sábado, 17 de dezembro de 2011

VIAGEM AO "OUTRO LADO"...


Um painel com desenhos infantis, rabiscados por homens idosos ...
Pavilhão de Psico-Geriatria do Hospital Psiquiátrico do Telhal .

"A Eva, no consultório do médico, sofre da "Síndrome de Down" ...
A Eva, na escola, sofre de "trissomia vinte e um" ...
A Eva na rua, é obviamente mongolóide ...
A Eva para os amigos ... é simplesmente ... EVA !..."

 Aquele meu meio-irmão foi-me "apresentado", ainda eu não era nascida ...

Doze dias antes do meu nascimento, era ele internado na Casa de Saúde onde "vive" até hoje.
Ele pertence, por azar ou por "sorte", ao outro "mundo" ... ao outro lado. Aquele lado que não conhecemos, que não entendemos ...que é mistério!

Entre esse mundo e nós, o mundo dos "mentalmente sãos" ... há, julgo, uma barreira ténue, uma barreira de "nieblas", indivisa, diáfana, mas que  não nos deixa enxergar o que vai para lá dessa fronteira.

O meu meio-irmão, ainda assim meu irmão de pleno direito ( porque irmão de sangue ), "herdei-o" do primeiro casamento do meu pai.
Não o conheci, não convivi com ele, não o "saboreei" como se faz aos nossos chegados ... não o conheço!

Tenho contudo por ele, um carinho imenso, uma ternura ilimitada, quase um "amor" ... que talvez não me fosse exigível ... e uma comiseração que talvez não devesse ter, mas que se me impõe...

O Vítor nasceu de um casamento "mal-fadado" pelo destino. Durou muito poucos anos.
Da mãe, ele apenas usufruiu de dois, porque a "fraqueza de pulmões" a levou tísica, na flor da idade.
Foi então criado por parentes afastados, porque avós também já não tinha. Aproveitou da boa vontade e alguma disponibilidade de corações, quando lhas queriam proporcionar...
O pai, o nosso "querido" pai, como o refere ainda hoje, labutava pela vida, Alentejo fora, para poder sustentá-lo...

Passados bastantes anos, o meu pai voltou a casar. O Vítor teve finalmente direito a um lar de verdade, a carinho de verdade, a família de verdade...
A doença colheu-o ironicamente, quase logo.
Entrada na adolescência, esquizofrenia diagnosticada, tratamentos violentos e desumanos à altura ... uma Casa de Saúde distante, impessoal e fria à sua espera ...

Nasci eu, doze dias depois ...

Ao longo da minha vida, desde criança, o meu irmão era sinónimo de um mundo estranho, desconfortável, penoso de devassar ... Era sinónimo de sofrimento patente, de "injustiça" gritante, de impotência face ao destino ...
Visitas escassas (vivíamos em Évora e a Casa de Saúde é em Lisboa).
Sem transporte próprio, o ritual desses domingos, passava pela camioneta, passava pela compra da caixa com bolos, e em altura de festas, uma ou umas pequenas lembranças, a propósito.

Depois era a angústia (assustadora para uma criança), de franquear aqueles portões, de atravessar aqueles muros altos, passar portas fechadas por molhos de chaves (que voltavam a fechar-se após as atravessarmos) ... Era o medo por aquelas figuras fantasmagóricas, absolutamente estranhas ( a doença consegue incrivelmente distorcer mentes, mas também corpos), das quais nunca sabemos que reacções esperar... Era o penetrar no mundo dos "loucos", simultâneamente estranho e fascinante ...
Era mergulhar numa prisão que não o era ... mas era ... Prisão de pena perpétua, algemas que tornam reféns quem fica para lá das grades!...
Era a confrontação real e de perto com a situação, eram inevitavelmente as lágrimas da minha mãe, rosto abaixo ... era ela a  dizer-me até hoje : "Nunca te esqueças dele...ele tem o teu sangue ...e só te tem a ti ..."
Coisa lúgubre e "pesada" !!...

Telhal é sinónimo de Natal ... porque sempre o Natal foi inerente ao Telhal ...

E assim, lá fui hoje, com um peso tremendo dentro de mim, pela omissão e fuga por que me pauto ao longo do ano ... com uma raiva por hipocritamente pactuar e sucumbir a datas e quadras calendarizadas, logo eu que me rebelo contra isso ... com uma mágoa e um aperto no coração, como sempre ... com as palavras da minha mãe nos ouvidos, a martelar : "Nunca te esqueças dele ... "

Como poderia?!...

A Pena coroava a Serra, e a Serra envolvia a paisagem ... Sol encoberto, folhas tombadas num Inverno a chegar.
Abandono, solidão... acho que já total e absoluta indiferença ... figuras transparentes ... há muito, mortas ...

Um mundo REAL cá fora à minha espera !!!...

Anamar

2 comentários:

Anónimo disse...

Admirável a sua reflexão e tambem o seu carinho. Muito pesada a herança, "não esqueças é o teu sangue".
Onde fica a "folga" o trilhar do nosso caminho ? tambem todos somos "herdeiros " do pecado original no Cristianismo, talvez por isso muitos se afastam para outras religiões onde esse "pecado" esse "peso" não existe. o pior é entranhar essas "culpas" não verdadeiras.. No entanto e talvez por isso contraditoriamente admiro-a pelo seu amor mesmo assim ao seu meio-irmão, pois algo mais forte se sobrepôs o afecto por alguem mais fraco, sem duvida um espirito de Clã, de protecção, de familia.No lado mais bonito de qualquer ser humano que se preze. é sem duvida uma Mulher mt. forte e generosa nos seus afectos. Parabens. JONAS

anamar disse...

Olá Jonas

Obrigada!... Bem-haja!

Efectivamente "herança" é herança...nunca nos pedem "opinião"...
Mas "sangue" é sangue...
Sempre transporta em si, creio, algo que não se define, que nunca se define...

E por isso, lá fui...lá vou ao Telhal!

Um beijinho para si...e um Natal em paz,também com os seus...os do seu sangue...

Anamar