sexta-feira, 4 de maio de 2018

" A FOTO "





Normalmente nas minhas escritas adiciono uma foto, um vídeo, enfim, algo com que acho valorizar o que escrevo.
Desta feita, escrevo sobre uma foto ... esta, exactamente esta !

Tem esta foto, gratas memórias para mim.  Digamos, que memórias gratas por inusitadas, por incomuns, por engraçadas ... memórias vivas.
Remontam a um período da minha vida sui-generis, já lá vão alguns, razoáveis anos. 
Um período em que me pus em pé, depois de tormentas atravessadas.  Um período de reabilitação e ressurreição, depois de uma turbulência sem tamanho.  Um período de me repintar, depois de um cinzentismo nebuloso e insípido  me ter tomado, parecendo não haver mais luz ou cor à minha espera.

Talvez por isso, ou mesmo por isso, escolhi para mim, na altura,  como fetiche, esta imagem espantosa, de plenitude, esperança, vida, sonho, liberdade ... Tudo o que eu precisava desencavar então, do buraco fundo onde me encontrava.

Tudo isso eu precisava voltar a vivenciar .  Tudo isso eu agarrava então, com toda a força preênsil dos meus braços, com toda a ânsia das minhas mãos, com toda a fé do meu coração.
E fi-lo com uma "fome" de vida que urgia voltar a sentir.
Fi-lo, com uma entrega de alma que me animava o âmago.
Fi-lo, num mergulho alucinado, de cima da falésia, não importando se me salvava ou me perdia, não importando se encontrava rocha ou tapete de flores à minha espera.
Era preciso que me sentisse viva, apenas !

Atravessei um tempo estranho, incomum, desconhecido, insuspeito.  Saltei baias, desafiei limites, enjeitei convenções.  Tapei os olhos, os ouvidos e a boca e deixei-me ir, na doçura do bote à deriva nas águas mansas de um riacho sereno.
Fiz descobertas, medi-me, tomei-me o pulso, alucinei-me talvez ...  saboreei o sal, o doce e o amargo.
E sinto-me muito grata por isso.
Fiz uma travessia no desconhecido e sinto-me abençoada por o ter feito.  Descobri ilhas inóspitas, galguei montanhas, desci ravinas, percorri desertos ...  Voei com o condor, senhor dos rochedos. Planei com as gaivotas, no auge de liberdades plenas. Tornei-me muitas, sendo uma só.  Senti-me sufocada de emoções.  Desafiei o escuro com o sol a pino ...

E saí-me bem.  De tudo me saí bem.  Mais feliz, mais mulher, mais eu !

E sinto-me privilegiada, incomensuravelmente privilegiada, porque posso olhar para trás e sorrir docemente, cúmplice com a vida que foi generosa comigo e me mostrou valer a pena vivê-la, sempre, porque tudo é sempre surpreendentemente ENORME, pelo facto de nos sentirmos vivos !

Anamar

quinta-feira, 3 de maio de 2018

" INGENUIDADE "





Uma porta, duas janelas
era o tamanho do sonho
que sonhei, sonhei, sonhei ...
até que um dia cansei
de vê-las sempre cerradas ...
E havia uma cancela,
malmequeres, um lilaseiro,
e o mar bramia por perto
em veredas já cansadas
Do outro lado, era a serra
com o vento em desalinho,
E as arcas guardavam sonhos
por entre os lençóis de linho
As tamareiras selvagens
conheciam os segredos
que lhes confiara um dia ...
E as trepadeiras subiam
ao alto, p'la cantaria
As juras que de amor fiz,
p'ra todo o sempre as selei ...   
E do peito onde as guardei,
roubou-mas a ventania !

Mas mataram-me este sonho
nos sobressaltos da vida ...
Sumiu como as andorinhas
que partem em despedida
As gaivotas já não pousam
nas traves dessa cancela,
e a porta e as janelas
têm o tamanho da dor,
têm o tamanho do amor
que viver ali, sonhei ..
E as lágrimas que hoje correm
em desnorte, pelo monte,
fecharam-me o horizonte,
porque do sonho, acordei !...

Anamar

quarta-feira, 2 de maio de 2018

" ENQUANTO O TEMPO PASSA ... "




Enquanto o tempo passa !...

Acordei cedo, o que não é normal em mim e fiquei no quente do édredon a olhar o tecto do quarto.
Percebia o cinzento lá fora, pois já me acostumei a adivinhar a cara do dia, pela claridade que me entra da janela que sempre fica aberta.
O tecto do quarto não tem nada de especial, juro, mas tornou-se inesperadamente no écran gigante por onde se foi desenrolando uma película fantástica : a história da minha vida ao longo do ano que mediou entre 2 de Maio de 2017 e este 2 de Maio que me amanheceu.
Um ano exacto da minha história, repleto de tantos acontecimentos que o tornaram transbordante ...

E porquê hoje ?  E porquê esta referência particular ?

Faz exactamente um ano que completei a última das três tarefas "exigíveis" ao ser humano antes de partir : tendo já plantado uma árvore, tendo já feito um filho, publiquei neste dia, um livro de poesia, sonho enorme que supunha irrealizável, e  me acompanhara desde menina.
Mas muito para além disso, e mais gratificante que isso, se o posso afirmar, foi a felicidade de, por esse motivo, ter reunido à minha volta os meus familiares próximos, os meus amigos, os expectáveis e os improváveis, os de perto e os de longe e ainda ter reencontrado, com uma alegria ímpar, amigas que deixara mais de cinquenta anos atrás, lá longe, no meu Alentejo, e que quiseram estar presentes, tornando o meu dia num misto único de sentimentos, numa perfeição total de estados de alma, numa completude sem igual, e que eu sei lá se merecia ?!...
Foi um dia imenso, que jamais terminará dentro de mim.  Um dia em que a festa foi linda, em que os risos e as lágrimas se misturaram.  Um dia em que as emoções me sufocavam e em que eu fui de facto, feliz !

Mas se este evento foi o expoente máximo  do júbilo, da alegria, da realização pessoal,  terei que assinalar como seu inverso, um dos dias mais tristes, sombrios e gélidos da minha existência : o passado próximo dia 11 de Abril, dia em que a minha mãe me deixou.  Esse dia, em que a orfandade absoluta me tomou, em que a escuridão uma outra vez desceu à minha vida, em que muita coisa deixou de fazer sentido, pintou de negro a minha alma e o meu coração, duma forma irremediável !
Obviamente estou a tentar reunir os cacos, a consertar os farrapos, porque o tempo faz-se todos os dias e a vida tem de continuar o seu trilho.

Olhando, pensando, lembrando, reflectindo exactamente sobre o meu percurso, neste deixar voar o pensamento, percebi ainda tantos altos e baixos, tantos escolhos e baixios em que tropecei nesta escorrência temporal.  Perdas doídas e sangrantes, com cicatrizes fundas cravadas indelevelmente no coração.  Voltas e reviravoltas inesperadas e injustas com que o destino nos experimenta e põe à prova, sem complacência ou piedade. Mágoas que se eternizam e parecem vir p'ra ficar. Incompreensões e incapacidades. Portas que se fecham e janelas que não se abrem.  Tempestades sem bonança, quando a exaustão nos joga ao chão ... Enfim ... talvez, simplesmente, vida !

Ganhos também, seguramente.  Nesgas de azul no meio da negritude.  Lufadas de ar, na sufocação da desistência.  Anjos que descem para nos afofar o travesseiro, ou nos aparar na queda iminente.  Braços que acolhem, amparam e embalam.
Sempre os afectos a atapetarem-nos o caminho . Sempre os bem-quereres a mostrarem-nos que talvez valha a pena acordar por cada dia, levantar e encarar o amanhã ... porque teremos por perto as escoras, as âncoras  e amarras  no molhe da nossa vida, mesmo quando o mar se agiganta e as marés alterosas parecem engolir-nos o horizonte !

Depois, lembrei outro dia  de uma alegria sem tamanho, de uma felicidade sem dimensão : o dia 15 de Junho, dia que a Teresa escolheu p'ra chegar a este mundo.
O meu quarto neto, a menina linda que ela é, veio mostrar-me que as nossas existências são afinal de perdas e ganhos, de partidas e chegadas, de dores e felicidade, neste caminhar adiante, sempre adiante... e que depois de nós ficarão os que transportam pedaços de nós em si, à revelia de vontades ou desejos.
Acredito que a Teresa tenha sido uma bênção que desceu à minha vida também, uma luz acesa no ocaso que me aguarda, tenha sido a acalmia que urgia, nos vendavais do destino, e que seja mais uma razão para que eu continue a alimentar a esperança e a confiança no amanhã ... apesar deste tempo implacavelmente célere que ainda nos surpreende, como onda gigante  que varre as nossas vidas !...

Anamar

terça-feira, 24 de abril de 2018

" O SALGUEIRO QUE EU AINDA NÃO SOU ... "






Nem tudo é mau com o transcurso dos anos,  nas nossas vidas.

Sou uma pessoa genericamente muito afirmativa, talvez peremptória, com a mania que tenho algumas certezas face a muitas coisas.  Como se tudo não se alterasse em continuidade, e a imutabilidade não fosse a maior inverdade das existências...
Daí que não seja avisado, muitas vezes, espaldarmo-nos em verdades pseudo inalteráveis.

Esse aparente pragmatismo advém-me de alguma contenção que me imponho, antes de tomar posições, evitando impulsividades,  gestos irreflectidos e atitudes precipitadas, de que possa vir a arrepender-me.
O facto de há já alguns anos atrás ter optado por ficar só na vida, obrigou-me a, por defesa, sobrevivência e cautela, ponderar tudo com o máximo cuidado e pelos diversos ângulos possíveis.
Habituei-me também a escutar mais, a tomar em consideração outros pontos de opinião, outras sensibilidades ... em suma, outras formas de ver as coisas.

E de muito irredutível e musculada nos pensamentos e opiniões, passei felizmente, a assumir uma bonomia maior perante a vida, apurando uma maior capacidade de cedência, evitando análises extremadas e preferindo o acordo à contenda, tentando consensos, quando há que decidir.

Em jovem, ou mais jovem, quando nos achamos um pouco "donos do mundo", podendo tudo a qualquer preço, quebrava em vez de vergar.
Sangue na guelra, dona de verdades muito mais absolutas que hoje em dia, reconheço a inabilidade com que algumas vezes resolvi certas situações, ao longo dos tempos.
Perdido por um, perdido por mil ... na forma irredutível de ir adiante, ou, antes quebrar que torcer ... dizia o meu diabinho interior ...
Como se essa atitude aproveitasse, e o orgulho fosse uma forma saudável de me pautar .

Hoje, procuro usar a filosofia sábia da água, que perante um obstáculo, contorna e segue o seu caminho.
Sem dúvida, uma atitude de maior inteligência e temperança, tenho que convir. Uma atitude mais assisada e menos desgastante, mais inteligente e proveitosa.

Mas isso, foi a passagem dos anos, que limando arestas, conferindo-me maturidade, mostrando-me a relativização na importância das coisas, penalizando-me com algumas cicatrizes existenciais, me transmitiu a paz interior e o discernimento para nunca radicalizar, para procurar soluções de convergência, para desenvolver um esforço que reconheço será meritório, no sentido de um maior aperfeiçoamento possível  da minha personalidade.

Em suma, tentar aproximar-me cada vez mais do salgueiro que ainda não sou, e deixar de ser o carvalho que já fui ...
Como diz um amigo meu, a postura diferente destas duas árvores na Natureza, é que derruba quantas e quantas vezes o carvalho, e salva o salgueiro, nos ventos fortes das borrascas da vida !

Anamar

segunda-feira, 23 de abril de 2018

" COISAS DE MULHERES "





O dia amanheceu de borrasca, mas a tarde compôs.  Um sol amarelo adocicado de Primavera emoldurava a paisagem.  A estação não enganava.  Os pássaros chilreavam em devaneios de acasalamento.  A excitação das urgências libidinosas, neles como nos seres humanos, começavam, ainda o dia esfregava os olhos ensonados.
Sempre assim é.  Esta estação é poderosa.  O sentido da renovação, remoça-nos, torna-nos capazes, crentes, imparáveis, irresistíveis.
De repente há um acreditar generalizado de que a vida reinicia mesmo.  Saímos das trevas dos Invernos escuros e olhamos de frente a luz da vida, com que o sol ilumina e pinta os nossos sonhos.
A vontade dispara, a força multiplica-se, a esperança agiganta-se e, da noite para o dia, ficamos outros, tornamo-nos outros, surpreendentemente, o milagre opera-se ...

Lembrei uma tarde igual a esta, naquela mesa de café, à beira-rio, faz tempo.
Também havia chovido toda a manhã e custámos a confirmar o encontro pela tarde.  Afinal, o dia não garantia nada seguro.  Mas acabámos por ir, num Abril lá para trás, com um sol amarelo adocicado de Primavera ... como hoje, a emoldurar a paisagem.
Como sempre, falar das "nossas coisas",  " arear os talheres", como diz um amigo meu ... inevitável entre mulheres, quando se encontram.
Há sempre um atraso notório ... Ainda não te contei,  cheguei a dizer-te ?   Imagina tu ... e por aí adiante.
Ela estava apreensiva, um pouco silenciosa demais para o hábito.  Estranhei-a.  Mas connosco era questão de começo.  Como as cerejas, as conversas não se negariam.

Acreditas que a última vez que fizemos amor foi há mais de dois anos ?  Sei exactamente qual o dia.  Já então a nossa relação resvalava.   Ele nunca entendeu.  Uma mulher só faz amor se houver amor, se houver afecto, se houver romance, história.  Se houver lastro afectivo e emocional, cumplicidade.  Caso contrário, uma mulher faz sexo.  E juro-te, é muito mais fácil fazer sexo, que amor.  O amor implica dádiva, partilha, presença.  O amor tem códigos secretos, linguagens, memórias, imagens.  Deixa rasto, marca uma mulher.  O sexo não.  O amor faz-se de perto ... não com lonjura ...
E ele deixou de ter tempo para mim ... para nós.
Havia um fosso cavado dolorosamente, já então.

Eu olhava-a em silêncio.  Conhecia a história ao pormenor.
Juro que vi raiva, mágoa e dor nas lágrimas que lhe afloravam os olhos e que custava a dominar.
Mantive-me em silêncio.  Se quisesse ser honesta com ela, ela sabia exactamente o que lhe diria. Talvez hoje não quisesse ouvir ... Era uma mulher profundamente sofrida ! Uma mulher decepcionada face à vida ... triste, quase desinteressada.
E continuei apenas uma ouvinte atenta.
As amigas têm estas partilhas, a qualquer preço.  Contra tudo e contra todos.  A solidariedade e o afecto, um afecto fraterno consegue torná-las muros de lamentações silenciosos.
Não julgam, não censuram.  Choram junto, vibram junto, festejam junto ... mas sem juízos ou recriminações.  Com um entendimento que eu acho ser coisa de género.

E depois, ele começou a afastar-se mais e mais.  Sempre tinha justificações que não me faziam sentido. Nem podiam.  Afinal, para mim, a união, a partilha das dificuldades é que poderia tornar-nos fortes, corajosos, vencedores.  Quando se quer, não se abandona.  Quem ama, não promete ... faz.  Sempre encontra forma de fazer.
Mas ele nunca o fará.  Eu sei que não conseguirá fazê-lo. Ele nunca será capaz de alterar o esquema cómodo em que vive.  Os homens acomodam-se.  Acobardam-se.  Não enfrentam.  Também é coisa de género. E auto-justificam-se, numa comiseração consigo mesmos, que dói ...
Arrastam uma infelicidade sem tamanho, compensam-na com infidelidades mais ou menos satisfatórias e romanceadas, e seguem sempre o mesmo caminho.  Continuam no mesmo trilho.  Aquele que conhecem e lhes é mais cómodo.
Achas que alguém pode viver assim ?  Achas que se suporta indefinidamente uma insatisfação, ano após ano, semana após semana, fins de semana, férias, festas ... só... completamente só ?
Isto é uma relação entre duas pessoas ?
Ele achava que sim, e que eu, porque o amava, o esperaria indefinidamente.  Eu continuaria ali sempre, se preciso fosse, até que a vida lhe permitisse alcançar os patamares que considerava imprescindíveis para assumir a relação.
E eu fui vivendo, de facto.  Tanto sofrimento, tanta mágoa na minha vida então ... como sabes.
Tanta insegurança, tanta dúvida e ansiedade.  Tudo tão escuro à minha frente.  Tantas lágrimas de impotência e desespero.  Solidão atroz.  Infelicidade que me roía as entranhas ...
Mas fui vivendo ... Só ... sempre só !
Das recordações, das loucuras, dos risos e das gargalhadas felizes, que cada vez pareciam mais longe.
Fui vivendo dos sonhos que continuava a sonhar ... Do mar e da serra, das falésias e das gaivotas sobranceiras.  Dos sítios e das memórias.  Dos cheiros, das cores, das palavras e da música que haviam feito o mágico da nossa história

As lágrimas romperam diques.  Eram de mágoa e injustiça....

Mas tu sabes, o cansaço domina-nos.  A dor corrói-nos e a angústia mata-nos.
Cheguei a hoje.  A minha vida parece-me uma fraude.  Sinto-me com o coração amordaçado.  E pergunto-me ... fazer o quê ? Perdi totalmente a fé e a confiança.  Nada disto deixa dúvida.  Sempre tudo foi rigorosamente coerente na sua postura.  Não há absolutamente nada a esperar.  Sempre tudo foi sem surpresas. Expectável.
E no entanto, tudo poderia ter sido diferente.  Daí, a raiva que sinto. A mágoa que me toma.  E tantas vezes lhe toquei os alarmes ... atenção, olha o rumo das coisas... atenção, eu não sou de ferro. Eu sinto-me só e desamparada.  Eu não tenho um ombro, um apoio ... nada ! E no entanto, nunca lhe neguei os meus ...

Diz-me ... o que faço com isto que sinto no meu peito ?  Para onde deito as rosas magoadas que tenho no coração ?  O que faço com os dias ensolarados, no azul do mar cavalgando as rochas ?  Com as matas, os pinhais, as flores vadias e insubmissas,  ou simplesmente os sonhos que sonhei ?
O que faço, quando Enya me canta docemente  que "só o tempo o sabe" ?...

Coisas de mulheres ... Todas diferentes e todas iguais.  Dramas vividos no feminino.  Dúvidas sem resposta.  Histórias sofridas, estradas percorridas vezes sem conta ... sem saída, bifurcação ou sequer escapatória !

Era uma tarde de Abril, com um sol amarelo adocicando a paisagem ...
Onde é que eu já ouvi algo semelhante ?! ...

Anamar

sábado, 21 de abril de 2018

" ... PORQUE ... "





" Eu escrevo porque respiro´
e escrevo p'ra respirar "...

Verdade absoluta que constitui uma estrofe de um dos meus poemas.
Eu sempre o soube claramente.  Não tinha talvez ideia do seu alcance.
Neste momento não escrevo, pouco escrevo, tenho uma claustrofobia na alma, sem tamanho.  Sinto uma sufocação de mordaça.  Vivo o silêncio de um coração que parece manietado.
Está pesado, pesa o mundo inteiro.  Tenho o mundo inteiro dentro do meu peito.

Entardeci de dia ensolarado.  Acinzentei como esta Primavera que mostra tantas caras, que nos surpreende.  Uma Primavera que parece doente.  Como se Abril não tivesse direito às  suas "águas mil " ...
Nada ou quase nada me impede de escrever.  Mas estou entupida de palavras que não saem.  Estou engasgada de sentimentos que se atropelam e não escorrem.  Estou atravancada  de contradições, inseguranças, mágoas e dores que não vazam.
A vida está-me descolorida.  Racionalmente descolorida.
Acho  que  perdi  a  capacidade do sonho, do  encantamento,  da  utopia, da  loucura ! Da  leveza ...

"A idade é só um número", dizia o David que conheci em Bali.  Parecia ser sabedor, o David.  A sabedoria  desse tal número ! ... Partiu há muito.  Deixou-me um molho de cartas trocadas, pequenas flores secas roubadas dos jardins, nos seus passeios matinais.
Sim, porque o David gostava, como eu, de ver nascer o sol em Bali.  Só nós dois, na praia, àquela hora.  Nós dois, os oitenta e muitos anos do David, o meu inglês que apenas chegava para nos comunicarmos ... e o sol, a nascer lá longe, num horizonte inesquecível ! A magia daqueles momentos !

Nos tempos em que eu ia à aventura, com a adrenalina de viajar só, solta, livre.
Vivia sozinha.  Acabara uma relação.  Juntava os cacos para me consertar.  Reunia pedaços p'ra me por em pé.  E saboreava o gosto do inesperado, do novo, do inédito, do possível.
E muita coisa era possível, então.  E as coisas tinham gosto, um sabor surpreendente, porque eram novas, inesperadas, surpreendentes mesmo ...  Coisas de valer a pena !
E as coisas eram coloridas.  Tinham as cores da ânsia que eu tinha de voltar a dar-lhes sentido.  Porque dar-lhes de novo sentido, era remoçar, recomeçar, acreditar, agarrar com ambas as mãos ... era viver ! Talvez renascer ...

Hoje, sinto-me como crepúsculo de tarde ociosa.  Sinto-me como se o David me tivesse enganado rotundamente.  Talvez a idade seja mesmo um número ... no meu caso.
Sinto que nada de novo sou já capaz de fazer, na minha vida.  Parei de sonhar, de querer, de lutar, porque não há por que lutar, afinal. Estou cansada, esgotada, asténica ...
Sinto a vida suspensa, sinto-a parada em águas mornas e sinto em mim o susto de a viver até ao fim, exactamente assim ... em águas mornas. Águas pútridas ... infectas ... Águas paradas, de pântano lodoso.


Precisava das pinceladas de Deus ou do Diabo, nesta aguarela insípida, de tons pastel.
Precisava  de revivenciar utopias.  Levantar voo nas asas do pássaro, rumo ao infinito. Ser tão livre quanto as águas do regato que corre sem perguntar porquê ... tomar a aragem que passa, e ir ... simplesmente ir ... sem perguntar onde, neste alvoroço de sonho incompleto, sempre por sonhar ...
E talvez pela primeira vez, me sinta com escoras que me prendem ao chão, me sinta com umas raízes tão fortes que nem um vento de tempestade arranca, me sinta como o barco cujas amarras jamais o soltarão do cais.  Deste meu cais ...

Hoje, aqui e agora, irreversivelmente entristeci.  Haverá pior que um barco parado que olha o vai-vem das marés ?!

E como eu precisava sentir que afinal estou viva ... apenas esqueci !...

Anamar

terça-feira, 17 de abril de 2018

" AS PERDAS "



Estranho tempo este em que pareço ter perdido o rumo e desconheço o norte !
Estranhos dias estes em que um vazio instalado me gela por dentro e me sufoca o coração.  Lágrimas secas que apenas sangram para dentro, deixam-me numa letargia esquisita de ser hibernante que recusa abrir os olhos aos primeiros raios de sol que deveriam conferir-lhe a vida do recomeço.
O sono é o único bem estar que me aquece a alma.  Um sono profundo de um silêncio que me anestesiasse de tudo o que me cerca e que pareço desconhecer, seria o desejável ...

Sei que talvez tudo seja normal, compreensível, aceitável.
Será por certo assim com todos os seres humanos, quando de repente a vida parece suspender-se numa qualquer esquina, as cores empalidecem e parece não se justificar ou entender a razão de se continuar ...
Sei que a racionalidade me aponta o bom senso dos factos, me explica a paz misericordiosa do desfecho.
A racionalidade sim, e até mesmo o meu desejo, quando pragmatizo e esfrio a mente, me apontavam há tempo demais, para a saída final e digna para a minha mãe.  A única, decente, que o destino lhe deveria oferecer : a sua partida mansa, sem sustos ou angústias.
E isso, acredito que terá acontecido.
Pelo menos a vida ter-lhe -á feito justiça !

Eu continuo na guerra sem tréguas entre a logicidade dos factos, a adequação dos mesmos, a objectividade de tudo o que não tem mais discussão ou retrocesso, numa ressaca sem tamanho, e aquela que eu sou, bem no meio de mim mesma.
Uma luta perdida, sem apelo, entre a cabeça e o coração ... e no meio de tudo isto, a orfandade que sinto, a saudade do bem vivido e partilhado, o desânimo sem remédio,  o buraco no peito ...
Deve ser normal tudo isto, seguramente ...
Mas dói.
As perdas inevitáveis dos nossos percursos, empobrecem-nos dolorosamente, deixam-nos à deriva como barco cansado em meio do temporal, deixam-nos entontecidos, como mariposas  perto da luz, deixam-nos como caminheiro sem farol ou bússola, em céu sem lua ...

Tantas perdas têm as vidas ... Tantas ironias preparadas pelo destino ... Tantos becos sem saídas satisfatórias ... Tantas estradas sem alternância credível ...
E vamos nadando como náufragos, na urgência de nos mantermos à tona.  Vamos tapando e destapando daqui e dali, a manta de retalhos em que se nos transforma a alma.

Lido muito mal com as perdas.  As perdas que me têm recheado a vida.  Acho-as contra-natura, como qualquer amputação imposta.  Perdas de gente morta, mas também perdas de gente viva.
Repito ... será por certo assim com todos os seres humanos.
Contudo, ainda acho que cada um vivenciará o que se lhe depara, de forma diversa, de acordo com muitos factores, características e capacidades.
Eu fico perdida, confusa, num estado de catalepsia que me paralisa, e me retira aquela força anímica que nos põe em pé por cada dia, como numa vida com ausência de objectivos, horizontes ou sonhos ...
Eu fico exaurida, esgotada, numa letargia de bicho embiocado na toca, numa escuridão de cerração que desce sobre a Terra, numa lassidão de ave ferida que não levanta voo ...

Estranho tempo este ... estranhos dias estes em que o cansaço é a nota dominante, e o cinzento a cor que pinta as minhas horas ...

Anamar

sábado, 14 de abril de 2018

" AS ÚLTIMAS PALAVRAS "




A minha mãe foi cremada.
Num dia triste, cinzento, de uma intempérie sem tamanho  apesar da Primavera já se ter instalado, será reduzida a pó, aquele pó que nos faz, aquele pó donde vimos e onde terminamos.

Quando se perde alguém muito nosso, um vendaval varre-nos sem piedade, um raio atravessa-nos e rasga-nos as entranhas ... uma faca afiada dilacera-nos o coração.
É como se fôssemos uma árvore desgrenhada, ameaçando sucumbir à força da ventania, à mercê da judiação do destino !
O tempo associou-se afinal à minha dor ...

A minha mãe viveu noventa e sete anos de uma vida pacata, simples, sem exigências ou pretensões.  Viveu o seu dia a dia mais em função dos outros, do que de si própria.
Privilegiou a família como esteio para a sua vida.  Vibrava com os seus sucessos,  doía-se com as vicissitudes menos boas do destino.
Era generosa ( muito ) .... disponível, presente  sempre.  Dava-se sem condições.
Escolheu o dia do seu aniversário para partir, fechando um círculo perfeito de vida.  Escolheu, como que a dizer que não a esquecêssemos.  Como se a pudéssemos esquecer algum dia!
Ironizou com a rota determinada.  Como menina mandona e pirracenta, só foi quando quis ... em pleno dia de "festa" !
Estou certa que decidiu festejá-la com os outros, todos os outros que chamava desesperadamente nas suas demências constantes.  Decidiu que desta vez, a festa seria do outro lado.
E acho que estará em tertúlia amena, para lá do "túnel" ... onde, imagino, haverá um campo verde, com todas as flores que sempre amou.  Haverá regatos a correr, haverá fontes de água fresca e límpida e haverá pássaros a cantar. E os corações estarão leves, como a brisa azul que perpassa ...
E tanta coisa teriam a se dizer ... tantos os que lá estão !...

A minha mãe foi, e uma orfandade atroz, desceu-me.  Uma sensação estranha de desconforto e abandono, um vazio gélido, de amputação, cortou-me metade do coração.  E esta metade não tem como repor-se ... nunca !
Dou por mim já, a ir ali, conversar com ela ... a dizer-lhe as últimas.  A dizer-lhe como teve tantos amigos em seu redor, na partida.  A contar-lhe como foram lindos os ramos, com que lhe perfumaram o leito.  E como ela estava linda, serena, cheirosa e quase sorrindo, num adormecimento cálido e doce de quem partiu em paz !

Mas não será preciso.  Vou deixar isso para mais tarde, porque hoje eu sei que ela, feito luz, foi
pairando por ali, como mais um ponto luminoso que nunca se irá apagar, no firmamento de breu que tantas e tantas vezes é a nossa existência!
Hoje estou mais "rica", mais amparada, mais ajudada. Ao lado do meu pai, que me deixou há vinte e seis anos, tenho por lá agora, mais um bordão, mais um colo, mais uns braços para me guiarem neste rumo,  para me levantarem do chão, para me secarem as lágrimas ... tenho a certeza !...

Foi tudo isso que ela me sussurrou, quando trocámos as últimas palavras ...

Anamar

sexta-feira, 6 de abril de 2018

" A QUEDA DE UM GIGANTE "




Convivo com a morte da minha mãe há mais de três anos ...
Convivo de perto, demasiado perto, com uma partida que demora a fazer-se e se estende na infinitude do tempo
É um tempo de dor, de sofrimento, físico, psicológico ... uma dor que dói em todo o lado, no desespero de uma esperança arrastada, esfumada nos corredores tortuosos das existências.

A insensibilidade da degradação daquela que conhecemos, o desmoronamento indiferente e progressivo das suas últimas fronteiras de resistência, confrontaram-nos com patamares de dureza, revolta e inaceitação sem tamanho.
E sempre aquela mulher, tal como o foi em vida, disse não à capitulação, à desistência, ao baixar de braços, à perda de esperança.  Enquanto deu ...

Muito já falei sobre ela.  Tudo já falei sobre ela, de tal forma que neste momento em que espantosamente a minha mãe parece finalmente experimentar a aceitação da partida, eu não tenho mais palavras !
Neste momento, olho-a já no passado.  E algo que se olha à distância do passado, já não se exprime em palavras dos humanos.  Neste momento, da minha mãe, só sei ver, só sei pensar, só sei sentir ...
Ela vive no pretérito da minha memória.
Ela pertence à moldura que a enquadra, ao sorriso que nos acena da fotografia, ao som das palavras deixadas nos vídeos de festa.  Quando ainda nos festejávamos ao seu redor e lhe bebíamos o carinho, a dádiva e o amor ...

Neste momento, experimento um não sei quê que não explico.  Experimento a paz de também a sentir em paz, e partida para outra dimensão.
Neste momento, povoo-me de silêncios, para que as palavras não maculem esta singular provação.
Para que o rito da passagem se torne único, particular, nosso, no recolhimento da devastação que temos em nós.
Olho-a longamente. Olho um corpo esquálido recolhido no calor do ninho, como se também ele retomasse a posição fetal que um dia o protegeu no útero da sua mãe.
Olho aquela esfinge abandonada, cerrada no que resta de si própria.  Inerte.  Sem vida.
E porque acredito que entre mãe e filha, a comunicação transcenderá sempre a dimensão limitativa do Homem, porque acredito que ela perdura muito além, pelas veias onde escorre sangue igual ... e porque acredito que mesmo com os olhos cerrados ela me vê ... mesmo com os braços inertes, ela me abraça ... mesmo no silêncio das palavras, o nosso imortal diálogo sempre se fará ... falo-lhe, tranquilizo-a, dou-lhe a mão como quem guia uma criança medrosa, no atravessar de um túnel escuro.
E peço-lhe que parta em paz, que vá sem medo, que ascenda às estrelas donde se divisa o mundo ...
E que vá sem mágoa pelos que cá ficam ... porque tudo não passa de um interregno.  Na eternidade, todos os que foram tudo,  se encontrarão, e aí haverá uma festa de amor, seguramente  !

Um gigante está prestes a cair ... procurarei sempre honrar-lhe a memória !...

Anamar

quarta-feira, 4 de abril de 2018

" CONVICÇÃO "





Enquanto virmos a mesma lua, nunca estaremos tão longe assim ...

Tenho para mim que as vidas se fazem e desfazem, sem na verdade se desfazer aquilo que as povoou, as construíu, as coloriu e as preencheu.
O tempo avança, escoa-se, dobra esquinas, vence horizontes.  Os caminhos da serra permanecem intocados, os córregos que se escondiam entremeio às amoras bravas, persistem.  O gorgolejar das águas escorrentes por entre a penedia, ecoa na mata e o vento que esvoaça para cá e para lá, irá esvoaçar para cá e para lá ao sabor das memórias.
Os sítios são os sítios, para sempre.  E "sempre" é muito tempo ... muito mais do que um Homem vive !
E aquilo que se viver em vida, transformar-se-á em eco, na eternidade !
E a eternidade, essa sim, não tem medidas nem tamanho. Essa sim, tem a medida do "sempre" !

As pessoas encontram-se, cruzam-se, interpenetram as vidas e afastam-se muitas vezes.
As pessoas desfolham sonhos, desenham estórias, pintam esperanças ... As pessoas acreditam ...
E depois, as pessoas perdem-se por aí.  As palavras já não galgam as montanhas.  Os sons já não viajam nas nuvens.  As emoções já não trepam a copa das árvores.
As lágrimas transformam-se em rio de caudal incontrolável.
A linguagem encalha nos escolhos da maré.  E parece não ter mais sentido.
As pessoas que foram muito, que foram quase tudo, desconhecem-se.  E injustamente já não sabem ler no livro do amanhã !

Assim são as vidas de quase todos, acredito.
Mas  porque as vidas se fazem e desfazem, sem  na  verdade se desfazer aquilo que  lhes  pertenceu, também acredito que enquanto virmos a mesma lua no firmamento de breu,  estejamos onde estivermos, nunca estaremos tão longe assim !...

Anamar

quarta-feira, 28 de março de 2018

" REFLECTINDO"



Aqui estou, frente a este casario inexpressivo, frente a este céu só limitado pelas barreiras que os humanos lhe construíram, frente a esta lonjura até onde a minha mente voa.
Aqui estou, como tantas vezes estou, na busca da paz do silêncio.
Já que este meu poiso é o galho de árvore donde o pássaro voeja rumo ao infinito, é o silêncio da falésia inacessível ao Homem, é a mansidão do encontro primordial de mim comigo própria ... sempre o busco, como catarse, como paragem, como local de despojamento e reflexão honesta, procurando despir-me de emoções, de pressões, de condicionalismos, na busca da verdade e da transparência nas minhas reflexões,  na busca de respostas, vezes sem conta, para as minhas angústias, olhando a minha verdade de frente, duma forma isenta, despida e corajosa ...
Sempre o busco na procura da pessoa que eu sou ...

Lá fora está cinzento.  As anunciadas nuvens vão pejando o firmamento.  Afinal é Semana Santa ... seria de bom tom !

Sou humana e os humanos cometem demasiados erros, tentanto quase sempre acertar.
Mas sempre busco, com severidade, explicações para as minhas atitudes e escolhas, sem justificações esfrangalhadas ou panaceias protectoras e tolerantes.
Desde sempre me habituei a reflectir, a analisar, a guerrear-me, se for o caso.  Costumo mesmo ser menos tolerante comigo, do que com os que me rodeiam.  Costumo, sem artifícios ou maquilhagens pôr a nu os meus erros, fragilidades, e incapacidades.  E faço-o sem piedade, com a espada afiada do justiceiro que busca repor o certo.
Não passo a mão na minha cabeça, nem desculpabilizo e aquieto o coração para dormir melhor ...

Talvez porque a vida já me maltratou largamente, não tenho dificuldade em perceber o outro, em ouvir o outro, em tentar entender a sua justificação ou posicionamento.
E se reconhecer que errei, que maltratei, que injusticei, que não fui correcta, que não assumi a minha inerente responsabilidade ... não tenho dificuldade em, duma forma desarmada, me retratar, me explicar, pedir desculpa, assacando a culpa para mim própria.
Considero que uma retratatação, uma explicação transparente e sincera, sem álibis ou truques, terá tudo para ser entendida, aceite e eventualmente perdoada por boa fé.

Daí que, sendo eu assim comigo mesma  no relacionamento diário com os outros, não há coisa que mais me destrua, amachuque e mortalmente magoe, que, por um lado a intransigência e indisponibilidade do outro face à tentativa de clarificação de uma atitude minha.
Por outro, o balizar-se no reduto defensivo e cómodo da sua trincheira cerrada e intolerante à realidade. Trincheira de ideias feitas, convicções absolutas, verdades insofismáveis !...
Por outro ainda, o circunscrever-se a um posicionamento autista de posse da razão ... uma espécie de cómoda vitimização, de quem teria sido intencionalmente injustiçado e preterido.
Mas no corolário de tudo isto, o que não suporto mesmo e com que convivo muito mal, é a tentativa frequente do outro em desvirtuar os factos, alterar a objectividade dos mesmos, acreditar numa outra verdade que o conforte e lhe permita conviver com ela, pacificando-o e ilibando-o  quantas vezes, da maior fatia de responsabilidade sobre eles.

Essa postura injusta, triste, ofensiva mesmo, já que mexe com a idoneidade de cada um, com a sua sinceridade, boa fé e até mesmo honestidade, deixa-me louca por impotência, por exaustão, por incapacidade de conseguir que me entendam, que me vejam com os olhos da alma, despindo-me até ela, mergulhando até ao âmago de mim mesma, trocando-me o avesso pelo direito p'ra que alcancem o profundo do meu coração, a verdade das minhas palavras, o teor das minhas intenções !...

Mas eu sou humana.  E o ser humano comete demasiados erros ...
Um deles, talvez seja simplesmente continuar a acreditar e a sonhar que ele ainda vale a pena !...

Anamar

terça-feira, 20 de março de 2018

" AS MARGARIDAS SELVAGENS "





Elas já romperam por aí ...
Adivinho-as no alto das falésias, com este sol de Primavera com pressa de chegar, tímidas, humildes, singelas.
São elas, as margaridas não semeadas.  As que assomam quando Março adentra, quando Abril acena com as suas "águas mil"...

Não passeio faz tempo, no alto das ravinas, com o vento a despentear-me, com este azul meio sim meio não, pontilhado por farrapos brancos que se esqueceram de partir.  Com o mar lá em baixo em aguarela de azul e verde, e com as gaivotas vagueando no preguiçamento do costume ...
Vou pouco para além.
Tenho memória de as ver.  A elas, e às flores amarelas sem nome, no meio de outras mais ... mas isso parece fazer parte de uma vida que nem é já bem minha ...

As nossas existências são fatiadas em períodos, em épocas, em realidades.  Cada período, cada época, cada realidade pintou-se com as suas particulares cores.  Encheu-se dos seus particulares sons, palavras e acordes musicais.  Decorou-se com as suas especiais vivências, emoções e sentimentos.

Assim, quando lembramos a meninice, logo somos assaltados por este ou aquele pensamento, este ou aquele rosto, este ou aquele momento ...
Quando avançamos no tempo, a adolescência traz-nos outros sentires e outras emoções diversas.
A idade adulta, da mesma forma, faz-nos atravessar realidades qualitativamente diferentes, caracterizadas e povoadas por personagens diferentes também.
E cada espaço temporal por nós vivenciado nos acende mais e mais memórias, nos firma mais e mais apontamentos, todos pintalgados por aquela risada especial, adoçados por aquela ternura perpassante, sofridos por aquela mágoa que desceu, assaltados por aquele desencanto que nos tomou ...
Por isso não é à toa que neste puzzle da existência, esta peça só encaixa aqui, aquela outra, ali ...
E não é à toa que indelevelmente o colorido deste matiz, é pertença deste momento e jamais de outro.  O sol que brilhou naquele dia, jamais teve o mesmo brilho em mais nenhum outro.  As palavras trocadas então, pertencem só e exclusivamente àquele contexto e são irrepetíveis em mais nenhum outro !...

Por isso, o tempo das margaridas selvagens todos os anos chega, quando Março adentra e quando Abril acena com as suas "águas mil" ... Mas não é a mesma coisa ... ainda que eu possa vaguear por além, ainda que eu possa passear no alto das ravinas, com o cabelo em desalinho e com as gaivotas volteando no espreguiçamento do costume ...

As fatias do tempo vão-se cumprindo.  As folhas do livro vão-se desfolhando.  As nossas existências vão-se consumindo ...

Anamar

domingo, 4 de março de 2018

" O LUSCO-FUSCO "


Está uma tarde desanimadora.  Está um tempo de despedir esperançosos.  Afinal, até parecia, mas não, a Primavera não está nem ao virar da esquina !

Ocorreu-me ... tem-me ocorrido, que precisava falar com a minha mãe.  Falar de coisas triviais, coisas com pouca / muita importância ... como por exemplo a chuva que tem caído, o mar que se alçou e levou tudo adiante ...
Ouvi-la falar das imagens da guerra na televisão ... e vê-la condoer-se até à alma, pelas mulheres, pelas crianças ...
Relatar-me as últimas do seu Sporting ... sem arredar pé, como uma leoa que se preza !
Ocorreu-me referir-lhe que me deve lembrar como se faz aquela sopinha boa de feijão com mogango, ou a sericaia de fim de almoço.  Afinal, se não aprendi, já não aprendo ...
Ou mesmo pedir-lhe que me recorde que bolos tínhamos nós, na mesa, na Páscoa que se avizinha, lá no Alentejo de casa de avós em mesa farta ...
Coisas tão simples.  Simples e triviais, que recheavam as nossas conversas quotidianas !

Parece que deixámos de conversar só ontem ... mas hoje, já não a acho.
Que estranho que é,  ter ali sentada à minha frente, uma moribunda formal.  E a outra, aquela com quem deixei tantas coisas p'ra falar, desrespeitosamente já não comparece mais ao encontro...
E no entanto ainda ali está.  Está e não está !

E fica aquela sensação esquisita de uma saudade inacabada, uma incompreensão sem remédio ! Uma sensação de tempo que não se agarrou e já  não se agarra ... num desperdício e distracção absurdos ...

Apetece-me abaná-la.   Chocalhar-lhe aqueles miolos imprestáveis que já só estão.  Nada mais !
Apetece-me ... em vão !  É uma parede intransponível, sem brechas, que tenho à minha frente ...

E fica  aquele sentido mal explicado de impotência e injustiça !  Que raios, havia tanta coisa em pauta para nos dizermos !...
E agora ?  Agora faço como ?

E dou por mim a experimentar uma saudade amarga, quando entendo ... Porque quando pareço não querer entender, acho que ela está lá no sofá, ao cair das tardes ...  eu estou lá, a caminho das aulas, depois de um último beijo e de um último adeus, antes de contornar a esquina  a tempo ainda de a ouvir descer a persiana ... e amanhã é outro dia certo, de vida, em que eu e ela estamos lá ... e havemos de estar, porque eu tenho infinitas coisas para aprender com ela, porque ela sempre foi alguém que nunca me desfeiteou nem falhou.  E por isso, tem que continuar por ali !...

Como podemos ter saudade já, de quem ainda não partiu ?
Como podemos encaixar no nosso coração e na nossa alma, pacificamente, uma inexplicação sem limite, sem tamanho, numa aberração monstruosa ?!

E uma revolta incomensurável, mina-me até às entranhas .  Nunca vou entender nada disto.  Nunca vou aceitar tamanha pirraça do destino...
Ela, que quando era gente, sempre se esperançou que a existência  haveria de ter um respeito misericordioso pela pessoa que sempre foi !!!...

Anamar

terça-feira, 20 de fevereiro de 2018

" SONHAR AINDA É POSSÍVEL ?... "



Na passada quarta-feira, dia 14, viveu-se mais um dia de hipocrisia social, criado pela exploração da hipocrisia comercial.

Já escrevi várias vezes sobre o dia de S.Valentim, dos namorados e quejandos, importação trazida de outras latitudes, aliás como outras semelhantes que me irritam e arrepiam ... a do Halloween, por exemplo.
Importada, assimilada, encaixada.
Nada de novo que não conheçamos, peritos que somos nas importações fáceis, sem critério e sem demais juízos de valor, de quase tudo o que nada tem a ver connosco, nossas raízes e cultura
.
E aí temos nós, jovens e menos jovens, milagrosamente derretidos como picolé em dia de calorina !
O comércio acena-nos com o êxtase da felicidade afectiva, ao alcance de uma comprazinha ainda que por vezes à última hora, de uma rosinha vermelha, de um qualquer presentinho inevitavelmente decorado com os corações "ensarampados"  (que estampam toda a profusão de cartões e cartõezinhos para qualquer  gosto ),  da caixa de chocolates em coração, do peluche com coração, da caneca com corações ... enfim ...

Cumprido qualquer um desses desideratos, tranquilizam-se os espíritos, porque o alvo a atingir perceberá como o amor é tão importante para nós !...
Os cartões até já trazem as dedicatórias escritas, o que simplifica a coisa ...

Depois ... bom, depois, temos 364 dias para recarregar baterias e  tomar fôlego para a próxima jornada valentinesca ...
As rosas entretanto secam ao ritmo do esquecimento das juras de amor seladas.  Os bombons comem-se e recheiam-nos com mais umas quantas indesejáveis calorias. O resto, repousa por uns tempos nas prateleiras ou desce directo às gavetas.
O amor ... o amor de valer a pena ... o amor espécie em vias de extinção ... esse, o amor a vivenciar, a adubar, a regar ... a valorizar  em suma, confina-se muitas vezes a um processo de intenções, e pouco mais.
Cada vez mais os sentimentos são plastificados, descartáveis, inconsistentes ... recicláveis.  Troca-se de amor com a facilidade com que se troca de projectos, de sonhos, de opiniões.
Estamos no tempo da volatilidade de sentimentos e emoções.  Estamos no tempo da desaposta, às vezes por bem pouco.  Estamos no tempo da desvalorização dos reais valores, em benefício de uma liquidez escorregadia, ajustável, cómoda, de relações de fácil consumo e afectos precários ...
Estamos na época em que parece não haver vagar para partilhar, dividir, saborear a beleza de um pôr de sol a dois, escutar os sons da terra a dois, ouvir o mar ... perdidamente ... dançar um "slow" na cumplicidade dos corpos colados, das mãos entrelaçadas, dos olhos enternecidos ...
Até porque penso que também já parece não haver "slows" ... desgraçadamente !

Bom, este meu texto foi meramente uma sinalização da data.
Nada traz de novo.  Constata, não questiona, não discute.
São meras convicções minhas.  Já as expus em anos anteriores.  A idade só mas reforça e alicerça.  Não mais !
É o que vejo e analiso à minha volta.

Gostaria de auspiciar futuros diferentes para as gerações que aí temos.
Gostaria de poder acreditar que as vidas teriam outros rumos, mais consistentes e de sorrisos simples.
Gostaria !...

O sonho ainda não nos está vedado ... não é ???...

Anamar

quarta-feira, 14 de fevereiro de 2018

" DAQUI A POUCO ... "






O Carnaval foi-se.  Daqui a pouco é Quaresma, depois Páscoa, depois é o tempo das cerejas, as mimosas irão florir pelas matas ... Mais um saltinho, e é Verão.  Os dias hão-de azular, o sol amarelecer de ouro tudo em que bater, havemos de suspirar por sombras, por frescura de serra, por água fresca de mar preguiçoso ...
Depois a canícula cederá,  a fruta amadurece e os vermelhos e ocres se instalarão.  As primeiras folhas começarão a tombar, a Natureza a encasular-se pronta a dormir, o recolhimento e o silêncio descem da Terra aos corações ...
As aves começam a partir, o cinza e as névoas envolverão os amanheceres, e as luas irão esconder-se atrás dos castelos de nuvens.  As estrelas dormirão em céus escuros, como manta a cobrir os desvalidos ...
Daqui a pouco a neve branqueia os píncaros, os lobos uivam na montanha ... daqui a pouco os azevinhos cobrem-se de bagas vermelhas, e o calendário dirá que é de novo Natal ...
Daqui a pouco, o ano vira.  Dá mais uma cambalhota na eternidade ... e dá lugar a outro ...
E tudo é já daqui a pouco ...
Hoje, é só mais uma gota das existências, a ser vivida ...

Hoje, o dia "enxofrou".  Tem um ar sonolento, displicente e preguiçoso.
Convida à reflexão, sobretudo se estamos sós, com boa música, e muita, muita paz ...
Inevitavelmente lembro o que tenho, do que disponho, o que quero ainda, nesta ampulheta incessante, incansável e obstinada.
E hoje, eu só quero uma coisa: como diz Fernanda Montenegro, hoje eu só quero que a minha memória nunca me atraiçoe, que nunca me retire o caminho de acesso ao baú onde o espólio da minha vida aguarda -  empoeirado já - que eu o revisite, vezes sem conta, com o enamoramento e a gratidão de quem se sente abençoada com a estrada percorrida.
Porque ainda assim, eu sei que da próxima vez, eu faria diferente ...

Da próxima vez, aprenderia a dar às coisas, a importância real que elas têm, sem o drama de sempre as ver a preto e branco ...
Da próxima vez, carregaria no rosto a alegria do riso, ou mesmo só do sorriso. E guardaria as lágrimas só para os dias de tempestade ...
Reuniria todos quantos me fossem importantes, à roda de uma mesa, no aconchego duma lareira ... quando calhasse ... sem me preocupar que amanhã fosse segunda-feira ... ou que a loiça guardada para ocasiões especiais, se poderia partir ... Simplesmente porque essa, seria a ocasião especial ...
Da próxima vez aceitaria chorar, se fosse o caso, de alma despida, no colo dos que amo e me amam ... na certeza do privilégio do amor e da amizade ... 
Faria mais disparates,  e erraria mais, porque errando saberia que se aprende ...
Carregaria sempre comigo um saco inalienável  de sonhos, sem medo dos excessos ou da transgressão do peso...
Seria mais atrevida e ousada, porque esfolar os joelhos pode fazer saudavelmente bem à alma ...
Deitaria na erva, rebolaria nas dunas, saltaria as ondas ... porque tudo isso seria VIVER !...
Andaria descalça, de cabelo ao vento ... dançaria na chuva ... e gargalharia de felicidade ...
Se pudesse fazer tudo outra vez, sorveria o instante, cada instante, embriagar-me-ia nos momentos, solta ... livre ... leve ...
Porque a vida é apenas isso ... instantes indeléveis, momentos abençoados ...
Se pudesse fazer tudo de novo, não cansaria de dizer "obrigada".  Não cansaria de repetir "eu te amo".  Não cansaria de pedir "desculpa" ...
Estenderia as mãos mais vezes,  ofereceria o ombro outras tantas, partilharia  sempre  um colo  grande, generoso e cego ...

... e apanharia muitos, muitos ramos de narcisos !...

Anamar

segunda-feira, 12 de fevereiro de 2018

" COMO AS ÁRVORES ... "





Ontem à noite chovia de mansinho.
Chovia com aquela preocupação de não assustar ninguém.  Eram antes, um afago, as gotas que tocavam a vidraça.
Tudo sereno, em bicos de pés, como alguém que se sesga pela frincha da porta, despercebido, sem alvoroço ou turbulência.
Havia apenas um tamborilar leve, uma melopeia ... quase uma música.

Hoje o dia amanheceu despudorado de céu azul, luminoso, com sol a esbaldar-se por aí.  Um glorioso dia de Fevereiro, mês generoso que parece prometer uma Primavera que ainda não dobrou a esquina.
Enquanto iluminou os bancos, arrecadei-o para mim, numa tentativa de que, penetrando até à alma, me aquietasse o coração.

A minha mãe já não tem olhos para o sol.  Silenciou por dentro em definitivo.  Iniciou o caminho, também ela em pezinhos de lã, discretamente, para não perturbar ninguém ...
É um percurso lento, bem vagaroso, sempre olhando para trás, por cada passinho que avança.
O seu caminhar lembra a lentidão de um gato ronceiro, esgueirado pelos telhados.  Lembra o esvoaçar silente do passarinho que vai deixar o ninho ... porque chegou a hora.

A minha mãe, não vai ... está indo ... todos os dias um pouco mais, todas as horas lhe encurtam a caminhada.
Assumidamente.  Acho que agora, assumidamente.  Com aceitação.  A aceitação da inevitabilidade do cansaço da jornada.
Encerrou as portadas.  Reuniu os pertences que vai transportar consigo, pingos de amor e de entrega.  Olhou ainda os seus, uma vez mais, pelas frestas de umas pálpebras que se esforçam por se manterem entreabertas, a espaços ...
Os olhos opacizados não têm já força, vontade ou expressão.  A minha mãe está extenuada e só quer paz...

Mas o coração ainda bate, num corpo que já não é.  Que foi deixando de o ser, momento a momento.
O simulacro de gente que está naquela cama retira-lhe a dignidade de uma partida como ela mereceria, como ela pedia, como ela acreditou ...
A injustiça incompreensível da vida, ergue-nos a piedade, mas ergue-nos muito mais a revolta e a raiva.
E a não aceitação ... por nós ... aqueles que a conheceram de perto.
A minha mãe mereceria sair de cena em grande estilo.  Como as árvores ... tal qual como as árvores, erectas, firmes, quase eternas, como os sobreiros ou as oliveiras do seu Alentejo
E protectoras, generosas ... regaço e berço ...

Olho-a longamente, e conversamos em silêncio.
Ela não me fala. Eu não lhe falo.  Mas o código do amor transporta aos corações as nossas longas "conversas" . O código dos afectos, só quem o sente o entende .
E eu sei que há um legado imortal que ela me deixou : o seu entusiasmo perante a vida, a sua resiliência perante as adversidades, o seu encantamento pelos laços do coração, a sua dádiva e entrega em generosidade ímpares, e a sua suprema alegria de VIVER !

Já tenho uma infinita saudade da minha mãe ...
E sei que daqui para a frente, sempre que eu não consiga ver o sol sorrir-me, olharei mais atentamente, e vou perceber  como é uma bênção continuar por aqui a poder olhá-lo ...

Anamar

domingo, 11 de fevereiro de 2018

" PORQUE OS PENSAMENTOS TAMBÉM SÃO COMO AS CEREJAS ... "





Uma  tarde cinzenta  de um  Domingo  de  Carnaval  meio  mascarado  de  quarta feira  de  cinzas ...
A minha música que embala, o meu computador que me dá voz, o meu silêncio que pacifica, o meu quarto com esta janela sobranceira ao casario, Sintra que continua lá, lá por detrás daquilo tudo que já não alcanço daqui, uma que outra gaivota dispersa em céus que não são bem os seus ... enfim, uma realidade tão doce, palco da minha vida, desenhado ao meu jeito há quase década e meia, preenche gratificantemente a minha tarde.

Não sei se seria fácil para alguém que não eu, perceber como esta interioridade me equilibra, me aninha, me acarinha o coração, e como este ninho protector me faz sentir tão segura, tão defendida da adversidade com que a vida, em frequência, nos presenteia.
É um porto seguro, é um cais de ancoradouro, é uma estação de chegada ...
Os gatos dormem no calor do radiador aos meus pés.  Também eles fazem parte da moldura que me rodeia .

Inevitavelmente penso na minha vida.  Na que detenho actualmente, na que já atravessei, na que terei adiante, sabe-se lá até quando ...

A que me é oferecida por cada manhã em que acordo, viva... e que aprendi por isso a amar e a valorizar ... começou a fazer-me finalmente o sentido de que talvez nunca tivesse desconfiado, ou de que andasse injustamente distraída.
Comecei a senti-la como um presente de laço e fita .
Comecei a olhá-la como uma guloseima de dia de festa.
Comecei a aprender a usufruí-la, sorvê-la  como refresco doce, disponível a atleta em meta de chegada.
Comecei a degustá-la como aquele pratinho de farófias que a mãe nos punha na mesa ... iguaria perecível, quando a última colherada esvaziasse a taça ...
Tudo isto, toda esta atenção mais desperta à sorte que me é disponibilizada, adveio da modelagem doída, operada no meu coração,  adveio do milagre operado na minha alma, pelos tempos adversos, dolorosos e violentos que atravesso, face à degradação irreversível e sem volta, da minha mãe, e tudo o mais que rodeia esta situação.  Face ao anúncio iminente da sua partida, e talvez por isso eu poder perceber, como ela encheu a sua vida, de uma forma simples, singularmente alegre e feliz, com bouquets de pequenas coisas.  Perceber como ela sempre deu o justo valor ao que foi o passar por aqui, sem exigências, a dividir-se com todos os que amou. E amou muito ... todos.
Perceber que ela ainda não partiu, simplesmente porque ainda não o quis.
Porque para ela, a vida sempre foi muito ... sempre foi tudo.

Aprende-se com o sofrimento.  Cresce-se nas vicissitudes. Amadurece-se na dor.

Por tudo isso, duramente aprendido, não só me posiciono com mais positividade e relativismo face ao dia a dia, como posso agora olhar o passado com mais bonomia, aceitação, benevolência e tolerância.
E  gratidão, sem dúvida.
Por tudo isso, em momentos de reflexão e interioridade, como estes, exercito a paz com a vida que vivi, com humildade e sem exigências,  pratico uma mentalização de aceitação e alegria com o que conheci, quem conheci, percebo a sorte e a riqueza que tive, porque a vida se me coloriu generosamente, e afinal me abençoou ....
E  procurarei não esquecer nunca, que  sem dias de chuva não haveria arco-íris !...

Sobre a estrada que ainda terei que percorrer, acredito na sua mansidão e sombra ...
Acredito que o mar estará "flat", que não haverá grandes tropeços no caminho, que haverá pássaros e sonhos azuis ... porque acredito que a existência não poderá ser um castigo, e que a hora da reconciliação sempre chega !...

Anamar

sexta-feira, 2 de fevereiro de 2018

" PARTIDA "






" Não existe partida para os que ficam para sempre nos nossos corações" ...

É uma frase feita, talvez.  Daquelas boas de aplicar nas pagelas das câmaras mortuárias.

A minha mãe está no fim, acredito.  Não o quero encarar de frente.  Prefiro fingir que não é bem isso, ou então que talvez não seja tão difícil assim de suportar, ao acontecer, dada a situação mais que precária, dolorosa, violenta, de sofrimento psicológico atroz, em que se encontra há já tanto tempo, e porque afinal ... como profetiza a frase, não existirá de facto, partida.
O meu pai morreu há quase 26 anos.  Recordo até hoje, não o seu rosto, não a sua expressão, mas apenas os seus olhos e as suas mãos ...
Ah, é verdade, e muitos jeitos, hábitos, pequenas manias do dia a dia que o caracterizavam.
É essa panóplia de marcas deixadas por uma pessoa, que a tornam ímpar, irrepetível e provavelmente, inesquecível ...

A minha mãe é uma guerreira de vida.
A sua rebelião contra a inevitabilidade da existência é que lhe tem permitido driblar vezes sem conta, espantosa e quase absurdamente, as ameaças sérias de ordem de marcha.
Com quase 97 anos, com um comprometimento cardíaco seríssimo, que inclusive lhe inviabilizou o sucesso de um cateterismo, há já anos atrás ... com uma demência profunda, com uma imobilização que a confina há largo tempo a uma cadeira de rodas ( ela que sempre foi autónoma, independente, indómita ) ... claudica, oscila, parece sucumbir ... mas não cai.
E não cai, porque quer ficar.  Quer estar.  Agarra-se, como um náufrago, ao pedaço de madeira que lhe flutua ao lado.
Tem momentos em que parece ter desistido.  "Negoceia", inclusive, com os seus mortos e os seus santos, que bem poderiam vir buscá-la ...
Mas quando a coisa fica feia, como uma menina reguila, parece tocar à campainha e fugir rua abaixo, antes que lhe abram a porta !...

Acredito que o segredo reside aí mesmo.
Nessa força indomável de resistência face aos temporais da vida, e de aposta no amor a todos nós, os poucos que formamos a sua família.  São esses que ela não quer de forma nenhuma, deixar para trás !
Queria poder viver até ver as netas terminarem os cursos ... até ver o António chegar ao liceu ... depois à Faculdade ... ver a Vitória nos Jogos Olímpicos  ( já que no seu tempo e para seu grande desgosto, as mulheres não praticavam desporto ) ... ver o Frederico a ser tão bom aluno quanto a mãe ... possivelmente ver a Teresa, recém-chegada a este mundo, talvez casadoira ... não sei !!!

"Como queres que eu vá e os deixe cá, todos ?" - dizia-me, quando ainda dizia ...
"Como queres que aceite não ver mais a minha casa e as minhas coisas ?" - dizia-me, quando ainda lhe era dado sonhar ...

Desta feita, o cansaço é extremo.
Desta feita, cerrou os olhos, como querendo que lhe deixem a alma na penumbra reconfortante de claustro de mosteiro.
Parece incomodar-se com a luz, com o som, com o sol, com a alegria ... com a Vida e todas as suas manifestações de exuberância .
Parece ter encerrado as portadas, ter despejado as flores que adorava, das jarras, ter silenciado por dentro, do coração à garganta, e ter permitido que uma indiferença cinzenta e pesada, ameaçadora de borrasca, esteja a descer sobre ela ...
Sobre ela, e sobre todos nós ...

Não haverá partida, tenho a certeza !
A minha mãe nunca foi mulher de despedidas.  Por isso, sempre nos "indrominou" numa pirraça de menina brincalhona ... Era o que faltava que a apanhassem distraída !  Ainda não era hora !...

A minha mãe está a ficar distraída agora ... parece-me ...

Anamar

quinta-feira, 1 de fevereiro de 2018

" VOLTAR "






Voltar é juntar dois lados
Reunir pedaços
Reescrever a história ...
É buscar cá dentro
aquilo que fomos,
lembrando o guardado
na nossa memória ...

Voltar é ter na vontade
um recomeço  outra vez     
de cabeça erguida,
deixando p'ra trás
as lembranças tristes
a mágoa sentida
o desencanto e as dores ...
É prender a esperança
É crer no futuro
Apostar no sonho
de novos amores ...

Voltar é sorrir à vida,     
como se ela fosse
uma nova alvorada
É renascer
É pegar a estrada,
sempre olhando em frente
e é acreditar   
fazer do amanhã
um novo presente !...

Anamar

terça-feira, 30 de janeiro de 2018

" E A MAIS NÃO SEREMOS OBRIGADOS ..."


Nesta tarde mansa e ensolarada, com um sol tímido a espreitar-nos, neste Janeiro frescote, resolvi meditar um pouco, aproveitando o silêncio e a serenidade que baixaram por aqui.

Desde sempre que a minha maneira de ser, introspectiva, exigente, perfeccionista e por isso severa, me coloca sem dó nem piedade, nas linhas da frente das batalhas com que a existência não me tem poupado.
Não sou uma pessoa optimista por natureza, sempre vejo o copo mais vazio que cheio, sempre desvalorizo além da conta aquilo que meritoriamente talvez me fosse devido.
E porque sou honesta comigo mesma, antes de o ser com os outros ... e porque me exijo sem apelo, o alcance de uma fasquia que talvez nem me fosse exigível ... guerreio, brigo, colido  ... e quase sempre saio injustamente perdedora nas análises que faço sobre mim própria.
Sempre me acho mais responsável por isto ou aquilo, que o razoável ... sempre me acho mais culpada por isto ou aquilo que o racionalmente aponta ... sempre me penalizo por não ter feito isto ou aquilo que se calhar nem me seria devido.

Contudo, desde os anos em que semanalmente dispunha de apoio psicoterapêutico, que fui orientada no sentido de reciclar estas posturas, no sentido de ser mais imparcial, isenta e justa com a pessoa que eu sou ... em suma, de ME repensar..
Filha única que fui, de pais centrados exclusiva e doentiamente em mim, sempre me foi exigido o máximo, e não o aceitável  Sempre fui confrontada com o ideal e não com a realidade possível ao meu alcance.  Sempre fui cotejada desfavoravelmente com os que me rodeavam ...
Tudo isso, frequentemente me deixava um profundo gosto amargo de insatisfação, uma infelicidade, uma insegurança  e uma culpa desgostosa.

Mas enfim ... a vida prosseguiu.
Os anos trazem maturidade, distanciamento, aprendizagem ... calo, "endurance" face às intempéries.
Tudo isso tem custos, contudo.  A modelagem de uma personalidade não é pacífica, o olhar sobre a vida e as pessoas, é quase sempre de defesa e de difícil exposição.
A carapaça grudada não despega fácil. O sentido de "vigília" e guarda, não facilita.
Ganha-se dureza, resistência à saída da zona de conforto que nos aninha e pacifica, inércia perante reinícios, alterações de fundo, novos figurinos.

Assim, porque a  frescura  da  idade  já  foi, e  porque a  saúde  e  o cansaço  também  começam  a  dar sinais, neste momento o meu trabalho pessoal, prende-se numa luta comigo mesma sobre a relativização dos acontecimentos que me povoam a vida, prende-se numa reaprendizagem de vida mais saudável, menos penalizante e destruidora, prende-se numa busca de mais paz, a paz que advém de sabermos que talvez tenhamos dado o nosso melhor, ou pelo menos tudo o que sabíamos e de que podíamos dispor para superar cada dificuldade.
Dessa forma, por cada noite, ela será seguramente  de sono tranquilo e não de vigília, porque certamente a consciência, de nada poderá acusar-nos ...

... já que a mais não seremos obrigados !...

Anamar

terça-feira, 9 de janeiro de 2018

" UM DIA DE CHUVA ... "






O dia amanheceu finalmente em "modo" inverno, depois de ontem nos ter sorrido primaveril, diáfano, de céu transparente e azul, sem que sequer um fiapo de algodão o pintalgasse ...
Hoje o firmamento carregou-se de nuvens dantescas, ameaçadoras e choronas, que ainda não pararam de verter água cá para baixo.  Felizmente.  Obviamente de forma feliz, para nos amenizar a preocupante e ameaçadora seca severa que se estendeu temporalmente além da conta, de uma forma contra-natura para a época.
O frio também fez jus à estação que atravessamos.  E eu diria que até sabe bem ...

No meu posto habitual, que é como quem diz, o meu "miradouro privado", frente ao tal casario inexpressivo  que se estende aos limites do horizonte ( permitindo que os meus devaneios nunca sufoquem por aqui ) ... olho as nuvens no alto, que se deslocam ao sabor da aragem,  vejo  algumas gaivotas  intrépidas  que  ousam  planar  desfrutando  a  intempérie ... ( ou não fossem elas pássaros de falésias, de mar encapelado e de salpicos de espuma endiabrada nos areais ), assomo por instantes breves, tentando ver se o meu Farrusco se atreve, no terraço lá de baixo ... constato uma outra vez  que o meu plátano atrevido  se desnuda mais e mais, despudoradamente ao sabor do vento que o sacode e lhe eleva as folhas mortas ao nível do meu sétimo andar, e penso ...

Penso como na verdade a vida é interessante, curiosa, desafiadora, estimulante !...

Reli  ao longo desta tarde, alguns posts  meus, com tempo de escritos.  Remontam a alguns anos atrás.
Revisitei-me assim, à distância que o tempo permite.
Re-olhei-me com a isenção e o desapaixonamento possíveis, de alguém que se analisa cirurgicamente. A que eu era, a que eu fui,  como o fui, por que o fui.  De fora para dentro, sem complacência ou pieguice.
Reflecti, maturei pensamentos, auscultei posturas.  Esgravatei emoções,  mexi em sonhos que me povoaram, percebi dores e sofrimentos ... pacificamente ... e não me penalizei por isso.
Convivi com a vida real.  Com as escolhas reais.  Assentei e firmei os pés bem no chão, por forma a catapultar-me ao futuro, com esperança e confiança.
Porque o futuro é afinal o desconhecido que nos espera, a partir do presente que vivermos.  Há  por isso que valorizar cada momento, enfrentar corajosamente cada atribulação, deixarmo-nos surpreender  com os desafios, acreditar que a vida é como as marés ... depois da maré baixa, sempre uma preia-mar chegará ao destino e que, tal como este tempo atmosférico de sol radioso seguido de um abençoado dia de borrasca ...

   " um  dia  de  chuva  é  tão  belo  como  um dia de sol ;  ambos existem ... cada um como é ! "

Anamar

terça-feira, 2 de janeiro de 2018

" E A RODA RODOU DE NOVO ... "





Época estranha esta !
Mesmo os mais resistentes, sempre se deixam envolver e "mexer", por um clima global de sentimentos, emoções, reflexões, balanços contraditórios.

Todos sabemos racionalmente que o 31 de Dezembro é igual ao 1 de Janeiro.
Todos sabemos que a escorrência do tempo prossegue segundo a segundo, com a inevitabilidade do que nunca é reversível.   Mas de repente, porque o Homem criou fronteiras, balizas, bitolas, achamos que pulámos de uma qualquer margem para outra, promissora  margem de valer a pena, miraculosamente diferente e seguramente melhor !
Olhamos para o Novo Ano como auspicioso, como um paraíso que nos pisca o olho, a nós que ainda estamos num ano já rançoso, já gasto, que já deu o que tinha a dar ...
E agora  sim, os milagres da mudança, da reconstrução, do aperfeiçoamento e consequentemente da felicidade ... aquela que nos foi escorregando das mãos nos 365 dias transactos ... aquela que nos espreitava e fugia  num esconde-esconde sádico de jogo de promessa ... vão propiciar-nos finalmente a almejada existência que sempre acreditámos merecer ...
E melhor ... numa espécie de passe de mágica, na proporção das Boas Festas que fomos pulverizando profusamente, com o coração cheio de bonomia e generosidade, por amigos, conhecidos e até desconhecidos ...

Só que esse "balão" insuflado de ingenuidade esperançosa, de boa vontade a rodos, de solidariedade magnânima, irá inevitavelmente esvaziando com o transcurso das horas, dos dias, dos meses ... até que outra passagem recarregue as expectativas, os sonhos, a fé e as vontades.
Até que outro rio de esperança se reabra à nossa frente !
Até que volte a ser Dezembro de novo, e a "roda" complete a caminhada !...

Agora ... bem, agora que o Ano está fresquinho de recém-chegado, criança de nascido, vemos, revemos, rebobinamos as nossas histórias.  As histórias das vidas,  porque todas as vidas sempre são enredos mais ou menos felizes de histórias ... as nossas !
Só nós as conhecemos no recôndito do privado.  Só nós lhes conhecemos os cheiros, as cores, os risos e as lágrimas.  Só nós lhes podemos dar nomes e reconhecer as personagens.  Ninguém mais !
E temos que as abordar sem severidade, acredito.  Temos que as encarar com tolerância, carinho e aceitação. Porque foram seguramente as que conseguimos escrever, como conseguimos escrever, com a convicção de que cumpríamos o designado.

E depois, sim ... pacificados com a nossa alma e de boas relações com o nosso coração, podemos então calmamente, fazer  uma "arrumação de casa", uma "faxina" de decisões, um "cardápio" de sonhos ...
Mas sobretudo, é desejável que esse processo de intenções seja permanentemente dinâmico, actualizável, corrigível, questionável, aperfeiçoável, fazível ... ao alcance das nossas forças, das nossas incompletudes, de acordo com as nossas vontades, longe das utopias e angústias da perfeição, envolto no acreditar que passa por nós e apenas por nós, a capacidade da renovação e portanto da melhoria !

Só dessa forma  fará  sentido o balanço que nos propomos  com perseverança, ano após ano, no esgotar dos doze meses que nos são concedidos !

Anamar

segunda-feira, 18 de dezembro de 2017

" BALANÇO "





Os diospiros estão no fim, disseram-me há pouco.
O plátano está quase despido, na praceta onde o farrusco se esconde da intempérie.
O azul há muito sumiu de um céu que, promitente de Verão fora de época, envergou finalmente roupagens escuras, encasteladas e molhadas.  Adequadas a este tempo de silêncio interior, de quietude e sonolência .
As gaivotas, algumas, esparsas aqui por cima, parecem não ter rumo, mercenárias que são do betão.
Deixaram mais além a orla marinha, nunca entendi porquê ...
Trocar aquele mar de paz ou de borrasca, de verde ou de azul ... aquele vaivém de balanço, de cólo ou de berço por este nada que a cidade lhes oferece ... não é coisa que eu entenda ...

O tempo avança, inexoravelmente.  Pula de estação em estação, de mês em mês, de ano em ano.
Agora, outra vez aquela época insana de uma espécie de alucinação colectiva, numa urgência de salvar não sei o quê, de redimir não sei o quê, de inventar não sei o quê ...
Parece querer agarrar-se o que se deixou fugir o ano inteiro.
Parece querer vivenciar-se uma bonomia de redenção inexplicável.
Parece querer salvar-se uma humanidade dissoluta e distraída ...
Parecemos querer atordoar-nos no mergulho suicida de miragens felizes ...
Tudo a correr muito, ao ritmo estranho do calendário que parte ...

E as pessoas partem também das nossas vidas ...
As "nossas", as próximas, as distantes, as conhecidas ... mesmo as quase desconhecidas...
As que nos pertencem e as que a vida determinou pertencerem-nos ...
E sempre, seja em que circunstância for, empobrecemos.  São pedaços de nós que se dispersam por aí.  São marcos de caminhos que vão ficando sem sentido.
São  horizontes  que se vão distanciando e entrando na linha penumbrenta das névoas das madrugadas ...
São silêncios instalados em lugares vazios e ausentes ... são espaços que se agigantam em frio descomunal ... são marcas quentes deixadas em camas desfeitas há muito ...
Risos e gargalhadas que já só ecoam, olhares descoloridos pelo desconexo da vida, memórias que empalidecem com toda a injustiça do mundo ... sem apelo ... só porque tinha que ser assim !...
São perdas ... sempre perdas ... inevitáveis perdas !...

E a história vai-se escrevendo .
Como num livro,  as páginas vão virando, as folhas vão dobrando  amarelecidas, como esquinas contornadas sem retorno.  E caminhamos, apoiados no que fica, nos que ficam ...
E nada vai ficando igual.
E um destes dias, nós, que minuto a minuto deixamos de nos conhecer, acabamos olhando apenas o horizonte distante das memórias ... enquanto a tivermos.
E tudo o que aquela foto desfocada ainda nos mostra, já não fará sequer sentido nas nossas mentes !...

Balanço inevitável e injusto das vidas !!!

Anamar

terça-feira, 28 de novembro de 2017

" AS PEQUENAS COISAS "






Um dia talhado a pedido ...

Parece que a natureza, a vida, o tempo, sei lá ... resolveram dar-me uma colher de chá, nesta tarde mansa, cinzenta e chuvosa.
Frente à minha janela, o dia fechou docemente, o casario foi ficando restringido no alcance da vista, silenciaram os ruídos lá fora ...
Tudo se esbateu, como a subtileza de uma aguarela pintada.  Lá longe, na linha do horizonte pouco se divisa, e muito se pode imaginar.  Sei claramente tudo o que está para além, mas sou livre de voltear na aragem desabrida deste fim de dia e dançar por ali, nas correntes que empurravam há pouco as últimas gaivotas, que em recuo, se atreveram ...
Também como elas, posso esbaldar-me céu fora, sem limite ou barreira, sorvendo apenas a quietude e a paz !
Junto de mim, a música que sempre me acompanha, torna maior e mais cúmplice o aconchego que me envolve.
Deixo-me tomar pela emoção das pequenas coisas ...
Deixo-me o direito de me embrulhar neste silêncio gostoso, nestas notas largadas no éter, como cobertores envolventes, como macieza de lençóis de cetim, como sorrisos de madrugadas promitentes !
E é uma volúpia, um estado de graça, uma espécie de clímax, com o mesmo sabor de um orgasmo desejado ...
Quase não ouso mexer-me além do essencial.  Quase não ouso perturbar esta bênção descida, esta beatitude de silêncio e tranquilidade. Quase não ouso ... simplesmente ...

 E viajo.  Viajo pelas memórias, pelos lugares, pelas pessoas ... Todas.  As que amei, as que amo, as que me amam ... Mas também as outras ... as que não me escolheram ...
As que estão, as que se perderam, as que ficaram, as que partiram e me deixaram mais só ... Todas.

Olho os lugares. A minha infância, que foi o lugar mais seguro e certo que já tive. O cólo da minha mãe ... as mãos do meu pai ...
Depois, o amanhã que já foi ontem ... e o amanhã que será depois ...
Olho as marés nas praias todas que pisei. Recolho o que me trouxeram e o que levaram, no incessante vai-vém das ondas da vida ...
Olho as noites enluaradas a coroarem-se em auroras de desejos, sonhados em silêncios.
Olho o sol amarelo, laranja, vermelho do fogo de outros ocasos, de outros levantes , distantes ... À distância de memórias impressas debaixo da pele ...
Escuto os sons das matas, do vento, das vozes que se foram apagando no vórtice da intemporalidade ...
Escuto o grasnar das garças na renda da rebentação. Oiço o pipilar das aves ao raiar do dia. Comprazo-me com a melopeia incessante do pica-pau no coqueiral ... com o açoitar da chuva lá, na floresta  cerrada ... com  o  tamborilar  das gotas  aqui, na  vidraça  da  minha  janela ...
Impregno-me com os cheiros, adocicados das paragens inóspitas...   salgados, das maresias espreguiçadas ...
O cheiro das rabanadas no Natal dos meus avós ... o cheiro da coentrada na açorda de domingo ...

Enfim, o  privilégio das coisas pequenas e insignificantes  é  um brinde de dia de festa, é presente de aniversário festejado, é oferta para a alma e para o coração, recebida com a ternura e o carinho daquilo que não se compra , não se paga, não se exige ...
Recebe-se com o calor da emoção, surpreende-nos com a autenticidade do que não tem preço ... maravilha-nos com a força do inesperado, sempre novo e surpreendente ... ainda que seja apenas uma " pequena coisa " !...

Anamar

" INFERNO " - 15 Outubro 2017





E escureceu em céu e terra ...
De vermelho se pintou o universo
Vermelho, cor de sangue, cor de inferno
vermelho, cor de morte, cor de guerra ...
As ondas de loucura que avançavam
nos espasmos de um vento aterrador
sacudiam, destruíam e vergavam
as árvores que clamavam em estertor ...
A trenodia da floresta murmurava
súplicas aos homens e aos deuses
indiferentes ...                                       
De desespero e impotência soluçava,
no estrépito langor da morte que cercava ... 
mas como sempre, são os deuses, seres ausentes ...


E a noite que era noite, ficou dia
e  acendeu de horror a escuridão
foi das árvores silentes, agonia
foi um grito de revolta,
um coração sangrante, moribundo e estropiado
abraçando os troncos ainda erguidos
que p'la natureza-mãe foram paridos
e pela mão do Homem, sepultados !
Erectas sobre a encosta, amordaçadas,
como esfinges, árvores mortas, sonolentas ...
no verde da memória ainda gravadas,
de pé, para sempre recortadas
quais fantasmas, se acabando na tormenta !                             

E em tudo aquilo que restou,
não há cantos, não há sombras, não há vida
só o tempo, indulgente, dará paz ...
Silenciam os mortos que ficaram
são testemunhas injustas que tombaram
são a voz da floresta em despedida !

Anamar

domingo, 26 de novembro de 2017

" AFINAL ... "






Estou convencida de que afinal até gosto, e muito, do Outono !
De que afinal até gosto um bom pedaço da chuva !
De que afinal até amo perdidamente o friozinho com cheiro a castanhas no assador, que até amo o céu nublado que custa a definir-se, a "fumaça" a sair das bocas que falam ... e o silêncio cúmplice que paira quando nada é dito, e quase tudo é sentido !...

Afinal eu tenho umas saudades infernais, de calcorrear veredas e alamedas pisando firme a gravilha, deixando a aragem gelar-me o nariz, embiocando as mãos na malha das luvas e soltando o cachecol no desalinho da brisa ... sem destino ou norte, saboreando apenas porque sim ...

Tenho umas saudades infinitas dos cheiros a terra molhada, a musgos trepadores, a sombras húmidas e recolhidas, de caminhos que só tinham volta se eu quisesse ...

Tenho desejos insustentáveis dos silêncios, da ausência de gente, nestes castanhos, ocres e dourados.
De olhar os plátanos a despirem-se na intempérie.  De brincar com os ouriços preguiçosos das castanhas que ainda não tombaram ...
E do tamborilar de gotas  atrevidas  e  abençoadas,  na  época  em  que  a  chuva  nos  comprazia ...

Recuo no tempo e revejo o tempo, simplesmente... Volto páginas, dobro esquinas, abro dias, meses e anos ... Perambulo pela vida que desfila.
Era eu lá atrás, embora custe a crê-lo.
Era eu, eu e todos os sonhos que sonhei.  Eu e todas as esperanças que raiavam de verde pelas madrugadas.  Eu e uma cesta de rosas fora de época, contudo cheirosas e doces.
Era eu, aquela que dançava em desafio atrevido no meio das noites que eram minhas.  Ou talvez já não dançasse ... Daqui, não consigo já olhar tudo.  Uma bruma interpõe-se entre o hoje e o então.
Um nevoeiro corre as cortinas da mente ...
Seria mesmo eu ?!
Por que  restou  então  apenas  isto ?  Será  essa  a  inevitabilidade  da  existência ?  Onde  fiquei ? Onde me parei e esqueci ?
Em que pedra do caminho me adormeci ?  Em que encruzilhada me perdi ?  Em que labirinto me cansei ?  Em que estrada desisti ?...

Outro fim de Novembro a cheirar a bafio, a mofo, a solidão e abandono... Outro fim de Novembro a saber a raiva, a mágoa, a dor ...
Histórias mal terminadas ... Romances mal alinhavados ... Enredos mal escritos ...
As pirraças dos destinos jocosamente brincando de esconde-esconde nas nossas vidas !...

Anamar