terça-feira, 29 de maio de 2018

" VINAGRE E AZEITE "



Tive duas filhas, distanciadas de quatro anos e meio.
Tão diferentes nas formas de ser, quanto o são fisicamente.
Uma é branca, de cabelo claro raiando o loiro, olhos verdes... pele de porcelana.
A outra, morena claro, cabelo escuro, grandes e expressivos olhos castanho amendoado ...
Ambas bonitas. Sou suspeita a dizê-lo, mas tenho olhos e isenção ao concluí-lo.  E já o foram mais, muito mais.
A vida também nelas vai deixando os sinais, inevitavelmente, implacavelmente. Ambas, já nos "entas" ... o tempo não perdoa !

Nunca se entenderam, nem em miúdas, quando as cumplicidades e as conivências contra o "jugo" paterno, determina alianças entre os adolescentes.  Eu costumava dizer, com o devido exagero, que se "odiavam"...
Uma era o cúmulo da desarrumação. A outra tinha brios de método. Quando a primeira já tinha esgotada a roupa limpa disponível e abandonada toda enrodilhada na cadeira do quarto ... recorria, sem permissão, à roupa da irmã, que obviamente a tinha, nas melhores condições de ser vestida ...
Resultado ... discussões épicas, gritarias, cabelos puxados, vergonhosos palavrões e dislates pela boca fora...
Cheguei a ter vizinhos a baterem no tecto, em reclamação do barulho ...
E  já matulonas, com idades para terem juízo ...

Os ciúmes que nunca deixaram de as minar e que perduram até hoje, mães de filhos que já são, sem idade para esses despautérios, agudizaram ao longo das vidas, o distanciamento entre elas, a animosidade, o afastamento, a suspeita sempre presente, do prejuízo de uma em benefício da outra ( por maior cuidado que, conhecendo a situação, eu  sempre tivesse tido nas decisões, nas partilhas,  feitas com uma doentia  preocupação de justeza e equidade ) ...  Os ciúmes, dizia, foram-nas separando na vida. Indiferentizaram-se mesmo.
Nunca tiveram linguagens comuns, valores próximos, interesses idênticos.  Sempre cada uma remou o bote, em caminhos de divergência e nunca de aproximação.
Não rejubilam com as alegrias uma da outra, não falam a mesma língua, não dividem dificuldades.  Não têm as cumplicidades típicas dos irmãos.  Não parecem ter nas veias o mesmo sangue a correr ...
E sobretudo não têm tolerância, capacidade de relativização e perdão.

Personalidades e maneiras de ser difíceis, muito difíceis, cada uma ao seu modo, inviabilizam  um futuro mais auspicioso...  Já não faço nenhuma fé em alterações positivas.
Têm bons fundos, cada uma de "per si". Norteiam-se por valores fundamentais. Guardam dentro de si o que nós, os pais, lhes transmitimos.  Guardam e respeitam .
São boas mães, excelentes e reconhecidas profissionais, ambas ocupando lugares de muita responsabilidade e exigência.
São generosas, como podem, para com quem delas precisa. São solidárias e prestativas.
O problema é entre elas ... sempre e só entre elas.

Recentemente, nos últimos anos, factores exógenos à relação precipitaram uma ruptura total.  Nenhuma cede, e se uma faz uma tentativa de zerar  as mágoas instaladas, a outra, não só não corresponde, dando  um  só  passo  que  fosse  nesse sentido, como  não se disponibiliza  de  coração, para  que isso seja  possível.    E as posições continuam extremadas !
Como tal, como duas "mulas empacadas", ninguém tem a magnanimidade de se transcender, e arrastam as vidas de costas voltadas.

Eu, arrasto a minha com um desgosto profundo que me acompanha e acompanhará ao além ...
A avó que recentemente nos deixou, levou consigo também essa mágoa.  E muitas vezes lhes pediu que se ultrapassassem, para ultrapassarem este estado de coisas.  Em vão !
Só restamos as três, nesta família ínfima que é a minha.  Um dia, restarão as duas irmãs perdidas nesse mundo de Deus ...

É algo muito doloroso que me atormenta.  É um castigo que sofro e não sei porquê !
Vinagre e azeite, dois seres saídos de mim, e que a  vida teima em continuar a separar !

Anamar

sexta-feira, 25 de maio de 2018

" MILAGRE "






Quando o gaio chegou ao meu jardim,
com ele a Primavera regressou ...
só porque p'ra  mim,
o gaio cantou !

E o sol reluziu
e as flores se engalanaram ..
só porque p'ra mim ele sorriu ...
E a minha cama perfumaram !
E o céu, que de azul  sempre é vestido
mais azul ainda ficou ...
e o meu coração entristecido,
alegre se tornou ...
só porque p'ra mim,
o gaio cantou !
O mar que conhecia o meu soluço
nas areias em que a onda rebentava ...
chamou p'ra mim o gaio que voava,
e com ele, a Primavera regressou ...
E então  renasci e acreditei
que o gaio cantara só p'ra mim ...
E que com todo o sonho que sonhara,
outra vez a minha vida  se enfeitara
com  braçadas de alfazema e de jasmim ...   
Espreitei-o poisado no alecrim,
vi-o descansar no lilazeiro,
apanhou uma rosa para mim
e margaridas brancas, do canteiro ...
                                                                       
Tudo se acendeu na Natureza,
tudo cantou à minha beira
como canta a água pura da ribeira ...
Quando o gaio chegou ao meu jardim !...

Anamar

" O TEMPO NÃO AJUDA ... "




O tempo está enfarruscado.  Como eu estou também ... no coração.
Há um desconforto latente e sentido, dentro de mim.

Acordei a sentir-me mais órfã do que nunca.  As saudades da minha mãe, daquela minha mãe, tomaram-me ... Não a de agora, a que relembro nas fotos e vídeos que foram sendo feitos nos últimos anos, como se com eles eu pudesse mantê-la um pouco viva junto de mim.  Como se sequer eles precisassem existir para que isso acontecesse ...
Da outra ... da que foi minha mãe toda a vida e a que em dias como hoje, me aninhava, me amparava e animava ...
Do meu pai também, embora vinte e seis anos já tenham transcorrido.  Dele, não tenho vídeos e as fotos teimam em esbater-se na poeira dos tempos que passam ...
Tenho-o à cabeceira da cama, numa foto a sépia .  Tinha então vinte anos, e aquele também não é bem o meu pai ...

Hoje acordei nostálgica, saudosa, profundamente entristecida.  E desamparada também.  A sentir que as escoras que me suportam estão frágeis.  As âncoras que me agarram, deixam baloiçar demais o meu barco, precariamente amarrado ao cais.

Procuro ir fechando portas, arrumando a vida, queimando as etapas que se prendem a toda a panóplia de coisas que há que resolver, e sempre ficam pendentes, quando o ser humano parte.
É espantoso o número de questões práticas que urgem ser tratadas, para tentar repor  um outro e novo equilíbrio nas nossas vidas ... na vida dos que por cá ainda ficam ...
Procuro por isso virar páginas, porque talvez depois, consiga uma maior paz ... um reequilíbrio, um reencontro com a interioridade da minha dor.   Talvez consiga centrar-me um pouco melhor na vida, prestando-lhe uma maior bonomia e aceitação .

Tudo ainda está estranho.  Irreal.
Prefiro pensá-la cuidando das sardinheiras, na casa dos passarinhos .  Prefiro "vê-la" arrastando as mangueiras pela relva, nos fins de tarde solarengos, para regar tudo quanto por lá estava.  E a maravilhar-se com cada nova flor desabrochada, com cada rebento verde que eclodira e garantia o milagre da Natureza.
Prefiro escutá-la a chamar o seu Gaspar, para que saísse do sol ... como se cachorro lá se importasse com sol !
Prefiro sabê-la a varrer toda a tijoleira, a calçada exterior mesmo, frente à casa, num afã alentejano de limpeza, manhã cedo, por cada dia ... todos os dias ...
Na casa onde, há cerca de um ano, quando a cabeça ainda a não atraiçoara de vez, me confidenciava : " nesta casa eu fui muito feliz ! "...

Quando perdemos um dos nossos progenitores, metade de nós parte também.  Quando o outro nos deixa, a orfandade é total, a desprotecção é completa, o buraco deixado no peito invalida-nos a vontade de viver.  E fica muito difícil continuar o trilho, ainda que essa seja a lei da vida.
A consciencialização de que tomámos lugar na "calha", fica clara aos nossos olhos.  E de repente, parece termos envelhecido irreversivelmente.
Dizem que a dor se abate à medida que a terra baixa.  É uma metáfora que nos simboliza a força do tempo na distanciação às coisas.
Desejaria que assim seja, e que ele tenha clemência e nos favoreça com essa graça.
Até lá, vou continuando por aqui ...

Anamar

quarta-feira, 23 de maio de 2018

" O DESTINO FINAL "





" Pulvis es, tu in pulverem reverteris :  Sois pó, e em pó vos haveis de converter "  - Sermão de Quarta Feira de Cinzas,

Padre António Vieira

Esta citação do Livro do Génesis caiu-me em cima, com toda a acutilância que a situação que atravesso no momento, mo impôs.
Não sei se será, como "soi dizer-se", muito ortodoxo trazer aqui, a este espaço, as palavras que escreverei.
Não sei se será adequado fazê-lo.  Se será sequer aceite pacificamente, por quem me ler ...
Acontece que este espaço é meu, e será legítimo que aqui coloque a expressão de sentimentos, de angústias, de inquietações, de dúvidas, interrogações que me assolam ... pelo simples facto que serão palavras minhas, sentimentos meus, emoções que experimento.
E aqui, como sabem, falo quase sempre de mim para mim, num solilóquio silencioso, numa espécie de "muro", não de lamentações, mas de reflexões.  Aqui, interiorizo-me mais e mais, numa concha de molusco que a cerra ... e exorciso fantasmas, questiono-me, reflicto e julgo-me.
Por isso, estando no recôndito da "minha casa", penso que me será reconhecido esse direito.

Fui hoje buscar as cinzas do meu pai, que aguardava há vinte e seis anos a partida da minha mãe para se juntar à sua companhia.
Neste momento detenho as cinzas de ambos, aguardando de igual forma, que lhes destine uma definitiva morada,
E o misto de sentimentos, de emoções, de desconforto e toda a panóplia de tantos outros sentires, definíveis ou não, que o ser humano possa vivenciar, me assaltam, me tomam, me dançam do coração para a razão e da razão para o coração, num baile que me atordoa, me confunde e me deixa com sensações estranhas e contraditórias, com que não consigo conviver em paz.

O pragmatismo obriga-me a repetir-me que o que ali está, não será o meu pai ou a minha mãe.
Obriga-me a repetir-me, com a formação química que possuo, que aquilo que ali está, é simplesmente o resultado da transformação da matéria orgânica em despojos inorgânicos de óxidos de cálcio, como resíduos minerais dos ossos, os únicos que de alguma forma "sobrevivem" às altíssimas temperaturas.
Obriga-me a repetir-me que o meu pai e a minha mãe estão e sempre estarão, confinados a dois lugares invioláveis : o meu coração e a minha memória.  E aí permanecerão para todo o sempre !

O pragmatismo ... certo, o pragmatismo ...

Porque depois, gera-se todo este misto de inexplicáveis contradições ... E tudo se baralha outra vez.
Os mortos vêm e adonam-se das suas cinzas, e já são outra vez o meu pai e a minha mãe que estão ali ... e chego a falar-lhes ... e olho os potes, incrédula ... como pode ser ... dois quilos de cinzas serem eles ?!  Como pode a vida deixar-nos apenas isto ?!...

E tudo é doentio, estranho e confuso.  E há uma inquietude e uma perturbação atroz, dentro de mim ...

Estarei a ficar louca  ?

Terei que urgentemente os devolver a um lugar de repouso.  A uma última morada.
Penso que só assim o meu coração ganhará paz e alívio.  E sossegará !

À terra ... porque da terra brotamos e misturados nela, reencontraremos a nossa origem primordial, a nossa matriz.
Irei deixá-los no lugar para mim escolhido, quando a minha hora chegar.
Ficaremos miscigenados com a terra, com as plantas, os bichos, olhando o céu, sentindo a chuva e o vento a lapidar os rochedos, pelos tempos que virão.  Vendo o sol a poisar naquele horizonte distante que não termina nunca.  Ouvindo o mar bramir lá em baixo, num repouso doce e embalador ... num destino final de muita paz, adormecidos no meio das cores, dos cheiros e dos sons da Natureza ... nossa mãe eterna !

Anamar

sexta-feira, 18 de maio de 2018

" NIGHT AND DAY "





Há pessoas que têm uma vida extremamente movimentada.
Em tudo o que vivenciam, nas coisas que lhes aconteceram, naquilo que experimentaram, não há um marasmo nem um cinzentismo em ocasião alguma.
Normalmente são pessoas que ao longo da vida conheceram muita gente, percorreram muitos caminhos, viveram as mais variadas situações e sempre têm histórias para contar.
Muitos contactos, muitos locais, muitas etapas da vida, desde a irreverência da juventude ao alcance da maturidade, fazem surpreendentes relatos, alguns mais caricatos que outros, normalmente sempre engraçados, na maioria .  Constituem memórias de  juventude, de tempos escolares, de eventos familiares, de tropa ou ainda profissionais.
Porque mesmo no meio da actividade profissional nem tudo é chato ou desencantatório ... sempre ocorrem acontecimentos que indelevelmente nos ficam, e que vale a pena recordar mais tarde.

Todos  conhecemos pessoas destas, e eu acho-lhes imensa piada, porque  são uns privilegiados animadores de tertúlia, sempre têm a propósito, uma boa história para divertir, um emocionante acontecimento p'ra narrar, sempre estão artilhados para puxar da cartola, um inesperado "coelho" interessantíssimo !
E então, se lhe acrescentarem mais uns "piclezitos" que sempre são tentados a fazer, ou o apimentarem q.b, é um espectáculo !...
Às vezes não se distingue bem onde termina a verdade e começa a fantasia ...

São pessoas com perfis extrovertidos, boas conversadoras, desinibidas e muito simpáticas.
São elas que forneceriam o material mais rico e interessante, para a escrita de memórias ... as suas memórias !

Eu não.
A minha vida, demasiado enquadrada, previsível, com poucas atribulações e desvios do trilho comum, quase sempre expectável dentro do figurino dito de "normalidade", não conseguiu  rechear-se com grande coisa que valesse a pena.
Nunca me relacionei com muita gente, sempre fui pacata, recatada, tímida mesmo, o que me impediu de ter diversificado e enriquecido o meu círculo de relações, por aí além.
Sou portanto, nesta perspectiva, uma pessoa desinteressante !...

Em tempos conheci a Marta.  Já lá vão uns anos.
Era na altura uma mulher só, simpática, cordial, sem ser excessiva nas relações.  Profissionalmente, reconhecida, parece.
Não chamava a atenção, era discreta, sem ser sobranceira tinha um certo requinte na forma como se apresentava. Era pacata, insuspeita.
Adivinhava-se-lhe por isso, uma das tais vidas " enquadradas, previsíveis, com poucas atribulações ou desvios do trilho ". Sem "mácula", digamos.
Por vezes perguntávamo-nos qual seria a real história da vida da Marta ... Inevitavelmente havia especulação e curiosidade ...
Mas não mais.

Entretanto, porque mudei de hábitos diários, perdi-lhe o rasto e deixei mesmo de a ver .

Anos depois, em conversa de café, a propósito não sei bem de quê, a personagem  Marta foi abordada.  Quem falava, parecia estar por dentro e saber o que dizia.  A charada desfez-se.

A Marta, tinha na verdade uma vida dupla.  Muito poucos o sabiam .
Inconformada com uma vivência que não a preenchia, com uma necessidade insaciável de emoção para se sentir viva, farta da tal existência cinzenta, enquadrada, convencional e tradicional, presa a grilhetas morais que a cerceavam, e como um vulcão que a queimava, desenvolveu em si um alter-ego que a transformava noutra personagem.
Os seus dias e as suas noites passaram a ser o avesso e o direito, de uma mulher que inconformada,  procurou o seu destino !

Resolvi apor o título de "Night and day " a este meu post.  Entende-se claramente porquê.
Afinal, ele narra uma  história,  na vida real, da personagem literariamente  fantasiada por Joseph Kessel, levada ao cinema em França em 1967 e interpretada magistralmente por Catherine Deneuve -  "Belle de Jour" !

Anamar

quinta-feira, 17 de maio de 2018

" O QUE SOMOS ... POR QUE SOMOS ? "





O ser humano é resiliente.
Talvez seja apenas uma questão de sobrevivência, não sei, mas sempre arranjamos estratégias para aligeirar cargas, para reganhar optimismos, para ultrapassar dificuldades e manter o ânimo imprescindível à vida.

A existência de cada um é moldada desde a nascença, por muitos e determinantes factores.
Desde logo o pacote genético que independe de nós, e que transportamos nos cromossomas que nos formam.
Essa herança genética enraíza-se lá para trás, numa transmissão continuada de sinais, de informação e características  que retrocedem gerações fora, muito além dos nossos progenitores, a antepassados tão recuados quanto impensável.
Como uma árvore que se alicerça na raíz, progride nos ramos, ascende à folhagem, engalana-se nas flores e multiplica-se pelos frutos, assim é o ser humano, cuja estrutura, poderemos dizer, ser semelhante.
Essa, a origem biológica da espécie.

Depois, o Homem integra-se numa família, numa tribo, numa comunidade, numa sociedade determinada.
E aí, toda a aprendizagem recolhida pelo "modus vivendi" dessas estruturas grupais, esculpe e delineia cada perfil, de "per si".
As culturas, que incluem linguagens, religiões e toda a panóplia de regras sociais, morais e antropológicas, os media e todos os instrumentos que conhecemos, manipulam e formatam cada ser .

Finalmente as relações inter-pessoais,  quase sempre difíceis, paradoxais e contraditórias tantas vezes, as relações emocionais e afectivas, particularmente sensíveis, continuam a burilar  as personalidades e a fazer de cada um, aquilo que ele é.
Essa aprendizagem incessante, estabelece balizas, dá limites, socializa em suma, o ser vivo.  Fornece-lhe aprendizagens, transfere-lhe  competências, como sejam o diálogo, a troca de opiniões, a dialéctica, de preferência construtiva, no sentido de uma valorização pessoal e social, no sentido da construção de uma estrutura sólida.
Felizmente que as imposições biológicas conflituam frequentemente com a bagagem cultural de cada indivíduo, conferindo-lhe a liberdade de não ser liminarmente reduzido a robot.
Nessa dicotomia, cada ser reganha a capacidade de livremente, ser aquilo que escolhe ser.

Daí a diversidade humana.
Daí advém a sua forma e a sua  capacidade para enfrentar a realidade.

É portanto com toda esta panóplia de "armas", com toda esta diversificada bagagem, que o Homem se faz à estrada, lutando pela sua sobrevivência na base de um equilíbrio, quantas vezes periclitante e precário.
E aí a resiliência, o poder de aceitação, a superação, a coragem e a determinação, são as nossas mais valias, na luta do dia a dia.
Quem as tem, terá seguramente uma visão da vida menos amarga, mais despreocupada, optimista e "soft".
Quem as tem, é um resistente e consequentemente, um sobrevivente nesta saga que é o estarmos vivos !...

Anamar

quarta-feira, 16 de maio de 2018

" SILÊNCIO "






E desceu sobre mim a quietude
um silêncio de dia inacabado ...
sonho que em mim foi amputado
quando a noite me envolveu em negritude ...
Sonho que sonhei em doce jura
Sonho desenhado à cabeceira
Trazido e deixado à minha beira
por aquela ave que o ninho já procura
E a noite que caminha e já me abraça,
solta as lágrimas desta mágoa tão sentida,
por aquele sonho ser inacabado
e eu nele ter acreditado
como se ele viesse devolver-me a vida ...
E agora o que me resta é o caminho
sem flores e sombra a ladear ...
Uma estrada em que sigo tão sozinho,
onde nem as aves vão cantar
E é longa a caminhada,  já fechou o dia
sem sol a por, sem horizonte ...
A garganta, já sedenta espera a fonte
que lhe mitigue a dor e a agonia
A morte  por aqui já ronda...
Morre-se um pouco, quando a esperança vai ...
Vai-se morrendo quando o amor se esvai     
e nos deixa, como à praia, a onda ...

Anamar

quarta-feira, 9 de maio de 2018

" UMA PALAVRA DE GRATIDÃO - 60000 entradas "





                     60000 ACESSOS !!!!!!


Amigos de todas as horas, amigos que me lêem, que vêm espreitar com alguma sistematicidade, os meus escritos, que já fazem parte da minha vida também ... são para vocês estas palavras de gratidão.

60000 entradas neste meu blogue que não tem outras pretensões que não sejam falar comigo mesma, num diálogo mudo, introspectivo, sobre tudo um pouco que me mexe, me preenche, me alegra ou me angustia ...

sobre pedaços da minha vida, dos meus sonhos, realizações e angústias ... daquela que eu sou ...

onde venho contar as minhas histórias ...

onde coloco os meus versos, quando a maré é de sonho ou memória ...

60000 entradas, não é pouca coisa !

E por isso vos agradeço de coração todo o  tempo que me disponibilizam, numa cadeia de afecto que passa pela vossa presença, pelo facto de vos sentir desse lado, ainda que não comentem, nada digam ...

É também isso que me incentiva, me anima, estimula a continuar por aqui, ainda que nos últimos tempos esteja a escrever muito menos que em anos recuados.  Fruto da vida e dos seus sobressaltos e solavancos !...

Para cada um de vocês, o meu OBRIGADA, e uma flor perfumada do jardim  do meu coração !

Anamar

terça-feira, 8 de maio de 2018

" DEVIA SER PROIBIDO ... "


                                                                               


Quando começamos a fazer balanços, é complicado.
Ontem, ao fim do dia, a despedida de mais uma colega de profissão, amiga também, exactamente da minha idade.
Muitos, fomos apanhados de surpresa pela notícia.  Doença prolongada, de que poucos sabiam ela padecer, não havia contudo, muito tempo.
A mesma capela mortuária onde há três semanas me despedi da minha mãe , só que esta mulher tinha menos trinta anos que a minha mãe ...

Aquela coisa de sempre : o reencontro de rostos que já não se viam há tempo, porque os aposentados, erradamente deixam de se encontrar.  Parece não haver vagar, não caber no calendário, não terem espaço numa agenda que deveria ser, obviamente liberta.  Mas não !
Nestas circunstâncias rumamos todos, fazemo-nos presentes, como se nos tivéssemos separado ontem.
São as flores, o aperto na alma, a penalização no olhar e no coração, as palavras de conforto aos familiares ... os momentos de recolhimento frente à serenidade de quem parecia apenas dormir.
E depois, depois ficamos a falar uns com os outros, como se em intervalo na sala dos professores, estivéssemos.
Lembramos coisas, recordamos pessoas, fazemos estatística dos que já nos antecederam ( e foram já tantos ! ), sabemos de outros tantos que ameaçam estar na calha ... Terá sido o amianto que toda a vida nos cobriu, sobre os pavilhões ?  Havia de se fazer um levantamento do número dos que já partiram ... reféns da maldita doença ...
Falamos dos filhos .  Tem-los cá ?  Porque muitos, mas mesmo muitos, os têm em países estrangeiros, na busca de segurança e futuro mais digno.
Até porque, ao longo da vida permutámos os nossos filhos com os dos colegas, no ofício do magistério.  Frequentaram a mesma escola, a nossa escola.  Conhecíamo-los bem.
Pergunta-se pelos netos.  Mostram-se fotos, vídeos ...  Oh, tão fofinha !  Parecida com a mãe.  Dá-lhe um beijinho.  Sempre foi uma aluna impecável e trabalhadora ...

E regressamos a casa.  Mais pobres.  Mais tristes ...
O vento cá fora, desabrido apesar de Primavera, ainda nos desconforta mais.  O coração apertado, contrito.
Nem a piada de recurso daquele colega que anunciava ter resolvido não comparecer mais aos funerais dos colegas, como protesto por eles também não comparecerem ao seu próprio, nos amenizou o estado de espírito !

E quando nos despedimos, sempre a mesma frase repetida : até à próxima.  Que não seja pelo mesmo motivo !...

É assim a vida !
Dizia a minha mãe : " na cadeia e no hospital é que se reconhecem os amigos ! "
Eu acrescentaria ... e na partida também !...

Amanhã haverá sol.  O céu estará azul, os pássaros irão cantar.
Será Primavera mesmo, em toda a sua exuberância.  O verde, as flores, toda a Natureza estará pujante e plena.  Haverá risos, será leve a vida !...

Por isso, devia ser proibido morrer-se !...

Anamar

segunda-feira, 7 de maio de 2018

" O PRIVILÉGIO SUPREMO "




Mais um primeiro domingo de Maio ...
Para as gerações actuais, mais um Dia da Mãe.  Para mim e para os da minha geração, acredito que um dia atípico, ao qual nunca aderi.  Desde os bancos da escola, o dia que homenageava as mães, sempre foi o 8 de Dezembro, feriado religioso que venera Nossa Senhora da Conceição, dita a Padroeira de Portugal, mãe de todos nós ...

Bem pequenita, já rabiscava uns desenhos numa folha de papel, que a minha professora dobrava cuidadosamente, engendrando um cartãozinho de felicitações para orgulhosamente lhe oferecer.
Curiosamente, ainda há pouco, ao mexer nos guardados da minha mãe, na casa que estou a desfazer, me encontrei com muitos destes postaizinhos, arquivados religiosamente por ela ... como se de verdadeiros tesouros se tratasse ...
E tantos anos já passaram !...

Por isso  ontem, por defesa pessoal minha, três semanas decorridas sobre a partida da minha mãe, procurei,  por maioria de razão, esquecer o dia que actualmente se comemorava ...

Mãe não tem dia, nem mês ... Mãe é todos os dias, desde que lançámos ao mundo uma criaturinha nascida e formada dentro de nós... com todo o amor com que a concebemos .
E desde então, sê-lo, é uma tarefa "non stop", para o bem e para o mal, em jornada permanente.
Sê-lo, é o maior privilégio de que um ser humano pode usufruir.  E esse privilégio é a bênção que só uma mulher pode experimentar !

A minha mãe foi, de facto, um ser ímpar.  Talvez todos digamos exactamente isto, àcerca da sua própria mãe. Admito-o.
Mas, comparo muitas vezes a pessoa que ela era, e a pessoa imperfeita e incompleta que eu sou.
Nunca conheci ninguém tão generoso, abnegado, disponível, com um espírito de sacrifício total em prol de  todos da pequena família que nós somos, fosse eu, sua única filha, fossem as netas, fossem os bisnetos ...
Nunca conheci ninguém que nos devotasse um amor tão imenso e incondicional, esquecendo-se de si própria e vivendo sempre para todos nós.
Nunca conheci ninguém  tão de bem com a vida, como ela, sem exigências, sempre aceitando o que aquela  lhe destinava.
Sempre viveu a felicidade e as alegrias, as realizações e os sucessos de todos.  Sempre se envolveu e esteve presente, nos momentos mais difíceis na vida de cada um.
Foi a pessoa que sempre, mesmo nos últimos tempos, quando a cabeça já não era clara a discernir o que a rodeava, mais se preocupava comigo ... com a minha saúde e as minhas inquietações ... E sempre me dizia : " a mim não escondes nada. Conheço-te desde pequenina"...
Eu sorria e completava : "desde que nasci, não é, mãe ?"...

E assim viveu  feliz, toda a sua longa vida, sentindo-se sempre um ser abençoado !

Ainda que não estando já fisicamente perto de nós, o desígnio imenso que o destino lhe imputou, jamais terminará.  Onde quer que esteja, continuará a sorrir e certamente velará por todos os que amou e ainda por cá continuam ...

Mãe, é  isto mesmo !!!...

Anamar

sexta-feira, 4 de maio de 2018

" A FOTO "





Normalmente nas minhas escritas adiciono uma foto, um vídeo, enfim, algo com que acho valorizar o que escrevo.
Desta feita, escrevo sobre uma foto ... esta, exactamente esta !

Tem esta foto, gratas memórias para mim.  Digamos, que memórias gratas por inusitadas, por incomuns, por engraçadas ... memórias vivas.
Remontam a um período da minha vida sui-generis, já lá vão alguns, razoáveis anos. 
Um período em que me pus em pé, depois de tormentas atravessadas.  Um período de reabilitação e ressurreição, depois de uma turbulência sem tamanho.  Um período de me repintar, depois de um cinzentismo nebuloso e insípido  me ter tomado, parecendo não haver mais luz ou cor à minha espera.

Talvez por isso, ou mesmo por isso, escolhi para mim, na altura,  como fetiche, esta imagem espantosa, de plenitude, esperança, vida, sonho, liberdade ... Tudo o que eu precisava desencavar então, do buraco fundo onde me encontrava.

Tudo isso eu precisava voltar a vivenciar .  Tudo isso eu agarrava então, com toda a força preênsil dos meus braços, com toda a ânsia das minhas mãos, com toda a fé do meu coração.
E fi-lo com uma "fome" de vida que urgia voltar a sentir.
Fi-lo, com uma entrega de alma que me animava o âmago.
Fi-lo, num mergulho alucinado, de cima da falésia, não importando se me salvava ou me perdia, não importando se encontrava rocha ou tapete de flores à minha espera.
Era preciso que me sentisse viva, apenas !

Atravessei um tempo estranho, incomum, desconhecido, insuspeito.  Saltei baias, desafiei limites, enjeitei convenções.  Tapei os olhos, os ouvidos e a boca e deixei-me ir, na doçura do bote à deriva nas águas mansas de um riacho sereno.
Fiz descobertas, medi-me, tomei-me o pulso, alucinei-me talvez ...  saboreei o sal, o doce e o amargo.
E sinto-me muito grata por isso.
Fiz uma travessia no desconhecido e sinto-me abençoada por o ter feito.  Descobri ilhas inóspitas, galguei montanhas, desci ravinas, percorri desertos ...  Voei com o condor, senhor dos rochedos. Planei com as gaivotas, no auge de liberdades plenas. Tornei-me muitas, sendo uma só.  Senti-me sufocada de emoções.  Desafiei o escuro com o sol a pino ...

E saí-me bem.  De tudo me saí bem.  Mais feliz, mais mulher, mais eu !

E sinto-me privilegiada, incomensuravelmente privilegiada, porque posso olhar para trás e sorrir docemente, cúmplice com a vida que foi generosa comigo e me mostrou valer a pena vivê-la, sempre, porque tudo é sempre surpreendentemente ENORME, pelo facto de nos sentirmos vivos !

Anamar

quinta-feira, 3 de maio de 2018

" INGENUIDADE "





Uma porta, duas janelas
era o tamanho do sonho
que sonhei, sonhei, sonhei ...
até que um dia cansei
de vê-las sempre cerradas ...
E havia uma cancela,
malmequeres, um lilaseiro,
e o mar bramia por perto
em veredas já cansadas
Do outro lado, era a serra
com o vento em desalinho,
E as arcas guardavam sonhos
por entre os lençóis de linho
As tamareiras selvagens
conheciam os segredos
que lhes confiara um dia ...
E as trepadeiras subiam
ao alto, p'la cantaria
As juras que de amor fiz,
p'ra todo o sempre as selei ...   
E do peito onde as guardei,
roubou-mas a ventania !

Mas mataram-me este sonho
nos sobressaltos da vida ...
Sumiu como as andorinhas
que partem em despedida
As gaivotas já não pousam
nas traves dessa cancela,
e a porta e as janelas
têm o tamanho da dor,
têm o tamanho do amor
que viver ali, sonhei ..
E as lágrimas que hoje correm
em desnorte, pelo monte,
fecharam-me o horizonte,
porque do sonho, acordei !...

Anamar

quarta-feira, 2 de maio de 2018

" ENQUANTO O TEMPO PASSA ... "




Enquanto o tempo passa !...

Acordei cedo, o que não é normal em mim e fiquei no quente do édredon a olhar o tecto do quarto.
Percebia o cinzento lá fora, pois já me acostumei a adivinhar a cara do dia, pela claridade que me entra da janela que sempre fica aberta.
O tecto do quarto não tem nada de especial, juro, mas tornou-se inesperadamente no écran gigante por onde se foi desenrolando uma película fantástica : a história da minha vida ao longo do ano que mediou entre 2 de Maio de 2017 e este 2 de Maio que me amanheceu.
Um ano exacto da minha história, repleto de tantos acontecimentos que o tornaram transbordante ...

E porquê hoje ?  E porquê esta referência particular ?

Faz exactamente um ano que completei a última das três tarefas "exigíveis" ao ser humano antes de partir : tendo já plantado uma árvore, tendo já feito um filho, publiquei neste dia, um livro de poesia, sonho enorme que supunha irrealizável, e  me acompanhara desde menina.
Mas muito para além disso, e mais gratificante que isso, se o posso afirmar, foi a felicidade de, por esse motivo, ter reunido à minha volta os meus familiares próximos, os meus amigos, os expectáveis e os improváveis, os de perto e os de longe e ainda ter reencontrado, com uma alegria ímpar, amigas que deixara mais de cinquenta anos atrás, lá longe, no meu Alentejo, e que quiseram estar presentes, tornando o meu dia num misto único de sentimentos, numa perfeição total de estados de alma, numa completude sem igual, e que eu sei lá se merecia ?!...
Foi um dia imenso, que jamais terminará dentro de mim.  Um dia em que a festa foi linda, em que os risos e as lágrimas se misturaram.  Um dia em que as emoções me sufocavam e em que eu fui de facto, feliz !

Mas se este evento foi o expoente máximo  do júbilo, da alegria, da realização pessoal,  terei que assinalar como seu inverso, um dos dias mais tristes, sombrios e gélidos da minha existência : o passado próximo dia 11 de Abril, dia em que a minha mãe me deixou.  Esse dia, em que a orfandade absoluta me tomou, em que a escuridão uma outra vez desceu à minha vida, em que muita coisa deixou de fazer sentido, pintou de negro a minha alma e o meu coração, duma forma irremediável !
Obviamente estou a tentar reunir os cacos, a consertar os farrapos, porque o tempo faz-se todos os dias e a vida tem de continuar o seu trilho.

Olhando, pensando, lembrando, reflectindo exactamente sobre o meu percurso, neste deixar voar o pensamento, percebi ainda tantos altos e baixos, tantos escolhos e baixios em que tropecei nesta escorrência temporal.  Perdas doídas e sangrantes, com cicatrizes fundas cravadas indelevelmente no coração.  Voltas e reviravoltas inesperadas e injustas com que o destino nos experimenta e põe à prova, sem complacência ou piedade. Mágoas que se eternizam e parecem vir p'ra ficar. Incompreensões e incapacidades. Portas que se fecham e janelas que não se abrem.  Tempestades sem bonança, quando a exaustão nos joga ao chão ... Enfim ... talvez, simplesmente, vida !

Ganhos também, seguramente.  Nesgas de azul no meio da negritude.  Lufadas de ar, na sufocação da desistência.  Anjos que descem para nos afofar o travesseiro, ou nos aparar na queda iminente.  Braços que acolhem, amparam e embalam.
Sempre os afectos a atapetarem-nos o caminho . Sempre os bem-quereres a mostrarem-nos que talvez valha a pena acordar por cada dia, levantar e encarar o amanhã ... porque teremos por perto as escoras, as âncoras  e amarras  no molhe da nossa vida, mesmo quando o mar se agiganta e as marés alterosas parecem engolir-nos o horizonte !

Depois, lembrei outro dia  de uma alegria sem tamanho, de uma felicidade sem dimensão : o dia 15 de Junho, dia que a Teresa escolheu p'ra chegar a este mundo.
O meu quarto neto, a menina linda que ela é, veio mostrar-me que as nossas existências são afinal de perdas e ganhos, de partidas e chegadas, de dores e felicidade, neste caminhar adiante, sempre adiante... e que depois de nós ficarão os que transportam pedaços de nós em si, à revelia de vontades ou desejos.
Acredito que a Teresa tenha sido uma bênção que desceu à minha vida também, uma luz acesa no ocaso que me aguarda, tenha sido a acalmia que urgia, nos vendavais do destino, e que seja mais uma razão para que eu continue a alimentar a esperança e a confiança no amanhã ... apesar deste tempo implacavelmente célere que ainda nos surpreende, como onda gigante  que varre as nossas vidas !...

Anamar

terça-feira, 24 de abril de 2018

" O SALGUEIRO QUE EU AINDA NÃO SOU ... "






Nem tudo é mau com o transcurso dos anos,  nas nossas vidas.

Sou uma pessoa genericamente muito afirmativa, talvez peremptória, com a mania que tenho algumas certezas face a muitas coisas.  Como se tudo não se alterasse em continuidade, e a imutabilidade não fosse a maior inverdade das existências...
Daí que não seja avisado, muitas vezes, espaldarmo-nos em verdades pseudo inalteráveis.

Esse aparente pragmatismo advém-me de alguma contenção que me imponho, antes de tomar posições, evitando impulsividades,  gestos irreflectidos e atitudes precipitadas, de que possa vir a arrepender-me.
O facto de há já alguns anos atrás ter optado por ficar só na vida, obrigou-me a, por defesa, sobrevivência e cautela, ponderar tudo com o máximo cuidado e pelos diversos ângulos possíveis.
Habituei-me também a escutar mais, a tomar em consideração outros pontos de opinião, outras sensibilidades ... em suma, outras formas de ver as coisas.

E de muito irredutível e musculada nos pensamentos e opiniões, passei felizmente, a assumir uma bonomia maior perante a vida, apurando uma maior capacidade de cedência, evitando análises extremadas e preferindo o acordo à contenda, tentando consensos, quando há que decidir.

Em jovem, ou mais jovem, quando nos achamos um pouco "donos do mundo", podendo tudo a qualquer preço, quebrava em vez de vergar.
Sangue na guelra, dona de verdades muito mais absolutas que hoje em dia, reconheço a inabilidade com que algumas vezes resolvi certas situações, ao longo dos tempos.
Perdido por um, perdido por mil ... na forma irredutível de ir adiante, ou, antes quebrar que torcer ... dizia o meu diabinho interior ...
Como se essa atitude aproveitasse, e o orgulho fosse uma forma saudável de me pautar .

Hoje, procuro usar a filosofia sábia da água, que perante um obstáculo, contorna e segue o seu caminho.
Sem dúvida, uma atitude de maior inteligência e temperança, tenho que convir. Uma atitude mais assisada e menos desgastante, mais inteligente e proveitosa.

Mas isso, foi a passagem dos anos, que limando arestas, conferindo-me maturidade, mostrando-me a relativização na importância das coisas, penalizando-me com algumas cicatrizes existenciais, me transmitiu a paz interior e o discernimento para nunca radicalizar, para procurar soluções de convergência, para desenvolver um esforço que reconheço será meritório, no sentido de um maior aperfeiçoamento possível  da minha personalidade.

Em suma, tentar aproximar-me cada vez mais do salgueiro que ainda não sou, e deixar de ser o carvalho que já fui ...
Como diz um amigo meu, a postura diferente destas duas árvores na Natureza, é que derruba quantas e quantas vezes o carvalho, e salva o salgueiro, nos ventos fortes das borrascas da vida !

Anamar

segunda-feira, 23 de abril de 2018

" COISAS DE MULHERES "





O dia amanheceu de borrasca, mas a tarde compôs.  Um sol amarelo adocicado de Primavera emoldurava a paisagem.  A estação não enganava.  Os pássaros chilreavam em devaneios de acasalamento.  A excitação das urgências libidinosas, neles como nos seres humanos, começavam, ainda o dia esfregava os olhos ensonados.
Sempre assim é.  Esta estação é poderosa.  O sentido da renovação, remoça-nos, torna-nos capazes, crentes, imparáveis, irresistíveis.
De repente há um acreditar generalizado de que a vida reinicia mesmo.  Saímos das trevas dos Invernos escuros e olhamos de frente a luz da vida, com que o sol ilumina e pinta os nossos sonhos.
A vontade dispara, a força multiplica-se, a esperança agiganta-se e, da noite para o dia, ficamos outros, tornamo-nos outros, surpreendentemente, o milagre opera-se ...

Lembrei uma tarde igual a esta, naquela mesa de café, à beira-rio, faz tempo.
Também havia chovido toda a manhã e custámos a confirmar o encontro pela tarde.  Afinal, o dia não garantia nada seguro.  Mas acabámos por ir, num Abril lá para trás, com um sol amarelo adocicado de Primavera ... como hoje, a emoldurar a paisagem.
Como sempre, falar das "nossas coisas",  " arear os talheres", como diz um amigo meu ... inevitável entre mulheres, quando se encontram.
Há sempre um atraso notório ... Ainda não te contei,  cheguei a dizer-te ?   Imagina tu ... e por aí adiante.
Ela estava apreensiva, um pouco silenciosa demais para o hábito.  Estranhei-a.  Mas connosco era questão de começo.  Como as cerejas, as conversas não se negariam.

Acreditas que a última vez que fizemos amor foi há mais de dois anos ?  Sei exactamente qual o dia.  Já então a nossa relação resvalava.   Ele nunca entendeu.  Uma mulher só faz amor se houver amor, se houver afecto, se houver romance, história.  Se houver lastro afectivo e emocional, cumplicidade.  Caso contrário, uma mulher faz sexo.  E juro-te, é muito mais fácil fazer sexo, que amor.  O amor implica dádiva, partilha, presença.  O amor tem códigos secretos, linguagens, memórias, imagens.  Deixa rasto, marca uma mulher.  O sexo não.  O amor faz-se de perto ... não com lonjura ...
E ele deixou de ter tempo para mim ... para nós.
Havia um fosso cavado dolorosamente, já então.

Eu olhava-a em silêncio.  Conhecia a história ao pormenor.
Juro que vi raiva, mágoa e dor nas lágrimas que lhe afloravam os olhos e que custava a dominar.
Mantive-me em silêncio.  Se quisesse ser honesta com ela, ela sabia exactamente o que lhe diria. Talvez hoje não quisesse ouvir ... Era uma mulher profundamente sofrida ! Uma mulher decepcionada face à vida ... triste, quase desinteressada.
E continuei apenas uma ouvinte atenta.
As amigas têm estas partilhas, a qualquer preço.  Contra tudo e contra todos.  A solidariedade e o afecto, um afecto fraterno consegue torná-las muros de lamentações silenciosos.
Não julgam, não censuram.  Choram junto, vibram junto, festejam junto ... mas sem juízos ou recriminações.  Com um entendimento que eu acho ser coisa de género.

E depois, ele começou a afastar-se mais e mais.  Sempre tinha justificações que não me faziam sentido. Nem podiam.  Afinal, para mim, a união, a partilha das dificuldades é que poderia tornar-nos fortes, corajosos, vencedores.  Quando se quer, não se abandona.  Quem ama, não promete ... faz.  Sempre encontra forma de fazer.
Mas ele nunca o fará.  Eu sei que não conseguirá fazê-lo. Ele nunca será capaz de alterar o esquema cómodo em que vive.  Os homens acomodam-se.  Acobardam-se.  Não enfrentam.  Também é coisa de género. E auto-justificam-se, numa comiseração consigo mesmos, que dói ...
Arrastam uma infelicidade sem tamanho, compensam-na com infidelidades mais ou menos satisfatórias e romanceadas, e seguem sempre o mesmo caminho.  Continuam no mesmo trilho.  Aquele que conhecem e lhes é mais cómodo.
Achas que alguém pode viver assim ?  Achas que se suporta indefinidamente uma insatisfação, ano após ano, semana após semana, fins de semana, férias, festas ... só... completamente só ?
Isto é uma relação entre duas pessoas ?
Ele achava que sim, e que eu, porque o amava, o esperaria indefinidamente.  Eu continuaria ali sempre, se preciso fosse, até que a vida lhe permitisse alcançar os patamares que considerava imprescindíveis para assumir a relação.
E eu fui vivendo, de facto.  Tanto sofrimento, tanta mágoa na minha vida então ... como sabes.
Tanta insegurança, tanta dúvida e ansiedade.  Tudo tão escuro à minha frente.  Tantas lágrimas de impotência e desespero.  Solidão atroz.  Infelicidade que me roía as entranhas ...
Mas fui vivendo ... Só ... sempre só !
Das recordações, das loucuras, dos risos e das gargalhadas felizes, que cada vez pareciam mais longe.
Fui vivendo dos sonhos que continuava a sonhar ... Do mar e da serra, das falésias e das gaivotas sobranceiras.  Dos sítios e das memórias.  Dos cheiros, das cores, das palavras e da música que haviam feito o mágico da nossa história

As lágrimas romperam diques.  Eram de mágoa e injustiça....

Mas tu sabes, o cansaço domina-nos.  A dor corrói-nos e a angústia mata-nos.
Cheguei a hoje.  A minha vida parece-me uma fraude.  Sinto-me com o coração amordaçado.  E pergunto-me ... fazer o quê ? Perdi totalmente a fé e a confiança.  Nada disto deixa dúvida.  Sempre tudo foi rigorosamente coerente na sua postura.  Não há absolutamente nada a esperar.  Sempre tudo foi sem surpresas. Expectável.
E no entanto, tudo poderia ter sido diferente.  Daí, a raiva que sinto. A mágoa que me toma.  E tantas vezes lhe toquei os alarmes ... atenção, olha o rumo das coisas... atenção, eu não sou de ferro. Eu sinto-me só e desamparada.  Eu não tenho um ombro, um apoio ... nada ! E no entanto, nunca lhe neguei os meus ...

Diz-me ... o que faço com isto que sinto no meu peito ?  Para onde deito as rosas magoadas que tenho no coração ?  O que faço com os dias ensolarados, no azul do mar cavalgando as rochas ?  Com as matas, os pinhais, as flores vadias e insubmissas,  ou simplesmente os sonhos que sonhei ?
O que faço, quando Enya me canta docemente  que "só o tempo o sabe" ?...

Coisas de mulheres ... Todas diferentes e todas iguais.  Dramas vividos no feminino.  Dúvidas sem resposta.  Histórias sofridas, estradas percorridas vezes sem conta ... sem saída, bifurcação ou sequer escapatória !

Era uma tarde de Abril, com um sol amarelo adocicando a paisagem ...
Onde é que eu já ouvi algo semelhante ?! ...

Anamar

sábado, 21 de abril de 2018

" ... PORQUE ... "





" Eu escrevo porque respiro´
e escrevo p'ra respirar "...

Verdade absoluta que constitui uma estrofe de um dos meus poemas.
Eu sempre o soube claramente.  Não tinha talvez ideia do seu alcance.
Neste momento não escrevo, pouco escrevo, tenho uma claustrofobia na alma, sem tamanho.  Sinto uma sufocação de mordaça.  Vivo o silêncio de um coração que parece manietado.
Está pesado, pesa o mundo inteiro.  Tenho o mundo inteiro dentro do meu peito.

Entardeci de dia ensolarado.  Acinzentei como esta Primavera que mostra tantas caras, que nos surpreende.  Uma Primavera que parece doente.  Como se Abril não tivesse direito às  suas "águas mil " ...
Nada ou quase nada me impede de escrever.  Mas estou entupida de palavras que não saem.  Estou engasgada de sentimentos que se atropelam e não escorrem.  Estou atravancada  de contradições, inseguranças, mágoas e dores que não vazam.
A vida está-me descolorida.  Racionalmente descolorida.
Acho  que  perdi  a  capacidade do sonho, do  encantamento,  da  utopia, da  loucura ! Da  leveza ...

"A idade é só um número", dizia o David que conheci em Bali.  Parecia ser sabedor, o David.  A sabedoria  desse tal número ! ... Partiu há muito.  Deixou-me um molho de cartas trocadas, pequenas flores secas roubadas dos jardins, nos seus passeios matinais.
Sim, porque o David gostava, como eu, de ver nascer o sol em Bali.  Só nós dois, na praia, àquela hora.  Nós dois, os oitenta e muitos anos do David, o meu inglês que apenas chegava para nos comunicarmos ... e o sol, a nascer lá longe, num horizonte inesquecível ! A magia daqueles momentos !

Nos tempos em que eu ia à aventura, com a adrenalina de viajar só, solta, livre.
Vivia sozinha.  Acabara uma relação.  Juntava os cacos para me consertar.  Reunia pedaços p'ra me por em pé.  E saboreava o gosto do inesperado, do novo, do inédito, do possível.
E muita coisa era possível, então.  E as coisas tinham gosto, um sabor surpreendente, porque eram novas, inesperadas, surpreendentes mesmo ...  Coisas de valer a pena !
E as coisas eram coloridas.  Tinham as cores da ânsia que eu tinha de voltar a dar-lhes sentido.  Porque dar-lhes de novo sentido, era remoçar, recomeçar, acreditar, agarrar com ambas as mãos ... era viver ! Talvez renascer ...

Hoje, sinto-me como crepúsculo de tarde ociosa.  Sinto-me como se o David me tivesse enganado rotundamente.  Talvez a idade seja mesmo um número ... no meu caso.
Sinto que nada de novo sou já capaz de fazer, na minha vida.  Parei de sonhar, de querer, de lutar, porque não há por que lutar, afinal. Estou cansada, esgotada, asténica ...
Sinto a vida suspensa, sinto-a parada em águas mornas e sinto em mim o susto de a viver até ao fim, exactamente assim ... em águas mornas. Águas pútridas ... infectas ... Águas paradas, de pântano lodoso.


Precisava das pinceladas de Deus ou do Diabo, nesta aguarela insípida, de tons pastel.
Precisava  de revivenciar utopias.  Levantar voo nas asas do pássaro, rumo ao infinito. Ser tão livre quanto as águas do regato que corre sem perguntar porquê ... tomar a aragem que passa, e ir ... simplesmente ir ... sem perguntar onde, neste alvoroço de sonho incompleto, sempre por sonhar ...
E talvez pela primeira vez, me sinta com escoras que me prendem ao chão, me sinta com umas raízes tão fortes que nem um vento de tempestade arranca, me sinta como o barco cujas amarras jamais o soltarão do cais.  Deste meu cais ...

Hoje, aqui e agora, irreversivelmente entristeci.  Haverá pior que um barco parado que olha o vai-vem das marés ?!

E como eu precisava sentir que afinal estou viva ... apenas esqueci !...

Anamar

terça-feira, 17 de abril de 2018

" AS PERDAS "



Estranho tempo este em que pareço ter perdido o rumo e desconheço o norte !
Estranhos dias estes em que um vazio instalado me gela por dentro e me sufoca o coração.  Lágrimas secas que apenas sangram para dentro, deixam-me numa letargia esquisita de ser hibernante que recusa abrir os olhos aos primeiros raios de sol que deveriam conferir-lhe a vida do recomeço.
O sono é o único bem estar que me aquece a alma.  Um sono profundo de um silêncio que me anestesiasse de tudo o que me cerca e que pareço desconhecer, seria o desejável ...

Sei que talvez tudo seja normal, compreensível, aceitável.
Será por certo assim com todos os seres humanos, quando de repente a vida parece suspender-se numa qualquer esquina, as cores empalidecem e parece não se justificar ou entender a razão de se continuar ...
Sei que a racionalidade me aponta o bom senso dos factos, me explica a paz misericordiosa do desfecho.
A racionalidade sim, e até mesmo o meu desejo, quando pragmatizo e esfrio a mente, me apontavam há tempo demais, para a saída final e digna para a minha mãe.  A única, decente, que o destino lhe deveria oferecer : a sua partida mansa, sem sustos ou angústias.
E isso, acredito que terá acontecido.
Pelo menos a vida ter-lhe -á feito justiça !

Eu continuo na guerra sem tréguas entre a logicidade dos factos, a adequação dos mesmos, a objectividade de tudo o que não tem mais discussão ou retrocesso, numa ressaca sem tamanho, e aquela que eu sou, bem no meio de mim mesma.
Uma luta perdida, sem apelo, entre a cabeça e o coração ... e no meio de tudo isto, a orfandade que sinto, a saudade do bem vivido e partilhado, o desânimo sem remédio,  o buraco no peito ...
Deve ser normal tudo isto, seguramente ...
Mas dói.
As perdas inevitáveis dos nossos percursos, empobrecem-nos dolorosamente, deixam-nos à deriva como barco cansado em meio do temporal, deixam-nos entontecidos, como mariposas  perto da luz, deixam-nos como caminheiro sem farol ou bússola, em céu sem lua ...

Tantas perdas têm as vidas ... Tantas ironias preparadas pelo destino ... Tantos becos sem saídas satisfatórias ... Tantas estradas sem alternância credível ...
E vamos nadando como náufragos, na urgência de nos mantermos à tona.  Vamos tapando e destapando daqui e dali, a manta de retalhos em que se nos transforma a alma.

Lido muito mal com as perdas.  As perdas que me têm recheado a vida.  Acho-as contra-natura, como qualquer amputação imposta.  Perdas de gente morta, mas também perdas de gente viva.
Repito ... será por certo assim com todos os seres humanos.
Contudo, ainda acho que cada um vivenciará o que se lhe depara, de forma diversa, de acordo com muitos factores, características e capacidades.
Eu fico perdida, confusa, num estado de catalepsia que me paralisa, e me retira aquela força anímica que nos põe em pé por cada dia, como numa vida com ausência de objectivos, horizontes ou sonhos ...
Eu fico exaurida, esgotada, numa letargia de bicho embiocado na toca, numa escuridão de cerração que desce sobre a Terra, numa lassidão de ave ferida que não levanta voo ...

Estranho tempo este ... estranhos dias estes em que o cansaço é a nota dominante, e o cinzento a cor que pinta as minhas horas ...

Anamar

sábado, 14 de abril de 2018

" AS ÚLTIMAS PALAVRAS "




A minha mãe foi cremada.
Num dia triste, cinzento, de uma intempérie sem tamanho  apesar da Primavera já se ter instalado, será reduzida a pó, aquele pó que nos faz, aquele pó donde vimos e onde terminamos.

Quando se perde alguém muito nosso, um vendaval varre-nos sem piedade, um raio atravessa-nos e rasga-nos as entranhas ... uma faca afiada dilacera-nos o coração.
É como se fôssemos uma árvore desgrenhada, ameaçando sucumbir à força da ventania, à mercê da judiação do destino !
O tempo associou-se afinal à minha dor ...

A minha mãe viveu noventa e sete anos de uma vida pacata, simples, sem exigências ou pretensões.  Viveu o seu dia a dia mais em função dos outros, do que de si própria.
Privilegiou a família como esteio para a sua vida.  Vibrava com os seus sucessos,  doía-se com as vicissitudes menos boas do destino.
Era generosa ( muito ) .... disponível, presente  sempre.  Dava-se sem condições.
Escolheu o dia do seu aniversário para partir, fechando um círculo perfeito de vida.  Escolheu, como que a dizer que não a esquecêssemos.  Como se a pudéssemos esquecer algum dia!
Ironizou com a rota determinada.  Como menina mandona e pirracenta, só foi quando quis ... em pleno dia de "festa" !
Estou certa que decidiu festejá-la com os outros, todos os outros que chamava desesperadamente nas suas demências constantes.  Decidiu que desta vez, a festa seria do outro lado.
E acho que estará em tertúlia amena, para lá do "túnel" ... onde, imagino, haverá um campo verde, com todas as flores que sempre amou.  Haverá regatos a correr, haverá fontes de água fresca e límpida e haverá pássaros a cantar. E os corações estarão leves, como a brisa azul que perpassa ...
E tanta coisa teriam a se dizer ... tantos os que lá estão !...

A minha mãe foi, e uma orfandade atroz, desceu-me.  Uma sensação estranha de desconforto e abandono, um vazio gélido, de amputação, cortou-me metade do coração.  E esta metade não tem como repor-se ... nunca !
Dou por mim já, a ir ali, conversar com ela ... a dizer-lhe as últimas.  A dizer-lhe como teve tantos amigos em seu redor, na partida.  A contar-lhe como foram lindos os ramos, com que lhe perfumaram o leito.  E como ela estava linda, serena, cheirosa e quase sorrindo, num adormecimento cálido e doce de quem partiu em paz !

Mas não será preciso.  Vou deixar isso para mais tarde, porque hoje eu sei que ela, feito luz, foi
pairando por ali, como mais um ponto luminoso que nunca se irá apagar, no firmamento de breu que tantas e tantas vezes é a nossa existência!
Hoje estou mais "rica", mais amparada, mais ajudada. Ao lado do meu pai, que me deixou há vinte e seis anos, tenho por lá agora, mais um bordão, mais um colo, mais uns braços para me guiarem neste rumo,  para me levantarem do chão, para me secarem as lágrimas ... tenho a certeza !...

Foi tudo isso que ela me sussurrou, quando trocámos as últimas palavras ...

Anamar

sexta-feira, 6 de abril de 2018

" A QUEDA DE UM GIGANTE "




Convivo com a morte da minha mãe há mais de três anos ...
Convivo de perto, demasiado perto, com uma partida que demora a fazer-se e se estende na infinitude do tempo
É um tempo de dor, de sofrimento, físico, psicológico ... uma dor que dói em todo o lado, no desespero de uma esperança arrastada, esfumada nos corredores tortuosos das existências.

A insensibilidade da degradação daquela que conhecemos, o desmoronamento indiferente e progressivo das suas últimas fronteiras de resistência, confrontaram-nos com patamares de dureza, revolta e inaceitação sem tamanho.
E sempre aquela mulher, tal como o foi em vida, disse não à capitulação, à desistência, ao baixar de braços, à perda de esperança.  Enquanto deu ...

Muito já falei sobre ela.  Tudo já falei sobre ela, de tal forma que neste momento em que espantosamente a minha mãe parece finalmente experimentar a aceitação da partida, eu não tenho mais palavras !
Neste momento, olho-a já no passado.  E algo que se olha à distância do passado, já não se exprime em palavras dos humanos.  Neste momento, da minha mãe, só sei ver, só sei pensar, só sei sentir ...
Ela vive no pretérito da minha memória.
Ela pertence à moldura que a enquadra, ao sorriso que nos acena da fotografia, ao som das palavras deixadas nos vídeos de festa.  Quando ainda nos festejávamos ao seu redor e lhe bebíamos o carinho, a dádiva e o amor ...

Neste momento, experimento um não sei quê que não explico.  Experimento a paz de também a sentir em paz, e partida para outra dimensão.
Neste momento, povoo-me de silêncios, para que as palavras não maculem esta singular provação.
Para que o rito da passagem se torne único, particular, nosso, no recolhimento da devastação que temos em nós.
Olho-a longamente. Olho um corpo esquálido recolhido no calor do ninho, como se também ele retomasse a posição fetal que um dia o protegeu no útero da sua mãe.
Olho aquela esfinge abandonada, cerrada no que resta de si própria.  Inerte.  Sem vida.
E porque acredito que entre mãe e filha, a comunicação transcenderá sempre a dimensão limitativa do Homem, porque acredito que ela perdura muito além, pelas veias onde escorre sangue igual ... e porque acredito que mesmo com os olhos cerrados ela me vê ... mesmo com os braços inertes, ela me abraça ... mesmo no silêncio das palavras, o nosso imortal diálogo sempre se fará ... falo-lhe, tranquilizo-a, dou-lhe a mão como quem guia uma criança medrosa, no atravessar de um túnel escuro.
E peço-lhe que parta em paz, que vá sem medo, que ascenda às estrelas donde se divisa o mundo ...
E que vá sem mágoa pelos que cá ficam ... porque tudo não passa de um interregno.  Na eternidade, todos os que foram tudo,  se encontrarão, e aí haverá uma festa de amor, seguramente  !

Um gigante está prestes a cair ... procurarei sempre honrar-lhe a memória !...

Anamar

quarta-feira, 4 de abril de 2018

" CONVICÇÃO "





Enquanto virmos a mesma lua, nunca estaremos tão longe assim ...

Tenho para mim que as vidas se fazem e desfazem, sem na verdade se desfazer aquilo que as povoou, as construíu, as coloriu e as preencheu.
O tempo avança, escoa-se, dobra esquinas, vence horizontes.  Os caminhos da serra permanecem intocados, os córregos que se escondiam entremeio às amoras bravas, persistem.  O gorgolejar das águas escorrentes por entre a penedia, ecoa na mata e o vento que esvoaça para cá e para lá, irá esvoaçar para cá e para lá ao sabor das memórias.
Os sítios são os sítios, para sempre.  E "sempre" é muito tempo ... muito mais do que um Homem vive !
E aquilo que se viver em vida, transformar-se-á em eco, na eternidade !
E a eternidade, essa sim, não tem medidas nem tamanho. Essa sim, tem a medida do "sempre" !

As pessoas encontram-se, cruzam-se, interpenetram as vidas e afastam-se muitas vezes.
As pessoas desfolham sonhos, desenham estórias, pintam esperanças ... As pessoas acreditam ...
E depois, as pessoas perdem-se por aí.  As palavras já não galgam as montanhas.  Os sons já não viajam nas nuvens.  As emoções já não trepam a copa das árvores.
As lágrimas transformam-se em rio de caudal incontrolável.
A linguagem encalha nos escolhos da maré.  E parece não ter mais sentido.
As pessoas que foram muito, que foram quase tudo, desconhecem-se.  E injustamente já não sabem ler no livro do amanhã !

Assim são as vidas de quase todos, acredito.
Mas  porque as vidas se fazem e desfazem, sem  na  verdade se desfazer aquilo que  lhes  pertenceu, também acredito que enquanto virmos a mesma lua no firmamento de breu,  estejamos onde estivermos, nunca estaremos tão longe assim !...

Anamar