quinta-feira, 19 de março de 2015

" 40000 .... já é qualquer coisa !!! "





AMIGOS

Dos quais  poucos conheço, mas que de quando em vez se deslocam até aqui, ao meu "quintal", plantando neste pedacinho de chão, os rastos das vossas passadas ...

Os quais se interessam pelos meus valores, partilham as minhas ideias, esgrimem opiniões comigo ...

Os quais gastam o seu tempo, mostram a sua curiosidade, atestam a sua fidelidade perante a expressão das minhas emoções ...

Como não me sentir sensibilizada ?  Como não me sentir orgulhosa ?   Como não me sentir agradecida ? Profundamente agradecida ?

É que, pesem embora as agruras da vida, pesem embora decepções, angústias e incertezas,  saber que desse outro lado  invisível  e  desconhecido, está gente que ao longo já de seis anos, me continua a ler, é profundamente gratificante, é sumamente estimulante,  e desafia-me todos os dias a nunca desistir da escrita, um amor que me acompanha desde que me sei ... e que é a forma mais genuína da expressão da minha personalidade !

OBRIGADA  A  TODOS !!!

Anamar

domingo, 15 de março de 2015

" A PASSAGEM "




"Aqui, estamos de passagem ... " - li hoje. Aliás, uma vez mais, porque é frase feita, e recorrente na escrita.

Reflicto e pergunto-me : Uma passagem é algo que une pontos, locais, estados, momentos...
Assim sendo, se estamos de passagem, estamos  entre o quê e o quê ?
Entre o nada e o nada, certo ?

"Felizes os que acreditam ! Deles será o reino dos céus !"... rezam as Bem-aventuranças.

Pois é, eu não acredito, e como tal, eu apenas enxergarei ( de acordo com melhores opiniões ), de uma forma pobre, triste, redutora ... sem esperança. Apenas terei hipótese de continuar cumprindo o meu degredo, desalentada, amarga, sem esse futuro prometido ... o reino dos céus !

Mas de facto, o que eu vejo é isto ... o nada que somos, antes que aquele espermatozóide se funda com aquele óvulo, naquele dia, naquele instante, quase sempre insuspeito sequer pelos nossos progenitores ... e o nada em que nos tornamos, quando de novo chegar aquele dia, aquele instante, quase sempre insuspeito, felizmente talvez ... mesmo por nós próprios.

No entretanto, na "passagem", lutamos, estrebuchamos, desesperamo-nos, cumprimos desígnios, palmilhando esta coisa que chamam de vida por alguma razão, e não de morte ... vá-se lá saber porquê !
No entretanto, convivemos com a condição mais térrea e humana, mais frágil e indefesa, menos especial e divina, de escolhidos, potenciais candidatos a uma eternidade cinco estrelas ...
No entretanto, assistimos à vil degradação da matéria que nos constitui, à volatilização das centelhas de luz, com espíritos que também eles nos vão abandonando ...
No entretanto, vamo-nos irreconhecendo, perante nós e perante os outros ...
Respiramos ainda, mal nos temos nas pernas ainda, comemos o que nos impingem, bebemos o que entendem, lavam-nos, esfregam-nos, defecamos, não ouvimos, olhamos mas não vemos, já não rimos, emitimos uns esgares de sorriso ... choramos muito ... produzimos sons, às vezes inentendíveis... pouco comunicamos ...
No entretanto, curvamo-nos mais e mais em direcção ao chão, como se ele fosse o nosso destino final, a terra, que de facto nos acolherá.  O chamamento daí emana ...
Deixamos de olhar o azul do céu.  As estrelas apagam-se no firmamento, procura-se a sombra, porque a luz do sol parece perturbar-nos já ...
As emoções não importam, cansam, tornam-se primárias, quase só. Passam pela alegria de ainda ter acordado hoje ... pouco mais. O entorpecimento tolhe a mente e o coração. Como anestesiados, não vão mais além.
É como se houvesse uma preparação ...

E é perturbador, é aterrador, é monstruoso, acreditem !
Conviver-se com o cenário dantesco da degradação e da destruição da condição humana, passo a passo, paulatinamente ... confrontarmo-nos com a impotência face a essa realidade ... percebermos como no tapete rolante todos vamos precedendo os que avançam, e que tudo é uma questão de ordem e de tempo ... é devastador, questiona-nos, levanta-nos dúvidas, causa-nos perplexidades ... assusta-nos além da conta !

E isto, e SÓ isto, é a PASSAGEM !...

Anamar

quarta-feira, 11 de março de 2015

" TALVEZ UMA MULHER COMUM ... "




Não há local mais aprazível aqui nas imediações, para um cafézinho, uma boa conversa, um solzinho ... que aqui, neste clube de golfe, sem dúvida destinado a gente privilegiada.
Tudo aqui é perfeitamente enquadrado, meticulosamente organizado, espantosamente desenhado, com aquele toque "rafiné", típico da classe cinco estrelas, da qual o golfe é cartão de visita.

Este espaço de lazer, café/restaurante totalmente panorâmico, foi concebido para que as suas paredes em vidro, nos mergulhem no "green" ondeante, uma verdadeira alcatifa  adivinhadamente macia, que convida a rebolar encosta abaixo ...
O sol de Inverno, claro e particularmente luminoso, envolvente e quente, promete uma Primavera sem retorno.
Olhando para cima, para este azul translúcido, total e sem mácula, não se acredita que possa, num qualquer dia destes, cobrir-se, escurecer e mesmo chover ainda. Afinal só vamos a meio de Março !

O horizonte é amplo, as árvores são esparsas, e estão distribuídas criteriosamente, numa moldura irrepreensível e perfeita.
São pinheiros mansos sobretudo, de copas arredondadas, não agressivas.  Ao fundo, muito lá ao fundo, numa linha quase de contorno, e como que envolta numa neblina  esbatida,  ergue-se  a  Pena, altaneira, imperativa,  com  o  seu  recorte  inconfundível  de  palácio  de  fadas ...

Este lugar é um garante do carregamento das minhas baterias.  É uma fuga ao betão, uma ânsia de zarpar, de levantar ferro, erguer vela e fazer-me, por aí ...
Venho aqui como lazer ... como terapia, também ..

Neste quase silêncio, penso na vida.

Sou da geração de presumíveis mulheres prendadas.  Mulheres cordatas, pouco reivindicativas,  bem "femininas" ... como cansei de escutar a vida inteira.
Mulheres-família,  que correspondessem ao que o inconsciente colectivo, delas esperava.
Nascidas, criadas submissas, programadas para uma saída profissional razoável, complemento do orçamento familiar, casariam, seriam boas esposas, mães, fadas do lar, e depois, dignas nas suas profissões, capazes, desempenhando-as cabal e prestigiadamente.
Filhas de mães maioritariamente domésticas, oriundas muitas delas de uma classe média com alguma estabilidade, cresciam presas a um "cordão umbilical" castrante, até casarem.
Tornavam-se por isso, mulheres acomodadas, ingénuas, pouco experientes, pouco defendidas, também.  Eram figuras complementares dos maridos, os "chefes de família" ...

Lembro que as colegas mais desenvoltas, assumidas, conseguidas, que conheci na faculdade ... as mais bem "equipadas" face ao futuro, eram aquelas que, provindas do Portugal interior, longe da família, se haviam feito à vida, estando a estudar sozinhas na capital.
Entregues a si próprias, em auto-gestão, tiveram que fazer-se mulheres inteiras, seguras, exigentes, esclarecidas, afirmativas ... de "olho aberto" ...

Como eu as invejava !  Eu, a quem a minha mãe cortou as "asas"  à nascença ...

Não fugi ao estereótipo.  Casei cedo. Dezanove anos mal acabados, uma impreparação  total de vida !
E "enquadrei-me" ... como não ?
Era impensável defraudar as expectativas.  Tive que me agigantar, o que pude e do que fui capaz.
Mantive o carril.
Fui professora, porque sempre se achou lá em casa, ser a profissão mais ajustável ás de mãe e doméstica, que obviamente acumulei.
Aprendi a "acostumar-me" ... E nada pior que nos "acostumarmos".
Isso significa alienar sonhos, por de lado projectos, ignorar vontades.  Prescindir até do direito de escolher "veredas", se quisesse ... sem ter que percorrer obrigatoriamente cómodas "auto-estradas" !...
Criei filhas, ali, no reduto da família, sem demasiadas ondas ...
Admito que poderia ter dado certo ... quiçá !  Mas não deu !

Filhas fora de casa, filhas já com vida própria, autonomia  ( elas que tiveram horizontes outros, vontades  outras,  escolhas  reconhecidas,  quereres  legitimados ... direito  até  a  errar ... )...
foi hora  de parar !...

Parar, reavaliar e olhar-me ... enquanto olhava o espelho.  Olhar-me por fora, mas sobretudo por dentro.
Hora de faxina no coração e na mente ...  Uma impossibilidade de continuar ...
E agora ?

Agora ... os cinquenta já haviam dobrado a esquina.  Mas o coração e a mente, haviam parado lá atrás.
A jovem, a rapariga que eu fora, afinal ainda existia, parecia existir  num qualquer lugar pouco identificável  pelos que me rodeavam, como se tivesse reaberto parêntesis fechados apenas temporariamente.

E agora ? - perguntei-me mil vezes.

Agora ? ... Agora estou largada numa encruzilhada, sem bagagem e sem bússola.
Agora ... escancarou-se um portão, tão mas tão grande, que eu precisava transpor, e receava.
Porque lá fora, o mundo, aquele mundo tinha uma linguagem pouco reconhecível por mim, agora que estava senhora dos meus destinos para o bem e para o mal.

Abarrotava de sonhos e esperanças numa vida nova e diferente.   Sentia  as asas crescerem-me de novo, precisava voar, p'ra me sentir viva.
Tinha devaneios  de adolescente ... mas não era suposto !
Ter creres de mulher, ter vontades e sonhos, desafiar limites ( mesmo fora de época ), permitir-me transgressões ainda que infantis ... não era compreendido !
Subverter o figurino "comportado" que se esperava de mim ... não adequado !
Reencontrar um amor, reinventar afectos ... não era também aceitável pelos que me rodeavam !  Não seria muito ortodoxo, não era pacífico ... criava constrangimentos, aos olhos habituados anos e anos a olharem-me de outra forma ...
Como se eu tivesse que criogenar "ad eternum" !  Como se eu devesse dar um nó na alma, no coração e no corpo, "ad eternum" !...
Ninguém entendia a " Primavera " que eu experimentava, ninguém entendia ou tolerava.  Ninguém percebia que quisesse vivê-la ...

E não ousei ousar.
Quedei-me por caminhos rectos, fugindo ao "almariado" de algum mar mais buliçoso que não me valeu a pena navegar.
Fui empratelando os sonhos, à medida que os anos faziam rima sobre mim.

E cheguei ao hoje.
E hoje vivo em parceria com os medos da solidão.  Vivo sentindo o peso da incerteza do amanhã, assente em ombros que já não têm a robustez de antes.
Vivo tropeçando em pedras mais eriçadas.  Vejo pouco colorido através da minha janela.  Os horizontes não são amplos, a perder de vista, como os da minha terra ...
São limitativos, e neles sempre se põe o sol.
Vou vivendo.  Vou estando por aqui sem muita convicção.  Apenas porque é assim...  Apenas porque devo estar ... porque tenho que estar !

Cumpro o desígnio da vida, sem a fé que move as montanhas dos Homens, sem a convicção que empurra diariamente esses Homens adiante, sem a esperança de superação de limites ou metas norteadoras, de objectivos válidos ... sem a força necessária a erguer-me com um sorriso por cada manhã que nasce.
Simplesmente porque a Primavera já foi, e o cansaço da estação do frio, aproxima-se ...

Bom... mas talvez eu seja simplesmente,  mais uma mulher comum !...

Anamar

segunda-feira, 9 de março de 2015

" A OLGUINHA - Crónica de hospital "


                                                                                                                 RIP

Na cama ao lado, está um simulacro de gente.  Um vegetal que já morreu, e não sabe.
Não se mexe, não interage, não abre sequer os olhos.
Fica horas esquecidas na mesma posição, aninhada em almofadas que tentam minorar-lhe o desconforto.
A máscara de oxigénio, cobre o rosto,  em grande parte.  No lábio, existe um ferimento seco, provocado pela sonda alimentar.
Nos primeiros dias ainda gemia, baixo, bem baixinho, parecendo não querer incomodar ... "socorro" ... "socorro" ...
Uma falta total de forças, e uma inanição absoluta dominam aquele farrapo humano, quase só um esqueleto coberto de pele, onde a palidez do rosto, dos braços e das mãos descarnadas, perdidas na cama, desvenda uma morte anunciada.

Como será estar-se ali ?
Como será existir-se e não se existir ao mesmo tempo ?
Será que algumas funções, além das vitais, ainda persistem ?

As visitas entram, saem, conversam.  Tocam telemóveis, entra e sai pessoal, no serviço diário de um hospital. As pessoas são indiferentes.  Afinal aquele corpo esquálido, não corresponde ao familiar que avidamente procuram com os olhos
E ela está imóvel, ausente, distante ...

E o mundo continua adiante.
E está um dia glorioso, de sol e céu azul.
E a Primavera está aí a chegar de novo, com tudo o que de promissor sempre carrega consigo.
E há vida lá fora ... há demasiada vida lá fora ...

Aqui ... bom, aqui acabaram de correr a cortina em torno da cama.
Uma busca de mais privacidade e conforto para a doente - pensei.
Uma memória doída atravessou-me.  O mesmo cenário.  O mesmo silêncio ... S. Francisco Xavier, 30 de Julho de 1992 ...

Também aqui, a morte acabou de chegar, sorrateiramente.  Também aqui a sua sombra de fantasma  aterrador,  desceu.  E  o  seu  frio  gélido,  percorre-nos  a  espinha  e  eriça-nos  os  pelos ...

A "Olguinha", como lhe chamavam carinhosamente, partiu.
Talvez tenha finalmente alcançado a paz .  Talvez tenha cessado o seu sofrimento.  Afinal o "socorro" respondeu à sua chamada ...

Que repouse em paz ...

Anamar

sábado, 28 de fevereiro de 2015

APATIA ... ( desabafo ... )



A gente parte pensando que foge.
Mas a gente não foge, sempre fica no mesmo lugar !

Ando a escrever pouquíssimo.  Aliás, não ando a escrever.  Dito de outra forma, alieno diariamente uma parte de mim, importante.  Demasiado importante.
Sinto-me ressequida.  Tão  vazia que nada tenho de relevante p'ra falar ou p'ra contar.
Estou demasiado parada na vida.  A vê-la passar simplesmente.  E isso é um perfeito desperdício, porque por muito pouco que ela valha, é a única que tenho, é o único bem verdadeiramente meu, de que disponho.
E o absurdo é que tenho consciência disso, e não tomo providências.
Sou como aquele menino que está no pátio do recreio e não brinca, só olha os outros brincando.
Ainda assim, podia sentir-se feliz, mas não sente !...

Hoje está um dia radioso.  Um dia de Inverno a enganar de Primavera.
O sol claro e brilhante, o céu totalmente limpo e azul, parece um empacotado de vitaminas para a alma.
E eu, pareço procurar o lado esconso da vida.
Logo eu, que implico com janelas fechadas, persianas descidas, cortinas corridas.  Logo eu, que implico  com  páginas  viradas,  esquinas  dobradas,  muros  altos  e  sentidos  proibidos ...
Logo eu que refilo, dizendo aos outros que tenho tempo de ficar às escuras ... no coração e na alma ...

Mas estou assim !...

E fui embora.  Fui embora sem fé.
E estranhamente, foi a primeira vez que corri o pano, troquei de cena, e em que  me senti como o actor,  que sozinho no palco, olha com cansaço e decepção a plateia vazia, num espectáculo que não se fez !
Há silêncio lá fora e dentro de mim ... Demasiado silêncio ...

Criminoso !  É um crime o que faço comigo.  É imerecido acordar viva por cada dia que começa.
É injusto existir assim, com tanta razão para existir de outra forma !!!...

Anamar

terça-feira, 24 de fevereiro de 2015

NA ORFANDADE DE UMA HISTÓRIA TERMINADA ...




A gente lê um livro e convive com aquelas histórias e aquelas personagens, tão de perto, que lhes partilhamos os estares, os sonhos, as inquietações, os sobressaltos ... a vida !
Conhecemos por dentro e por fora as suas personalidades, conhecemos os seus gostos e projectos, as suas formas de reagir, conhecemos até os seus tiques.

E enquanto lemos o livro, todos os dias os visitamos, todos os dias os escutamos, com eles nos confrontamos e dividimos tempo.
E é de tal forma o convívio, a cumplicidade e a promiscuidade até, que hoje ficamos leves e bem dispostos, amanhã pesados e apreensivos, consoante o evoluir da narração, como se as alegrias fossem nossas, e as dificuldades também.

E um bom escritor, um bom narrador, um bom autor, é aquele que consegue com as suas letras, transportar o leitor e levá-lo a mergulhar totalmente na sua ficção, por forma a tomar aquela história como sua, e por forma a que através dela, se deixe arrancar da sua, dele, realidade, se deixe alienar da sua, dele, vida !

Essa é, portanto, a componente lúdica de um bom livro : o saborear alternativo do seu enredo, o despiste do sonho e do devaneio na pertença que estabelecemos com aquela narrativa, a capacidade de ela nos expurgar da nossa verdade às vezes tão insatisfatória, criando-nos asas na mente e no coração, e depois a ilusão desenhada, de que ali, ao nosso alcance, está gente, existem sentimentos, pululam emoções.
Afinal, tropeçamos em figuras que se nos tornaram quase familiares. Gente que se tornou quase nossa também !

Depois, um dia o livro acaba.  Chegamos ao fim daquela história.
O autor fecha-nos a porta, com um último imperativo ponto final.
É como se chegássemos, nos instalássemos prontos a desfrutar, a degustar de novo, a mergulhar mais um pouco, é como se chegássemos, prontos a convocar aquela gente que já deambula nas nossas vidas, a assobiar para reunir uma vez mais ... e todos tivessem partido sem deixar aviso, sequer um cartãozinho de despedida, sequer um "ciao" ...

É assim uma espécie de traição, insuspeita e não anunciada.  Uma espécie de injustiça que como todas, sentimos imerecida.
E ficamos "desasados" ... é o termo.  Ficamos "órfãos" e ficamos sozinhos.
E um sentimento de privação, de solidão, quase de fraude, toma-nos conta.
Bolas ... Para onde foi toda aquela família tão nossa ?!  Como ousaram obrigar-nos a fechar a contra-capa, a subir à prateleira para largarmos aquele livro ao rigor do pó e dos anos vindouros, como se atreveram a ignorar este desamparo incómodo de termos de iniciar uma nova história, de termos de começar tudo outra vez ?!

E tal como na vida, ainda levará tempo para que saiamos pela porta dos fundos...
Ainda levará tempo, seguramente,  para que dispamos a roupagem da peça ora terminada, e tenhamos o espírito devoluto, desarmado e receptivo a um outro quotidiano que nos seja credível, que nos faça sentido !...

Anamar

segunda-feira, 16 de fevereiro de 2015

MOMENTO QUATRO - 12 Fevereiro


Já piso de novo terra nossa !

A Amazónia e o Pantanal transformaram-se assim, numa espécie de vivência esfumada lá atrás.
Já regressei há alguns dias.  E tudo aquilo, sinto tê-lo sonhado numa qualquer noite destas, aqui, na minha cama.
Foi uma experiência de uma intensidade tal, que parece ter sido apenas nesga de porta entreaberta, por onde se espreita, se vislumbra, se tacteia de fugida, como cena de filme  que não dá tempo para ler legendas !...

Por cá, tudo impressionantemente igual.  Tudo morno, tudo insípido, tudo pesado, tudo carregado das cores de um Inverno que sempre dá um jeito de nos penetrar até à alma.

Por outro lado, repito, teria sido absolutamente incapaz de descrever, sequer por aproximação, aquilo em que mergulhei.
Incapaz de pintar por letras, as cores dos nasceres e dos pores de sol, esmagadores.
Incapaz de reproduzir os sons persistentes e irrepetíveis da passarada no arvoredo, nos campos alagados sem limites.  Os zumbidos  dos insectos em lenga-lenga, de noite e de dia ...
Incapaz de descrever o calor obsessivo que cola a roupa à pele e imprime nela até os pensamentos ...
os silêncios de quietude das alvoradas e dos entardeceres de fogo ...
Incapaz de traduzir a paz que a terra respira, quando noite adiante,  só  a  lua  cheia  branca,  imensa, desnuda  as  sombras,  define  perfis, e  cobre  doce, toda  a  imensidão  desconhecida !...

É assim o Pantanal, uma terra que dita leis, uma terra generosa e dura, mãe e madrasta, onde os cânones da vida são implacáveis, onde um determinismo preside à existência de todos os seres.
A lei natural é imperativa, indiscutível e  soberana !
O Homem é só mais um dos que habitam a mata, caminham nos pântanos, escutam os silêncios e sabem a voz dos bichos ...

Quem lá vive diz que não...
Mas eu acredito que o paraíso, aqui, toca a Terra !!!...



Anamar

MOMENTO TRÊS - 31 Janeiro




As águas sobem, as águas descem ...
A Natureza sucede a si própria  numa renovação destinada, onde o Homem não pode interferir.

Estando aqui, miscigenando-me com esta realidade esmagadora e dona, ouvindo submissa a autoridade  da  floresta, dos  rios,  dos  animais, das  aves, dos  insectos, das  chuvas  e  do calor sufocante ...
só estando aqui, dizia, é que se percebe com clareza, a nossa pequenez enquanto seres humanos, e a violência que é, o abuso, a intromissão, a manipulação e o crime feitos sobre o planeta, quando o Homem altera intencionalmente os seus ciclos.

E só estando aqui se percebe tudo isso, porque aqui se lê com a pureza do coração desarmado, e com os olhos da alma . E esses, não enganam nunca !

O céu escurece num momento.  A trovoada ribomba ao longe.  O eco do trovão cala toda a selva.
As cordas de água, desenhadas no horizonte, anunciam a tempestade que se avizinha.
Por momentos os pássaros silenciam, os sons suspendem-se, uma serenidade estranha instala-se.
As cores acentuam-se, os contornos  definem-se.  Os verdes são mais verdes, a mata mais sombria, o céu ( onde os raios desenham feericamente geometrias obscuras ), é de chumbo.

E de repente, a chuva impiedosa chicoteia a terra. Um dilúvio forte, intenso, açoita as ramagens despenteadas pelo vento, uma cachoeira lá de cima, chega e parte ... em minutos ...

E em minutos a Amazónia refresca, remoça, respira até ao âmago ... Ela que é o pulmão da Humanidade !!!...





Anamar

MOMENTO DOIS - 30 Janeiro





Estou há quatro dias na Amazónia, e ao contrário do que havia suposto e para isso vinha predisposta, não escrevi uma linha.
E não escrevi, porque estou "entupida" de emoções.  Estou numa espécie de catalepsia ou deslumbramento, face a tudo o que me envolve.

A Amazónia não se descreve.  Vive-se !
Sente-se apenas.  Aliás não há palavras no vocabulário, que pudessem dizer por aproximação sequer, o que é esta Natureza genuína, que tenho a certeza, não existirá em parte alguma mais, do planeta que habitamos.
Os sons da selva, de noite ou de dia, são irreproduzíveis por letras ou ideias.  A cor, a brisa ou o calor sufocante, a humidade que cola tudo a nós ... mas sobretudo o verde da mata e o azul-cinza-pardo das águas mansas em espelho parado, serão o seu rosto mágico, misterioso, indizível !

Neste pedacinho de areia nas margens do Tarumã, neste oásis que estará coberto de água em alguns meses, escutando apenas os trinados incessantes, os gritos, os silvos, o pipilar das aves em desafio concertado,  o zumbido dos insectos em desgarrada, sentindo na pele a aragem cálida que de quando em vez resmalha na folhagem ... o  suor entorpecente  amenizado além,  pela sombra silenciosa e esfíngica, de árvores centenárias da floresta primitiva ...
escutando estes sons, todos diferentes, mas integrando  uma orquestra gutural perfeita ... numa afinação divina ...
extasiando-me com o privilégio  magnânimo  que experimento,  por não morrer sem aqui ter estado ...

... sinto-me em paz !

Porque PAZ, é seguramente a única palavra assertiva na definição da Amazónia !!!...



Anamar

BREVES MOMENTOS - BRASIL 2015


MOMENTO  UM




E o céu lá em baixo é de "carneirinhos".
Se aparecessem por ali em rebanho, não me espantaria.
Mais à frente é uma planície ártica, onde um urso polar se  enquadraria na perfeição ...
Depois uma paisagem lunar inóspita, agressiva mesmo ... ou ainda mar revolto e agigantado, no emaranhado súbito e alteroso dos castelos brancos ...
A imaginação e o devaneio não pagam impostos !...

E tudo isto é o céu, visto por cima das nuvens, 14,15 h da tarde de um dia quente e ensolarado, luminoso e diáfano, mesmo sendo Janeiro ... rumo a Manaus.
Aqui, meio do Oceano Atlântico ...

Para trás, Portugal, a vidinha de sempre. Julguei que não desligaria, mas já o faço, num boicote desenfreado a tudo o que por lá ficou.
Preside-me aquele pensamento, de não adiantar angustiar-me.  Para quê ?
A vida sempre prossegue sem nós  ( mania de nos acharmos insubstituíveis !... )

E o coração que me saíu de Lisboa, pesado, contrito, apreensivo ... um coração quase culpado, sem o dever ser, começou a soltar-se, a respirar fundo, a reabilitar-se no direito à paz que tão longe de mim tem andado ... enquanto  os olhos se estendem, repousando para lá deste horizonte sem horizonte, emoldurado apenas pela escotilha do avião !


Anamar

sábado, 10 de janeiro de 2015

" A ESTAFETA "



Ainda não eram oito.
Oito horas da manhã, e o dia, de pestana fechada, decidia se abriria radioso e iluminado, azul e translúcido.
Ouvi-as.  Andavam por aqui.
Os seus grasnidos atravessavam os céus, e penetravam-me o resto do sono.
Não entendo estas gaivotas do betão, reféns da lixeira, oportunistas e estúpidas .  Afinal, gaivota que se preze, deveria sempre olhar para baixo e ver mar, deveria sempre ser salpicada pela espuma, nos rochedos, deveria patinhar na babugem da rebentação no areal deserto ... ou mesmo adormecer no embalo das marés, em tempos de mar "flat" ...

E logo elas, que têm asas !
Braços estendidos que as levam num baile molenga, ao sabor dos golpes de vento, as levam a cavalgar a aragem salgada, a verem o mundo de cima ...
Um mundo sem horizontes como é o mar, um mundo de nasceres e pores de sol, de mansidões e tormentas ...

Pudesse eu !...

Mas eu não tenho asas.  Tenho raízes.  Raízes que me prendem a um chão que nem é meu !...
Estou aqui, a morrer aos poucos, neste cubinho empoleirado em seis outros cubinhos, ao lado de sete cubinhos, frente a dez cubinhos ... num desenho atamancado em 3D.
Uma floresta de cogumelos mal nascidos !!!

Só o meu sonho, o pensamento e o coração podem voar.  Só eles são livres !
E vão, porque eu sei que para lá do que vejo, há muito mais.  Porque eu sei que além, onde a bola de fogo adormece todos os dias, quando a penumbra e a escuridão descem até mim, fica ele.
Esse mar que é sempre mágico, indomado, e berço de sonhos que às vezes nem se confessam ... que não aceita muros ou fronteiras, rédeas ou arnês ... lá longe !...

Eu já tive uma gaivota.
Mas essa, era uma gaivota a sério, não era uma gaivota mercenária.  Era livre e solta, e não era louca. Era garbosa, altiva, elegante ... bico empinado ... Tinha "pose" !
Vinha por aqui, rasava-me a janela, grasnava, encarrapitada na esquina do terraço sobranceiro.
Piscava os olhinhos miúdos, meneava a cabeça e olhava-me.
Eu sei muito bem que ela me olhava com comiseração.  Olhava as minhas raízes  fundas inevitáveis, cravadas na terra, perscrutava os meus olhos de olhar comprido, lânguido e sonhador ... e escutava o meu espírito intranquilo que baloiçava ... baloiçava ...

Fizemos um trato.

Ela vinha e contava-me das falésias, das areias e das algas.  Falava-me dos rochedos, cama de pancada das ondas impiedosas.  Descrevia-me a renda que o recuo da maré, por cada dia, deixava na areia, como um fino véu de noiva ou brocado de festa ...
E quando partia, a tempos de não perder o festim do repouso do "rei", carregava consigo as minhas emoções, era mensageira dos meus sonhos, cúmplice dos meus desejos, portadora das minhas inquietações e mágoas ... estafeta de pedaços do meu eu ...
E levava-os para lá da terra, para lá das nuvens, para lá das encostas ... para além ... onde o silêncio  se  embrenha  na  noite  e  onde  as  lágrimas  ficam  mais  salgadas  ainda ... No  mar !...

Há tempos que a   não vejo !...



Anamar

sexta-feira, 2 de janeiro de 2015

" APONTAMENTO - II "




Numa mesa em frente, um homem idoso de cabelo branco e sobretudo escuro, acomodou-se e pediu uma sopa.
"É só a sopa" ? - inquiriu a empregada.
" É só a sopa " ! - confirmou o homem, sozinho, com ar distante.
Percebo que vai dizendo umas coisas cá e lá, a meia voz.  Penso que está, e não está neste café, o único aberto nas imediações, em dia dito de "Ano Novo".

Mais uma ou outra pessoa, das do costume, e o café está praticamente vazio.
São sobretudo homens avulsos e velhos ;  a maioria já portadores de enfermidades visíveis, inerentes à idade, e à vida ... talvez.
E solidão ... muita solidão espreita por aqui !

Afinal, o  que leva um homem idoso, a um café quase deserto, sombrio, desconfortável, iluminado pela luz fria das fluorescentes no tecto, um espaço incaracterístico, feio, angustiante mesmo ... a pedir uma sopa, na inutilidade deste dia que promete sonhos, esperança, calor humano, aos que têm gente em casa à espera ??...
E lá fora, um sol lindo num céu azul, diáfano  e imaculado, e uma temperatura, eu diria amena, a lembrar aqueles dias beirando a Primavera !...

Na mesa ao lado, outro homem que já esteve, e já saíu, volta a estar ...
Já o conheço de outros dias.  É magro, macilento, barba por fazer, sempre enverga a mesma roupa. Cachecol ao pescoço, sem casaco, ar pobre e postura de pardalito aos saltos .
Por cada vez que chega, passa pelo balcão, enche um copo com água e senta-se.  Bebe a água gole a gole, degustando-a, como se de um verdadeiro néctar se tratasse, e fixa com um olhar baço  mas aparentemente interessado, um televisor que repete incansavelmente, as passagens de ano pelo Mundo.
Tem um grau de demência acentuado.  Não sossega na mesa.  Tem um fácies inconscientemente alegre.  A alegria e a ingenuidade dos que estão do outro lado, possivelmente delirantes, a observarem o lado de cá.  O lado da "normalidade" ...

Dirigiu-se a mim, rindo sempre, e entregou-me um pequeno rectângulo de papel, rasgado de um qualquer rascunho que encontrou, presumo.
Segundo ele, uma "mensagem do Menino Jesus" para mim.

Um texto sem sentido, rabiscado em letra de imprensa, dois pequenos corações e um desenho infantil, completavam o escrito.
Interessante início de ano, de facto !...

A  ternura deste gesto, assim do nada, das mãos de um desconhecido, um pacífico e simpático atontado, neste café escuro quase deserto, foi inesperadamente, a minha mensagem possível de Ano Novo !...
Será ela portadora de alguma premonição ???...

Anamar

quinta-feira, 1 de janeiro de 2015

" APONTAMENTO - I "




Que chatice a ditadura do tempo !
Que chatice, que por mais que o tentemos, nunca o conseguimos driblar.  Sempre achamos que não lhe damos grande importância, que por ele vamos passando  ou ele passando por nós,  com  alguma  superioridade  e  distanciamento,  com  alguma  sobranceria  ou  displicência ...
Mas é mentira !

Ano vai, ano vem.  Sempre me angustio com isto, apesar de me pensar fortalhaça.
Gostava de ter herdado o pragmatismo do meu pai.  Esse aí, foi efectivamente imune a épocas, a datas, a marcas temporais mais ou menos invasivas na vida das pessoas.
Já eu, não chego lá !

Sai-se de casa, e estes votos de "Bom Ano" que saltam como uma mola, das bocas, são verdadeiros petardos a atingir o alvo.  Não há conversa que se preze que não termine  ou mesmo não se resuma simplesmente, ao bendito " Bom Ano".
Mesmo que não se pare, que mais nada seja dito, basta que o nosso olhar bata em algum rosto conhecido ...

E somos confrontados com este "fatiamento" do tempo, como uma fita que se corta em bocadinhos, a denunciar etapas vencidas.
Menos um, menos um ... mais um no chão, aos nossos pés, a engordar o monte de pedaços de fita, abandonados e inúteis ...
Esta contagem é uma condenação anunciada.  É uma visão apocalíptica da insignificância das nossas vidas.
É o cadafalso a descer em requinte sádico, milímetro a milímetro, sobre as nossas cabeças ... é o declínio  inevitável, indiferente  e silencioso da Torre de Pisa, com a lentidão das eras.
É a ampulheta colocada sobre a mesa, à nossa frente, a vazar a areia, grão a grão, imparável e inexoravelmente aos nossos olhos ...
E é isto de que o Homem dispõe.  Alguns metros de fita para ir cortando !...

Tão mais fácil não pensar !  Tão mais simples não ter a noção do tempo !...

Percebo a minha mãe.  Eu vou ser como ela, mais tarde.  Eu já sou como ela, agora ...
E ralho-lhe hoje, pelo dramatismo.  E debito pragmatismos e filosofias baratas, e verdades inconsistentes.  Teorias falaciosas para espantar fantasmas ... apenas isso.  "Xô-xô"!...

Quem dera ser como os povos indígenas do interior do planeta, das matas cerradas inóspitas, das florestas virgem inexpugnáveis ...
Lá, onde o Homem nasce e morre ao sabor da Natureza, como o sol que se levanta e se deita todos os dias, sem perguntar por que o faz ... como as marés que avançam e recuam fascinadas pelo chamamento da lua ...
Lá, onde o Homem vive sem questionar a razão, o motivo, o desígnio, o porquê ... o antes e o depois.
Sem ânsias, sem angústias, sem dúvidas ou sobressaltos.
Assim ... simplesmente assim ...

Porque afinal nada mais somos que o animal selvagem e livre, errante na savana, obedecendo aos ciclos da vida, nada além da chuva que cai quando tem que cair, nada além da nuvem que passa quando tem que passar, além das folhas que tombam nas clareiras, encerrando uma etapa de existência, para que outra se reinicie logo de seguida ... nesse exacto momento, uma outra vez !!!...
Nada mais ...

Anamar

domingo, 28 de dezembro de 2014

" COM MÚSICA NO CORAÇÃO "



O Natal esgotou-se.  Esgotou-se com tudo o que tem de bom e de mau, de magia e realidade, de desejado e imposto, de sonho e de pesadelo.
Porque efectivamente o Natal tem quase sempre mais de pesadelo, que de sonho... ( Isto, sou eu a pensar alto !... )
Sobretudo o Natal que "impõe" as pessoas umas às outras, mesmo que não tenham afinidades visíveis, linguagens próximas, formas de sentir, ou mesmo filosofias de vida semelhantes.
Natais que o calendário determina, entre gentes desestruturadas, gentes de costas voltadas, gentes com corações desencantados, almas desalentadas, famílias imperfeitas, feitas de pessoas imperfeitas ... especialmente imperfeitas !

Porque na verdade, o ser humano é cada vez mais intolerante, menos disponível, mais estratificado e fossilizado em formas de ser e estar ... e as famílias, a gente não escolhe, de facto.
Não se fazem sob medida, de acordo com figurino, ao sabor dos nossos anseios, das nossas expectativas, do que gostaríamos que fossem.
As famílias coexistem connosco, nós nascemos dentro delas, desta e não daquela, sem vontade própria ... aleatoriamente ... Vá-se lá saber porquê !...

Há os Natais que se sonham ... "familiarmente correctos", como mandam as leis da Santa Madre Igreja.  Natais tão doces, quanto os sonhos que se compram para os rechear.  Natais tão bem "esculpidos" na massa humana, tão "santos", que o amor escorreria  por todas as costuras, os sorrisos fraternos iluminariam  os rostos, a generosidade de corações disponíveis extravasaria, e os homens de boa vontade uniriam  esforços, entendimento e magnanimidade, para que essa  fosse "a noite", em torno da tribo ou do clã !...
São verdadeiramente Natais improváveis ... virtuais !

E depois, há os outros ... os Natais "reais" !
O ser humano, mercê da vida de que dispõe, melhor dizendo, da fraca qualidade de vida de que dispõe, ostraciza-se, talvez por defesa, não sei, em células cada vez mais confinadas ao seu "eu", às suas verdades e às suas convicções.
As pessoas estão cansadas, stressadas, talvez angustiadas, talvez de mal com o que as cerca.
As pessoas estão mais e mais autistas, as pessoas estranham-se, as pessoas são dominadas e possuídas por agressividades latentes, prontas a "chispalhar" ao primeiro clique, ao décimo incómodo ... à terceira contrariedade... 
Os valores do afecto, do amor, do respeito, da partilha e da cumplicidade, os tais propagandisticamente  inalienáveis, deveriam ser presentes e persistir sempre, sobrepondo-se a tudo o que vá acontecendo ao longo dos 365 dias que permeiam dois Natais.
Ao longo mesmo, das divergências, dos sentimentos menores ... Ao longo mesmo de mazelas que a vida vá semeando nos caminhos individuais ... num espírito superior, altruísta, de união e comunhão entre aqueles que se amam ...

Mas isso são utopias e idealismos que o calendário impiedosamente julga poder resolver ... só porque se chegou outra vez ao dia 25 de mais um mês de Dezembro ...

E por isso é que eu detesto o Natal !

É que ele quase sempre tem a capacidade de trazer ao de cima as "nódoas" a que fomos fechando os olhos ao longo dos dias, o lixo que fomos varrendo para debaixo dos tapetes ... os "ódios de estimação", recalcados em realidades mal resolvidas, tantas vezes !
E as pessoas não conseguem transcender-se  na verdade . O Homem é por natureza egoísta, comodista, egocêntrico mesmo.  E não se transcende em prol do outro... em prol de ninguém !  Nunca se transcende, de facto !...

E assim,  tenho para mim, já com alguma tolerância e ingenuidade,  que o Natal deveria ser apenas uma comemoração "sub-dez", digamos que vivenciado apenas até à idade da consciência.
Enquanto crianças, os sentimentos são puros, as mentes  não guardam animosidades, rancores, raivas ou mágoas.
A inocência sempre mostra alvoradas iluminadas, os corações são magnânimos e desarmados.
A disponibilidade e a generosidade  são incondicionais e têm o tamanho do Mundo.
A tolerância e o afecto distribuem-se indistintamente, com a grandeza de almas fraternas.
O ser humano, incólume, ainda não foi vergastado pela vida, destruído pelos tempos, trucidado pela sorte, armadilhado pelo destino !

É por essa razão, que o Natal sempre persiste ao longo dos tempos e das vidas, quase exclusivamente como herança terna do imaginário infantil de cada um de nós, nas memórias doces e inesquecíveis dos nossos primeiros anos !!!

Também por isso, ou apenas por isso, numa espécie de compensação para a alma, numa espécie de presente para mim mesma, o meu dia de Natal este ano,  precisou terminar embalando-me no sonho e na doçura do inesquecível e intemporal "Música no coração", que teve o mérito  indefectível de me remeter à magia de  uma realidade quase perfeita !...


Anamar

sábado, 13 de dezembro de 2014

" O NEXO DA FALTA DE NEXO ... "



O dia amanheceu mergulhado em "nieblas".
Uma cerração desgraçada, adivinhava que o sol não se levantaria.  Temperatura a baixar abissalmente, um frio de Natal a instalar-se.
Na rua, as pessoas circulam apressadas. Golas levantadas, narizes vermelhos, ofegantes, passo estugado na tentativa de enganarem o ar gélido.  Das bocas, aquele fuminho denunciador de uma humidade brava, espalha-se, como  se de uma chaminé se tratasse.

Foi o primeiro dia, deste Outono beirando o Inverno, que efectivamente puxou dos "galões" e mostrou claramente que o tempo atmosférico até agora, tem andado a brincar a uma coisa que não é nem deixa de ser.  Hoje sim, temos um daqueles genuínos dias coerentes com o calendário.
Os faróis dos carros, neste lusco-fusco de noite às cinco da tarde, projectam um  cone de luz tremeluzente, no asfalto molhado.

E choveu toda a noite.
Os pingos das gotas de chuva nas vidraças da janela, o pingue-pingue metálico na calha do estore da vizinha de baixo, foi-me lembrando ao longo das horas de silêncio, que estaria  desagradável lá fora.
O gato preto ... onde andará ?
Continuo a entrevê-lo através dos estendais, prédio abaixo. Estendais agora vazios de roupa, em tempo de borrasca. Sobrevive no terraço, em completa solidão.
Onde se acoitará da água ?  Sim, porque do frio, não há lugar razoavelmente protector.

Os pingos ...
"Estás constipada ?" - perguntaram-me ao telefone.
"Não ! Estou apenas a pingar !" - respondi, justificando o fungar perceptível.
A gente pinga, de quando em quando.  Pingam os olhos, pinga o nariz, ao sabor do pingar do coração. Porque é aí que tudo começa !
Será que se pode ter saudades do futuro ?  Ou melhor, de um futuro que ainda o não foi, e apenas se idealizou ?
Será que se pode ter saudades de alguma coisa que não se viveu, só se adivinhou no coração ?
Porque saudades do passado, é fácil.  E lógico.  As saudades são os restos que ainda não partiram.

Sou capaz de olhar um galho adormecido, e cheirar o verde húmido da mata, quando foi apanhado...
Sou capaz de olhar um calhau rolado  das areias distantes, e inebriar a alma com a  maresia que dele se desprende ...
Sou capaz de ouvir os chocalhos do rebanho no pastoreio, e as badaladas da torre sineira ... ritmadas, cadenciadas, ecoando no silêncio, como então ...
Escuto com precisão o grasnido da gaivota planante, antes de repousar no alto daquele poste lá ...
E  escuto  também  as  exactas  palavras  ditas, os  risos  largados, os sorrisos  subentendidos ...
E oiço o Natal, e o ano vizinho ... e cheiro a intimidade da sala, e o calor da cama cúmplice...

Tudo ontem ...

E amanhã ?
Amanhã, é uma manhã como a de hoje, mergulhada em "nieblas".  É um vendaval  de chuva cerrada, que não deixa ver através das vidraças embaciadas.  É uma espécie de vereda que caminha  na ravina  e  termina lá ao fundo, subitamente ...  num penhasco  em garganta rasgada sobre o mar ...
Amanhã ... é uma manhã cinzenta de um Outono beirando o Inverno.
Amanhã é uma interrogação sem resposta.  É um futuro de  fé sem esperança ...
Amanhã é a ausência de nexo, numa história que desconhece o seu significado !...

Anamar

quarta-feira, 10 de dezembro de 2014

" A DÚVIDA METÓDICA "




Não escrevo faz tempo.
É assim a minha vida.  Altos, baixos, períodos de valer a pena, períodos de indiferença e distanciamento em relação a tudo.  Amorfismo face à realidade, encolher de ombros, fazer-me morta ... deixar correr.
Se calhar é assim a vida de toda a gente.  Afinal, não há carapaças de tartaruga para todos, apesar que me daria imenso jeito !

Ontem, um programa televisivo equacionando um tema assaz interessante : " Haverá ainda futuro para Deus ? "
Um espaço de reflexão, de opinião, de questionação.  Um espaço de interrogação.  Muitas perguntas, nenhuma conclusão.  Obviamente !

A existência de um deus nas nossas vidas, a busca de um significado para elas, numa sociedade ferida de tal desencanto e tão desprovida de soluções, que empurra mais e mais o ser humano para um afastamento do divino.
A ciência explica muitas dúvidas existenciais, daquelas com que nos confrontamos diariamente. Explica muitas, mas não todas.  Longe disso !

O Homem, na precariedade da sua existência, na insatisfação dos mundos em que mergulha, na orfandade das suas dúvidas, sem enxergar respostas, entregue aos seus medos, às suas angústias, face à  sua  pequenez e fragilidade, face a tanto desencanto e tantas perplexidades ... precisa na maior parte das vezes, de uma âncora, de um porto, de uma lógica, de um caminho.
E cria uma figura "paterna" maior, última, definitiva, em que dogmaticamente acredita, se recosta, se aninha.
Esse "mito", essa protecção que desconhece, mas sob a qual nada lhe acontecerá, esse arrego doce, esse colo embalador que não julga, sempre compreende e perdoa, restitui-lhe a tranquilidade que o aquieta, dá-lhe o norte e a significância para o caminho doído, ergue-o quando cai, dá-lhe forças na doença, ânimo no desespero  ... luz na escuridão ... repouso ... esperança numa salvação promissora, transcendental.
Essa figura que não se vê, não se palpa, contra a qual consequentemente o Homem não se pode rebelar, surge na sua vida como solução, saída, resposta final.
E o Homem que criou na sua mente essa figura parental,  vive assim mais em paz, mais confiante, mais submisso, mais humilde.
Não O questiona, ou raramente O questiona ( Se o fizer, sentir-se-á um ímpio, um ser desprezível e ingrato ), e aceita em conformismo,  o destino, a "cruz", a penitência.
Como peregrino em devoção e agradecimento, tenham as provações a dimensão que tiverem ...  ruma à salvação !

Assim vivem os crentes, e assim encontram uma razão para a sua existência.

E os não crentes ?  Aqueles que nunca, ou "ainda não" foram tocados por essa luz, ou não experienciaram esse "milagre" ?
Nesses, incluo-me eu.
De facto, agnóstica que sou, depois de um início de vida tradicional e deterministicamente religioso, encontro-me na encruzilhada da dúvida.
Com uma formação académica científica, com uma irreverência, e uma espécie de contrapoder atrevido, dentro de mim face à vida, sinto-me uma sedenta e estupefacta caminheira, com um pragmatismo desencantado, na beira da estrada, olhando, perscrutando, analisando, descodificando, interrogando e desgraçadamente não encontrando "outras" justificações ou respostas, para nada daquilo que segundo a segundo, vai desfilando neste carril aleatório e sem nexo.
Não encontrando  "outro" sentido ou significado, "outro" fio condutor lógico na percepção dos acontecimentos, não encontrando "outras" leituras credíveis, na aleatoriedade acidental ... olho cansativamente o papel em branco, no qual tenho que desenhar, momento a momento, a "estória" que com alguma liberdade arbitral vou vivendo.
Dramaticamente.  Angustiadamente.  Cepticamente.

Questiono-me sempre, se viver assim, não  é só por si, uma  "tragédia" ?!
Se encarar o transcurso  do tempo, sem bengala, sem "antidepressivos" de alma, sem  "analgésicos" de coração, sem muletas emocionais ... apenas entregue à minha esperança e desesperança em todos os seres - que não passa por desígnios de salvação de alma -  entregue exclusivamente à minha fé particular e inabalável no ser humano, nas suas potencialidades e nas suas espantosas capacidades regenerativas, no seu poder de encontro e de renascimento constantes ...  questiono-me sempre, dizia, se estas minhas escolhas,  estas minhas convicções de caminho, não serão assumidos exercícios suicidas, de teimosia temerária, de inconsciência não acautelada, em que a minha vulnerabilidade, a minha pequenez, e a minha insignificância de peão de tabuleiro, são largadas em permanência,  no xadrês da vida ?!...
Lá ... onde dizem que Deus não joga !...

Mas eu sou inevitavelmente assim, e não consigo ( o que simplistamente talvez me adoçasse e pacificasse o percurso), ver a existência humana, de forma diferente !
Esta dialéctica é a minha verdade.   Esta estrada acidentada e pedregosa, o meu caminho.  Esta autenticidade muitas vezes titubeante, desoladora e sem colorido, a assumpção daquilo em que acredito ...
Porque eu "desconfio" muito seriamente, que depois de nada ... nada existe mesmo !!!


Anamar

domingo, 30 de novembro de 2014

" LAÇOS INVISÍVEIS "



O "farrusco do fiambre" perambula pelo terraço lá em baixo.  Afinal, ele é um residente !... Um residente e um resistente !
Verão após Verão, Inverno após Inverno, acumulando anos de vida, numa vida que não sei quantos anos já conta ... ele lá continua inabalável ... com as quatro patas firmes no lajeado, chova, faça sol, tempestade ou bom tempo.
Habitante único daquele terraço, não tenho a noção de como sobrevive.
Há tempos largos que o não espreitava. Cabeça demasiado preenchida, coisas a mais para a estrutura mental de que disponho, não me têm levado a espraiar as vistas  pela janela, preguiçosamente a olhar o tudo e o nada, por sobre os telhados a perder de vista, rumo a um horizonte verde, bem lá longe !

Hoje deitei o nariz de fora.  O ar estava liquefeito. O fim de tarde mostrava um céu diluído, um sol laranja, iluminado, distante ... farrapos de nuvens, como novelos de lã branca, espalhados lá por cima.
Nada grave !
E ele lá estava.  Entrevi-o entre o emaranhado de estendais, e de roupa colocada pressurosamente a secar, não vá chover amanhã ...
Era um recorte esfíngico, uma figura sonolenta, um "bibelot" de porcelana ... visto do alto do meu sétimo andar.

Quem também tenho pressentido por aqui, em passagens fugidias, em voos sonolentos e rasantes, é a "minha gaivota", que se anuncia com aqueles grasnidos que tão bem conhecemos, quando o mar encapelado apenas lhe permite que o sobrevoe ... em dias de tempestade anunciada.
Há tempos que não "conversamos".  Há tempos que não trocamos aquela promiscuidade  de "mulher para mulher" !...
Sempre costumava espreitar-me,  altaneira, do alto do terraço contíguo à minha tribuna, mirando-me de lado, olhos perscrutantes, argutos e  miudinhos ... Assim como quem me mede os humores ... Depois, deixou de vir.  A lixeira, super-mercado de Inverno, fica lá para trás da minha disponibilidade visual.
E também, ela frequenta-a no Inverno apenas, quando recua da orla costeira, porque o tempo madrasto,  lhe escasseia o peixe fresco na dieta.
Hoje, veio por aqui.

Coisa estranha esta, de me sentir órfã se os não vejo ... de me sentir acompanhada, se os vejo !
Coisa estranha esta, quando o ser humano se sente acompanhado por um gato e uma gaivota que só toca com o olhar, e que só acompanha com o pensamento !...

Às vezes, largo uma frase no espaço que nos separa ... convicta que a digo para quem a não escutará. Mas não importa, é assim uma espécie de código de coração, uma espécie de partilha de sentimentos, um diálogo surdo, mas generoso.
Uma cumplicidade de solidões ...
Eles não me conhecem, mas eu conheço-os e são por isso, um pouco "meus" ...
Porque como diz Saint-Exupéry, sempre "somos responsáveis por tudo o que cativamos".
E, cada um a seu modo, cada um à sua maneira, tornaram-se parte da minha vida, passaram a integrá-la.
Se mais não for, por  em dias como  hoje, em que me abeiro da vidraça em busca de vida lá fora,  a sua presença por perto, ser um afago na alma, que consegue trazer-me ao rosto um sorriso rasgado ...

Mesmo que o fim de tarde me não ofereça um sol laranja, iluminado ...

Anamar

quarta-feira, 26 de novembro de 2014

" OLHANDO P'RA DENTRO DE MIM ..."



E o céu lá longe,  fechou com uma estranha sobreposição de nuvens, como frente de rebentação  no areal deserto.   Por detrás daquela abstracta imensidão, um fogacho laranja iluminava ainda o firmamento  no estertor final do dia !

Era mais um dia de Novembro, deste Novembro pardo, que sempre se veste de  ocres queimados, de vermelhos envelhecidos, ou de verdes  recolhidos,  em tons de musgos beirando o Natal.
As montanhas no firmamento pariam água, água e mais água, neste nosso desconforto de desesperança !
Frio ... já algum frio, que me parece mais interior, ainda assim .
A menos que a solidão seja gelada ... Acho que a solidão é gelada, sim !...

Não há sobre o que escrever, a não ser que eu devasse  janelas que se iluminam, penetre nos espaços de aconchego, me deixe embrulhar em sonhos que sempre voejam por aqui, que não são meus,  mas são levados nas asas estendidas das gaivotas que recuaram.
Desistiram de mar, desistiram de escarpas empoleiradas, desistiram de inventar praias de maré baixa ... e o seu grasnido ecoa em agudos estrepitantes, pelos céus.
Lá de cima, já se deve ver o Natal, a progredir em  passadas largas.  Os azevinhos engalanados enrubescem,  e pingam as bagas encorpadas, ao longo dos caules espinhosos.

Daqui "vejo"  a mata. Vejo a serra penumbrenta, a cheirar a terra molhada, parideira de frutos e tímidas flores de Inverno.  Cheira a carqueja, cheira a lareiras distantes, e cheira à humidade que amarinha pelas pedras e pelos troncos ...  As clareiras escureceram, neste dia apagado há tempo já ...
Os castanheiros bravos deixaram de cuidar dos seus ouriços  entreabertos, que espreguiçaram  as castanhas, a esmo,  pela terra fria ...

Daqui "vejo" o mar. Vejo as falésias e as gargantas profundas das arribas, a contorcerem-se, no açoite impiedoso da rebentação ...
Vejo  o  verde  das  rochas,  tapadas  e  destapadas  pelo  impudor  das  marés.
E vejo o véu deixado na areia molhada, pelo noivado permanente das águas, que sempre chegam e sempre partem ...
Como tudo na vida ...

E chega-me o cheiro.  O cheiro doce e salgado das maresias ancestrais.  O cheiro do pilriteiro maduro, das urzes e das estevas do bosque,  Dos cedros, dos abetos, do gilbardeiro e das roseiras bravas.  E todos os cheiros que eu quiser, porque sou livre de os inventar ...

E chegam-me todas as emoções adormecidas no meu eu.  Reúno os escombros dos sonhos sonhados, e fecho os olhos, numa dolência de recolhimento, de entorpecimento da alma ...  de  cansaço indiferente,  que  já  não  se  subleva,  porque  não  tem  força  para  se  erguer ...

Chega-me  tudo ... tudo  o  que  estranhamente  duvido  ter  sido ... porque  parece  que  nunca  foi .
Chega-me a palidez de sépias antigas, o sombrio de memórias que tiveram cor, e luz, e cheiros e risos ... e murcharam no pé , como um botão de camélia que não teve força para abrir ...
E sinto-me a fenecer, como o sol precário desta tarde, a desistir ...


Anamar

sábado, 15 de novembro de 2014

" TOCANDO EM FRENTE "



A vida encarrega-se ...

De repente, como uma onda alterosa, ela ergue-se e arruma o assunto, que é como quem diz, decide inapelavelmente o que entende ...
Sem que tenhamos capacidade de resposta ou de insurgimento.
Assim, numa curva da estrada, no virar de uma esquina, da noite para o dia, de supetão, surpreende-nos como o salto da serpente emboscada, sem previsão ou acautelamento possível, em ratoeira perfeita.
E transforma-se naquela vaga do tsunami, que todos já vimos em imagens conclusivas.  Mostra-se, vem e varre sem piedade, tudo o que tem pela frente.  Indiferente ao "tudo", mesmo ...

Deve ser isso que consubstancia a afirmação corrente : " O  Homem põe e Deus dispõe" ... e que fará todo o sentido para a maioria das pessoas.
São marés, dizem uns.  Há fases assim, dizem outros ... em que tudo parece desfazer-se em espuma, em que o céu se abate, o chão foge, e em que como areia, tudo nos escapa, de brincadeirinha, por entre os dedos.

E pronto!  Os caminhos ficam todos fechados.  Não adianta !
Resta-nos aquele sentido de preservação e de sobrevivência que nos toma, quando a catástrofe desaba bem por cima das nossas cabeças.
Encolhemo-nos, enrodilhamo-nos qual feto na protecção uterina, imobilizamo-nos ... ficamos quietinhos e esperamos.
Esperamos que talvez a muralha de adversidade que se ergueu à nossa frente, passe ( tem que passar, porque a resistência humana tem limite ), que  talvez o céu brutalmente negro, consiga parir de novo um sol luminoso, que a amenidade subsista à chuva torrencial, e que na terra apareçam novos caminhos na ressaca da destruição.

O Homem encerra em si o princípio da regeneração.  É instinto, é característica de espécie, enquanto ser vivo que é.
"Deus dá a roupa consoante o frio", diz a sabedoria do povo, que não erra.
Como tal, depreende-se que sempre estaremos artilhados com o necessário, nem mais nem menos, para enfrentar os carregos da nossa existência ... ainda que ela se encarregue por nós ... ainda que ela chegue, e dê o golpe de misericórdia !

A vida é dos fortes.  A vida é de quem ousa.  A vida é de quem a enfrenta, dos audazes e lutadores ... E  mais meia dúzia de chavões a propósito, poderiam ser ditos, pressupondo que ... " dos fracos não reza a História".
Deve ser verdade.  Acredito que o seja !

Então e esses ?  Os menos resistentes, ou os menos "equipados", ou os mais cépticos, ou os menos pragmáticos ... ou os menos capazes ?  O que se lhes faz ?

Bom, talvez pela seriação natural imperativa, não tenham mesmo futuro.
Talvez sejam destinados a sucumbir, no apuramento da espécie.
Talvez  a  vida  os  expurgue,  num  processo  selectivo,  natural,  implacável  e  óbvio ... Talvez !...

E a vida redesenha-se, queiramos ou não.  Sempre se redesenha !
E muitos sonhos adiados, sucumbem simplesmente num segundo.  E somos então lançados num vórtice que primeiro nos baralha, depois nos atordoa, e finalmente nos resigna, por impotência !

É frase feita e gasta, mas de facto, cada vez mais, "carpe diem" é a única coisa certa que nos resta, a única que podemos e devemos fazer, por inevitabilidade ...
Tudo o mais é utopia pura !...

E por isso, provavelmente cumprir a Vida ou ser inteligente perante ela, seja simplesmente ... "compreender a marcha e ir tocando em frente"... até porque ... "num dia a gente chega, e noutro vai embora ",  afinal ...

Anamar

quinta-feira, 13 de novembro de 2014

" UMA MÃO CHEIA DE NADA ..."





Os dias são o que deles fazemos ...
Os dias são o que neles vivemos ... Vivemos ou "vivêmos" ... p'ra se perceber melhor ...

Já gostei muito dos sábados !!!  Eram o meu dia sonhado e inventado, nos sete que desfilam na semana.
Era o dia esperado, criado e recriado nas asas da imaginação.  Mesmo que fossem sábados como hoje ... ou melhor, sobretudo se fossem sábados como hoje, de cara feia, cenho carregado, de escuridão, vento e chuva, distribuídos por quem gere estas coisas ...

Eram sábados com história ... muitas histórias ! Eram sábados de sala iluminada, de vamos ali e voltamos ... golas levantadas já, sábados de correr à chuva em chapéu dividido, com as gotas trazidas nas rajadas do vento  a molharem a meia de licra ( comprometendo a exigência da toilette ), empoleirada nos saltos altos em harmonia.
Eram sábados com vozes, conversas, risos e gargalhadas. Sábados aquecidos no tinto de  copo  de  pé alto,  adoçados  na  cremosidade  do  chocolate,  brindados  no  cálice  de  Limoncello ...
Olhares  cúmplices  e  segredos  trocados.  Eram  sábados  com  alma.  Eram  sábados  com  vida !
E um calor que trepava, amarinhava, e envolvia ... Capaz de  trazer à vida, alguém que partiu ...

Não era esta coisa de silêncio a esfumar-se entre as quatro paredes ... sempre  só as quatro paredes .
Não era este abandono gélido que me perfura até às entranhas.  Este som que não ecoa, estas palavras que não são ditas ... porque não há quem diga palavras, por aqui ...
Não era este frio que atravessa as vidraças, pela ausência de sonho, e me tolhe, me limita, me amarfanha ...
Não era esta ausência de tudo, mas sobretudo da esperança.
Não era o saber-me viva, apenas porque respiro ... ainda !
Não era o mitigar-me com os farrapos das nuvens, olhando o céu que se redesenha a cada golpe de vento.  Como se  a  faxina do firmamento  pudesse soprar-me  para longe,  este peso de nuvem negra sem arco-íris !...

E anoiteceu.  Anoiteceu abruptamente ... insensivelmente ...

E tanto sábado que eu  tinha então, ainda p'la  frente ... e tão pouco sábado que tenho hoje, entre os dedos ...

Ainda "cheiro" os sábados, porque cada hora era uma hora de ser. Cada hora tinha uma batida diferente do coração, e um sorriso específico nos lábios.
Havia os de sol, que eram dourados, só dourados, e havia os de chuva e escuridão que eram doces, apenas doces ...
E eu, era aquela ... de então.  Não esta de hoje, sem identidade definida, vazia, amorfa, indiferente.
Sonâmbula na vida, distante, esquecida ... cansada !

Oiço o grasnido da minha gaivota já perdido no cinzento fechado, aqui por cima.  As asas estendidas e o peito à aragem, levam-na por círculos longínquos, adormentados,  para bem longe da minha janela.
O horizonte limita-me a vista e tolhe-me o pensamento ...

Por que raio ainda existem sábados, nas semanas ?!...

Anamar