles, ao lado dos filhos que vocês não souberam nem se preocuparam em educar. Vi-vos irem às escolas apenas para insultarem ou ameaçarem os que nela todos os dias "dão o litro" para que os vossos filhos sejam melhores que vocês, tenham as condições de vida que vocês não puderam ter.

Os professores não estão de férias, como vocês, que tudo julgam saber, gostam de apregoar.
Os Professores estão em greve. Finalmente! Os Professores levaram anos a aguentar pauladas. Anos e anos a serem, eles, prejudicados. Agora fazem greve, dizem BASTA!
Vocês, deviam fazer o mesmo, assim a educação que a escola pública vos proporcionou vos tenha garantido sentido crítico, pensamento autónomo e DIGNIDADE.

MILAN KEM-DERA

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    RECADO AOS PROFESSORES (acerca das greves) 

    DE UM PAI E ENCARREGADO DE EDUCAÇÃO

    Tenho ouvido por aí dizer, que se prejudica o bem-estar dos alunos, que por sua vez, têm visto os seus orçamentos familiares reduzidos ao mínimo, e quando cada vez mais são os casos em que vão para as escolas sem refeições.

    Tenho ouvido por aí dizer, que se prejudica os programas das férias dos alunos e dos seus pais, férias estas sem subsídios, no entanto, já pagos aos boys.

    Há quem fale também, numa estabilidade familiar dos alunos, que será prejudicada, quando as famílias cada vez mais vêem os seus rendimentos passados em recibos verdes, cheques caridosos da segurança social, ou nalguns casos ... reduzidos a zero, com as malas feitas para ir tudo morar para a casa da avó, porque os pais (dos tais alunos), não têm como pagar a renda da casa, morada do seu quarto, dos seus haveres, e de grande parte dos episódios do seu universo afectivo.

    Tenho ouvido pessoas dizerem, que a prioridade das escolas não são as lutas entre governo e professores, mas sim os alunos, mas que são as mesmas que fecham escolas aos mesmos alunos, os correios aos pais dos alunos ou os centros de saúde, aos avós dos alunos.

    Anda aí quem apregoe, a qualidade de um sistema de ensino público, quando, no entanto se quer reduzir o número de professores ao mínimo, ou se transfere para lucrativas empresas privadas de amigos, a "responsabilidade" da educação em Portugal, em processos muito pouco claros. Empresas estas que depois contratam professores tornados low-cost pela "conjuntura económica adversa".

    Anda aí muita gente a dizer muita coisa ...

    A função de um professor é ensinar,
    não só Matemática, ou Português,
    Inglês ou Filosofia ...

    Podem então desde já, ensinar aos miúdos, como se luta por direitos, contra as precariedades que se querem impor às pessoas, e como se garreia contra um sistema injusto.

    Ensinem-lhes o que è a luta cívica. E podem começar o próximo ano lectivo, logo na primeira aula, a contar a vossa história, aos milhares e milhares de alunos em Portugal.

    Ensinem-lhes carácter ! ... que é aquilo que muita gente que eu ouço por aí falar de alunos, não tem.

    Joao Anonimo

             

Os professores, por José Luís Peixoto

Um ataque contra os professores é sempre um ataque contra nós próprios, contra o nosso futuro. Resistindo, os professores, pela sua prática, são os guardiões da esperança.


Um ataque contra os professores é sempre um ataque contra nós próprios - José Luís Peixoto
Um ataque contra os professores é sempre um ataque contra nós próprios - José Luís Peixoto

O mundo não nasceu connosco. Essa ligeira ilusão é mais um sinal da imperfeição que nos cobre os sentidos. Chegámos num dia que não recordamos, mas que celebramos anualmente; depois, pouco a pouco, a neblina foi-se desfazendo nos objectos até que, por fim, conseguimos reconhecer-nos ao espelho. Nessa idade, não sabíamos o suficiente para percebermos que não sabíamos nada. Foi então que chegaram os professores. Traziam todo o conhecimento do mundo que nos antecedeu. Lançaram-se na tarefa de nos actualizar com o presente da nossa espécie e da nossa civilização. Essa tarefa, sabemo-lo hoje, é infinita.
O material que é trabalhado pelos professores não pode ser quantificado. Não há números ou casas decimais com suficiente precisão para medi-lo. A falta de quantificação não é culpa dos assuntos inquantificáveis, é culpa do nosso desejo de quantificar tudo. Os professores não vendem o material que trabalham, oferecem-no. Nós, com o tempo, com os anos, com a distância entre nós e nós, somos levados a acreditar que aquilo que os professores nos deram nos pertenceu desde sempre. Mais do que acharmos que esse material é nosso, achamos que nós próprios somos esse material. Por ironia ou capricho, é nesse momento que o trabalho dos professores se efectiva. O trabalho dos professores é a generosidade.
Basta um esforço mínimo da memória, basta um plim pequenino de gratidão para nos apercebermos do quanto devemos aos professores. Devemos-lhes muito daquilo que somos, devemos-lhes muito de tudo. Há algo de definitivo e eterno nessa missão, nesse verbo que é transmitido de geração em geração, ensinado. Com as suas pastas de professores, os seus blazers, os seus Ford Fiesta com cadeirinha para os filhos no banco de trás, os professores de hoje são iguais de ontem. O acto que praticam é igual ao que foi exercido por outros professores, com outros penteados, que existiram há séculos ou há décadas. O conhecimento que enche as páginas dos manuais aumentou e mudou, mas a essência daquilo que os professores fazem mantém-se. Essência, essa palavra que os professores recordam ciclicamente, essa mesma palavra que tendemos a esquecer.
Um ataque contra os professores é sempre um ataque contra nós próprios, contra o nosso futuro. Resistindo, os professores, pela sua prática, são os guardiões da esperança. Vemo-los a dar forma e sentido à esperança de crianças e de jovens, aceitamos essa evidência, mas falhamos perceber que são também eles que mantêm viva a esperança de que todos necessitamos para existir, para respirar, para estarmos vivos. Ai da sociedade que perdeu a esperança. Quem não tem esperança não está vivo. Mesmo que ainda respire, já morreu.
Envergonhem-se aqueles que dizem ter perdido a esperança. Envergonhem-se aqueles que dizem que não vale a pena lutar. Quando as dificuldades são maiores é quando o esforço para ultrapassá-las deve ser mais intenso. Sabemos que estamos aqui, o sangue atravessa-nos o corpo. Nascemos num dia em que quase nos pareceu ter nascido o mundo inteiro. Temos a graça de uma voz, podemos usá-la para exprimir todo o entendimento do que significa estar aqui, nesta posição. Em anos de aulas teóricas, aulas práticas, no laboratório, no ginásio, em visitas de estudo, sumários escritos no quadro no início da aula, os professores ensinaram-nos que existe vida para lá das certezas rígidas, opacas, que nos queiram apresentar. Se desligarmos a televisão por um instante, chegaremos facilmente à conclusão que, como nas aulas de matemática ou de filosofia, não há problemas que disponham de uma única solução. Da mesma maneira, não há fatalidades que não possam ser questionadas. É ao fazê-lo que se pensa e se encontra soluções.
Recusar a educação é recusar o desenvolvimento.
Se nos conseguirem convencer a desistir de deixar um mundo melhor do que aquele que encontrámos, o erro não será tanto daqueles que forem capazes de nos roubar uma aspiração tão fundamental, o erro primeiro será nosso por termos deixado que nos roubem a capacidade de sonhar, a ambição, metade da humanidade que recebemos dos nossos pais e dos nossos avós. Mas espero que não, acredito que não, não esquecemos a lição que aprendemos e que continuamos a aprender todos os dias com os professores. Tenho esperança.
Artigo de José Luís Peixoto, publicado na revista Visão de 13 de Outubro de 2011



Carta aberta ao Professor Nuno Crato


Caro Professor Nuno Crato,

Acredite que é com imenso desgosto que lhe escrevo esta carta aberta.

Habituei-me, durante anos, a ler e a concordar com o muito que foi escrevendo sobre o estado do ensino em Portugal. Dos manuais desadequados à falta de exames capazes de avaliar o real grau de aprendizagem dos alunos; do laxismo instituído à falta de autoridade dos professores; do absoluto desconhecimento do que se passava nas escolas, por parte do Ministério da Educação à permanente falta de materiais e condições nas escolas. Durante anos, também eu me revoltei com a transformação da escola pública em laboratório de experiências por parte de políticos, pedagogos e supostos especialistas em educação. Foi por isso com esperança que me congratulei com a sua nomeação para Ministro da Educação do actual governo.

Por isso, Professor Nuno Crato, me surpreende que, à semelhança dos seu antecessores, não tenha sido capaz de resistir à tentação de transformar os seus colegas de profissão nos maus da fita, mandriões, calaceiros, incapazes de trabalhar míseras 40 horas por semana. Surpreende-me e entristece-me.

Sabe, Professor Nuno Crato, sou filho de professores e durante a minha infância e adolescência habituei-me a compartilhar o meu tempo, os meus livros, os meus cadernos e muitas vezes o meu almoço e o meu lanche, com os milhares de crianças que, ao longo de anos de esforço e dedicação, eles ajudaram a educar pelas aldeias mais recônditas do nosso país. Habituei-me a aguardar pacientemente a sua chegada tardia, os trabalhos para corrigir, as aulas para preparar, para que restasse um pedaço de tempo para uma história, uma conversa, um mimo. Nunca lhes pressenti na expressão uma nota de arrependimento, antes de felicidade, por um trabalho que adoravam fazer e que eu adorava que fizessem. E, não imagina o orgulho que sentia quando nos cruzávamos com muitos dos seus ex-alunos e lhes via no rosto uma expressão doce de eterna gratidão - Se não tivesse sido o Senhor Professor ...não sei o que teria sido de mim!

Depois, casei-me com uma professora e voltei a ter de me habituar a compartilhar o meu dia-a-dia, o meu computador, os meus tinteiros, os meus dossiers, o meu papel, as minhas canetas, com milhares de outras crianças e adolescentes. Voltei a ter de me habituar a aguardar a sua chegada tardia, os trabalhos para corrigir, as aulas para preparar. Com a diferença de agora, a tudo isso, se somarem milhares de páginas de legislação para ler, a grande maioria escrita num português que envergonharia os meus pais e grande parte dos seus ex-alunos; dezenas de relatórios para redigir; novas metodologias de ensino para estudar; manuais diferentes de ano para ano para analisar; telefonemas para pais de alunos problemáticos a efectuar; acompanhamento de alunos com dificuldades, reuniões de pais, reuniões de avaliação, reuniões de preparação, reuniões de grupo, assembleias de escola, visitas de estudo, estudo acompanhado, aulas de substituição, vigilância de exames. Confesso que ao longo dos anos, fui conseguindo roubar à escola, um pouco de tempo para mim. Mas, mesmo desse tempo roubado a custo, muito era passado a falar da desmotivação generalizada causada pelo desleixo, pela falta de objectivos, pela ausência de meios, pela violência, pela falta de autoridade, enfim, por tudo aquilo que o Professor Nuno Crato tão bem descrevia nas suas análises.

Durante estes muitos anos a viver com professores, nunca me passou pela cabeça perguntar-lhes quantas horas trabalhavam. Mas, fazendo um esforço de memória, sou capaz de contabilizar os milhares de horas que o seu trabalho para a escola roubou à minha família. Os milhares de refeições em conjunto que não se realizaram, os milhares de conversas que não pudemos ter, os milhares de madrugadas passadas em claro, os milhares de filmes que não vimos juntos, os milhares de musicas que não ouvimos, os milhares de livros que não lemos, os milhares de passeios que não demos.

Não sei se esses milhares e milhares de horas perfazem as tão badaladas 40 horas de trabalho por semana que agora se discutem, mas sei que se fosse professor estaria a favor dessas 40 horas de trabalho semanais, desde que realizadas integralmente na escola, sem nunca mais, ter de trazer trabalho para casa, de gastar uma gota de tinta do tinteiro da minha impressora, de ocupar um byte de memória do meu computador, de usar uma folha da minha resma de papel, de ocupar a minha sala com trabalhos de alunos, de perder as minhas noites, os meus fins-de-semana, os meus dias de descanso com a preparação de aulas, reuniões ou relatórios. Se assim for, pelo menos, numa coisa os professores passarão a ser efectivamente iguais a todos os outros funcionários públicos, que deixam o seu trabalho e os seus problemas laborais na porta de saída da repartição.

Infelizmente não acredito que assim seja e o que acontecerá é que os milhares de professores, mal pagos, mal amados, maltratados, continuarão a acumular às 40h que agora se pretendem instituir, milhares e milhares de horas de trabalho gratuito roubadas às suas famílias, ao seu descanso, ao seu lazer, pelo simples motivo de se orgulharem de ensinar e não permitirem que os mesmos políticos, pedagogos e supostos especialistas em educação instalados no Ministério há anos, destruam a essência da sua profissão.

Caro Professor Nuno Crato, é por isto que os seus colegas de profissão estão em greve e não entender isto é não entender nada sobre educação. Por isso, não se admire se um destes dias forem eles a fazer aquilo que o professor tanto prometeu, mas não teve coragem de cumprir: implodir o Ministério da Educação em defesa da educação em Portugal.

João A. Moreira, em 14.06.13


Anamar

domingo, 16 de junho de 2013

" O EFEITO BORBOLETA "



Tocar a alma com os bigodes ...

Eram cinco horas da manhã.  O Chico deu três miados, e foi à vida dele.
Foram só três miados, mas insuspeitos, convincentes, assertivos !...

Que mania eu tenho de que tudo deve fazer sentido, tudo tem que fazer sentido !
Não é verdade !  Até porque cada vez menos as coisas se encaixam, cada vez menos se regem por lógicas, cada vez mais o caos impera.
O caos é uma forma de arrumação.  O caos é uma norma de vida.
Há quem não saiba vivê-la de outra forma, que não caoticamente.

A gente tenta por vezes "in extremis", viver nesses parâmetros, já que a vida não se esgota em certezas ou em evidências, e frequentemente não nos sobra mais escolha.
E tentamos ajustar-nos então, a esse estado de entropia incómoda, o melhor que podemos ... Só que por vezes, não podemos muito ...

Desde sempre ensinei o significado dessa grandeza física, que se relaciona exactamente com o estado caótico de um sistema, e que em linguagem de vida, se me traduz pela "incomodidade" interior, pela perturbação latente, pelo tumulto e instabilidade que atormentam o ser humano, pela convulsão da alma .
Mais prosaicamente ... pela falta de paz !

E é claramente evidente, a diferença entre viver-se em paz ou não, respirar-se tranquilidade, ou não !...
A paz dá-nos sonos repousantes, a paz dá uma bonomia, uma compreensão e tolerância para com a vida e os que nos rodeiam, espantosas ... dá uma sensação de plenitude, vontade de viver, garra e alegria, esfusiantes.
Com paz interior, sem sobressaltos ou angústias, tornamo-nos gigantes todos os dias, passamos a ser capazes do impossível, predispomo-nos para o improvável, temos tolerância para o inultrapassável, aceitamos o inaceitável ...

Apenas, já teremos ouvido falar na célebre "Teoria do caos" de Lorenz, em que se afirma  que uma pequena variação nas condições em determinado ponto de um sistema dinâmico, pode ter consequências de proporções inimagináveis.
"O bater de asas de uma borboleta em Tóquio, pode provocar um furacão em Nova Iorque."
... o designado  "Efeito Borboleta", o qual ilustra a sensibilidade, a precariedade e a vulnerabilidade, de um sistema em estado caótico.
Um sistema em estado caótico, é um sistema beirando a ruptura, é um sistema em risco de precipício, susceptível de fácil desestruturação.
Eu diria que é um sistema que padece de uma doença, enferma de uma diferença, foge aos padrões tradicionais de aceitabilidade.

Analogicamente, no ser humano podem aplicar-se as mesmas conclusões.
De facto, é exactamente verdade, que  se  o seu  interior é  de elevada entropia emocional, conflitualidade de estados de espírito, perturbação objectiva ... se é o caos que se vive, se é precário o equilíbrio existente, e é no arame que se caminha, muitas vezes sem rede protectora por debaixo ...
Se é a tactear que se avança, titubeantemente, como se os olhos estivessem vendados ... então, qualquer roçar de bigodes na alma, pode, de facto, desencadear um alvoroço na mente, um furacão existencial,  e um cataclismo no coração, irreparáveis ...
Eu diria, em suma, um desastre irreversível, duplamente mais difícil de conter, uma sangria inestancável, de consequências imprevisíveis e dimensões avassaladoras !!!...


Anamar

domingo, 9 de junho de 2013

" IRRELEVÂNCIA "




Há sonoridades, há dias, há cores ... iguais a palavras.

Por isso as palavras são dispensáveis.  As palavras quase sempre são dispensáveis, e não conheço nada mais precário, incompleto e desacertado que elas.
Nunca as palavras têm cheiro,  nem emoção, nem calor, nem luz, suficientes  para serem verdadeiras.
Por mais que as busquemos e rebusquemos.
Por mais que nos convençamos que achámos os vocábulos certos, ou pensemos que os inventámos, justo na hora ...
Nada disso.  Eles sempre são de menos.  Nunca carregam metade sequer, daquilo que eu quero dizer em cada momento.
Defraudam-me o coração, enfurecem-me a alma, ruborizam-me o rosto de raiva, pela impotência e pela imperfeição, ao transmitirem o que parecia tão óbvio e claro, dentro de mim.

Ao contrário ... quando escuto uma música, poderia emudecer, porque ela transporta um código indubitável.
Ela, só por si, é uma mensagem escrita sem texto, da minha emoção ao momento.  Por isso  escolho essa, e não  outra !
Ela fala por mim, ela suplica por mim, ela dá-se por mim, e confessa até, o que os meus lábios não ousam dizer ...

Também, as cores com que me envolvo e que me cobrem, que invento ao meu redor, para o meu mundo, falam ... também falam ...
Por isso, o sol mergulha na corola das flores amarelas sem nome, ou explode nas mimosas selvagens.
Por isso, o amor e a ternura  adormecem por entre as pétalas inebriantes, das rosas de Sta. Teresinha ...
Por isso, a paixão se veste do fogo das rosas vermelhas, e a paz se recosta docemente, nos ramos azuis da lavanda dos campos ...

Os sons então, são indizíveis !...
O resmalhar do vento na folhagem, ou o seu sibilo na falésia desnuda ... o açoite da rebentação nos rochedos, ou a canção do marulhar, da água mansa de um riacho ... a doçura de um sussurro apenas, quando se repousa a cabeça confiante no ombro amado, ou o soluço de uma mágoa que se escapa do peito ... dizem tudo, desvendam tudo ... e silenciosamente, são absolutamente fiéis e concisos.
São objectivos, não deixam dúvidas, não denunciam incertezas, nunca mentem ... porque não sabem mentir !...

Por tudo isso, os "Nocturnos de Chopin" que oiço e me embalam num berço de baloiço, são iguaizinhos ao dia de hoje no meu coração, são iguais ao modorrento pardo deste céu uniforme parado, e iguais ao cinzento vazio, assustadoramente vazio, deste nove de Junho, em que o Mundo parece ter parado por aqui ...

Ausência de vida, quietude absoluta ... silêncio entediante e fantasmagórico ... nostalgia de existência ...
Aqui, neste quarto, apenas há sombras, solidão, imagens que fogem, dias da minha vida que voam, como penas que fossem largadas pela janela, em dia de vento ...
pecinhas soltas de puzzle desajeitado, que teima em não se consertar ...
coisa doída que escorre, coisa corrosiva que mata, lenta e maquiavelicamente ... como o transcurso dos dias ... como a fuga de vida ...

Anamar

sexta-feira, 7 de junho de 2013

" JÁ FAZ TANTO TEMPO !!! "




Lá longe eu sei que o sol se está a pôr.
As nuvens em novelos escuros, encerram este dia pesado, desenquadrado de um Junho, quase Santos Populares, que se quereria quente.
Aqui, a penumbra cerra e encerra na escuridão do fim de dia, este meu quarto, onde me sobra a janela, qual tribuna por sobre o casario ...  Queluz, Monte Abraão, Massamá ... Sintra, que mais se adivinha, do que se divisa.

Estou desconchavada de alma.
Sei lá o que é que isso é ...  Mas seja lá o que for, é exactamente o que eu estou, tenho absoluta certeza.
O sol foi descendo e compondo aqueles momentos mágicos, de sombras chinesas, em que vezes sem conta o supomos definitivamente desaparecido, e vezes sem conta, de novo, ele se anuncia no esconde-esconde de baile de máscaras, por detrás do encastelado do céu ...
Espreita aqui, segundos depois espreita ali, projecta caminhos de luz por entre as nuvens, como focos varredores, de farol no penhasco ...  Apaga-se, para se acender apenas num ai, altivo e poderoso, anunciando simplesmente que o rei vai dormir.
Estou meio amortecida, física e mentalmente.  Não me apetece pensar.  Parece que me sinto febril, e a cabeça lateja-me.

O Rodrigo morreu, no IPO.
O Rodrigo era um menino talvez de cinco anos, que sossobrou na luta contra a leucemia, que arrastava há tempos, num frente a frente titânico.
A fragilidade da sua figurinha  pálida, definhante, vinha anunciando que a batalha estaria a perder-se ...
A palidez do seu rostinho esquálido, onde dois olhões bem vivos pareciam jamais se poderem apagar, a ausência de cabelo, indiciador da Via Sacra percorrida, as maçãs do rosto salientes, exibindo a magreza que se estendia a toda a figurinha, contrariavam o sorriso que o menino da chucha sempre exibia nas fotos, onde pedia que alguém o ajudasse, na busca pela compatilidade de medula.
Hoje o Rodrigo, que eu nunca conheci, foi com o sol, neste dia pardo e penumbrento.
Cansou-se de esperar um milagre, e deixou-se levar nas asas do anjo que lhe bateu na janela ...

Silêncio ... demasiado silêncio por fora, mas sobretudo por dentro de mim.
Os crepúsculos em que até os gatos param, sempre me comprimem o coração.  E quando o coração se comprime demais, como um repuxo, pula o dique, e vasa.
Porque ... raios ... esta coisa estrangulante, tem que aliviar por algum lado, como o furo onde tínhamos o dedo, e que destapámos.

Gostava de ter um sentido na minha vida.  Não viver apenas porque os dias se sucedem, e isso é tempo, e tempo é vida que vai indo.
Gostava de ter uma linha de chegada qualquer.  Até podia estar lá longe, como este sol a pôr-se ... Mas haver uma meta a atingir ... Já era bom que eu a enxergasse.  Não ter apenas aquela sensação de ver o percurso a escoar-se, de virar esquinas, dobrar caminhos ...
O sonho chega, o sonho parte, e eu acredito já em muito pouca coisa.  Sinto que um  isolamento progressivo, bate diariamente à minha porta ...

Eu julgava que as palavras aproximavam as pessoas.
Mas não !
Senão, tu perceberias perfeitamente que quando digo que te amo, o meu amor vem embrulhado em mimosas e madressilvas.
Como antes ... Tal como no tempo das gaivotas, dos seixos no areal, dos dias azuis sem chuva, e horizontes laranja.
Tal como no tempo em que tu ainda me fazias sentido, e eu ainda te fazia sentido ...

Entretanto esquecemos as palavras ... curtas que eram !...
Esquecemos que elas nos punham em fogo, e desabrochavam sorrisos quentes, nos lábios ...
Esqueceste como era doce, a laranja amarga da minha boca, ao beijar-te ... e como eram cheirosos os bouquets de lavanda e rosinhas que jogavas aos meus pés, quando eu ainda era a imagem com que dormias, e que te aquietava os sonhos, nas noites distantes e frias ...
Já faz tanto tempo !...
Foi ontem ... mas parece um século !...

Entretanto o Rodrigo já brinca com as borboletas, no meio dos anjos e querubins, de bochechas róseas, nos jardins lá por cima ...
E juro ... não me parece nada bem, estar aqui a falar de mim !!!...

Anamar

terça-feira, 4 de junho de 2013

" BASTA ESTAR VIVO !... "



Já escrevi muito sobre este café. Ele também é casa minha, de todos os dias.
Pr'aqui caminho, à hora de sempre, para o pequeno almoço de sempre ( igual todos os dias ), encontro os rostos de sempre, irrito-me com as coisas de sempre ... e sempre penso, e sonho, e reflicto ... e até choro ... não sempre ... algumas vezes !
Este café é a casa possível, é a família próxima, possível.

Temos a outra. A que está lá fora. A que trabalha, faz a vida, tem os filhos, as responsabilidades, a realidade sempre corrida.
Aquela que se faz sentir, de longe, pelos telefones, quase sempre. "Mãe ... está tudo bem ?"... "Mãe, estás com voz chocha !"... "Não tenho nada ... que disparate ! Está tudo normal !"...

E o que é estar tudo normal ?
É garantir que os dias não trouxeram até ao momento, demais sobressaltos ou sustos, que a mansidão, a mornidão, o adormecimento, o entorpecimento ... a solidão e o desânimo, vão dando para aguentar por aqui.
É respirar, é dormir, acordar, é entrar, é sair de casa,  é rodar na engrenagem ( porque ela tem que girar, não pode parar ) ... é velar p'ra que nada significativo desequilibre, este instável e sempre precário equilíbrio, que é Viver...

E é tentar não remexer muito nos "baús" interiores. É conter a tempo e horas, esta onda corrosiva que tem a mania de amarinhar pelo peito, que acelera os tique-taques cá dentro, que estrangula a garganta, que continua a trepar, põe os olhos incontroláveis ... e sobe mais ainda ... e amarfanha a alma !
É quando tudo desaba, como aquele castelo que os meninos conseguiram construir com cartas, e uma corrente de ar matreira, deita por terra, juntamente com os seus sonhos e a sua alegria .
Quando isso acontece, tudo rebenta, como os diques de levada ... e nós ficamos sem condição de nos aguentarmos.

Hoje estou assim !

Cheguei ao café, e contaram-me que a D. Madalena, de quem já falei algumas vezes, e sobre quem já escrevi sobejamente, está hospitalizada, por ter sofrido um acidente doméstico, e ter ficado muito maltratada.

A D. Madalena, aquela senhora "pata-choca" no andar, com óculos de fundo de garrafa, de voz em falsete, que sempre ri atontadamente, que tem a bonomia da inconsciência dos apoucados ... vive só, com um cãozito, sua única companhia, depois da morte do marido, depois da morte da mãe, depois do caniche branco ... depois de ter envelhecido ... mais ...

A D. Madalena vive actualmente na minha praceta, frequenta os meus sítios, e é impossível não se gostar dela  ( um gostar envolvido em alguma benevolência, quiçá comiseração ... )
A D. Madalena era a última pessoa merecedora que lhe tivesse acontecido uma desgraça ( se alguém merece ter desgraças na vida ).

E agora ?  Como se irá desenrolar a sua vida, à mercê da boa vontade dos vizinhos, dos conhecidos, dos amigos de café ou de missa?
Como será estar tolhida na sua cama, talvez com o cachorro solidário aos pés ( porque eles nunca nos abandonam ), alongando o olhar pela folhagem das árvores da praceta ( que lhe alcançam o nível da janela ), vendo o azul do céu lá fora, neste Junho que amanheceu quente ... esperando que uma alma caridosa lhe meta a chave à porta, e lhe leve da rua, um pouco da vida que se faz cá fora ?

Como será fazer parar a correnteza do presente, pensar a incerteza do futuro, colocar o existir em banho-maria ...  assim, num ápice, do dia para a noite, como uma onda gigante que submergisse tudo ... até os sonhos que julgo a D. Madalena não ter ??!!

Chega estar vivo, p'ra se morrer a seguir ... verdade de La Palice .

Há muitas formas de se começar a morrer, em vida ...

Anamar

segunda-feira, 3 de junho de 2013

" ESTE MUNDO QUE ESCOLHEMOS ... "



Estamos no mundo do medo, do silêncio, da não aposta, nas relações humanas.
É um mundo de incoerências, é uma sociedade que se queixa do isolamento e do ostracismo, e os cultiva !

Sobretudo  nas  macro-realidades  sociais,  como  são  as  urbanas,  com  toda  a  sua  carga  de afastamento   físico  entre  as  pessoas  ( encurraladas em "colmeias", que têm  "quilómetros" de distância entre o esquerdo e o direito da cada andar, ou entre os andares do mesmo edifício ), ninguém conhece verdadeiramente ninguém, ninguém sabe verdadeiramente nada mais de ninguém, além do óbvio, do superficial e do socialmente correcto.

Depois há todo o mundo da solidão, as horas do vazio, a ausência física de vida à sua volta.
No fim de cada dia, cada um, carregando a sacola dos seus problemas, angústias e dores, fecha-se no seu espaço, e fecha-o, quando corre a lingueta da fechadura ... por mais umas horas.
A engrenagem retoma-se no dia seguinte, em que de novo, cautelosamente, os seres humanos se reaproximam na devida dosagem, sem grandes entregas, com partilhas controladas, com cautelas redobradas, com compromisso programado, com trunfos nas mangas, com aproximações dinamitadas ...

Eu diria que as únicas relações desarmadas e potencialmente verdadeiras que existem, são ainda as da adolescência.
Aquelas que se estabelecem entre pessoas "virgens" nas experiências relacionais, pessoas que ainda não foram magoadas, não têm cicatrizes, estão imbuídas de uma ingenuidade e de uma confiança, que a inconsciência do desconhecimento do que é viver, efectivamente lhes confere.
Depois o caminho desenrola-se, e essas mesmas pessoas, primeiro, de uma forma incrédula, depois sentindo-se injustiçadas, depois ainda, revoltadas, finalmente conformadas ... começam a formar o seu próprio espólio de mágoas, de desilusões, de descreres, de desaposta, de desinvestimento, e começam a ganhar a postura cabisbaixa do conformado perdedor, de quem vai carregando um fardo, gradualmente mais pesado, que não tem  alívio  possível...

E as pessoas isolam-se.

Ninguém está emocionalmente equilibrado.   As pessoas  sofrem, as pessoas anseiam outra coisa, outro futuro, outra janela ...
E esforçam-se, algumas até se esforçam.  Outras capitulam, e encontram sucedâneos para se "distrairem" da vida !

Entra aí o relacionamento virtual, muitas vezes ... a sacada mais próxima que se tem à mão, para se abrir.
Só que essa pseudo-solução, é isso mesmo.  Uma pseudo-solução, uma panaceia, um "analgésico" no coração.
Não é mais do que uma alternativa, um substituto, um "genérico" ... um faz de conta !

Efectivamente, por essa via, as pessoas "pensam-se" acompanhadas, mas "sabem-se" sozinhas, absolutamente sozinhas.
Nada é como parece, porque por detrás do "virtual", há obviamente o "real" ... e esse, quase sempre não confere !

E o vazio do cansaço instala-se, mais bravo ainda , mais destruidor, mais defraudante do que antes !...

Contudo, aparentemente de uma forma incoerente, o ser humano não arrisca pôr em causa a realidade de que desfruta, insatisfatória, sem horizonte e sem perspectiva ;  desgastante, desmotivadora, cansativa, desinteressante e sem cor ... para partir para uma outra, que teria hipóteses de ser gratificante ou não, na medida de meio por meio ... só porque essa tentativa lhe exige empenhamento, lhe exige esforço, lhe exige coragem na quebra de hábitos instalados, o força a romper rotinas que enjeita, e de que se queixa ...

E  cobardemente não aposta.  Comodistamente não avança um passo, e prefere apodrecer na insatisfação, no lamento, e na mediocridade da sua vida ...

Para mim, entendo-o como sinal de envelhecimento, de incapacidade de operar mudanças, de falta da saudável ingenuidade, e da fé, do querer e do crer muito, que tivemos um dia !
E por isso, há velhos aos trinta, aos quarenta, aos cinquenta, aos sessenta ...
E tenho pena !!!...

E assim vamos vivendo ... ou vegetando ... ou mascarando com uma pílula dourada, a incompletude, a frustração e a desilusão doída, deste "fazer de conta" que é viver ...

Até quando ??

Bom, até que nos convençamos que nada há mais a fazer, que a capitulação e o depor de armas é o que resta, que a falta de coragem será a nossa última companheira de vida, e nos acomodemos ... aparentemente nos conformemos ... e definitivamente encostemos  às "boxes" !!!...

Mas aí ... estaremos mofados, apodrecidos, mortos ... e fizemos de conta que não demos por isso !!!...

Anamar

sábado, 1 de junho de 2013

" VIAJANDO ... "


 

As "flores amarelas sem nome", ganharam um, de repente e inesperadamente.
As flores amarelas sem nome, que vivem largadas nas falésias, desafiando ventos, sol e tempestades, são as "cantarinas", afinal ...

Engraçado, como eu preferia quando elas eram simplesmente flores amarelas sem nome ...
Engraçado, como eu as preferia antes de se desvendarem.  Porque eram apenas flores amarelas, viviam nas falésias de vento enlouquecido, e pertenciam à minha história.
Agora, pertencem à história de toda a gente ... podem pertencer à história de quem as chamar de "cantarinas" ... porque de "flores amarelas sem nome", tenho a certeza que só eu as chamava ...
E o encantamento de apenas serem chamadas por mim, porque fui eu que as baptizei, quebrou-se.
A aura mística e adocicada de serem flores minhas, esvaziou-se ...

Muitas coisas nas nossas vidas, têm razão de ser, apenas enquanto são coisas nas nossas vidas.
Quando começam a ter nome, identidade ... quando se despojam do nosso "não saber" acerca delas, perdem metade do fascínio, e ficam doídamente vulgares .  Passam a ser para nós, exactamente o que são para muita outra gente.
Deixam de ter a exclusividade de apenas sorrirem para nós, de apenas iluminarem os nossos caminhos, de deitarem poalha de esperança, apenas nas nossas mãos.

E como nos sentimos importantes, quando temos coisas apenas nossas, quando merecemos participar dos códigos secretos que são isso mesmo, secretos, ou quando simplesmente, flores se dividem connosco ... mesmo que se chamem de "cantarinas" !...

É como o sol.
O sol que se deita sem pudor, todos os dias, no horizonte longínquo, frente ao meu sétimo andar, é o "meu" sol .
São os meus olhos, que o vêem, é o meu coração que dispara, no bate-bate, por cada minuto em que ele declina, é a sua fotografia, desenhada por mim, escolhida por mim, e vivida por mim, aquela que me extasia a cada passo do baile, com que brinca nas nuvens carregadas, de Sintra ...

Ninguém vê, ou sente, ou usufrui daquele sol, como eu, imóvel, estática, sem respirar ... não vá ele assustar-se e fugir mais depressa, naqueles momentos que eu desejo perpetuar.
Jamais serei capaz de "o" contar, a quem quer que seja, jamais serei capaz de explicar como ele é indissociável do meu viver, e como é por ele que espero acordar na manhã seguinte ...
Porque sempre penso que neste Mundo, muitos que o vêem adormecer, já não o vêem acordar ...

Por que será que o ser humano não pára, enquanto não conhece, não descansa enquanto não desvenda, não sossega enquanto não sabe ... ou enquanto não julga saber ??!!
Mas depois, quase sempre fica mais pobre, porque o limite do sonho fica a anos-luz da melhor realização.

Nunca o que vemos ou julgamos ver, é a verdade.
Não existe "a verdade".  Tudo é resultado de uma mera projecção nossa interior, fruto de tantos vectores condicionantes, que arrisco dizer, que hoje, um dia de sol e céu azul, é na verdade um rigoroso dia de Inverno ...
Apenas eu, preciso de luz na minha alma !...
Por isso, já Picasso eloquentemente dizia, que há quem num borrão amarelo, acenda um sol, e quem, reduza o próprio sol, a um mero borrão amarelo !!!...

Bom ... chega de insanidades !...

Acho que as "cantarinas" das falésias, não podem plantar-se em vasos.  São livres demais para isso.
Senão, eu faria com elas um viveiro, bem na minha janela, porque enquanto as olhasse, teria a secreta certeza de me passear nas arribas, frente ao mar e ao sol sobranceiro, tal qual como quando elas eram  apenas  "flores amarelas sem nome" ... e pertenciam à minha história ...

Anamar

quarta-feira, 29 de maio de 2013

" OS SILÊNCIOS "



O silêncio deste café, tem dias ...
Como todos os silêncios têm provavelmente dias, horas, anos ...
Há anos de muito silêncio, na vida das pessoas.  São aqueles em que o hoje é demasiado igual ao ontem, e o ontem, uma cópia do que fora há um mês atrás.
Quando a mansidão, a excessiva mansidão se instala, fica aquela coisa igual a um rio em tempo de seca, que mal corre, seca os charcos, apodrece, gera solidão ... mata a vida !
Aí, o silêncio instala-se.  O gorgolejo da água, que é sempre fresco quando ela corre, dança e serpenteia por entre pedras, deixa de se ouvir.  Tudo adormece.  E a Vida afasta-se ...

Eu não sei viver  "em silêncio".  Tenho a sensação de que ele sempre me encurta a vida.
Há gentes que vivem amodorradamente, sem turbulência.  Aliás, acredito que cada vez mais pessoas anseiam viver dessa forma, anestesiadas do percurso.
Eu sou demasiado inquieta e desinquieta, para ficar na beira do caminho, a sentir apenas o vento ... O vento e o silêncio que ele carrega.
Eu, sou da terra onde ele mais existe. Onde o espaço é longo e a vida é curta !

E por isso, silencio para dentro, quase sempre.
Embora o não deseje, há momentos que o decreto na minha existência .  É quando percebo então, que ela se escoa aceleradamente, e quando penso como o seu avanço nos remete mais e mais, inapelavelmente, para o tal silêncio ... o definitivo, o que ficará um dia ...

Neste momento da minha vida, ando um pouco assim .  Ensimesmada, cinzenta, meio morta ...

À minha volta, coisas que me mexem, me mexeram, reduziram-lhe a "velocidade" da marcha.
A morte de mais uma colega de trabalho, uma passagem pela escola, para confraternizar num aniversário de uma outra que ainda está no activo ... deixaram-me sensações estranhas, na alma e no coração !

Constato, sem surpresa, contudo, que a  "segunda casa" da  minha vida, se transformou num local penoso, neste momento, apesar  de, dele estar afastada, há três anos.
E isto deixa-me estupefacta e reflexiva, pois não seria espectável ... é logicamente inexplicável ...
Por outro lado, continuo a emocionar-me, numa emoção doce e terna, como se me me deixasse envolver numa espécie de útero de afectos, ao rever os colegas e amigos que ainda por lá estão.
É como se tivesse voltado ao encontro de um "chão", de uma "língua", de um coração gigante e colectivo, recheado de sentires, preocupações e partilhas, que foram nossos ...
É uma mescla de sentimentos, todos a atropelarem-se ao mesmo tempo, todos a quererem subir à garganta em uníssono, todos a levarem-me lá atrás, a um tempo que foi uma vida também ...

E de repente, outra vez  linguagens iguais, gargalhadas comuns, beijos, abraços e promessas,  que nem o tempo, com a sua capacidade injusta de esquecimento, conseguirá adormecer para sempre ...

E tudo isso me deixou com a  melancolia que se experimenta, quando numa boa história, vamos voltando uma após uma, as páginas do livro, em direcção ao seu epílogo ... sem remédio ...

Hoje  precisava que um qualquer tsunami agitasse a minha "praia", precisava que me despejassem a "caixa de aguarelas" em cima, precisava de um software topo de gama, que me acelerasse os batimentos cardíacos ... porque, não "me gosto", como ando ...
Eu sou uma pessoa de exageros e de excessos.  Essa, a minha "marca" ...
Para me sentir viva, preciso de estar, ou muito bem, ou muito mal, de estar no auge da felicidade, ou na mais completa e inenarrável desgraça.
No fundo, preciso de um motivo para "me sentir" ... para "me valer a pena" saber-me viva ...
Quando deixo de o ter, quando fico invisível perante mim mesma, quando o indiferentismo me toma conta, quando o tal "silêncio" se me instala, alguma coisa não está correcta comigo ...
De alguma coisa eu estou a desistir.  A Vida ficou-me demasiado vulgar, parda e quieta, e começou a tornar a minha vida, numa "não vida" , como a que se respira todos os dias, à mesma hora, nos silêncios deste café que adormece ...
... Dia, após dia ... após dia !...

Anamar

quarta-feira, 22 de maio de 2013

"A LENDA DA MOURA"



Atingido o cimo da encosta, já se divisava bem, do outro lado, o que restara ...

As ruínas estendiam-se, abrangendo todo o espaço por ali abaixo, perdidas numa terra que parecia morta.
O mato rasteiro crescia seco, pelo meio delas.  Nunca mais, nada que valesse a pena, conseguira vingar naquele lugar.
Antigamente havia uma estrada que galgava a pequena montanha abrigada, ladeada então, de vegetação frondosa e confortante, na subida.
O alto daquele monte, por onde meia dúzia de casas rasteiras se empoleiravam a esmo, permitia uma vista deslumbrante, donde, em dias de céu limpo, se descortinava mesmo, o mar intensamente azul, em fundo, lá longe ...

Samira viera habitar aquela aldeia perdida em nenhures.
Ninguém a conhecia.  Não conhecia ninguém.
Chegara em silêncio, num dia de muito calor, em que nem o chilreio da passarada, se deixava ouvir.
Viera ocupar a última casa do povoado, a que ficava no fim do caminho, com uma cisterna de água límpida debaixo da tileira de copa generosa e verdejante, e uma figueira como as da sua terra, mais além ...

De pele tisnada pelo sol que castiga os tuaregues no deserto, cabelos longos e crespos, largados pelas costas e envoltos no manto, quase sempre descalça, usava vestidos compridos e soltos, que tocavam o chão.
Por que viera, quem era, o que procurava, o que escondia ... ninguém sabia !

Samira deambulava pelas encostas, prendia uma ou outra flor do campo, nos cabelos, e sentava-se à tardinha, no alto dum penedo, sempre virada para o mar.
Estática, esfíngica, silenciosa, ali se perdia, até o sol tombar na linha azul do horizonte.

A história de Samira virou mistério, naquele povoado ínfimo, encosta acima.
Havia quem garantisse que, pelas noites dentro, ela chorava, num pranto de dar dó ...
Havia  quem  garantisse que ela falava com alguém, numa língua hermética e não perceptível pelas gentes dali ...
Havia quem garantisse que a via bailar como louca, quando a lua subia no céu e ficava imensa, clara e luminosa ...

Naquela noite medonha, as casas foram acordadas por um clarão laranja que acendia o firmamento, e tornava dia, a noite de breu.
Uma fornalha parecia escancarar as goelas, e querer engolir tudo e todos.  Os estalidos da madeira crepitante, as faúlhas incandescentes arremessadas em todas as direcções, e as línguas das chamas alterosas, desenhavam um monstruoso fogo de artifício, num quadro dantesco e alucinante.
As gentes fugiam, e os animais desciam a encosta, em desnorte, enquanto o vento que então se levantou, espalhava mais e mais as labaredas, num prenúncio de Inferno, em total descontrole...
Tudo cessou, apenas quando não restava mais que pedra sobre pedra, quando o negro do desespero cobriu tudo, quando até a terra parecia ter ficado queimada, e um cenário apocalíptico se abateu naquele lugar !

De Samira,  nunca  mais ninguém  ouviu falar ...
A tampa da cisterna jazia no chão ... Porquê ?  Nunca se soube !...

A aldeia das seis casas, amaldiçoada por um qualquer  desígnio inexplicável, tornou-se um lugar fantasma e deserto.
As ruínas ficaram entregues à sua sorte.  Apenas a erva rasteira e seca, persistiu em medrar por entre elas.
O trilho que levava ao topo da colina, sumiu, por indefinição de percurso.  As silvas, os galrachos, os cardos e os carrasquinhos, tomaram conta de tudo.
O mar continuava azul intenso, no limite da terra, lá longe ...
O sol era castigador no tempo do calor.  Não se ouvia um som.
Até os pássaros, pareciam evitar aquele lugar maldito. Apenas os grilos e as cigarras inconscientes, o profanavam com indiferença ... ou o zumbido de uma abelha ou de algum moscardo, em passagem ...

Contudo, apesar de penoso o acesso, havia quem não desistisse de subir ao topo do monte ... às ruínas ...
... lá, onde a lenda dizia, que no resmalhar do mato se ouvia o lamento de uma moura, e no gorgolejar da água cristalina da cisterna, os soluços de uma mulher ... quando o silêncio pesava, ou a lua cheia subia no céu  escuro !!!...



Anamar

sexta-feira, 17 de maio de 2013

" E ESTAMOS ASSIM ... "






A tarde estava ventosa, endiabradamente ventosa.

Na rua, as pessoas vestidas de Verão, de um Verão que se recusa, circulavam encolhidas com frio, abanando a cabeça desaprovadora, a cada rajada de vento que soprava.

O café, não obstante, colocara na mesma, a esplanada na rua.  Os chapéus de sol, as mesas e as cadeiras, esperavam vazios, algum cliente mais intrépido.
Eu passei em passo estugado.  Afinal o sol nem se sentia, sequer.

Ouvi ... porque  inicialmente  nem  vi  donde  vinha,  a  frase  a  meia  voz : " Cada vez estou mais farto de mim e deste país " !

Olhei para trás, para ver quem desabafara daquela forma.
Tratava-se de um homem de meia idade, vestido modestamente, com um boné na cabeça, o único ocupante da esplanada do café.
Não tinha nada na mesa à sua frente ... parecia indiferente à tarde desagradável, ensimesmado "na dele" ... desalentado, derrotado, talvez revoltado ...

Momentos antes eu recebera uma sms de alguém próximo, que me dizia : "Estou cansada, sem ânimo, amargurada e sem forças.  Não sei o que fazer à minha vida " !...

Duas pessoas anónimas, , duas vozes apenas, a darem voz ao coro de vozes desta terra, que diriam exactamente a mesma coisa ;  a darem eco à turba de gente, que em encruzilhadas confusas, em ruas de volta atrás, em rotundas imparáveis, entontecem, sem se libertarem e saírem do mesmo lugar.
Gente que já não encontra horizonte esperançoso, escapatória salvadora, objectivo por que lutar ...
E a estagnação a que está condenada, destrói, desespera, tira as forças, e em última análise, mata, porque derrota, vai aniquilando aos poucos, como um verme silencioso e persistente, a corroer a carne sã.

E as pessoas morrem todos os dias um bocadinho, as famílias desestruturam-se, as relações claudicam, e os indivíduos estão cada vez mais sós, mais amargos, mais agressivos, em células sociais insatisfatórias, incapazes de os acolher com o mínimo de conforto afectivo, ou laços que os espaldem contra a imtempérie da vida, que os escudem contra marés alterosas e os reveses diários.

Hoje, quando chegou a hora de me levantar, e sem ânimo para o fazer, dei por mim a dizer para "dentro", uma outra vez : "mais um dia de luta" !...
Porque eu também tenho a minha luta, a minha angústia de vida, a incerteza do depois, a impotência face à tempestade que não se contém, porque não se pode conter ... que são minhas, mas que assimilam em si as dos que me estão perto, de coração, e a quem não posso valer.
E diariamente carrego um peso angustiante, exactamente por não saber o que fazer, como fazer, não ter soluções para nada.
E como sou muito pouco pragmática e racional, emocional e psicologicamente sinto-me acoada, desequilibrada, em pânico, quase sempre ...

Ontem, o primeiro impulso que senti quando ouvi aquela frase largada ao vento, por um desconhecido, foi de me sentar na sua mesa vazia, olhá-lo, e dizer-lhe : " Olhe, não está só !  Aqui e agora, eu sinto exactamente o mesmo " !...

Mesmo sabendo que de nada adiantaria ...
Tal  como  de  nada  adiantou  a  resposta  ao  sms, que  levei  tempos  a articular ( eu, que até escrevo com alguma facilidade ),  porque não encontrava  palavras  adequadas ( penso que simplesmente não existem, se perderam ...)

Ou, porque todas as palavras e frases que eu escolhia, eram "feitas", ocas, vazias, sem convicção ou consistência ... Apenas porque não consegui sentir em mim a mínima credibilidade no discurso, ( por eu própria nele não acreditar ... )

Porque nenhuma capacidade persuasiva, promissora de soluções ou saídas, eu fui capaz de transmitir, por forma a acalmar o receptor da minha mensagem, ou pelo menos de lhe incutir algum ânimo ou fé em melhores dias ...

E estamos assim !...

Os suicídios aumentam, o desespero leva à loucura, e cada vez temos mais gente a viver marginalmente à sociedade, em franjas de subsistência, ou sobrevivência indescritíveis ...

Entretanto o Benfica jogou em Amsterdão, e perdeu tão importante prova.
"N" autocarros lotados, deslocaram adeptos ferrenhos, membros  do  governo,  e  gente  que  deveria  estar a  trabalhar  ao  serviço  do  povo ( porque fora um dia útil ), e que à nossa conta, e sem o mínimo pudor, não abdicou de ir.
Por cá, os outros, muitos dos outros, alienaram-se, fizeram de conta que a vida é mansa, entorpecendo-se com a transmissão, vomitada por várias estações de televisão.
E vibraram, e esqueceram ...

Abençoado futebol, que enquanto render, esquecer-se-á o crédito atrasado da casa, as despesas escolares dos filhos, a prestação do electrodoméstico já vencida, e os parcos tostões na algibeira, que dificilmente fazem face ao sustento, que diariamente há que pôr na mesa ...

Anamar