sexta-feira, 31 de agosto de 2018

" DESÍGNIO CUMPRIDO ..."




E Agosto finou-se com temperaturas imperativas de que não devemos esquecer ser ainda Verão.
Apesar de na passada semana os dias haverem refrescado, o que nos aliviou dos mais de 40º C dos últimos tempos, voltámos de novo a ler trinta e muitos, nos termómetros.

É verdade, que na generalidade os locais costeiros já cerraram as portadas das suas casas de veraneio.  É verdade, que as escolas inauguram o próximo ano lectivo oficialmente, já nesta próxima segunda feira ... mas o lisboeta foi em força por o pezinho de molho, queimando assim, talvez os últimos cartuchos de 2018.
Isto, na verdadeira acepção do tradicionalismo do conceito de férias a sério, como desde sempre se gozaram.
Os meses ditos fortes do Verão, terminaram e Setembro já traz consigo um cheirinho à próxima estação.  Tudo em velocidade de cruzeiro ... como é a passagem do tempo nas nossas vidas !...

Lisboa, pejada de turistas, a rebentar pelas costuras ou a deitar pelo "ladrão" ... como preferirmos, é  desde hoje, uma cidade mais pobre
E sei de quem sentiria um desgosto a sério, por causa disso mesmo.
A quase centenária Pastelaria Suiça, localizada na Praça D.Pedro IV, o nosso Rossio, encerrou em definitivo as suas portas, terminando um ciclo de vida que não foi possível salvar, iniciado em 1922.

Foi um "ex-libri" da cidade, como sabemos.  Foi um ícone incontornável, geração após geração, ao longo das décadas.

O meu pai enquanto viveu, adoptou este espaço, afectivamente.
Poderíamos dizer que era figura "residente" do mesmo.
Todos os dias lá ia tomar a sua sopa, o folhado, o esquimó, o chocolate quente, o café ...
Todos os dias, mal franqueava a entrada, já no balcão se pedia familiarmente : "Sai uma canja para o sr. Coelho !..."
Dia após dia, mês após mês ... ano, depois de ano ...

O meu pai morreu com noventa anos e manteve até muito perto da sua partida, a qualidade de vida que lhe permitia ainda, quase diariamente, por lá passar.
Nascido em 1902, era um homem da cidade, onde detinha um Armazém de Ferragens. Era um cosmopolita, com Lisboa no coração.
Lá me comprava os mimos que eu adorava :  iguarias de chocolate, as amêndoas de licor se Páscoa era, fiambre especialmente cortado bem fino, quando ainda não era um género comum nas lojas, os esquimós, bolo com chocolate e chantilly que me levavam água à boca, miolo de pinhão a peso, caixinhas com línguas de veado especialmente queimadinhas ... e muito mais.

Após o seu passamento, algum tempo depois, fui com a minha mãe tomar um chá à Suiça.
Alguns empregados, reconhecendo-me, inquiriram sobre o que era feito do sr. Coelho, já que há muito deixara de frequentar o estabelecimento.
Sorri e disse-lhes perante os seus ares incrédulos e espantados : " O meu pai faleceu !  E já agora ... o meu pai não se chamava Coelho !"

Esse segredo duma vida, nunca ele havia contado !!!...  Por que o faria ???!!!



Anamar

quarta-feira, 29 de agosto de 2018

" DE COSTAS VOLTADAS "




Nada há de mais complicado, dúbio e difícil do que a comunicação entre os seres humanos.
De tal forma que quando duas pessoas conseguem alcançar um código de entendimento perfeito, ou pelo menos satisfatório, poderão considerar que alcançaram um estado de graça invulgar, uma benesse do destino ... uma bênção mesmo !

Inversamente, nada há de mais desesperadoramente frustrante, que a incapacidade de comunicação porque entre o emissor e o receptor se gerou um curto-circuito inultrapassável.
A sensação de nos explicarmos de todas as formas, de nos desnudarmos até ao âmago na ânsia de nos fazermos entender, de usarmos de toda a transparência e lisura nas mensagens emitidas ... e depois percebermos que tudo foi em vão, que à nossa frente temos um muro intencionalmente intransponível, que o receptor joga à defesa porque criou na sua mente um processo de intenções, uma postura persecutória em que à partida já antecipara definitivamente a sua leitura, a sua interpretação e inabalável julgamento ... essa sensação, dizia, leva-nos liminarmente "ao tapete", por impotência, desespero, raiva e sobretudo um inesgotável cansaço !

É decepcionante, porque representa uma frustração, um esforço inglório e uma injustiça imensa.
Uma sensação, de em vão pregarmos no deserto ... porque o que eu disse, está longe de ser o que ele "ouviu" ...
E em última análise criam-se condições irreversíveis de abandono do diálogo ou da tentativa dele, cria-se uma impossibilidade dolorosa de consonância, instalando-se de permeio um mix de sentimentos destrutivos, uma panóplia de maus estares, animosidades, raivas e iras ...
E fica uma situação mal resolvida "ad eternum"!

Quase sempre pessoas próximas afastam-se, desistem, deitam por terra tudo o que havia sido construído entre si, e os interlocutores viram-se as costas, duma forma magoada, provavelmente para o resto da vida !
E é triste, mas abandona-se frequentemente a mesa de diálogo, porque conclui-se que as palavras, as frases, as ideias, os sentimentos que tão importantes foram, esvaziaram-se, perderam o significado, deixaram de ser inteligíveis pelas partes.
E por defesa ... desiste-se.

E se isto ocorre, infelizmente com demasiada frequência, nas relações próximas, se ocorre entre pais e filhos, entre irmãos, entre amigos, entre amores ... com pessoas entre as quais coexistiam laços afectivos e familiares muito, muito fortes ... que esperaremos então da comunicação entre povos, nações, gente anónima ?!

Por isso, cada vez mais, o diálogo de surdos criado, não leva a lado nenhum, a tentativa de entendimento, de acordo, de debate ... de paz ... é desperdiçada, esgotada e finalmente abandonada...

O ser humano parece ensurdecer, cegar, incapacitar-se ... parece de repente desconhecer, ignorar, afastar, desvalorizar o seu interlocutor  ... e a comunicação talvez privilegiada antanho, deixa de o ser.
E daí em diante, serão seguramente desconhecidos e mais estranhos ainda, aqueles que ora se encaram !... 

Anamar   

terça-feira, 28 de agosto de 2018

" PINGOS "





O Verão está a ir.  Chegámos  à  "rentrée".  A estação vira, os dias estão a amanhecer nublados e mais frescos com alguns pingos esparsos, de surpresa.
O Outono espreita ... ainda longe, mas espreita.
São dias estranhos, nostálgicos, estes ... São dias de fim e recomeço ... para os que recomeçam. Quando recomeçam ...

As aulas da miudagem anunciam-se já já, na próxima semana.
A luminosidade dourada, doce e espreguiçada do Verão, dos dias sem horas ou compromissos, já foi.

Costumava ser um tempo de azáfama.  Havia no ar, aquela urgência "de fazer cócegas"... Compra de livros e material escolar, chegada dos novos horários e consequentes ajustes nas rotinas.
Ansiávamos o reinício, lamentávamos o fim do lazer ... numa contradição típica do ser humano.
Reviam-se os locais e as pessoas, falava-se das férias ora terminadas, planificava-se a vida. Porque havia uma vida futura já a seguir.
Agora, alguns anos volvidos, os tempos têm rostos descaracterizados e existe um vazio instalado. Desconfortável e silente.
Parece que terminámos uma faxina, que arrumámos tudo nos lugares, parece que de repente, a nossa "casa" da alma ficou devoluta, sem préstimo ... Não somos mais precisos, e pronto, não temos mais nada por fazer.
A não ser ir estando por aqui ... pegando Verão com Inverno, Primavera com Outono, sem grandes metas ou fasquias. Num recolhimento meio agradável,  meio estranho ... melancólico seguramente ...

Hoje, as memórias caem-me no colo.
São memórias de pessoas, de locais, de momentos.  Memórias de instantes vividos, de palavras ditas, de sorrisos trocados ... memórias de afectos.
Todos...todos os afectos que fizeram história na minha vida.  Porque se eu amei alguém, algum lugar, se acalentei um sonho bom por um instante que fosse ... esse alguém, esse lugar, esse sonho ficarão comigo ao longo da minha existência ... sempre !

Hoje, apetece-me o silêncio de um areal vazio.  Apetece-me a voz da brisa passante pelo meu rosto.  Apetece-me o grasnar ocioso das aves marinhas rasantes da babugem.
Hoje, apetece-me um colo que eu queira.   Apetece-me a conversa jogada fora, nos córregos desenhados pelas encostas das ravinas.
Hoje, apetece-me a paz das clareiras verdes da mata e a música orquestrada do regato que corre.  Apetece-me tão somente a voz dos pássaros empoleirados nas ramagens, ou o sussurrar leve do besouro que se faz à flor oferecida ...
Hoje, tenho saudades não sei do quê, porquê, de tudo e de nada, talvez.
E talvez só tenha mesmo, saudades de mim ... De me achar, algures por aí... de me encontrar pelas esquinas dobradas, pelas ruas pisadas ... nas praias desertas ...
Ou apenas rever-me no tempo em que me empoleirava nas nuvens, amarinhava ao arco-íris, namorava a lua cheia e dormia abraçada ao sol, quando ele partia e dormia também na cama das estrelas ...
Hoje, a cor do dia é a minha cor.
O betão que me cerca sufoca ainda mais o ar precário que respiro.  O cinzento lá fora convida ao recolhimento aqui dentro.  E dormiria, se não tivesse que acordar ...
Os pingos de chuva, grossos e generosos que já caíram, chamam ao reencontro com a Natureza, na época em que ela se prepara para a dormência gostosa da estação da letargia e do silêncio, que se aproxima ...
Nem Énya consegue levar-me aos limites celestiais da sua voz cristalina ...

Aqui, hoje, não se operam mesmo milagres ...

Anamar

domingo, 26 de agosto de 2018

" PRAIA DAS MAÇÃS - curiosidades "


 
                                    "Praia das Maçãs" -  José Malhoa  ( 1918 )

Estive bem pertinho da Praia das Maçãs, local que por muitas razões me é particularmente querido.
Realizava-se hoje a procissão anual em honra de Nª. Senhora da Praia, com a pompa e circunstância que lhe é inerente, segundo me informaram.
Pasmo, como já decorreu um ano desde que, no Agosto passado, escrevi aqui neste meu espaço, um texto a propósito.  O tempo, efectivamente é inalcançável !

Pois hoje, de novo, a Senhora foi a banhos, como eu referia há um ano atrás, tentando descrever para os que não conhecem, tal efeméride, mantendo-se a tradição local das gentes destas paragens.
Não vou portanto repetir aquilo que recheou o meu post de 2017.

Vou antes abordar aqui, algumas referências históricas ligadas a esta estância balnear, composta por praia e povoação epónima, da freguesia de Colares do Município de Sintra, que reporto de bem curiosas.
Foi e é a Praia das Maçãs eternizada por vários motivos.
Além de ser zona arqueológica de notoriedade assinalável  e reconhecida, de que também já falei em posts anteriores, ela está indelevelmente associada a uma figura incontornável na área cultural portuguesa, no domínio da pintura : José Malhoa.

Fazendo parte do primeiro aglomerado da Praia das Maçãs, denominada ao tempo de Villa Nova da Praia das Maçãs, o chalet Villa Guida, a casa do sacerdote António Matias del Campo ( um dos primeiros habitantes da Praia ) e a capelinha de Nossa Senhora da Praia construída por Alfredo Keil em 1889, também a Taberna de Manuel Prego, é  um marco histórico muito interessante.
Construída por Manuel Dias Prego, há muito que desapareceu, existindo hoje nesse local um edifício moderno de vista para a praia ( Rua de Nossa Senhora da Praia ).
Terá sido exactamente nesse local que Malhoa pintou em 1918 o seu famoso quadro "Praia das Maçãs", hoje espólio do Museu do Chiado em Lisboa.

Decorre de informação local, que onde se erigia a Taberna de Manuel Prego, foi posteriormente construído o edifício onde veio a funcionar o Hotel Royal, exactamente a meio da rua que acompanha lateralmente o areal da Praia das Maçãs.
Também no acervo da Câmara Municipal de Sintra existem fotos onde, por cima da porta da Taberna se pode ver inscrita a data de 1889, contemporânea da construção da Villa Guida e da casa do Padre António Matias del Campo, como referi.

Ao que parece, o negócio do Prego era florescente à época, a ponto do mesmo ocupar um terreno adjacente, baldio, com mesas e bancos, que foi coberto, para o sombrear, com o caramanchão  patente no quadro de Malhoa.
Viria a solicitar licença para utilização desse terreno, o que veio a verificar-se posteriormente, dado que o mesmo pertencia à edilidade.
Antes da construção da Taberna em tijolo, sabe-se contudo, que já Manuel Prego detinha uma construção mais rudimentar, na praia, onde exercia o seu negócio.
Existe  um testemunho disso mesmo, num artigo publicado a 7 de Junho de 1896 no jornal "Correio de Sintra", onde se pode ler :

" Não há memória de nunca ter arribado à Praia das Maçãs ( Colares ), barco pequeno ou grande, com o mar manso ou bravo ;  pois arribou no dia 28 ( Maio ? ) um barquito remado por uns intrépidos rapazes d'Arosa, soltando um em terra para fornecer-se dumas garrafitas de vinho em casa do Prego ! "

Enfim, memórias idas, lembradas hoje, duma forma gratificante, quando uma outra vez a Praia das Maçãs se adornou para receber condignamente a passagem da sua padroeira, pelas ruas do povoado até à praia.
As pétalas das flores sempre tombam dos céus, o sol sempre brilha no firmamento, os andores, a irmandade, o povo anónimo desceram à rua ... a música, os cânticos e as rezas voltaram a ecoar no azul transparente de mais um quente dia de Verão ...

Só Manuel Prego e a sua tasca não existem mais ... Keil, também não ... e Malhoa, se por aqui estivesse, imortalizaria uma vez mais, sob a frescura do caramanchão, frente a um copo de Colares, a passagem da procissão da Senhora da Praia ... tenho a certeza !...


Nota :  Documentação recolhida em textos afins provenientes de várias fontes, na Internet.

Anamar

quinta-feira, 23 de agosto de 2018

" P'RA SEMPRE ... "




" P'ra sempre" é tempo demais ...

Ao longo das nossas vidas vamos conhecendo tantos "p'ra sempres" que arrepia.
Há contudo aqueles que desejamos não venha a ser bem assim, depois há aqueles p'ra sempres que quereríamos que fosse exactamente assim, e os outros, que sabemos serem inevitavelmente assim !

Ontem esbarrei-me num deles, hoje num outro, sendo que sou escolada em tantos outros pelos quais lutaria de bom grado, com a força e com a alma para que o fossem mesmo ... até ao fim dos meus dias.
Estes, são os p'ra sempres de felicidade, de paz, de alegria, de fé e esperança na concretização dos sonhos sonhados.
São estes que nos levam a querer amar para sempre, a crer em futuros para sempre, a ter força para nos erguermos por cada manhã que nasce, sentindo que vale a pena continuar a seguir os trilhos ... por mais áspero que seja o caminho ...
São "p'ra sempres" abençoados, porque são bálsamos e não martírios ...

Há depois situações nas nossas vidas que se mostram irresolúveis, incompreensivelmente insolúveis.
Situações inexplicáveis muitas vezes, que desembocam em becos sem saída e resvalam a olhos vistos para "p'ra sempres" que não desejaríamos, que nos destroem, que nos mortificam progressivamente, que nos matam ...
E que suspeitamos vir a carregar inevitavelmente, além mesmo do nosso fim.
São "p'ra sempres" dolorosos, que como uma doença incurável vão minando, vão incapacitando, vão destruindo as linguagens, os laços, criando muros em vez de pontes, lançando em fossos escuros e fétidos o essencial, na valorização do acessório ... Em suma, colocando-nos costas com costas !...

E as pessoas vão-se insensibilizando, endurecendo, sangrando da dureza dos golpes, de uma forma contra-natura mesmo ... mortalmente feridas, inevitável, irremediavelmente estranhas ... para sempre !
Sem sentido, sem lógica, sem razão, quase sempre ... num absurdo e numa teimosia autista, que levará ao tarde de mais ... quando acordarmos ...
Contudo, não conseguimos encontrar a fórmula mágica, de bom senso, de bonomia, de razoabilidade, de amor, que pacificasse o turbilhão que nos assalta o coração e a alma... que revertesse esse "p'ra sempre", num "p'ra sempre" de esperança e paz ...
Seguramente não quereríamos que esses "p'ra sempres" maculassem as nossas vidas...

Finalmente, e sem remédio, há os "p'ra sempres" definitivos.  Aqueles  que,  como  numa  curva  cega de  estrada  sem  retorno, nos  confrontam  com  finais  que  o  tempo e  a  existência  ditaram ...

Entrei naquela casa no Verão de 63.  A vida fez-se ... foi-se fazendo, episódio a episódio, escrita pela pena dos destinos de cada um ...
Hoje foi o dia de a deixar, com um vazio mortal dentro de mim. Foi o dia de percorrer uma e outra vez, divisão a divisão, visualizando por cada uma o filme das histórias que ali foram vividas.
Olhar as paredes vazias, os espaços devolutos e reerguer e arrumar de novo os móveis, reabilitar as cortinas, rependurar os quadros.
Foi a vez de escutar no silêncio, de novo, as batidas do relógio de pêndulo que preguiçava na parede.
Foi o momento de olhar o meu pai, ainda sentado no sofá, a ler o Diário de Lisboa, de sentir o eco da correria das miúdas em torno da mesa, no assalto às iguarias do frigorífico ...
Foi a vez de rever a minha mãe no lugar de sempre, a fazer o ponto cruz interminável, com o Gaspar aos pés ... companheiro de todas as horas.  "Só lhe falta falar" ...
Ou de a ouvir, na janela das traseiras ... "até amanhã ... boas aulas !..." ... afastando a roupa dependurada no estendal, para que a vista me alcançasse até que eu desaparecesse na esquina ...

Pedaços e pedaços de mim, ficaram lá, hoje, neste meu perambular sem rumo, neste meu regresso ao passado, ao ontem, num retorno a um "nunca mais" sem remédio ou solução...
Deram-me o privilégio doído de ser eu a fechar a porta, pela última vez ... antes de passar para outras mãos as chaves que detivemos por cinquenta e quatro anos ... e que "nunca mais" farão parte da nossa "estória" !...

Para sempre e nunca mais são, de facto,  tempo demais para a curta existência humana !...

Anamar

segunda-feira, 20 de agosto de 2018

" PORQUE HOJE É O DIA ... "





Hoje é "aquele dia" !...
O Kiko, o puto mais novo dos meus três primeiros netos, aniversaria.  Como epílogo daquela odisseia que já referi vezes sem conta, de ter três nascidos neste famigerado mês de Agosto, abrangendo mãe e dois dos filhos, o Kiko fez-se à pista, há exactamente 11 anos.
Era um dia tão quente quanto hoje e vejo-me sentada na sala de espera do hospital, plena hora de almoço, à espera que o rapaz se resolvesse .
Resolveu-se para felicidade de todos, pois este menino é, de facto, uma bênção nas nossas vidas.

Já falei tanto dele que não é possível ter um pingo de originalidade naquilo que possa escrever ...

Se o quiséssemos definir, diríamos que já nasceu a sorrir, que já trazia no coração um saco repleto de doçura, que a boa disposição, a alegria e a meiguice, são a sua imagem de marca.
O Kiko vive rodeado de uma infinitude de amigos.  De crianças a adultos, toda a gente adopta o Kiko ... simplesmente porque o Kiko adopta afinal toda a gente.
É um miúdo safo, extrovertido ... totalmente desenrascado !  Stress é palavra que não conhece, em nenhuma circunstância !...
É o que na escola resolve todas as questões que lhe surgem, sem perturbações.  O que sem nenhuma ajuda em casa, enfrenta os desafios que se lhe apresentam, enfim ... a autonomia também faz parte da sua personalidade.
É disponível, generoso e solidário.
Aprendeu desde sempre, que a partilha, a divisão de tarefas, a entreajuda, são sinónimo de uma vida mais equilibrada, simples e feliz.
Fechou o pelotão dos três. Nasceu mais solto, desinibido, descarado e com um diabrete à solta dentro de si.

Longe fisicamente, telefonei-lhe há pouco, para o felicitar.
Não posso dar-lhe hoje, nem receber dele aquele abracinho doce com que me envolve quando nos vemos ...
Perguntei-lhe então, como se sentia com tanta idade ... Gargalhou ... simplesmente ...

Esse é o Kiko, o meu "menino light" !...

Por isso, Kiko, desejo-te um dia supimpa, ainda mais cheio de emoções fortes, peripécias giras e boa disposição, como são todos aqueles em que estás por perto !
Aqui de longe envio-te beijinhos com todo o meu amor ... e não esqueças de guardar uma fatia de bolo p'ra mim, que sou "aquela coisa" ... tu sabes ! 😄😄💕




Anamar

domingo, 19 de agosto de 2018

" DICOTOMIA "





"  O amor eterno é o amor impossível.
Os amores possíveis começam a morrer no dia em que se concretizam "

                                        Eça de Queiroz

Dei-me com esta frase do Eça, algures ...

Li, reli, parei para reavaliar ... reflecti ... fiz rewinds na vida e concluí da certitude da mesma.
Eça, objectivo, pragmático, conciso, experiente e sabedor sabe do que fala.  Revela-se afinal, um profundo conhecedor da alma humana !

Aparentemente pareceria um contrassenso.  Afinal, o Homem, ao longo da vida, debate-se, em vão,  pelo alcance inatingível de um amor eterno.  Sofre porque o não tem, sonha tê-lo, porque tendo-o estaria completo e eternamente feliz, acredita piamente.
E digladia-se com uma infelicidade atroz, porque na sua vida afectiva parece haver uma impossibilidade em agarrá-lo.  Uma incapacidade mesmo, em pressenti-lo.
Na verdade, nada há de mais certo na existência do ser humano, que a impermanência de tudo o que o rodeia.  Nada há de mais real que a incerteza das metas atingidas.  Tudo é precário, incerto, duvidoso, inseguro ... sempre.
Só que essa realidade se configura  num estímulo e desafio para a mente humana, é mesmo essa insegurança, insatisfação e inalcance que acrescentam a pitada de tempero, adrenalina e sabor aos amores ditos "impossíveis" !
E assim, estes, sem solução possível, amores improváveis, se tornam nos amores verdadeiros, amores de valer a pena, amores sem bafio, amores com cores flamejantes, sempre novos e dispostos.
Eles redescobrem-se por cada dia, reinventam-se em novas roupagens, eles não se entediam, são desejados a cada momento como amores acabadinhos de nascer.
São eles que aceleram as batidas do coração, tiram o fôlego, nos conduzem à gaiatice dos tempos da ingenuidade, do sonho e da fantasia.

Os outros ... aqueles que afinal conhecemos, acabamos experienciando e vivendo, aqueles que nos foram desafios aureolados de todas as virtudes, adequações, enquadramentos e soluções dos nossos desequilíbrios afectivos, não passam de amores corriqueiros, amores sem sobressaltos, amores "chapa três" ... trôpegas tentativas de desenhar o mundo, soluções  de  vida  em  tosco,  irrespirável  e  desesperado  esboço  do  avistamento  da  felicidade !...
Em suma ... amores possíveis e moribundos desde o primeiro instante !...

Afinal o Homem sempre quer o que não tem e mata o que tem.  Sempre busca o sol, apagando para isso, as estrelas no firmamento !
A utopia e a incoerência fazem parte da nossa alma imperfeita e insatisfeita, alma em turbulência e inquietude.

Ainda assim ... deixem-me com os amores impossíveis, pois seguramente sempre serão " eternos e infinitos  enquanto durarem !..."

Anamar

" ESTAR FELIZ ... "





" Você é aquilo que ninguém vê
Uma colecção de histórias,
memórias, dores, tragédias,
sucessos, desaires, sentimentos e pensamentos.
Definir-se é limitar-se.
Você é um eterno parêntesis em aberto,
enquanto a sua eternidade durar "

                                               Machado de Assis


Tarde insuportável de calor, neste Agosto que continuou um Julho metereologicamente meio atípico.
Presenteou-nos sim, e Agosto também, com tormentas semeando perdas e desgostos.
Os fogos em escala dantesca voltaram a grassar  aqui e lá fora, as intempéries, as cheias, os sismos ... as temperaturas impensáveis derretendo calotes polares, tudo quanto foi anormal de se viver, se tem vivido, numa Natureza que pisca incessantemente o semáforo vermelho a gente incrédula que acha que talvez ainda não seja bem assim ...
O falado "ponto de retorno" a atingir-se a passos largos, e o Homem, cego, surdo e mudo !...

Tenho vindo aqui pouco.
Desta feita, falta de tempo mesmo.  Falta de "assento" como costumo dizer, têm-mo impedido.
Mas sem esta catarse necessária, não sou bem eu. Sinto-me esportulada de uma parte de mim.  Incompleta.  Inquieta.
A razão ?  Várias, sendo que o términus do desfazer da casa dos meus pais, seguindo-se de uma sanha meio alucinada de radicalmente por a minha também mais organizada, são os motivos principais.
De quando em vez parece eclodir-nos uma urgência absoluta de "limpeza", arrumação, faxina inadiável, numa busca de renovação, alteração e mudança ... como se com esse desiderato, a verdadeira renovação, o verdadeiro retirar do balofo, a verdadeira assepsia alcançasse, visasse  especialmente, o nosso eu interior, cansado, bafiento, desencantado, rotinado de mais ... cinzento !...
São as fases de dobragem de esquinas.  De busca de caminhos airosos, verdejantes e floridos !...

Nesse espírito deitei mãos à obra, procurando que, junto com o supérfluo, o desnecessário, o excedente cansativo e oneroso, também fossem os meus sentimentos mais negativos e pesados, o meu desconforto, a desesperança que teima em instalar-se vezes de mais, a aparente ausência de horizontes ... Fi-lo sem demais preocupações, interrogações, dúvidas angustiantes, ansiedades ... medos ...
Procurei alienar as incertezas, as apreensões doentias, as definições demasiado enquadradas e previsíveis, que coartam, espartilham, fecham os túneis do acreditar, a graça da surpresa ... e simplesmente deixei-me ir vivendo, um dia depois do outro, saboreando cada momento.  Os de paz e felicidade, os menos auspiciosos e escuros ... os sonhados e os que me caem na almofada por cada manhã em que acordo ... só porque valem a pena ser vividos, e eu continuo viva por aqui !

A vida afinal é tudo isso.  É este mix de "colecção de histórias, memórias, dores, tragédias,
sucessos e desaires, sentimentos e pensamentos" ... na busca da nossa essência, na procura do que fomos, do que somos, por que o fomos ... por que o somos ... sem nos enjeitarmos, sem nos repudiarmos, sem sermos excessivos algozes das nossas imperfeições, acreditando sempre !
Sem buscarmos definições "essencialmente correctas" e censuradas do que talvez esperem de nós, bastando-nos que nos encaixemos no que nos realiza e faz feliz, com uma auto-aceitação e bonomia de paz, tranquilidade e equilíbrio ...

Não busco de facto, figurinos, sequer me preocupo com juízos excessivos ... Cada vez menos o faço.  Vivo, simplesmente com a coerência que consigo, nunca abdicando de sonhar ... mantendo-me um  " parêntesis em aberto enquanto a minha eternidade durar " ... e procuro "estar feliz" ... não, "ser feliz", porque isso, não existe !...

Anamar

quarta-feira, 8 de agosto de 2018

" NADA MAIS ... "



Como é difícil remexer no passado !
Como é complicado entreabrir frestas nas janelas das nossas vidas !...
Como é penoso enfrentar as  arcas dos tempos ... quando achamos que elas estavam seladas "ad eternum " !...

Penso que talvez tudo se prenda simplesmente, ao facto de através disso nos revermos lá atrás, nos reencontrarmos nas esquinas dos destinos, outra vez.
Ou simultaneamente, pela nostalgia de nos parecer, ilusoriamente, recuperar o que fomos, a juventude que se esfumou, os sonhos que construímos.  Em suma, um confronto imposto, conosco mesmos.
E normalmente a distanciação sempre é implacável e mostra-nos sem dó nem piedade, os erros então cometidos, as omissões de que não nos demos conta, o desperdício dos momentos que não usufruímos em pleno.
E como um filme visto num écran longínquo, tudo aquilo é e não é nosso.  Os protagonistas são, mas não são os que foram ... e as imagens desenrolam-se-nos com perda de qualidade, numa dimensão que nada tem a ver já, com a "alta definição" com que foram colhidas ... Como se as visualizássemos por entremeio de neblina ...

Cai-se então numa dolência doída, porque o tempo ... ai o tempo, mostra bem quem na verdade manda !

E gera-se um misto de sentires, de emoções, de memórias que desfilam e não se controlam.  Um misto de desejos e vontades gostosas que se atropelam, desafiantes ...
São diabinhos à solta que injustamente nos atormentam o coração e a alma, e vemo-nos à mesa do café, frente a frente com pedaços de estórias que pertencem afinal à nossa história e por nós foram escritos.
E como num cadinho de reacção adormecida, de repente, tudo se incendeia à revelia e sem respeito !...
Como num mar que era de maré baixa ... tudo se altera e galopa sobre os rochedos, indómito e alteroso ... ameaçador, numa avalanche sem tamanho ou contenção !...
Como numa dormência gostosa interrompida abruptamente, o sono agita-se, o corpo convulsiona-se e o desconforto instala-se !...

Porque também há a paz da monotonia, da rotina ... do instituído.  Do assimilado e incorporado.
A  paz  do  silêncio  dos  tempos.  A  paz  do  que  há  muito  jaz  numa  curva  da  estrada ... Intocado !
E se essa paz balançar, um conflito emocional abate-se e sacode-nos, como se a terra tremesse ou a onda aterradora a galgasse, inevitavelmente desprotegida e impotente ... mostrando-nos a precariedade do esquecimento das coisas.
A fragilidade dos fiapos de vida, urdidos e julgados arquivados na poeira da existência ... era isso mesmo ... uma fragilidade a sucumbir ! Apenas ...

Só que ... após o abanão que experimentámos, tudo se retoma.  A realidade da vida que se faz todos os dias repõe o figurino, indiferente, outra vez ... A perturbação conserta-se ...
Acordamos ... de novo, para o aqui e agora ...

E foi só isso mesmo ... uma fresta que se abriu na janela do destino, a tampa de uma arca que indiscretamente deixou à vista o conteúdo religiosamente guardado, como um tesouro que houvesse sido violado por momentos ...
Só isso mesmo ... e nada mais !

Anamar

segunda-feira, 6 de agosto de 2018

" POR QUE RAIO TIVEMOS QUE CRESCER ??!! "


Estranhíssimo este sol que se põe lá ao fundo, num céu pesado, sem nuvens, mas longe de ser límpido.
Aliás, mostra-se com um semblante esfumado que lembra aquele céu de incêndios.
Entretanto  a  "fogueira"  acende-se  por  todo  o  país,  com  as  temperaturas  a  roçarem os 46 ºC ...

Todos ficamos imprestáveis, neste ar irrespirável.  O cansaço toma-nos conta e nem as ventoínhas nem os duches frios sucessivos, aplacam esta sensação de desconforto.
As noites não refrescam, não se dorme, e erguemo-nos na manhã seguinte, totalmente partidos, espapaçados, como se tivéssemos sido açoitados durante a noite.  Mais cansados ainda do que antes de dormir ... como se isso fosse possível !
Sonha-se com uma sombra fresca, sofre-se à míngua de uma aragem ...

Os animais sofrem também ... e muito !  Os meus gatos, sobretudo o que transporta às costas um manto invejável de pelo, não encontra poiso, arrasta-se pelo chão de mármore, dorme na frescura possível do poliban e estica-se indiferente a tudo, parecendo moribundo na apatia que ostenta.
Tenta resistir ... como todos nós !
Entretanto, nas notícias, fomos confrontados com uma tempestade que se abateu ontem ao fim da tarde, sobre certas zonas do Algarve.  Intempestivamente ! Imprevisivelmente !

Temos o planeta em desnorte total.  Assustadoramente a sofrer desmandos da Natureza, que vão afectando de forma acentuada, os seres vivos que lhes ficam à mercê ...

Talvez devido a tudo isto também, me sinta demasiado cansada.  Este calor mata-me, definitivamente !

O tempo está como a vida ... tudo incerto, tudo imprevisto, tudo anormal ... tudo meio louco !
Na minha meninice e juventude, tanto quanto lembro, as coisas tinham nomes ... Primavera era Primavera, Verão chegava na hora certa e tinha a cara do costume ... o Inverno sempre nos trazia o friozinho gostoso, a convidar a gorros luvas e cachecóis, o fumo das castanhas assadas a soltar-se dos carrinhos e as alamedas dos jardins, totalmente forradas com as folhas molhadas, que já eram ...
E por aí adiante.
Por isso sempre sabíamos com o que contar, sem demais surpresas ou ansiedades.  Acho que os dias corriam mais ou menos mansos, sem outros sobressaltos.
Os dias viviam-se ao ritmo dos dias.  O hoje era  vivido hoje, sem pressas ou ansiedades, o ontem ainda não deixava aquelas marcas mortais que nunca mais se apagam ... e o amanhã, sempre nos aparecia como uma rosa fresca que desabrochasse ao romper da alvorada ... doce, sorridente, cheia de promessas ...
Os amores eram generosos, embaladores e leves.
Viviam-se e sorviam-se ao sabor do sonho.  Em jeito de presente de laço e fita, deixado nos sapatinhos da nossa imaginação, nos tempos em que era Natal todos os dias ...
As imagens das nossas histórias eram sempre coloridas ... porque eram exactamente isso ... imagens das nossas histórias ...
E estas sempre tinham finais felizes ...
A vida tinha muito do açúcar e do arroz doce com que as avós e as mães nos resgatavam dos pequenos desgostinhos ...
Não havia despedidas, nem perdas, nem separações.
Tudo parecia ser para sempre, simples, certo, sem as complicações da gente grande ...
E quando as lágrimas desciam ... porque às vezes também acontecia ... era garantido, que dormida a cabeça no travesseiro, a madrugada era azul  à certa, enfeitada de arco-íris, estrelas esfregando os olhos de ensonadas, e cantos dos pássaros da alvorada ...

E assim se fazia a vida ... com a ingenuidade e a bonomia dos anos que então tínhamos !...
Mal sabíamos da turbulência que nos esperaria a muitos mil pés de altitude ... mal imaginávamos da tormenta de mar alteroso que se iria encapelar diante de nós ...

Afinal ... por que raio tivemos que crescer ??!!...

Anamar

quinta-feira, 2 de agosto de 2018

" NÃO PODERIA SER INDOLOR ... "






Tempos loucos estes, que o planeta atravessa, e com ele, nós todos, perguntando-nos porquê?
Por que estaremos todos, de uma forma absurda e irracional, a pagar uma factura desmedida do que não fizemos?
Por que razão continua esta Terra a ser regida por loucos e irresponsáveis, que colocam exclusivamente interesses materiais, pessoais e outros, escusos e inomináveis, em relação aos quais, o cidadão comum é total e irremediavelmente impotente ?!

É que atravessamos em Portugal, país de clima mediterrânico e temperado, generoso e abençoado por excelência, temperaturas que subiram em muitos lugares a valores da ordem dos 45ºC !...
O ar é irrespirável, a insalubridade deste estado de coisas restringe a capacidade de se  levar a vida adiante com o mínimo de normalidade, já que nada disto é normal ...
Não nos mexemos.  Arrastamo-nos.
O torpor sonolento que nos invade, reduz aos mínimos toda a actividade.  Não temos parança em lugar nenhum, já que em todos se sufoca.
E por essa Europa fora,  tudo se passa mais ou menos da mesma forma.  Temperaturas igualmente absurdas em locais que não as experienciam nunca. Gelos em fusão nos pólos.  Avalanches, cheias e furacões inesperados.  Fogos devastadores e incontroláveis, semeando desgraça e dor ...
Em suma, um planeta a morrer às mãos dos seus próprios habitantes ... muito antes do que os estudos científicos vaticinavam ... Muito antes dos alucinados imbecis à solta, perceberem que nada disto é ficção científica, infelizmente ! ...
Não é de loucos ?!

Eu estou em "modo hibernação" ... a bem dizer.
Redução de toda a entropia aos mínimos, para poupança de energia.
Os miolos a funcionarem p'raí a cinquenta por cento, só.  Uma "lanzeira" que só vista !...
Resolvi, ainda assim, levar a cabo tarefas de arrumação que urgiam ... Parece-me auto-flagelo ... será ?!
Com o encerramento da casa dos meus pais, com a dissolução do seu recheio para que a mesma possa ser entregue à proprietária, uma infinitude de coisas inalienáveis, "caíu" na minha, já de si cheia que nem um ovo.
Um verdadeiro drama, olhar para tudo aquilo e ser incapaz de definir prioridades.  Uma angústia dos infernos, decidir o que ascende ainda assim a espaços nobres na minha casa, o que "ascende", na verdadeira acepção da palavra, à arrecadação no terraço do prédio ... ou o que descende directo ao contentor do lixo ...
Um drama, até conseguir consensos de alma !...

E num misto de angústia, irritação e  impotência, culminadas por uma sanha de "para grandes males, grandes remédios" ... na busca desesperada de soluções de espaços ... resolvi tomar uma opção irrevogável que fora adiada anos e anos, na espera de melhores dias, paciência e complacência, que haveria um dia de chegar ... eu achava. 
Assim, resolvi enfrentar com determinação e coragem, todo o espólio a que fizera largos anos " olhos de carneiro mal morto" ... os dossiers, as pastas com a preparação de aulas, os infinitos testes de avaliação varrendo todos os curricula, as micas para retroprojecção, as fichas de revisão de matérias dadas, esquemas e mais esquemas em acetato, na busca da simplificação e da clareza ... em suma ... toda a história da minha vida profissional, as centenas e centenas de páginas, manuscritas, impressas, fotocopiadas ... num ápice repousaram no "papelão" mais próximo de casa ...
Inapelavelmente ... numa tentativa de operação indolor ... num esforço de distanciamento e relativização das coisas ... despojando-as, como ando a treinar o meu coração e a mente há alguns meses, de emoções, de afectos, de nostalgias e mágoas ... despindo-as de todo um conteúdo imbuído de sentimentos e memórias ...

E assim, a frio ... apesar dos 42ºC lá fora ... consegui dar descanso eterno a toda uma "vida" ... a minha, que se estendeu a bem mais de trinta anos de história ...

Esvaziei o armário, arranjei espaço devoluto ... limpei o "lixo" adiado ... quilos e quilos de Química e de Física , metros e metros de informação e trabalho ... toneladas de esperança, sonho e aposta ... juventude, dedicação, entrega e esforço ...

E esvaziei-me por dentro ... também ...
Nunca supus que doesse tanto !...

Anamar

" TEMPOS ... "




Há um tempo para tudo, na vida.
Há um tempo para viver e um tempo para morrer.  Um tempo para estar e um tempo para partir.

Acredito verdadeiramente nisto.  Sinto exactamente isto.
E acho que efectivamente o ser humano é tão insignificante nesta imensidão onde um dia germinou, que é inócuo o seu estar e o seu ir.
Percebo cada vez mais a precariedade da existência e a insignificância do grão de areia que somos, na engrenagem gigante a que pertencemos.

Com a partida da minha mãe, com a ausência da sua figura física nos meus dias, consciencializo mais e mais estas verdades.
Dizem que o tempo resolve e que a terra esbate as faltas.  Penso que simplesmente nos habituamos a novas realidades, a novos contextos para a nossa vida.
A saudade é imensa, mas é uma saudade da minha mãe de toda a vida e não da minha mãe dos últimos anos.
Essa, foi uma figura estranha e desconhecida que aconteceu, de que tive que cuidar, que tive que amar, proteger e ajudar.
Essa, foi alguém que conduzi pela mão no trilho árido e agreste que foram os seus últimos longos dias, em passos titubeantes, cada vez mais imprecisos e incertos.
Essa, foi uma personagem que a vida, injustamente foi arrastando e arrastou tempo de mais, com um sofrimento que parecia cirúrgica e ironicamente escolhido, com uma forma que diríamos, desumana, maquiavélica, usurpando-a dia a dia, crescentemente, das capacidades que faziam e sempre fizeram dela, uma grande mulher !
Como uma folha morta largada na correnteza, o destino foi-a jogando sem rumo ou norte, impiedosamente, contra as penedias do leito, numa maldade sem tamanho !...

Já aqui referi vezes sem conta, em muitos posts que fui escrevendo em jeito de alívio, neste calvário dos últimos quatro anos, que  a começar pela dependência móbil que a confinou a uma cadeira de rodas, à degeneração mental progressiva que a afastou totalmente de nós e de toda a realidade circundante ... o ser humano que ela foi, tornou-se numa figura patética, irreconhecível e dolorosamente triste.
A mãe, a minha mãe que eu adorei por toda uma vida, filha única que fui, com uma dedicação e um amor extremos talvez por isso mesmo, esfumou-se no espaço e no tempo ... e partiu ... finalmente em paz !

E estranhamente, ou talvez não, foi paz que eu senti exactamente, desde então.

E quando, em conversa, um amigo me dizia noutro dia, pensar que eu levaria mais tempo a recuperar-me do choque da sua partida ... eu reflecti sobre a frase, e entendi-me claramente...
É que há um tempo para tudo, na vida.  Há um tempo para viver e um tempo para morrer.  Um tempo para estar e um tempo para partir ...

E a minha mãe esgotara seguramente o "seu tempo" por aqui ...

Anamar

segunda-feira, 23 de julho de 2018

" VOANDO COM ELAS ..."



Pelas seis da manhã já aí andam.
Elas, as pegas rabudas, os melros, as rolas, as andorinhas ...
Mas são elas que me acordam.  As gaivotas.  Muitas, planantes, ao sabor do vento que aqui é muito, quase sempre.
Não se inquietam no bater de asas.  Deixam-se embalar no baile que se faz lá por cima.  E grasnam, em gritos estridentes de marinhagem.

Acordo e fico quieta.  Sorrio para dentro.

Acho que as gaivotas não pertencem bem a este cenário arrumadinho, de Natureza plastificada.
Sei que estou no Algarve e que o mar aqui é rei.  Aliás, vejo-o a cada esquina ou recanto. Azul intenso, rematando um céu sem mácula.  Ponteado a vezes, por uma ou outra vela branca ...
Sei que estou num condomínio para privilegiados, para uso turístico ou para consumo interno ... de quem pode, bem entendido.
E obviamente todo o contexto tem que ser perfeito ... e é-o, de facto !
Flores, muitas flores cuidadosamente tratadas, de todas as cores, rochas dispostas aparentemente ao acaso, que o não é, relva bem cuidada, árvores e trepadeiras multicores aqui e ali, com intencionalidade ... fazem deste espaço, como de muitos idênticos, oásis para utentes exigentes.
Aqui, claro, praticamente todos falam outras línguas.  Provêm de países não bafejados por este clima abençoado, esta envolvência pródiga e generosa, que é a nossa.
São ingleses e alemães na maioria, gente de uma estranja de névoas, de céus cinzentos e dias escuros.
Gente fria e distante, bem ao contrário deste sul de uma Europa namoradeira de África, que empresta calor, emoção e paixão ao sangue dos que aqui nasceram.

Como dizia, o mar está por perto.  É o coração desta terra, e é dono destes areais.
E  se  o  mar  está ao virar de cada esquina, é expectável  que  as  gaivotas  também  o  estejam ( ainda que eu não ache tão lógico assim ... )
A menos que elas, já mercenárias, sejam também pássaro decorativo para "camone" consumir  (rsrsrs ) ...
Porque, gaivota para mim, é pertença de escarpas, falésias, arribas selvagens.  É pertença de costa bravia, de areais desertos, de ondas que tripudiam, no incessante vai-vem, dos rochedos que massacram ...
Gaivota é pássaro de liberdade total e absoluta, de horizontes sem limites, pássaro de silêncios ... pássaro de maresias, de marulho suave ou agreste ... de solidão e memória ...

E por isso elas me levam ...

Libertam-me deste "caixilho civilizado", e conseguem transportar-me daqui para bem longe.  Lá, onde eu vejo tudo isto, onde eu sinto tudo isto ... onde a Natureza é talhada à séria ...

Junto de mim, Énya solta os acordes da música da sua Irlanda rude, inóspita e selvagem.  Uma Irlanda  de  costas  impiedosas,  abruptas,  açoitadas  por  mares  encrespados  e  alterosos ...
Costas  envoltas  na  magia do indomado, do autêntico, das  neblinas  cerradas  e  misteriosas ...
E lembro " A filha de Ryan", um filme de há muitos anos.  Icónico na sétima arte, inesquecível ... fantástico ...  Visto e revisto ... Arquivado, sempre ...

Será por tudo isto que me sinto nostálgica ?!...

Anamar

" NÃO ADIANTA ... "



A gente adona-se dos lugares, de acordo com o que neles vive.
Sempre digo "a minha casa", "a minha rua", "a minha janela" ... mas também digo "o meu mar", "a minha serra", "as minhas praias", "a minha gaivota" ... "os meus horizontes" ... só porque eles são "aqueles" que têm história minha.
Minha, do princípio ao fim.  Mesmo que já não tenham.  Estão lá, mais ou menos intocados, vertendo momentos pelos poros.
Afinal, tudo passa por emoções.  Emoções reais que vêm do domínio da pele, dos olhos, do coração ... e se fixam como numa película, na mente, para toda a vida.

E é só isto.  Simplesmente isto ... não mais !

O que verdadeiramente não foi emocionalmente nosso, nunca se tornará nossa propriedade de afecto.
Poderá ser excelente, extraordinário, maravilhoso.  Mas não "nosso" !

As emoções sufocantes, as vivências de tirar fôlego, os "coups de foudre" que nos cegam o discernimento, nos aceleram o coração e nos emudecem a voz, acontecem apenas algumas vezes na vida.  Vivem-se apenas em momentos predestinados.  Mágicos.  Privilegiados.
E esses momentos são aqueles que fixam os "nossos lugares" em nós.  Para sempre !
São códigos emocionais inalienáveis e intransmissíveis.
E são poucos.  Apenas alguns.  Contudo indeléveis, eternos, incomparáveis ... insubstituíveis !

E nada disto se explica.
Como quase tudo o que pertence ao domínio do subconsciente, do sentido, do vivido na alma, não adianta tentar alterar, ou acreditar que será diferente.

Passei por muitos sítios ao longo dos tempos.  Como seguramente toda a gente.
Pisei muito chão, olhei muito mar, escutei muitos pássaros.  Deslumbrei-me com nasceres e pores de sol, sorvi todos os cheiros possíveis, bebi todas as cores de todas as flores que estavam lá e mais aquelas que eu inventei.  Perdi-me na luz mansa do horizonte e embalei-me na aragem cálida perpassante.  Vi a transparência das águas, reflectida em olhos meus e guardei silêncios de palavras não ditas, porque não era preciso ...
Toquei pele, mergulhei em corpos escaldantes, rebolei-me na areia quente do destino ou sombreei-me na mata tão inexpugnável quanto a minha alma ...
E tudo isso foi vida.  Ou melhor ... apenas isso é que foi Vida !!!...

A gente adona-se dos lugares, como se adona dos momentos, das memórias, dos retalhos de tempo que conseguimos guardar.  Apenas quando, e só, o coração o determina !
Tudo o mais são parcelas de história, que tentamos rechear como a vida se nos oferece, que tentamos escrever o mais harmoniosamente que podemos ... quando podemos ...
Contudo, nunca com a singularidade do irrepetível, do único ... do verdadeiramente nosso ... do tactuado para sempre !!!

Anamar

domingo, 22 de julho de 2018

" EU "



Sou do desejo, a fogueira
que se acende sem dizer
Sou o raio que se incendeia
à revelia do querer ...
Sou uma cama desfeita
ainda quente de te amar ...
Acalmia ou tempestade
Sou um riacho ou sou mar
Sou a loucura de um sonho
sonhado na madrugada ...
A palavra que não disse ...
numa folha, desenhada
Sou centelha do prazer
que não ouso confessar ...
Sou vulcão que não sossega,
vontade que não se nega
e não cansa de buscar ...
Eu sou a força do vento
do que sopra, e soprará ...
Sou um gemido e um lamento,
guardo os segredos do tempo
que passou e que virá !
Sou o que fui e me fez
a vida, que já passou ...
Sou um sim e sou um não
Certeza ou contradição ...
Nem eu mesma sei quem sou !...

Anamar

quinta-feira, 12 de julho de 2018

" E TER, DEPOIS, MENINOS ... "



" O amor em Portugal continua a ser diferente.   Começou pelos sinos a tocar e um par que se ajoelhava e acabou por um anúncio no jornal e uma fotografia que se devolve ... "

" Antigamente, quando o amor sorria
e os vates o cantavam com talento,
tudo em volta de nós era poesia,
ternura e sentimento !
Os olhos das mulheres enamoradas
brilhavam como sóis,
os cardos eram rosas delicadas,
as águias rouxinóis,
o riso era cristal, a pele arminho
e a vida cor-de-rosa !
Os poetas em tardes outonais
não estavam lá com tretas
descobriam no cheiro dos currais
o aroma suave das violetas ;
a Lua era de prata,
as tranças d'ouro, os lábios de coral
e quatro pés de couve a verde mata
as áleas dum quintal ...
Como era bom, então, viver, amar
e unirem-se os destinos
quando bastava apenas p'ra casar
ouvir tocar os sinos,
por o joelho em terra aos pés do altar
e ter, depois, meninos ...

Mas hoje não arrulham pombas mansas,
nem se murmuram já palavras ternas ;
são outras as andanças
das práticas modernas
e como o Tempo volta a toda a hora
as costas ao passado,
aquele que hoje em dia se enamora
e quer mudar de estado
para seguir, enfim, p'la vida fora
até se reformar divorciado,
dispensa a frioleira
duma aliança d'ouro ou dum bragal,
não faz questão co'a flor de laranjeira,
põe de parte o que for cerimonial,
convivas mascarados,
passadeira e cortejo nupcial
com fatos alugados
que assentam muito mal
e chapéus com grinaldas de florinhas,
em troca dum anúncio no jornal
de quatro ou cinco linhas :
"  P'ra fins matrimoniais, sem mais rodeios,
um homem que não tem bens de raiz
pretende uma mulher com alguns meios,
que faça um lar feliz ;
uma mulher que entenda os seus anseios,
loura ou morena, de qualquer idade,
viuva ou separada, 
esteja ou não esteja em plena mocidade,
ou já recauchutada ... "

Diga o leitor agora, francamente,
com a sinceridade habitual,
se continua ou não a ser diferente
o Amor em Portugal ... "

                     V. M. S.



Estou a desfazer a casa dos meus pais.  Paulatinamente ... ao sabor da força e da coragem.

Afinal, foi casa de uma vida, carregada de histórias, de sombras e memórias.
Custo a mexer-me.  Quero e pareço não querer fechar definitivamente aquela porta, já que as janelas estão fechadas há largo tempo.
Tudo me tem passado pelas mãos.
Quando se desfaz uma casa, as coisas sabidas e impensadas nascem como cogumelos, das gavetas, das estantes, dos lugares que não frequentávamos.
Se nas nossas casas, isso acontece, imaginem em casas que não foram exactamente nossas ...

A minha mãe, num afã de afecto e saudosismo, tudo parece ter guardado :  o registo das minhas notas do colégio ao liceu ( e de outras colegas também, para ter bem a certeza, por comparação, que eu havia sido a melhor aluna da turma ... rsrsrs ) ... fotografias aos montes ( de caras conhecidas e de muitas outras que não identifico de nenhuma forma.  A maioria, a preto e branco ou a sépia, atestam bem a época a que respeitam.  Cavalheiros com bigodes façanhudos e respeitáveis, chapéus e raposas nos ombros de ignotas senhoras ... criancinhas com folhos e touquinhas ... ou completamente nuas, repousadas no cetim do fotógrafo de ocasião ... ), registos de actos públicos  como certidões, contratos, cartas de condução caducadíssimas, bordadinhos feitos por mim no colégio, mais tarde nos lavores femininos já no liceu ( logo eu que não fui dada a prendas domésticas !... ), rendas iniciadas e jamais acabadas ... quilos de cartões de felicitações por aniversários, Natal, Dia da Mãe ... pequenos riscos e desenhos feitos nos primeiros anos das netas, versinhos e pinturas feitos por mim e esquecidos em papéis velhos e rasgados, textos já então desabafados ... enfim ... um acervo interminável !

Eu própria, que sempre vivi muito sozinha naquela família curta, de pais velhos, sem autorização para grandes saídas e convívios, ocupava também os meus tempos livres, coleccionando religiosamente alguns tesourinhos da época : fotos dos meus ídolos do cinema e da canção, revistas femininas e ingénuas e recortes, muitos recortes de jornais e outras publicações, que reputava certamente como interessantes, por razões que hoje não descortino ! ( rsrsrs ).

É exactamente aqui que se prende o tema deste meu texto.

Entre toda a panóplia inimaginável e ternurenta, caíu-me nas mãos um pequeno recorte de jornal amarelecido, da década de sessenta.
Não tinha data precisa e está assinado por um, ou uma tal V.M.S.
Transcrevi-o e apu-lo a este post.

É incompreensível, coisa de extra-terrestre mesmo, para as gerações actuais, o seu teor.
As pessoas da minha geração entendê-lo-ão, certamente, e lembrarão que o mesmo respeita ainda assim,  já a dois períodos cronológicos distintos .
Ri-me ao lê-lo. O "naïf" do seu conteúdo, revelador de valores sociais, familiares, pessoais mesmo, bem característicos de tempos idos, é duma ternura imensa, duma ingenuidade quase infantil, que nos dias de hoje, lembra uma historinha inverosímil ...
Pela curiosidade e por se tratar de um apontamento literário praticamente humorístico, resolvi trazê-lo a té aqui.

Pergunto-me então, o que escreveria hoje ( certamente escandalizado até à medula ), o ou a  V.M.S. se pudesse deitar um olhar sobre a actualidade, e sobre as formas como se vive nas sociedades actuais, à luz dos costumes, das revoluções sociais, tecnológicas e todas as outras nossas conhecidas e com as quais já nem pestanejamos ... o famigerado " amor em Portugal " ?!...



Anamar

domingo, 1 de julho de 2018

" FIM DE FESTA "...



Detesto despedidas, partidas, portas fechadas, janelas cerradas ...

E hoje é véspera de partida.
O Príncipe ficará exactamente como é e será, ao longo das eras : selvagem, doce, estonteante na beleza com que se veste, emocionante na simplicidade com que acolhe.
Os rochedos de basalto duro, apenas se irão desgastar mais e mais, e novos retoques na orografia surgirão, no preenchimento das faltas.
As areias continuarão dançando, vergadas ao sabor das marés ... para cá e para lá, incessantes ...
A floresta morre e renasce.  Por cada dia, novas flores, novos frutos, novas árvores nascerão e morrerão sob um sol de equador que mais acarinha, que castiga.
Os coqueiros da beira da praia, como anciãos cansados, dobram-se lentamente, até beijarem as águas.  E um dia, desistentes, irão com elas mundo fora, contar histórias para o outro lado da Terra !
Os pássaros também cumprirão os seus desígnios.  Sem dúvidas ou perguntas.  Apenas, cumprindo-os.  Ano após ano, enquanto for ...
O mar será manso ou encrespado.  Continuará azul, verde ou prateado, consoante o céu se adorne e as nuvens viajantes ou adormecidas, o determinem ...
O sol fará as negaças de um amante que ora se dá, ora se ausenta, sempre embevecido ... e a chuva tropical, quente e forte, abençoará a terra úbere e parideira ... E sempre será certa, quando a gravana passar ...
As luas que se sucedem, tornarão em dia as noites silenciosas e escuras, onde o ponteado estelar é um bordado de pé de flor, a desenhar os céus ...
As crianças crescerão, mas continuarão a sorrir.  E novos meninos encherão os terreiros, sob o coqueiral e no chapinhar dos charcos.
E estarão descalços, rotos, sujos e ranhosos ... mas continuarão com alma de meninos ...

Vou partir.
Amanhã, o Príncipe ficará para trás ... na cauda do avião de hélice que me vai levar,  na esteira do barco da saudade já, que deixarei no mar ...

Detesto despedidas, partidas, portas fechadas, janelas cerradas ...
Não sei se algum dia volto.  A vida, crepuscular, poderá ou não permiti-lo.
Mas os pores de sol que bebi por cada dia que o vi deitar lá longe na linha do horizonte, rendida à magia e ao fascínio de uma África genuína, pura e autêntica ...
As carícias a que rendi o meu corpo nu, nas águas quentes, doces e mansas, como nos braços do homem que é só nosso e a quem nos entregamos na volúpia do abandono...
Os cheiros  fortes, penetrantes e únicos que devassam e  grudam na pele, no corpo inteiro e na alma ...

Todos esses  ficarão para sempre na caixinha das emoções, no recôndito de mim mesma, em mim tactuados com as cores e o sal desta terra única !
Ficarão afinal,  na eternidade da curta e precária temporalidade humana !!!



Anamar

quinta-feira, 28 de junho de 2018

" CRÓNICAS DE VIAGEM - OS PUTOS "




Os putos do Príncipe são putos, simplesmente ... crianças iguais e  diferentes de tantas outras de qualquer lugar do mundo.

Os meninos do Príncipe têm uma ingenuidade absoluta no olhar, uma alegria imperturbável presente, uma dádiva esbanjada para com todo  e qualquer um que chega, de longe, e lhes dispensa uma atenção.
Interrompem então a brincadeira que se faz na terra batida, na beira da areia, na sombra das árvores.
Um pneu velho, uma tábua com rolamentos, de carrinho improvisada, um nada qualquer que vira tudo na cabeça de meninos que não têm brinquedos, faz uma festa.
Rotos, sujos, descalços, ranhosos, os meninos brincam simplesmente com eles mesmos.
E riem, riem muito !
Os rostos são do chocolate da terra, e a alvura dos dentes, lembrando a rebentação das marés, ilumina-os no riso rasgado.

São muitos.  São bandos de pássaros livres a voejar ...
Todos são irmãos, primos, ali nascidos, ali partilhados para toda a vida.
Juntos esfolam os joelhos, juntos dividem o pedaço de pão ou da guloseima quando calha.
Juntos olham os irmãos menores, enquanto as mães lavam nos charcos, e juntos carregam à cabeça vasilhas de água, desde a fonte onde ainda não secou, para as precisões da casa.
Acima do que podem.  Acima do razoável.  Como gente grande.  Como gente adulta.
E juntos irão para a escola, pelas manhãs ... já limpos e asseados !

Adoram fotos.  Uma e outra, e mais outra, numa alegria esfuziante e incansável.
E os rostos acendem-se e  gargalham  incrédulos,  quando  se vêem  no registo  das  máquinas ...

As crianças do Príncipe pedem lápis, cadernos, borrachas ... como quem pede tesouros.

Não têm nada ... e não sabem que têm tudo !!!...




Anamar

" CRÓNICAS DE VIAGEM - IMERSÃO "




Conhece-se bem o pessoal recém-chegado à Ilha.

A euforia do primeiro "encontro" ao vivo, pela manhã do dia da chegada, salta nos rostos, nos risos fáceis, nas gargalhadas que reflectem a boa disposição de quem se depara com uma surpreendente maravilha.
As fotografias multiplicam-se nas câmaras, nos telemóveis, numa urgência de disparar pelo mundo de cada um, o espanto da novidade : "acabámos de pisar o Paraíso " !...
Cada canto é um pormenor singular, cada flor, cada recorte da paisagem, cada nesga de céu ou de mar, espreitada mais daqui ou dali, é sempre nova e dará lugar a um registo notável .
E corre-se o risco de o fotografar dez vezes, cem vezes ... que sempre será a primeira vez !...

E é como uma primeira vez que se arquiva nos olhos, no coração e na alma.
Porque o que fica na memória da máquina não tem nada a ver, por perfeito que seja, com o que fica na mente humana para todo o sempre !
Nós gravamos imagem, cor, luz, brilho ... som, claro ...  movimento também, como as máquinas mais sofisticadas o fazem, com fidelidade e perfeição ...
Mas gravamos algo único e particular, que o Homem ainda não conseguiu atribuir a um qualquer aparelho por si construído, por mais apurada que seja a sua tecnologia ... a emoção, o sentimento, aquela coisa singular que nos põe um agradável nó na garganta ou um doce aperto no peito, que nos deixa mudos, a sorrir, ou com as lágrimas em descomando, quando experimentamos uma silente gratidão face à magnânima generosidade com que a transcendência da Natureza e da Vida nos brinda ...
A capacidade da surpresa, do êxtase, do emaravilhamento, só o rosto humano deixa transparecer, só o coração humano é capaz de sentir, só a mente humana é capaz de arquivar !...

E  este  será sempre assim o primeiro dia da abordagem de qualquer um que chega ao Príncipe, juraria !

Depois ... bom, depois é uma doce imersão, calma, quente, silenciosa e muda que rola, que nos toma, que nos envolve e nos confere esta leveza modorrenta, como a melopeia das ondas a espreguiçarem-se pelas areias, ou como o planar das aves lá no alto, vigilantes à sua Ilha.
Depois, é simplesmente a "curtição" de um sonho impressivo e inesquecível, como néctar saboroso que vai descendo sem pressas e nos imerge mais e mais, conferindo-nos uma plenitude que nos vai tirando a vontade de um dia vir a despertar !!!

Anamar

" CRÓNICAS DE VIAGEM - DIA ZERO "


" É  sempre muito bom ir !
Voltar tem sentir, cor e cheiro !... "


O meu sonho de que vos falei, concretizou-se.
Regressei do Príncipe há pouco mais de vinte e quatro horas.  E de lá, onde escrevi estas Crónicas de Viagem, trouxe estes textos que partilho aqui neste meu canto.
Espero que os apreciem.


" DIA  ZERO "





Voando a muitos mil pés de altitude, sobre um céu que não é de "carneirinhos" mas de nuvens densas e compactas, rumo a S. Tomé - Ilha do Príncipe.
As nuvens são claras em castelo prontas a farófias,  e o avião fura-as, penetra-as e desce, desce sobre uma floresta cerrada que já se divisa lá em baixo, cobrindo todo o recorte da costa de mar azul.

O fascínio, o deslumbre, o êxtase, esses serão para depois, quando os pés assentarem naquele solo que não possui um espaço que seja, sem vegetação.
São os caroceiros, as ocas, as colmas, as bananeiras ( cerca de nove espécies diferentes ) moandis, eletrineiras, jaqueiras, fruteiras, cajamangas, maracujás gigantes, papaieiras, e tantas outras cujos nomes não retive, não perguntei, ou não me disseram ...
São a pimenta-rosa, a baunilha, as árvores estranguladoras que se adonam de outras, num parasitismo que as mata, os fetos arbóreos, a matabala, o inhame, a mandioca e um sem número de outras espécies a perder-se  a conta ...
E  claro,  os ex-libris da ilha ... os cafezeiros e os cacaueiros, que a tornaram famosa pelos extraordinários  café e cacau, explorados desde o tempo da escravatura, nas roças, agora cooperativas de agricultores, e exportados para o exterior.   
São as flores, muitas flores, em profusão, das orquídeas aos hibiscos, mergulhados na mata de palmeiras e coqueiros.  São as maravilhosas  (e  cartão de visita da ilha )  rosas de porcelana, inconfundíveis e únicas ! 
Em suma, uma pequena Amazónia secular, milenar, mergulhada na história dos tempos, verde, totalmente verde, onde a água abunda, o calor é complacente e a Natureza generosa !
A semente cai no chão e renasce ... no eterno milagre da vida !...

E o mar que mistura os tons de azul aos verdes também, ao turquesa cristalino ... da prata ao branco da espuma batida, bordeja esta indescritível terra, ora adormecido na modorra da quietude, ora acordado do sono e agitado ...
Os pássaros, mais do que se verem no emaranhado da ramagem, escutam-se, ouvem-se nos trinados dos ninhos no coqueiral, rasando as águas em busca de peixe, na beira das marés, na rebentação no areal ...

A brisa corre solta e leve, tão leve e solta quanto o espírito e a alegria das gentes, nestes rostos chocolate que sempre nos sorriem e recebem. "Leve leve" é o lema repetido, numa terra também apelidada de "esquece o stress" ...
O sol põe-se em cada dia por entremeio da folhagem recortada, lá longe, no horizonte que se veste de fogo, com as cores inenarráveis de África, sobre aquele marzão que torna esta insularidade, sem dúvida, uma bênção dos deuses.

A Ilha do Príncipe não se descreve.  A sua "fotografia" não tem atributos que lhe sejam fiéis e justos no vocabulário humano.  Uma só palavra, vedada aos Homens mas adivinhada por estes, lhe assentará na perfeição, ao tentar descrevê-la : se existe " paraíso ", aqui franqueamos a sua entrada !!!

Anamar