sexta-feira, 2 de dezembro de 2011

"O VIRAR DA PÁGINA ..."


Tempo estranho ... dias de sol envergonhado ...

Bali na curva da estrada ...
Aquele sol, aquele azul, aquele "amor" à solta na Ilha dos Deuses, já foi ...

Ontem "queixava-me" ou desabafava, do que já sentia num Dezembro que estranhamente não tem o frio que habitualmente nos põe a ponta do nariz vermelha, nos põe os dedos gelados dentro das luvas, nos solta aquele "fuminho" cada vez que expiramos, qual chaminé de lareira a crepitar .

Hoje, reequaciono outro dia que sempre me atormenta da mesma forma ... o 31 de Dezembro.

Durante a minha infância e adolescência, em casa dos meus pais portanto, a noite da passagem de ano terminava por norma, pelas dez da noite, ou seja, antes da "passagem".
Como que querendo fugir de lembranças, recordações, "peso de alma", motivado pela incerteza doentia de um virar de página, a minha mãe preferia dormir cedo.

A passagem de ano e não o "réveillon" ( já explico ), era o momento em que, como costumo dizer, "a corte dos mortos" todos, desfilava e descia a povoar a mente dos vivos, na minha casa.

Sempre ouvi contar que o meu avô, combatente na guerra de 14-18, exactamente na noite de 31 não sei seguramente de que ano, creio que 1916, em pleno teatro de guerra, sofreu um bombardeamento com gases, da tropa alemã.
Os colegas de caserna morreram todos com o rebentamento dos engenhos explosivos; ele, por sorte do destinado, conseguiu fugir, embora gaseado, o que lhe acarretou sequelas enquanto viveu.
Apesar de não ser católico, terá recebido a extrema-unção, pois beirou a morte, sendo o seu regresso à pátria tido como um milagre!

Engraçado que em vez de se festejar, de se agradecer, de se glorificar esse golpe de sorte, ou de acaso, ou de destino ... não ... sempre se cultuou o lado dramático  dos acontecimentos, numa espécie de elegia procurada, e sempre, ano após ano, se revivenciava a angústia da morte demasiado cerca, demasiado presente.

Esse espírito pesado, doentio, escuro ... passou de geração.
Herdei-o sem que me perguntassem nada ... e o 31 de Dezembro para mim, sempre foi isso e nada mais.
Um momento traumático de apreensão pelo que viria, um momento de saudade punjente dos que já haviam partido, um momento de balanço de vida, um momento em que inevitavelmente a minha mãe soltava lugubremente a frase lapidar : "Este ano ainda cá estamos todos ... quem estará cá para o ano ??!!"

E ficava no ar aquela coisa assim, desconfortável, cinzenta, carregada ...

Forjada nesse espírito, ainda hoje "passagem de ano" não me é sinónimo de "réveillon", tal como tristeza não é sinónimo de alegria, recolhimento não é sinónimo de festa, fatalismo não é sinónimo de descontracção.
Mas invejo, acreditem, a loucura saudável que passa pelos que recebem, por todo o Mundo, o novo ano com esperança, os que festejam exactamente o estarem vivos para o receber, a força com que se prometem, muitas vezes vãmente, a mudança, a determinação de uma busca de felicidade.
Invejo os que fazem votos de intenção de melhoria ... até a inconsciência sã e permitida , de uma vontade imensa e utópica, de abraçar o Mundo, e estreitar todos igualitariamente ...todos, sem distinção ... todos, num amor sem tamanho ou condição.........pelo menos NESSA noite!!!...

O virar da página de um livro é o instante mágico que nos deixa suspensos entre o que já lemos e conhecemos, e o que vamos ler e não sabemos exactamente o que é.
A história contada até aí, é realidade nossa ... a continuação da história prende-se na neblina do desconhecido.
Um nó aperta-nos a garganta quando as doze badaladas se iniciam. As passas comem-se à pressa, para que a  formulação de tanto sonho, tanto desejo, tantas vontades, consiga caber naquelas doze badaladas!
Saudamos todos os presentes e lembramos os ausentes, esbanjamos votos de felicidade imensurável,  damo-nos em ternura e afecto pelo menos naqueles instantes ... magnânimamente abrimos os corações à medida que o champanhe desce nos brindes elevados.
A lareira crepita, as passas, os pinhões, o bolo-rei ainda, a música ambiente em surdina ... fazem-nos companhia nas mantas de lã e almofadas, largadas a esmo pelo chão...
Velas acesas, espalhadas e misturadas com os incensos que queimam, iluminam o espaço e a alma....incendeiam os corações ...
Amanhã será um novo dia, será o primeiro de muitos em que nos desejamos renovados, em que acreditamos com muita força que tudo será melhor, em que acreditamos  ser capazes de erguer alto as nossas bandeiras ... em que a fé e a esperança nos invadem ...em que nos recomeçamos!...

Esta é a mística do 31 de Dezembro ... esta a passagem de ano que eu já vivi ... ou terei sonhado??!!...

                              
Anamar

1 comentário:

Anibal disse...

Olá, sou o Augusto, um amigo meu do tempo da tropa deu-me a ler um artigo seu sobre o 25 de Abril,enviou-me por mail, gostei e hoje vim espreitar o seu blogue, esta história do seu Avô é muito gira, ele esteve em que batalha da primeira guerra ? foi na Flandres ? aquilo foram tempos complicados, tem mais histórias sobre o seu Avô, gostava de as ler, gostei mesmo.