terça-feira, 15 de dezembro de 2009

"NO MEIO DOS DESTROÇOS"

De uma mesa de café para outra, mesmo que as pessoas bichanem, sempre se ouve muita coisa; mais ainda se os interlocutores, de entusiasmados, estiverem "longe" deste mundo...


Fui tomar o pequeno/médio/lanche/almoço (isto está de mal a pior) num café mínimo, meio atamancado, na ausência da abertura do Escudeiro. Como a fome era mínima, os víveres também não correspondiam, fumar, claro, não se pode, artilhei-me de uma revista, daquelas que parece que a gente lê mas não lê (de "interessantes" que são), e estiquei preguiçosamente as horas, até porque o que me esperava era uma casa e um gato...


Numa mesa bem perto, pois como disse, o espaço é acanhado, estavam duas mulheres...quarentas e tais, cinquentas e tais...não sei estimar, desde que desatámos todas a vestir e a pentearmo-nos à "Barbie serôdia".


-"Como é que se mata alguém bem vivo, no coração??"


Levantei discretamente os olhos da dita revista, e contemplei o ar desalentado com uma lágrima furtiva a escorrer,  por baixo de uns óculos escuros nunca tirados, de quem fizera a pergunta.
A outra opinou e afiançou que se lhe fazem alguma, essa pessoa "morre" na hora, para ela, quanto mais tudo o que a amiga já tinha experienciado...
E começou a enumerar a lista das sacanices, da má formação, do desrespeito a que a amiga teria sido sujeita...
- Tu reage, porque tens o futuro todo à frente, sabes que ele não presta, porque nem desta vez soube ser digno, estás a arruinar-te, hipotecando a tua saúde e as tuas hipóteses....com gente tão interessante por aí!!!...


A amiga, com os óculos sempre colocados, cabisbaixa, não soltava uma palavra.


- Tu concentra o que sentes, nas coisas negativas por que passaste, porque  te custa menos...não penses no bom, tenta ignorar que ele existe e verá quem perdeu...


As lágrimas por detrás das lentes da outra, aumentavam...Já não dava muito para disfarçar...
Com uma voz sumida, que enrodilhava há que tempos um lenço de papel todo molhado, levantou os olhos, como que a medo, e como se fosse dizer o maior sacrilégio do mundo, balbuciou entre dentes :"mas eu gosto dele...não percebes que a minha vida não tem sentido agora?...


Voltei à revista, embora ela representasse o móbil de eu continuar por ali, e não mais.
E pensei, associando até a um livro que li há pouco tempo, de uma grande mulher, na minha óptica - Marília Gabriela -como é possível que alguém diga que a sua vida terminou por causa de outro alguém, que provavelmente nem valoriza, sequer adivinha o mal que lhe causou...
Eu julguei que este filme só podia ser uma reprise de má qualidade de um qualquer filme, digamos, do tempo da minha mãe...
Mas não, ali em frente a mim estavam os destroços de alguém, que dizia, por pudor, ridículo, quase medo de que lhe pusessem um rótulo de louca na cabeça...bem baixinho, como que a pedir desculpas : "mas eu gosto dele...."

Reparem, não estou fazer nenhuma cobertura protectiva do universo feminino. Não...a conversa era aquela,
porque foi aquela. 
Mexo-me mal na compreensão do universo masculino, a história com que me deparei, poderia perfeitamente ser lida ao contrário, que eu sentiria o mesmo nó no estômago...
O que se faz assim da noite para o dia, quando aquele alguém, nos retalhou o coração ao meio, com um golpe só, de um sabre tão afiado, mas tão afiado que nem sangue conseguiu de lá jorrar??!!
O que se faz para catar uma bússola de novo que nos aponte um qualquer norte??!!
O que se pode fazer para parar, reunir "cacos" que sobrassem ainda em bom estado, para reiniciar alguma coisa... qualquer coisa??!!
Como é possível pensar que há vida p'ra lá da que foi nossa, e que possamos começar o que quer que seja, acreditando as feridas todas saradas.......e não ver que a nossa derradeira escapatória é a morte, tal a profusão de sentimentos, pensares, dúvidas, raivas e ódios que noa amordaçam o coração??!!


Não sei se era esse o caso, mas ocorreu-me como possível, e a propósito dele, um artigo que li um destes dias num jornal da manhã :


 Tratava-se de  um artigo de opinião baseado em inquérito feito, não sei como, em que moldes, com que fiabilidade.
O inquérito concluía ser quase "pacífica", nos tempos que correm, a situação de traição numa relação, acrescentando-se que na sociedade portuguesa actual, a sua incidência, tradicionalmente maioritariamente masculina, se situa presentemente quase na ordem de cinquenta por cento indistintamente do sexo. Até aí, nada a objectar, se atendermos à defendida e desejável igualdade de direitos e deveres por parte de homens e mulheres, num vínculo afectivo. Isto, numa análise meramente estatística, sem ainda valorizar a questão em si.
Depois era ainda dito que cerca de 49% das mulheres inquiridas não relevaria a situação, o que a precipitaria para uma óbvia ruptura...
Perplexa que fiquei um pouco, com a "abertura" ou "pseudo-abertura" das mentes num manifesto nítido de alguma (para mim preocupante) liberalização de costumes, ocorreu-me desencantar da gaveta, alguma coisa que escrevera a propósito, nessa altura, e que traduz a minha visão, se calhar "dinossáurica" da coisa... Passo a expor: 
Nos afectos, não há maior dor que a da traição...
A traição é uma chaga aberta por um punhal que se enterra no peito de alguém, gratuitamente, desnecessariamente e que normalmente faz sangrar um coração e uma alma até à exaustão e que deixa uma cicatriz, que me atreveria a dizer, fica indelevelmente... 
Sempre nos lembramos da traição de amigos, de familiares, de amores...da vida...ainda que se tenham aparentemente perdido na bruma do tempo.
Atrever-me-ia a dizer que, de uma traição nunca se renasce inteiro, intocado...nunca se sara até ao limite, a ferida escancarada.
Eu diria que se propiciou, isso sim, a construção de muros mais altos e sufocantes à nossa volta, se semeou uma incapacidade acrescida de voltarmos a desarmarmo-nos perante a vida, se inculcou dentro de nós um sentimento destruidor altamente negativo de desvalorização da auto-estima, auto-confiança, do gostarmos de nós mesmos...
Sempre nos perguntamos, depois de uma traição : "onde é que eu falhei?"..."o que foi que eu não fui capaz de dar ou fazer?"..."por que é que eu não fui suficiente e gratificante para o outro?"... (ainda que na verdade, nada, mas mesmo nada a tivesse justificado nunca!!) 
A traição é monstruosa, por demolidora...é fantasmagórica, por injusta...
É algo profanador, porque é feito pela calada, pela dissimulação, no desferir do golpe, sem permitir armas de defesa...na ausência de lealdade, de carácter, de verticalidade...
É aproveitadora...tristemente aproveitadora...usa a boa fé, a entrega, o querer e o crer...quantas vezes, a ingenuidade de quem vitimiza...
A traição é avassaladoramente mortificante e tanto mais injusta e inaceitável, quanto quem a sofre, fez uma entrega total, incondicional, completa...quanto, quem a sofre, menor capacidade tem, de a ultrapassar, de lhe resistir, de reagir.
Aí, a amputação consegue ser duas vezes maior. 
A traição sempre deixa um amargo imenso no coração, uma dor incomensurável na alma e uma raiva indistinta contra o mundo...Afinal, ela representa o desmoronar de um bonito castelo de cartas em que acreditáramos com todas as nossas forças...
É como se de repente nos perguntássemos : "e agora faço o quê com as flores??!!..."


Anamar

1 comentário:

MariahR disse...

Pois não sei...
Há quem diga que se deve pôr uma aspirina na água da jarra onde se colocam as flores...
No entanto, não consta que lhes cure a dôr de flor e, nem por isso, evita que em poucos dias elas murchem e acabem esquecidas num qualquer caixote de lixo.
Atenção, esta é apenas a história da curta existência de uma flor arrancada à sua terra.
Beijos