quarta-feira, 30 de dezembro de 2009

"MANHÃ SUBMERSA"






"Saío da cama, sempre a duras penas", pensou, "sejam seis da manhã ou meio dia"...
Essa, a prova provada do seu fraco apreço pela vida. Quanto mais cedo se levantasse maior seria esse dia que então se iniciava....Espantoso...ao invés de quem ama todos os minutos que lhe são concedidos para viver...

Leonora foi até à janela do quarto, correu as cortinas e deparou com um daqueles dias submersos num fumo que não dava grande margem de visão. O céu, uniformemente cinzento, uma chuva subtil e miúda, fê-la pensar que teria sido numa manhã como esta, cinza, desfocada, sem contrastes, que D.Sebastião haveria de voltar...(tinham-lhe ensinado na escola).
Esborrachou o nariz contra a vidraça, sem grande sucesso, já que o seu horizonte lhe estava muito perto, e imaginou aquele adolescente, quase uma criança, a caminhar ao encontro de quem não tinha desistido de o esperar...

Nas traseiras da sua casa, exactamente para onde a janela do quarto se abria, havia uma única árvore...um plátano, agora quase nu, com algumas folhas mais teimosas presas aos galhos, rondando naquelas patines que Leonora sempre invejava...castanhos discretos, em mistura com uns ocres mais abertos...vermelhos afogueados, em mistura com alguns (poucos) verdes esmaecidos. Os ouriços mais resistentes, abanavam ao sabor da aragem, nos ramos, como brincos de princesa....

Leonora pensou :"Uma verdadeira manhã de neblina!..."
Só que neblina é névoa, é algo que mostra e esconde, é algo em que o olhar submerge na busca de melhor enxergar...mas não! A neblina tem o seu quê de mistério, de difuso, de translúcido apenas...Como sombras chinesas, aguça a imaginação...

Olhou para a parede oposta do quarto, quase sobre a cabeceira da cama. Aí estava um óleo do seu pai, poucos dias antes de a ter deixado...Curiosamente, quem o pintou e lho ofereceu, falecera há poucos dias.

Ficou estática, como que hipnotizada, e na sua mente desenharam-se lado a lado dois quadros brancos. Um deles continha aquela pintura do seu quarto...o outro ao lado, continha a mesma figura como que num dia de nevoeiro cerrado...Leonora bem abria mais e mais os olhos, bem os esfregava para lhes retirar aquele véu do tempo...ingloriamente....aquele já só era o pai que ela retinha, volvidos dezassete anos...

Sentiu uma angústia galopar por si acima, enquanto que um pavor a dominava...
A mente...a mente é traiçoeira, a mente não fixa "ad eternum", não grava, não regista...torna tudo em fumaça!...
Concentrou-se mais e mais, tentando visualizar aquele quarto, aquela cama, aquele pijama em flanela azul, aquele verde que eram já só as duas frestazinhas dos olhos....e depois, bem mais nítido, quase real: o descarnado das mãos, que eram só pele raiada a cobrir os ossos...

E Leonora foi chamada à realidade...não são de facto precisos dezassete anos, nem dezassete meses...se calhar em dezassete dias que não estejamos com alguém, ainda que muito nosso, será tempo que baste para "perder" aquele contorno dos lábios, aquela expressão tão conhecida e tantas vezes flagrada, o timbre da voz a ir a ir, também, como numa manhã submersa que nem aquela!!...
Sentiu um estranho nó na garganta e um mau estar a dominá-la....Como o ser humano é efémero, face ao Tempo...Como o Tempo é defraudante face ao ser humano!...
É como se estivéssemos todos a percorrer um túnel com um estranho nevoeiro a adensar-se...
E sentiu medo, muito medo do esquecimento....de repente Leonora estaria no meio de estranhos, em que ninguém lembrava ninguém, sequer o rosto, sequer o beijo, sequer o calor, sequer as mãos, o sexo, o coração.....um MUNDO de estranhos perdidos numa manhã submersa!!...

Anamar

1 comentário:

Jonas disse...

Perdoe a ousadia, mas não apreciei a parte do apagão.
Sabe possivelmwente melhor do que eu, que a seguir à escuridão vem sempre a LUZ. E mesmo quando a luz se apaga, existe sempre o brilho das Estrelas no Céu, e é um ciclo que nós simples Humanos percorremos.