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segunda-feira, 17 de dezembro de 2018

" RETALHOS "





Mais um Natal à porta.  Um, mais ...  Mais um ano a findar ... um, mais !
Inevitável tudo o que se sente, embora não queira sentir-se.  Inevitável a miscelânea de sentimentos teimosos e desorganizados, que em atropelo nos tomam.
Alegria, dizem as pessoas.  Sem dúvida, alegria pela reunião, pelo encontro, pela partilha e cumplicidade de sentimentos.  Pelo calor do sangue ... que se sente bem quando é do nosso, a correr  por outras veias.  Alegria, pelo calor no coração, na verdade da amizade semeada nos tempos, em cada abraço dos amigos ...
Consolo também.  Uma carícia na alma, quando estamos todos na mesma mesa e os afectos voejam, tanto quanto os sorrisos dos rostos.
E paz.  A paz que se sente por nos sabermos pertença e podermos acreditar que com sol ou tempestade nas vidas, sempre abriremos o mesmo chapéu protector, capaz de albergar todas as cabeças.
E sonho ... sonho de podermos sonhar que tudo é exactamente assim.  E sermos capazes de nunca abandonar esse sonho, embora utópico possa parecer, muitas vezes ...

Depois, Natal traz-nos também à flor da pele, mágoa, saudade, falta, tristeza ... buracos no coração que não se preenchem, feridas na alma que não saram, incertezas de futuros sonhados inacabados, dúvidas de manhãs que estão por vir, medos por tempo que se escoa rápido demais, sem que talvez tenhamos tempo de escrever a nossa história até ao fim ...
Natal acorda-nos as dores da lembrança de todos os que já não podem sentar-se na nossa mesa, traz-nos a recordação de todos os que dividiram as vidas connosco, nos momentos tristes, mas também nos mais felizes.
E inevitavelmente todos "baixam" quando  as velas se acendem, quando os cânticos ecoam, quando o bacalhau é servido, quando os sonhos e as rabanadas se anunciam, quando o brinde se ergue e nos maravilhamos, percebendo como a vida se vai fazendo, os destinos se vão cumprindo, a roda continua sempre a rodar, as cadeiras sucessivamente a reocupar-se ... porque assim é e assim será, além dos tempos ...
Todos "baixam" quando a magia nos toca e um sopro de esperança e fé, nos impregna até à alma ...

Ponho-me a pensar : em quantos Natais mais ocuparei aquele lugar da mesa ?  Em quantos Natais mais, vou erguer a taça e formular os votos ... os tais, que se perdem no éter e brotam com a força toda do meu coração e o desejo incontornável do meu espírito ?
Quantos estaremos no ano que vem, no outro e no outro ?
E contemplo, já com a lágrima a embaciar-me o olhar e o nó a sufocar-me a garganta, o lugar do sofá vazio, o que foi dito, do que rimos e do que falámos ... porque sempre há o que lembrar, porque sempre o que lembra, se repetia ... e a gente ria então ... quase completamente felizes !
E tudo voltará à normalidade.  Este ano dói muito ... no próximo, talvez um pouco menos ... e assim por diante.
Haverá outros a preparar o peru, tão bem ou melhor.  Haverá quem lembre os que preferiam arroz doce,  os que escolhiam as rabanadas ... as filhós, as azevias ... as manias de uns, as rabugices de outros ...
Haverá quem lembre o Pai Natal fantasiado que enganava a criançada... quando a criançada ainda tinha idade e inocência para se deixar enganar ...

Porque tudo continua imparável e a vida se renova, até que um dia seremos apenas um lugar na mesa, que cada vez menos, lembrarão ...

Anamar

terça-feira, 6 de novembro de 2018

" APONTAMENTO "



Faz hoje sessenta e nove anos que os meus pais casaram.
Acordei com o coração doído, os olhos marejados e um aperto no peito.  O pensamento foi indo, debaixo de um édredon que não me aquecia a alma, e o cinzento do exterior  penetrava pela vidraça franca do meu quarto.

Sei que era um Novembro talvez como o de hoje, no Alentejo interior, na aldeia onde eu viria a nascer um ano depois.  Os meus pais já não eram jovens. Ele com quarenta e oito anos, ela com vinte e nove.  Ele ia num segundo casamento.   Ela, não.
Um e outro tiveram-me como prenda de laço e fita, como bênção do destino ... como sonho  concretizado e corporizado numa menina trigueira  como a terra que lhe dava  berço, de cabelo escuro e olhos castanhos.  Era e viria a ser até ao fim dos seus dias, a razão das suas vidas.
Sendo pessoas humildes vivendo exclusivamente do trabalho do meu pai, nunca nada faltou contudo,  naquela casa, na minha educação, na minha formação como pessoa de bem, detentora dos valores e princípios que para sempre viriam a nortear o meu destino.

Já passou muito e muito tempo.
Nenhum dos dois cá está para lembrar.  O meu pai partiu há vinte e seis anos ... a minha mãe, há meses.

Acordei com o coração doído, os olhos marejados e um aperto no peito. 
Acordei com os abraços que não lhes dei, espalhados na almofada.  Com as saudades que não partem e as memórias teimosas coladas no pensamento. 
Acordei estranhamente mais órfã, com o desconforto de roupa desaconchegada ao corpo, que nos deixa entrar o frio impiedoso.
Acordei com a nostalgia do irremediável.  Com a dor do que não é, porque não pode voltar a ser.  Com a ansiedade e o desejo do reencontro com a pessoa que eu fui, no tempo que já não me pertence ... porque o tempo não pertence a ninguém ...
Acordei com a estranheza de não mais me poder sentir a menina das tranças, a prenda de laço e fita, a bênção da vida dos meus pais ...

Lá fora chovia.  Uma gaivota planava, lançando o seu grasnido pelos ares.
Era Novembro outra vez ...

Há sessenta e nove anos, haveria sol ?...

Anamar

segunda-feira, 5 de novembro de 2018

" DEIXANDO VOAR ... "



Olhei o plátano aqui das traseiras.  Quase todo ainda revestido de folhagem verde ... pasme-se !
Em anos transactos, nesta altura em que o Outono já se instalou, em que as alamedas das matas e dos jardins já se atapetam de folhas amarelas, castanhas e vermelhas, fazendo jus à típica coloração quente ... nesta altura em que o céu fecha de nuvens cinzentas escuras, carregadas e ameaçadoras ... nesta altura, dizia, o plátano já se havia despido.  Se não totalmente, pelo menos as folhas remanescentes, jamais eram verdes ainda !

Deve-se isto, à atipicidade climatérica vivida nas últimas semanas, em que o Verão parecia não desgrudar, com temperaturas elevadas, levando com toda a naturalidade, muita gente a pisar com satisfação ainda, a orla costeira da nossa terra.
Entretanto, anormalmente também, depois de uma tempestade estranha que nos atravessou ... um fenómeno climatérico meio inexplicável , pouco previsível e visto, o tempo virou da noite para o dia, as temperaturas desceram bruscamente, a chuva fez-se presente, o vento também, e pronto ... a estação outonal instalou-se a sério.
E ainda assim, com alguma benevolência connosco, aqui neste cantinho desapercebido, já que a Europa tem estado a ser fustigada por tempestades violentas com cheias gravíssimas, neve e ventos fortes , causando danos por aí fora !

Bom, mas quedei-me junto à vidraça, borrifada de gotas miudinhas, olhando o cinzento lá fora, perdendo-me pelos galhos sacudidos do plátano, e escutando o silêncio de interioridade aqui dentro.
E, porque o pensamento voa mais longe e depressa que as nuvens açoitadas pelo vento, fui-me deixando ir, sem explicação possível, aos tempos da minha infância.
Por essa altura, Évora era a minha cidade.
Morando um pouco afastada do Centro Histórico, vir até à Praça do Giraldo, exigia um motivo de razoável importância.
A minha mãe, pessoa com quem dividia as semanas, com o meu pai ausente em trabalho, não era dada a grandes passeios, a saídas de lazer, a convívios com quem quer que fosse.  Tanto quanto lembro, depois das aulas, era a casa que me esperava, invariavelmente.
Excluía-se alguma necessidade particular de uma compra, uma ida à modista ( porque por esses tempos o pronto a vestir era algo desconhecido ), uma deslocação esporádica ao dentista, o Dr. Pisco ( a criatura com a maior paciência que se possa imaginar ) ou, aí sim, por absoluto imperativo da existência, o abastecimento diário no mercado, pela carne, peixe, frutas e legumes, já que mesmo o leite nos chegava à porta, em vasilhas de zinco, aviado a contento, em medidas igualmente de zinco, e o pão se comprava na padaria, no início da minha avenida.
Outros artigos adquiriam-se  na loja do sr.Acácio, misto de mercearia e drogaria que ficava junto à padaria.

Quando pelas razões que apontei, eventualmente nos deslocávamos, eu e minha mãe, até às arcadas centenárias, era um acontecimento !
E como acontecimento que era, rodeava-se de alguns inesquecíveis rituais :  em primeiro lugar, nunca regressava a casa sem que tivesse adquirido mais alguns exemplares da minha primeira colecção de livros de histórias, na Papelaria e Livraria Nazareth, ex-libris da cidade, hoje com mais de um século de existência.
A coisa era negociada.  Eram mini-livrinhos.  Talvez cinco por cinco fosse a sua dimensão ... teriam meia dúzia de folhas ...
Havia-os a quatro tostões e havia-os a sete tostões.  Eu escolhia.  Se comprasse dos mais baratinhos, podia trazer mais um ou dois ...
Não sei qual o destino seguido por essas obras.  E tenho pena.  Penso que, de mim terão passado para uma prima um pouco mais nova, e depois ... por lá ficaram.
"Vejo-os" claramente na minha memória.  Não sei já  o nome da colecção. Lembro a "Princesa da Ervilha", o "Gato das Botas", o "Pedro e o Lobo", "Os três porquinhos " ... entre outros.
Todos os clássicos da literatura infantil a incorporavam, e imortalmente continuaram fazendo também as minhas delícias ...

Depois, era obrigatória a entrada na Alabaça, uma pastelaria fina da cidade, localizada igualmente "debaixo dos arcos", como se dizia.  O motivo era sempre o mesmo : a compra de um rim de chocolate que eu adorava, lambareira que sou até hoje.
No regresso, invariavelmente, a minha mãe contemporizava.  E porque o nosso caminho passaria pelo Jardim Público em direcção ao Rossio de S.Brás, faríamos uma pausa, num dos bancos, usufruindo de uma nesga do sol que se esgueirava através das ramagens.
Se fosse Verão, com um pedaço de sorte, teria direito a um Olá, do carrinho do vendedor que por ali parava. Os de fruta ... dez tostões.  Os de baunilha cobertos de chocolate ... vinte e cinco.
Se fosse Outono, beirando este S. Martinho que não demora, umas castanhas assadas também iam bem.  O  cheirinho  a  evolar-se  do  assador,  não  permitia  que  as  esquecêssemos ...

Cumprido o programa, impunha-se então o regresso.

E foi assim que neste dia cinzento e ocioso, em que o recolhimento me deixou por casa  juntinho à vidraça, deixei voar simplesmente o pensamento até lá bem atrás, ao túnel de um tempo que fui vislumbrando já só, por entre os farrapos do esquecimento.

E gostei da viagem !...

Anamar

quarta-feira, 17 de outubro de 2018

" TALVEZ VALHA A PENA ! "





Não gosto de me reler.  Não tenho paciência e quase sempre acabo não me encontrando muito, naquilo que nesta ou naquela ocasião, então escrevi.

Mas ... o dia subitamente ficou igual a mim própria.  Amanheceu azulado, com algumas nuvens esparsas  pouco preocupantes, e veio acinzentando gradualmente.  Agora fechou por completo e a chuva meio miúda começou a cair.
Honrou no seu melhor, um típico dia outonal.
Breve será Novembro, breve completarei mais um ano de vida, breve será Natal e o calendário dobrará de novo.  Enfim ... o ritmo imparável da vida !

Hoje caíu-me à frente um texto escrito há cerca de um ano e meio.  Por curiosidade reli-o.  "Deixa-me ver como iam as coisas então" ... pensei.
Pois bem, é impressionante como decorrido esse tempo, nada tenha acontecido nem dentro nem fora de mim, que inviabilizasse que aquelas linhas pudessem ter sido escritas hoje.  O mesmo cansaço, a mesma impotência, o mesmo imobilismo, o mesmo desconcerto atravessam cada frase, percorrem cada linha.  A mesma inexistência esperançosa em outros dias, em dias mais coloridos e auspiciosos, em novos projectos ou sonhos, percorre cada parágrafo, que transpira uma desaposta sensível, uma falta de "gás" ... um desânimo que dói.
Há um estar rançoso e uma falta de norte ou horizonte, uma solidão e um desconforto, como um fim de festa não vivida.
Sinto-me como barco largado ao sabor das marés, subindo ou descendo ondas, arrastado sem azimute, na ausência de leme, sem esperança de âncora ou porto de abrigo.
Sinto-me com a indiferença da folha que o Outono jogou no chão, levada pelo vento, sem lógica ou coordenada. Simplesmente arremessada ...
Sinto-me tão irremissivelmente perdida como se estivesse num deserto de areias sem princípio ou fim ... como se estivesse frente a um emaranhado de trilhos alucinados, sem destino ou rumo.

E parece ser recorrente esta leitura míope e deficitária da vida, que quase sempre me toma.
Serei incoerente, imatura, exigente ... ou simplesmente utópica, desadequadamente insatisfeita, tontamente sonhadora ... infantil, puerilmente desajustada ... ou simplesmente IDIOTA ?

Seja o que for ... Cá para mim, não sei se algum dia terá remédio ou solução ...

O dia de um claro Outono fechou de chuva, por aqui.  O silêncio embalado por Énya ao meu lado, aconchega as paredes deste quarto. Só ela me restitui o sonho.
Chegam-me notícias preocupantes da saúde de amigos.  A pequena capa de malha que a minha mãe colocava nas costas, aquece-me sobretudo o coração.
Transporta o seu afago. Desperta-me a saudade infinita.
Afinal, vou estando viva por aqui.  E talvez valha a pena viver.  Se hoje a chuva cai, amanhã o céu azul voltará ... as castanhas vão regressar ... o caminho dos castanheiros deixará os ouriços pendentes, soltarem os frutos maduros ...
E o Inverno levar-nos-à  a uma segura Primavera, que será verde ... outra vez ...
E continuaremos a "pintar o céu com estrelas" ...  E continuaremos a escutar o gorgolejo das águas lá na serra, e a batida do mar impiedoso, nas praias do silêncio, onde as gaivotas mandam ... Só elas mandam !
... Porque estamos vivos  ... E talvez, afinal, valha a pena viver !...

Anamar

quarta-feira, 3 de outubro de 2018

" AINDA ONTEM ÉRAMOS JOVENS ...... LA BOHÈME "




Quem melhor cantou Paris ?
Quem melhor cantou uma juventude descomprometida e feliz, vivida na cidade do amor ?

Aznavour deixou-nos.  Fisicamente ... porque imortal, ele é, desde sempre!
A sua voz inconfundível jamais se silenciará sob os céus da Cidade Luz.  Cidade também chamada dos "encontros e despedidas" encerra um romantismo próprio, que tão bem e incomparavelmente, ele soube transmitir-nos em cada estrofe, em cada melodia, em cada nota, de todas as suas canções ...

Ícone da música mundial, mestre da música francesa, figura incontornável no panorama internacional, foi presente na minha adolescência, nos anos soltos da minha juventude, e nunca deixou de, conjuntamente com outras figuras igualmente míticas desses tempos áureos, fazer parte do meu imaginário, povoar os meus sonhos, perpassar pelos desejos mais ou menos inconfessáveis, comuns a uma geração com ânsia de emancipação, autenticidade, e contestação aos valores instituídos e obsoletos.
Geração insatisfeita, desacomodada, rebelde e transgressora ... a que a música dava voz.  Porque a vida é de quem se atreve a vivê-la ... e provocá-la, apanágio de um tempo, que só os poucos anos que então detínhamos, o permitia.

Aznavour, o pequeno arménio, filho de imigrantes que chegou um dia a Paris, foi reconhecido como notável performer do século.
Cantor em múltiplos idiomas, foi compositor de mais de mil canções, escreveu musicais e entrou em mais de sessenta filmes.
Teve mais de cem milhões de discos vendidos.  Foi popstar ao longo de mais de oitenta anos.
Cantor nostálgico, denominado justamente, o Frank Sinatra de França.
Sempre o amor foi cantado por si.  E esse é o principal registo que de si ficou : um expoente inigualável do romantismo.

Marcou-me indelevelmente, desde jovem.  Desde os bancos do liceu.  Desde os bailes de garagem ... dos primeiros amores, dos primeiros desgostos ...
Dos anos dourados dos "sixties", ele representa até hoje, o rosto do sonho sonhado, do romance, do saudosismo dos tempos e dos locais ... em suma, da melancolia ... da vida!
"Que c' est triste Venise", "Non, je n'ai rien oublié", "Et pourtant", " Sur ma vie", o icónico "La Bohème", são só alguns dos temas que nunca esqueceremos.
A "mulher" obviamente preponderou nas suas letras.  "She", tema do filme Nothing Hill, é um hino e uma homenagem ...  Foi hit absoluto no mundo inteiro !

Aznavour deixou-nos inesperadamente aos 94 anos, pela madrugada, na sua casa do sul de França, na Serra de Alpilles, após uma tournée pelo Japão ...
... e afinal, "Hier encore il avait vingt ans "...

Ele, e todos nós ...
Não deixou a vida ... a vida, deixou-o !...

Montmartre seguramente entristeceu e os lilases terão morrido ... tenho a certeza.
Aznavour partiu ...



Anamar

domingo, 23 de setembro de 2018

" OUTONO "



E eis que chegou !
À 1,54 h desta madrugada, o equinócio de Outono cumpriu calendário.  E como um recém-nascido, veio sem mostrar ainda, o que expectavelmente o caracterizará : dias coloridos a cinza, Natureza colorida a tons doces e quentes, amaciando a estação seguinte ( que sempre se espera mais agreste e implacável ), temperaturas amenas, pingos de chuva regeneradora e saborosa ...

O Verão, este ano,  parece querer tornar-se inesquecível, nesta imposição de temperaturas absurdas, rasando os trinta graus ou mais.
Começamos a sentir alguma saturação, uma necessidade de mudança, uma renovação e um "arrumar" da alma, que este tempo introspectivo, sereno e silencioso, propicia.
Simultaneamente a nostalgia desce ... inevitavelmente, já que esta mudança de estação, nos reporta às etapas das nossa vidas físicas.
É o tempo da queda das folhas.  O tempo da interioridade e do intimismo.  É tempo de balanço, de pacificação do corpo e do espírito, e de conciliação com nós mesmos.
É paleta de Van Gogh, oferecida aos nossos olhos.  É  uma sonata ou partitura ... É uma difusa melancolia, um estado de alma ... um tempo em declive suave ... cálido e saboroso ...
O ritmo abranda, a energia trepidante da estação cessante carregada de força, adrenalina e vontades, cede lugar a uma hibernação e adormecimento interiores.
Deverão ser saboreados, como o é a doçura das compotas, que saltam das matas para as mãos sabedoras de quem lhes conhece os segredos .
É quase sempre o tempo de mães, avós, de tias velhas, de doceiras insubstituíveis, que sempre pontuarão as nossas memórias, mesmo quando já tiverem partido, ou nós esquecido os sabores irrepetíveis ... porque a criança que fomos, também não existe mais ...

Mas sempre vamos lembrar as prateleiras da despensa, sempre vamos lembrar o rapar lambareiro dos tachos e o sabor reconfortante e apetecido do pão barrado ... nas merendas das nossas vidas !
Sempre vamos recordar saudosamente os cheiros lá de casa, o fervilhar da marmelada em confecção, os bagos das romãs pacientemente preparados, as cores flamejantes dos diospiros maduros ... o insubstituível cheirinho espalhado pelo ar, das castanhas assadas que não tardam aí ...
As folhas amarelecidas tombam pelos caminhos e atapetam os lugares de passagem.  As aves migratórias já foram, e esperamos voltar a ver as andorinhas na próxima Primavera ...
A mansidão dos dias convida aos percursos cúmplices e sem pressas, pelos bosques, pelo arvoredo, pelo topo das arribas, donde se divisa um mar que promete tornar-se alteroso e imperativo, não demora ...

E percebemos que  já passou mais um ano, outra vez ...

E deixo-me inundar por uma paz silente e aconchegante.  Por todas as razões.  Pela lembrança, pela saudade, pela felicidade também ... pela cumplicidade vivida, quando as famílias ainda eram o que eram e quando ainda o eram ... sem ausências ou desistências ...
Nada esquece nas nossas vidas.  As memórias, boas e más, são o repositório feliz, o património indelével das nossas histórias.

Mas o Outono, estação em que nasci, não é o fim da história ...
Terá sempre, de facto, muito a ver comigo ... talvez demasiado !
É sonhador como eu, silencioso como eu, intimista como eu ... com uma magia particular, embaladora e doce, apenas sua,  e que mais nenhuma estação ao longo do ano é capaz de nos oferecer !...



Anamar

sábado, 22 de setembro de 2018

" CHARADA "



É tarde de mais p'ra falar da vida.
Tudo o que havia a falar já o foi.  Percebo não ter quem possa entendê-la, outra vez.  Há momentos em que viramos a página da agenda.  Percebemos que os códigos não podem mais ser entendidos por quem vier.  Há uma incapacidade de recomeçar a dizer.  Um cansaço de reabertura de cena.
Só porque o que tinha que ser, já o foi. E o tempo é o tempo p'ra cada coisa.
Não quero mais.  Seria um trabalho inglório, por muito que quisessem abrir caminhos.
Os meus caminhos já foram percorridos por quem os conheceu.  Os meus trilhos são segredos da montanha, que por ser mágica os encerrou em si.
Não se fala a mesma língua, só porque sim.  Não se aproximam emoções se as não conhecemos.  Se as não vivemos.  Se não são estória da nossa estória ...
E a nossa história teve um tempo real.  E o tempo, quando é real, vive no coração.  Não é como o tempo dos sonhos, porque esse, é eterno ... vive no espírito !

Percebo a vida encalhada em praia distante.
Percebo que não há vento, manso ou de borrasca, que consiga arrancá-la do areal.  Talvez simplesmente porque aquele areal, é o seu, de repouso, com as suas rochas e as franjas desenhadas como pinturas de Monet.
Talvez porque se esteja em tempo de marés leves, marés de dormência, que levam e trazem a canção das ondas.  Sem sustos ou angústias.
Talvez porque o meu barco se deixe apenas ir e vir, e ir e vir ... E esse, é o seu navegar ...
Talvez porque  lá esteja o canto das gaivotas livres de asas estendidas, e o som do silêncio da esperança.

Deve ser isso !
Deve ser isso que hoje me mostrou o cansaço da alma.
As vidas são curtas demais para serem escritos novos capítulos, por interessantes que o sejam.  Porque todas elas têm um fio, de meadas que desenrolam até às pontas finais.  E depois do desemaranhado desfeito, nunca a meada seria a mesma, por mais habilidade que outras mãos possuíssem, para a tecer ...
As mãos que são sábias, são as mãos que são sábias.  E os pés que percorreram os nossos caminhos, são também só aqueles que os palmilharam connosco, lado a lado ... e lhes conhecem as marcas secretas ...
Os ouvidos que conseguem escutar-nos, são apenas aqueles que sabem os nossos silêncios ... não mais ...

Chega um dia das nossas existências em que percebemos ter encerrado as vidraças ... ter fechado as portadas ... ter apagado as luzes.
Cansámos.
Esgotou-se o texto e não há paciência para reescrever outro.
Ficamos com a exibição final.
A que conhecemos, a que marcámos ... a nossa ...

Confuso, isto ... certo ?
Quem me ler deve achar que foi desta que me "passei", em definitivo.
Contudo, saudavelmente, um pouco  "outsider" nos pensamentos, nas emoções e na vida ... inquieta na alma, e fervilhante  nos desejos,  sempre o sou, em permanência ...

Anamar

quinta-feira, 20 de setembro de 2018

" TUDO E NADA - balanços outonais "



O ano está a ir-se.
Entraremos no seu último trimestre não demora, e apesar do calor continuar a imperar em dias azulados de céu límpido e brisa mansa, quando passa ... sente-se já, que não é bem igual.
O sol tem um rosto mais tímido, a sua luz adocicou, os dias anoitecem bem mais cedo e a pausa da vida que é configurada pela estação que aí vem, sente-se claramente também na interioridade da Natureza.
As praias estão a ficar sós. As gaivotas farão delas privilégio de passeio.  Os areais são beijados no embalo de marés silenciosas e meigas, como véus largados em lassidão e abandono.
E tudo à nossa volta parece reduzir a urgência trepidante da pujança dos meses de Verão.  A pressa aquietou e tudo agora parece desenrolar-se numa fruição gostosa e degustante.

Os putos voltaram às escolas.
Reencontramo-los nas ruas, de novo em bandos chilreantes e descontraídos, mochilas nas costas, livros nas mãos e conversa solta e displicente, com a leveza e a irresponsabilidade que os anos lhes conferem ...

Para mim, o ano sempre foi contado de "rentrée" a "rentrée".  Não era Dezembro nem a viragem do calendário que ditavam as regras, mas sim este início de ano escolar, com redefinições de vida ano a ano, reenquadrando horários,  ritmos, com novas e promitentes determinações, novos sonhos e disposições.
Como todas as épocas de viragem ou mudança, experimentamos uma energia poderosa, uma capacidade de renovação imensa e uma imensa vontade de reinício de qualquer coisa, do que quer que seja, numa espécie de "refresh" de vida.
Planifica-se, recria-se, inventa-se, redesenha-se um figurino novo dos nossos dias, como se com ele, o marasmo, o bafiento, o repetido e por isso entediante, sumissem, e tudo se reciclasse, a começar por nós mesmos !
É a tal época das faxinas, já o abordei em anteriores escritos, sendo que as faxinas mais apetecíveis, desejadas e necessárias, seriam as que ( se isso fosse possível ) conseguissem mesmo virar-nos o nosso avesso para o ansiado direito, que faria de nós seguramente pessoas mais dispostas, leves, corajosas, sonhadoras e crentes ...
Sairmos das rotinas salobras e cansativas, inovarmos e renovarmo-nos ... desafios quase sempre extenuantes e penosos que muitas vezes se nos afiguram inalcançáveis, são exercícios mentais vitais à sobrevivência, numa sociedade pouco contemplativa e generosa, pouco aliciante e retribuidora.

Nada fácil, contudo.
O balão insuflado que empolgou os primeiros dias, deste afã de sonhos, vontades e intenções, tende a esvaziar devagarzinho, imperceptivelmente, como tendo um furinho invisível algures por aí.
As rotinas tomarão de novo conta dos nossos tempos, que recomeçarão inevitavelmente a assumir o formato já demasiado conhecido ;  o fôlego e o empolgamento dos primeiros assomos de entusiasmo, tendem a fenecer.
A cera das velas que iluminavam caminhos vai-se consumindo, o silêncio recolhe aos claustros da alma, a cor esbate à nossa volta como os mates, ou os pastéis redecoram a Natureza, depois dos tons sanguíneos do Verão cessante.  Tudo mansamente, languidamente, espreguiçadamente  ... ao ritmo de um cansaço que de novo nos invade.

A vida deve ser isto e a força dos anos transcursos também.  De facto, não temos mais vinte anos.  Não temos mais sequer quarenta anos. E a inevitabilidade do que tem que ser, opera-se, sem apelo, sem contorno, sem volta a dar !...
Será assim com todos ? - pergunto-me.

Tenho o desânimo do perdulário.  Angustia-me a incapacidade que experimentei pela inalteração do percurso da vida.
Como queria poder recuar, rever, refazer, alterar !
Como queria não ter-me acomodado.  Não ter aceite o cinzentismo dos dias.
Como queria ter tido visão, coragem e determinação para rumar para fora de caminhos já cadastrados, e inventar os meus próprios trilhos!  Ter aberto janelas que dessem mais mundos ao meu mundo !
Como queria poder revolucionar figurinos acomodatícios, e livremente poder atirar pedradas aos charcos deixados pelas chuvas passageiras ... sem medo de me molhar ! Como queria ter a irreverência saudável dos exploradores de marés !...
Como queria ter tido coragem para dizer não, e quantos nãos fossem precisos ao longo do destino !  Como queria poder asfixiar esta insatisfação doída de vida previsível, igual e repetida !   Esta dormência latente, colada na profundidade da pele !...

Enfim, se calhar quero exactamente o que muitos quereriam, sem um pingo de originalidade ou exclusividade.
Mas pelo menos, a utopia, o sonho, este turbilhão vulcânico que me sufoca e não apazigua, fazem-me acreditar que estou viva, que não desisto, que aposto sempre e quero continuar a viver e a lutar pelo valer a pena desta minha vida !...
Por tudo e por nada ... que sempre será muito !...

Anamar

domingo, 9 de setembro de 2018

" UM BANHO DE SAÚDE "




Quem tem a Natureza à porta, às vezes desconhece a mais valia de que dispõe.
Quem vive no betão impessoal e descolorido, sabe-o bem.  O mergulhar nas potencialidades que a Natureza  nos prodigaliza, ali ao virar da esquina, é quase sempre um banho vitamínico para a alma e para o corpo.

Amanheci e estive ao longo do dia com um "calundu" daqueles ... Cansaço de fases da vida ... ressaca da "esfrega" a que fui sujeita ontem, como aqui contei ... noite mal dormida também por isso ...  ?? Sei lá ... talvez tudo e talvez nada .
O que é facto é que passei o dia naquele enrolo improdutivo e indeciso, sem iniciativa para nada.  Uma modorra chata e desmotivante que não faz, nem deixa fazer.
E o domingo a escoar-se, e de útil ... népia !  Ao menos que tivesse dormido, o que nem sequer foi o caso.

Há muito, demasiado tempo, que banira as caminhadas da minha realidade.  Sei lá ... nem sei quanto.
A situação da minha mãe até ao fim da sua vida, foi de tal maneira limitativa, absorvente e destrutiva, que me tirava toda a disponibilidade temporal, mas sobretudo toda a vontade e espírito anímico para o efeito.
Sou comodista por excelência, extremamente avessa ao exercício físico, e como tal, ginásios ou prática de outros desportos representam  uma dificuldade acrescida, que me desanima e afasta.
Caminhar ... e caminhar na mata, era a única actividade que tolerava sem grande esforço, direi mesmo, com algum gosto.

Havia deixado de o fazer, como disse.

Mas com o avanço de uma tarde sem história que teimava em se arrastar, com um sentimento de inutilidade e bloqueio psíquico, desgastante ... e sem vontade útil de outras iniciativas, escutei o desafio de um amigo que há largo tempo já, me "alfineta", confrontando-me com a perda dos meus bons hábitos de vida : "Margarida, tu eras tão persistente e agora estás preguiçosa.  O exercício é fundamental para a saúde. A tua vida é demasiado sedentária ..."  e etc, etc, etc.
E o mais grave é que é exactamente verdade !

Desta forma meio safadinha, mexeu-me nos brios, e ... ala que se faz tarde ! Uniforme de treino, ténis, mochila às costas com água, as chaves e o telemóvel e aí fui eu ... ou melhor, aí fomos nós, porque uma caminhada com companhia, é bem mais gratificante e bem menos castigadora do que fazê-la em protesto, refilando só comigo mesma ... 😄😄😄
Às vezes é só preciso um empurrãozinho ...

Uma tarde pouco quente com uma brisa fresquinha a correr, o silêncio das veredas, os aloendros em flor, o trinado dos pássaros e o verde bem reconfortante, esperaram-me na mata de sempre.
Receava o cansaço por excesso de destreino, mas a hora e meia passou agradavelmente rápida, por entre conversa, risos e algumas confidências ... ou não fôssemos nós amigos de há já muitos anos.

E pronto, deixei por lá o "calundu" que me massacrava os miolos, esvaziei a cabeça de alguma coisa do que ma perturbava, e concretizei o primeiro episódio do que espero venha a ter continuidade : a realização persistente, disciplinada e esforçada, da manutenção saudável da minha qualidade de vida !

Afinal, p'ra grandes males ... grandes remédios !...

Anamar

quarta-feira, 5 de setembro de 2018

" O SONHO COMANDA A VIDA ... DIZEM ... "





Escrevo pouco.  Já o referi vezes sem conta.
Neste momento acho que estou tão crítica face ao que escrevo, que cada texto resulta num parto tão difícil, que custa a fazer-se.
Atravesso uma crise de criatividade, julgo, mas sobretudo, por cada escrito que escrevinho, sopeso vezes de mais da oportunidade de o fazer, do interesse ou do valor do mesmo.  E como sou demasiado perfeccionista em tudo na minha vida, acabo concluindo da inutilidade de o produzir.

Nada de novo poderia envolver as minhas palavras, pois como se sabe, já absolutamente tudo foi inventado.
Claro que qualquer tema ou assunto é sempre passível de ser abordado das mais variadas formas.
A visão de cada um.  Mas o interesse devido à minha possível, é forçosamente irrelevante e irrisório, desnecessário e redundante, face à proliferação de autores, de gente capaz e abalizada ... em suma, de gente "autorizada" no domínio das letras e da cultura, neste país !

Depois ainda, eu escrevo primordialmente numa libertação de alma, num aliviar de comportas emocionais, quase sempre.  É uma escrita intimista e personalista que caracteriza este meu espaço. Uma verborreia com pouco de pragmática, uma abordagem dos temas invariavelmente indissociável do meu "eu" interior, sendo que é sempre "ele" e a sua "saúde" real, que ditam o espírito das minhas letras ...
E isso, é obviamente domínio pessoal, de interesse ou consideração precários, por parte de quem aqui eventualmente desce a lê-las.

Tenho um amigo que descobriu recentemente as virtualidades da escrita.  O quão importante é, tantas e tantas vezes, libertar para o papel o que nos vai na alma, o que nos assalta a mente, as interrogações que nos colocamos, as dúvidas e as inquietudes que nos assolam.
Podermos "conversar" com nós mesmos, através das palavras que alinhamos, sem outro intuito ou objectivo além de olharmos como se olha num espelho a nossa imagem, de uma forma descomprometida, ou como se observa no porta-retratos o nosso rosto ali representado ... de fora para dentro, com algum distanciamento, é efectivamente uma forma de nos sentirmos vivos, e um privilégio ... acho..

Admiro muito o que escreve.  Tem uma forma de se expressar "naïf", sem pretensões de estilo, de conteúdo ou forma.  Sem preocupações de correcção ortográfica, inclusive.
Alinha tudo o que quer dizer, ao sabor do desalinho do seu próprio pensamento ... sem demais preocupações.
Escreve tal qual é, tal qual pensa, tal qual age na vida.  É uma escorrência com a impulsividade ditada apenas pelas próprias convicções, sentimentos e opiniões. Duma forma liberta, sem peias ... vernácula.
Solta as memórias ao vento, conforme o povoam.  Não tem inibições, censuras ou  medos.
Escreve com uma genuinidade absoluta.  Lembra uma criança a fazê-lo.  Tem a simplicidade de Aleixo na expressão, e um discurso  muitas vezes, absolutamente ternurento, porque ditado pelo coração que tem no peito, bem subido ... pertinho da boca !

Escreve sobre tudo e sobre nada.
Tem uma criatividade inesgotável, e as suas histórias, contadas na primeira pessoa, ou através de outras personagens heterónimas, são quase sempre deliciosas.
É um homem vivido, com muita estrada palmilhada lá para trás.  Com incursões por muitos mundos, cruzou a sua vida com muitas outras ... e de todas tem um episódio para contar.
É dotado de uma sensibilidade à flor da pele.  Tem uma curiosidade de menino que descobre a vida, e uma mescla de bonomia e irreverência face à mesma ... muitas vezes.
Ingenuidade também ... como criança grande, esperançosa e crente,  que não cresceu.

Invejo-lhe a riqueza de ideias.  O manancial de vivências. Invejo-lhe a liberdade de expressão.  Invejo-lhe mesmo a "inconsciência" com que o faz ...

Duvido que alguma vez envelheça.  Duvido que algum dia reconsidere caminhos, mesmo podendo ser prejudicado quantas vezes, por palmilhar os escolhidos.

Desejo que mantenha e nunca deixe apagar dentro de si, a chama infantil que o norteia.
Desejo que nunca desista, mesmo que um dia perceba que tudo foram histórias ...
Porque afinal, quem escreve, é sempre, em última análise,  um privilegiado contador das mesmas ...

E porque, simplesmente ...

                "o sonho comanda a vida, e o mundo pula e avança, como bola colorida entre as mãos de uma criança" !...

Anamar

domingo, 26 de agosto de 2018

" PRAIA DAS MAÇÃS - curiosidades "


 
                                    "Praia das Maçãs" -  José Malhoa  ( 1918 )

Estive bem pertinho da Praia das Maçãs, local que por muitas razões me é particularmente querido.
Realizava-se hoje a procissão anual em honra de Nª. Senhora da Praia, com a pompa e circunstância que lhe é inerente, segundo me informaram.
Pasmo, como já decorreu um ano desde que, no Agosto passado, escrevi aqui neste meu espaço, um texto a propósito.  O tempo, efectivamente é inalcançável !

Pois hoje, de novo, a Senhora foi a banhos, como eu referia há um ano atrás, tentando descrever para os que não conhecem, tal efeméride, mantendo-se a tradição local das gentes destas paragens.
Não vou portanto repetir aquilo que recheou o meu post de 2017.

Vou antes abordar aqui, algumas referências históricas ligadas a esta estância balnear, composta por praia e povoação epónima, da freguesia de Colares do Município de Sintra, que reporto de bem curiosas.
Foi e é a Praia das Maçãs eternizada por vários motivos.
Além de ser zona arqueológica de notoriedade assinalável  e reconhecida, de que também já falei em posts anteriores, ela está indelevelmente associada a uma figura incontornável na área cultural portuguesa, no domínio da pintura : José Malhoa.

Fazendo parte do primeiro aglomerado da Praia das Maçãs, denominada ao tempo de Villa Nova da Praia das Maçãs, o chalet Villa Guida, a casa do sacerdote António Matias del Campo ( um dos primeiros habitantes da Praia ) e a capelinha de Nossa Senhora da Praia construída por Alfredo Keil em 1889, também a Taberna de Manuel Prego, é  um marco histórico muito interessante.
Construída por Manuel Dias Prego, há muito que desapareceu, existindo hoje nesse local um edifício moderno de vista para a praia ( Rua de Nossa Senhora da Praia ).
Terá sido exactamente nesse local que Malhoa pintou em 1918 o seu famoso quadro "Praia das Maçãs", hoje espólio do Museu do Chiado em Lisboa.

Decorre de informação local, que onde se erigia a Taberna de Manuel Prego, foi posteriormente construído o edifício onde veio a funcionar o Hotel Royal, exactamente a meio da rua que acompanha lateralmente o areal da Praia das Maçãs.
Também no acervo da Câmara Municipal de Sintra existem fotos onde, por cima da porta da Taberna se pode ver inscrita a data de 1889, contemporânea da construção da Villa Guida e da casa do Padre António Matias del Campo, como referi.

Ao que parece, o negócio do Prego era florescente à época, a ponto do mesmo ocupar um terreno adjacente, baldio, com mesas e bancos, que foi coberto, para o sombrear, com o caramanchão  patente no quadro de Malhoa.
Viria a solicitar licença para utilização desse terreno, o que veio a verificar-se posteriormente, dado que o mesmo pertencia à edilidade.
Antes da construção da Taberna em tijolo, sabe-se contudo, que já Manuel Prego detinha uma construção mais rudimentar, na praia, onde exercia o seu negócio.
Existe  um testemunho disso mesmo, num artigo publicado a 7 de Junho de 1896 no jornal "Correio de Sintra", onde se pode ler :

" Não há memória de nunca ter arribado à Praia das Maçãs ( Colares ), barco pequeno ou grande, com o mar manso ou bravo ;  pois arribou no dia 28 ( Maio ? ) um barquito remado por uns intrépidos rapazes d'Arosa, soltando um em terra para fornecer-se dumas garrafitas de vinho em casa do Prego ! "

Enfim, memórias idas, lembradas hoje, duma forma gratificante, quando uma outra vez a Praia das Maçãs se adornou para receber condignamente a passagem da sua padroeira, pelas ruas do povoado até à praia.
As pétalas das flores sempre tombam dos céus, o sol sempre brilha no firmamento, os andores, a irmandade, o povo anónimo desceram à rua ... a música, os cânticos e as rezas voltaram a ecoar no azul transparente de mais um quente dia de Verão ...

Só Manuel Prego e a sua tasca não existem mais ... Keil, também não ... e Malhoa, se por aqui estivesse, imortalizaria uma vez mais, sob a frescura do caramanchão, frente a um copo de Colares, a passagem da procissão da Senhora da Praia ... tenho a certeza !...


Nota :  Documentação recolhida em textos afins provenientes de várias fontes, na Internet.

Anamar

domingo, 19 de agosto de 2018

" DICOTOMIA "





"  O amor eterno é o amor impossível.
Os amores possíveis começam a morrer no dia em que se concretizam "

                                        Eça de Queiroz

Dei-me com esta frase do Eça, algures ...

Li, reli, parei para reavaliar ... reflecti ... fiz rewinds na vida e concluí da certitude da mesma.
Eça, objectivo, pragmático, conciso, experiente e sabedor sabe do que fala.  Revela-se afinal, um profundo conhecedor da alma humana !

Aparentemente pareceria um contrassenso.  Afinal, o Homem, ao longo da vida, debate-se, em vão,  pelo alcance inatingível de um amor eterno.  Sofre porque o não tem, sonha tê-lo, porque tendo-o estaria completo e eternamente feliz, acredita piamente.
E digladia-se com uma infelicidade atroz, porque na sua vida afectiva parece haver uma impossibilidade em agarrá-lo.  Uma incapacidade mesmo, em pressenti-lo.
Na verdade, nada há de mais certo na existência do ser humano, que a impermanência de tudo o que o rodeia.  Nada há de mais real que a incerteza das metas atingidas.  Tudo é precário, incerto, duvidoso, inseguro ... sempre.
Só que essa realidade se configura  num estímulo e desafio para a mente humana, é mesmo essa insegurança, insatisfação e inalcance que acrescentam a pitada de tempero, adrenalina e sabor aos amores ditos "impossíveis" !
E assim, estes, sem solução possível, amores improváveis, se tornam nos amores verdadeiros, amores de valer a pena, amores sem bafio, amores com cores flamejantes, sempre novos e dispostos.
Eles redescobrem-se por cada dia, reinventam-se em novas roupagens, eles não se entediam, são desejados a cada momento como amores acabadinhos de nascer.
São eles que aceleram as batidas do coração, tiram o fôlego, nos conduzem à gaiatice dos tempos da ingenuidade, do sonho e da fantasia.

Os outros ... aqueles que afinal conhecemos, acabamos experienciando e vivendo, aqueles que nos foram desafios aureolados de todas as virtudes, adequações, enquadramentos e soluções dos nossos desequilíbrios afectivos, não passam de amores corriqueiros, amores sem sobressaltos, amores "chapa três" ... trôpegas tentativas de desenhar o mundo, soluções  de  vida  em  tosco,  irrespirável  e  desesperado  esboço  do  avistamento  da  felicidade !...
Em suma ... amores possíveis e moribundos desde o primeiro instante !...

Afinal o Homem sempre quer o que não tem e mata o que tem.  Sempre busca o sol, apagando para isso, as estrelas no firmamento !
A utopia e a incoerência fazem parte da nossa alma imperfeita e insatisfeita, alma em turbulência e inquietude.

Ainda assim ... deixem-me com os amores impossíveis, pois seguramente sempre serão " eternos e infinitos  enquanto durarem !..."

Anamar

segunda-feira, 6 de agosto de 2018

" POR QUE RAIO TIVEMOS QUE CRESCER ??!! "


Estranhíssimo este sol que se põe lá ao fundo, num céu pesado, sem nuvens, mas longe de ser límpido.
Aliás, mostra-se com um semblante esfumado que lembra aquele céu de incêndios.
Entretanto  a  "fogueira"  acende-se  por  todo  o  país,  com  as  temperaturas  a  roçarem os 46 ºC ...

Todos ficamos imprestáveis, neste ar irrespirável.  O cansaço toma-nos conta e nem as ventoínhas nem os duches frios sucessivos, aplacam esta sensação de desconforto.
As noites não refrescam, não se dorme, e erguemo-nos na manhã seguinte, totalmente partidos, espapaçados, como se tivéssemos sido açoitados durante a noite.  Mais cansados ainda do que antes de dormir ... como se isso fosse possível !
Sonha-se com uma sombra fresca, sofre-se à míngua de uma aragem ...

Os animais sofrem também ... e muito !  Os meus gatos, sobretudo o que transporta às costas um manto invejável de pelo, não encontra poiso, arrasta-se pelo chão de mármore, dorme na frescura possível do poliban e estica-se indiferente a tudo, parecendo moribundo na apatia que ostenta.
Tenta resistir ... como todos nós !
Entretanto, nas notícias, fomos confrontados com uma tempestade que se abateu ontem ao fim da tarde, sobre certas zonas do Algarve.  Intempestivamente ! Imprevisivelmente !

Temos o planeta em desnorte total.  Assustadoramente a sofrer desmandos da Natureza, que vão afectando de forma acentuada, os seres vivos que lhes ficam à mercê ...

Talvez devido a tudo isto também, me sinta demasiado cansada.  Este calor mata-me, definitivamente !

O tempo está como a vida ... tudo incerto, tudo imprevisto, tudo anormal ... tudo meio louco !
Na minha meninice e juventude, tanto quanto lembro, as coisas tinham nomes ... Primavera era Primavera, Verão chegava na hora certa e tinha a cara do costume ... o Inverno sempre nos trazia o friozinho gostoso, a convidar a gorros luvas e cachecóis, o fumo das castanhas assadas a soltar-se dos carrinhos e as alamedas dos jardins, totalmente forradas com as folhas molhadas, que já eram ...
E por aí adiante.
Por isso sempre sabíamos com o que contar, sem demais surpresas ou ansiedades.  Acho que os dias corriam mais ou menos mansos, sem outros sobressaltos.
Os dias viviam-se ao ritmo dos dias.  O hoje era  vivido hoje, sem pressas ou ansiedades, o ontem ainda não deixava aquelas marcas mortais que nunca mais se apagam ... e o amanhã, sempre nos aparecia como uma rosa fresca que desabrochasse ao romper da alvorada ... doce, sorridente, cheia de promessas ...
Os amores eram generosos, embaladores e leves.
Viviam-se e sorviam-se ao sabor do sonho.  Em jeito de presente de laço e fita, deixado nos sapatinhos da nossa imaginação, nos tempos em que era Natal todos os dias ...
As imagens das nossas histórias eram sempre coloridas ... porque eram exactamente isso ... imagens das nossas histórias ...
E estas sempre tinham finais felizes ...
A vida tinha muito do açúcar e do arroz doce com que as avós e as mães nos resgatavam dos pequenos desgostinhos ...
Não havia despedidas, nem perdas, nem separações.
Tudo parecia ser para sempre, simples, certo, sem as complicações da gente grande ...
E quando as lágrimas desciam ... porque às vezes também acontecia ... era garantido, que dormida a cabeça no travesseiro, a madrugada era azul  à certa, enfeitada de arco-íris, estrelas esfregando os olhos de ensonadas, e cantos dos pássaros da alvorada ...

E assim se fazia a vida ... com a ingenuidade e a bonomia dos anos que então tínhamos !...
Mal sabíamos da turbulência que nos esperaria a muitos mil pés de altitude ... mal imaginávamos da tormenta de mar alteroso que se iria encapelar diante de nós ...

Afinal ... por que raio tivemos que crescer ??!!...

Anamar

segunda-feira, 23 de julho de 2018

" VOANDO COM ELAS ..."



Pelas seis da manhã já aí andam.
Elas, as pegas rabudas, os melros, as rolas, as andorinhas ...
Mas são elas que me acordam.  As gaivotas.  Muitas, planantes, ao sabor do vento que aqui é muito, quase sempre.
Não se inquietam no bater de asas.  Deixam-se embalar no baile que se faz lá por cima.  E grasnam, em gritos estridentes de marinhagem.

Acordo e fico quieta.  Sorrio para dentro.

Acho que as gaivotas não pertencem bem a este cenário arrumadinho, de Natureza plastificada.
Sei que estou no Algarve e que o mar aqui é rei.  Aliás, vejo-o a cada esquina ou recanto. Azul intenso, rematando um céu sem mácula.  Ponteado a vezes, por uma ou outra vela branca ...
Sei que estou num condomínio para privilegiados, para uso turístico ou para consumo interno ... de quem pode, bem entendido.
E obviamente todo o contexto tem que ser perfeito ... e é-o, de facto !
Flores, muitas flores cuidadosamente tratadas, de todas as cores, rochas dispostas aparentemente ao acaso, que o não é, relva bem cuidada, árvores e trepadeiras multicores aqui e ali, com intencionalidade ... fazem deste espaço, como de muitos idênticos, oásis para utentes exigentes.
Aqui, claro, praticamente todos falam outras línguas.  Provêm de países não bafejados por este clima abençoado, esta envolvência pródiga e generosa, que é a nossa.
São ingleses e alemães na maioria, gente de uma estranja de névoas, de céus cinzentos e dias escuros.
Gente fria e distante, bem ao contrário deste sul de uma Europa namoradeira de África, que empresta calor, emoção e paixão ao sangue dos que aqui nasceram.

Como dizia, o mar está por perto.  É o coração desta terra, e é dono destes areais.
E  se  o  mar  está ao virar de cada esquina, é expectável  que  as  gaivotas  também  o  estejam ( ainda que eu não ache tão lógico assim ... )
A menos que elas, já mercenárias, sejam também pássaro decorativo para "camone" consumir  (rsrsrs ) ...
Porque, gaivota para mim, é pertença de escarpas, falésias, arribas selvagens.  É pertença de costa bravia, de areais desertos, de ondas que tripudiam, no incessante vai-vem, dos rochedos que massacram ...
Gaivota é pássaro de liberdade total e absoluta, de horizontes sem limites, pássaro de silêncios ... pássaro de maresias, de marulho suave ou agreste ... de solidão e memória ...

E por isso elas me levam ...

Libertam-me deste "caixilho civilizado", e conseguem transportar-me daqui para bem longe.  Lá, onde eu vejo tudo isto, onde eu sinto tudo isto ... onde a Natureza é talhada à séria ...

Junto de mim, Énya solta os acordes da música da sua Irlanda rude, inóspita e selvagem.  Uma Irlanda  de  costas  impiedosas,  abruptas,  açoitadas  por  mares  encrespados  e  alterosos ...
Costas  envoltas  na  magia do indomado, do autêntico, das  neblinas  cerradas  e  misteriosas ...
E lembro " A filha de Ryan", um filme de há muitos anos.  Icónico na sétima arte, inesquecível ... fantástico ...  Visto e revisto ... Arquivado, sempre ...

Será por tudo isto que me sinto nostálgica ?!...

Anamar

terça-feira, 8 de maio de 2018

" DEVIA SER PROIBIDO ... "


                                                                               


Quando começamos a fazer balanços, é complicado.
Ontem, ao fim do dia, a despedida de mais uma colega de profissão, amiga também, exactamente da minha idade.
Muitos, fomos apanhados de surpresa pela notícia.  Doença prolongada, de que poucos sabiam ela padecer, não havia contudo, muito tempo.
A mesma capela mortuária onde há três semanas me despedi da minha mãe , só que esta mulher tinha menos trinta anos que a minha mãe ...

Aquela coisa de sempre : o reencontro de rostos que já não se viam há tempo, porque os aposentados, erradamente deixam de se encontrar.  Parece não haver vagar, não caber no calendário, não terem espaço numa agenda que deveria ser, obviamente liberta.  Mas não !
Nestas circunstâncias rumamos todos, fazemo-nos presentes, como se nos tivéssemos separado ontem.
São as flores, o aperto na alma, a penalização no olhar e no coração, as palavras de conforto aos familiares ... os momentos de recolhimento frente à serenidade de quem parecia apenas dormir.
E depois, depois ficamos a falar uns com os outros, como se em intervalo na sala dos professores, estivéssemos.
Lembramos coisas, recordamos pessoas, fazemos estatística dos que já nos antecederam ( e foram já tantos ! ), sabemos de outros tantos que ameaçam estar na calha ... Terá sido o amianto que toda a vida nos cobriu, sobre os pavilhões ?  Havia de se fazer um levantamento do número dos que já partiram ... reféns da maldita doença ...
Falamos dos filhos .  Tem-los cá ?  Porque muitos, mas mesmo muitos, os têm em países estrangeiros, na busca de segurança e futuro mais digno.
Até porque, ao longo da vida permutámos os nossos filhos com os dos colegas, no ofício do magistério.  Frequentaram a mesma escola, a nossa escola.  Conhecíamo-los bem.
Pergunta-se pelos netos.  Mostram-se fotos, vídeos ...  Oh, tão fofinha !  Parecida com a mãe.  Dá-lhe um beijinho.  Sempre foi uma aluna impecável e trabalhadora ...

E regressamos a casa.  Mais pobres.  Mais tristes ...
O vento cá fora, desabrido apesar de Primavera, ainda nos desconforta mais.  O coração apertado, contrito.
Nem a piada de recurso daquele colega que anunciava ter resolvido não comparecer mais aos funerais dos colegas, como protesto por eles também não comparecerem ao seu próprio, nos amenizou o estado de espírito !

E quando nos despedimos, sempre a mesma frase repetida : até à próxima.  Que não seja pelo mesmo motivo !...

É assim a vida !
Dizia a minha mãe : " na cadeia e no hospital é que se reconhecem os amigos ! "
Eu acrescentaria ... e na partida também !...

Amanhã haverá sol.  O céu estará azul, os pássaros irão cantar.
Será Primavera mesmo, em toda a sua exuberância.  O verde, as flores, toda a Natureza estará pujante e plena.  Haverá risos, será leve a vida !...

Por isso, devia ser proibido morrer-se !...

Anamar

segunda-feira, 7 de maio de 2018

" O PRIVILÉGIO SUPREMO "




Mais um primeiro domingo de Maio ...
Para as gerações actuais, mais um Dia da Mãe.  Para mim e para os da minha geração, acredito que um dia atípico, ao qual nunca aderi.  Desde os bancos da escola, o dia que homenageava as mães, sempre foi o 8 de Dezembro, feriado religioso que venera Nossa Senhora da Conceição, dita a Padroeira de Portugal, mãe de todos nós ...

Bem pequenita, já rabiscava uns desenhos numa folha de papel, que a minha professora dobrava cuidadosamente, engendrando um cartãozinho de felicitações para orgulhosamente lhe oferecer.
Curiosamente, ainda há pouco, ao mexer nos guardados da minha mãe, na casa que estou a desfazer, me encontrei com muitos destes postaizinhos, arquivados religiosamente por ela ... como se de verdadeiros tesouros se tratasse ...
E tantos anos já passaram !...

Por isso  ontem, por defesa pessoal minha, três semanas decorridas sobre a partida da minha mãe, procurei,  por maioria de razão, esquecer o dia que actualmente se comemorava ...

Mãe não tem dia, nem mês ... Mãe é todos os dias, desde que lançámos ao mundo uma criaturinha nascida e formada dentro de nós... com todo o amor com que a concebemos .
E desde então, sê-lo, é uma tarefa "non stop", para o bem e para o mal, em jornada permanente.
Sê-lo, é o maior privilégio de que um ser humano pode usufruir.  E esse privilégio é a bênção que só uma mulher pode experimentar !

A minha mãe foi, de facto, um ser ímpar.  Talvez todos digamos exactamente isto, àcerca da sua própria mãe. Admito-o.
Mas, comparo muitas vezes a pessoa que ela era, e a pessoa imperfeita e incompleta que eu sou.
Nunca conheci ninguém tão generoso, abnegado, disponível, com um espírito de sacrifício total em prol de  todos da pequena família que nós somos, fosse eu, sua única filha, fossem as netas, fossem os bisnetos ...
Nunca conheci ninguém que nos devotasse um amor tão imenso e incondicional, esquecendo-se de si própria e vivendo sempre para todos nós.
Nunca conheci ninguém  tão de bem com a vida, como ela, sem exigências, sempre aceitando o que aquela  lhe destinava.
Sempre viveu a felicidade e as alegrias, as realizações e os sucessos de todos.  Sempre se envolveu e esteve presente, nos momentos mais difíceis na vida de cada um.
Foi a pessoa que sempre, mesmo nos últimos tempos, quando a cabeça já não era clara a discernir o que a rodeava, mais se preocupava comigo ... com a minha saúde e as minhas inquietações ... E sempre me dizia : " a mim não escondes nada. Conheço-te desde pequenina"...
Eu sorria e completava : "desde que nasci, não é, mãe ?"...

E assim viveu  feliz, toda a sua longa vida, sentindo-se sempre um ser abençoado !

Ainda que não estando já fisicamente perto de nós, o desígnio imenso que o destino lhe imputou, jamais terminará.  Onde quer que esteja, continuará a sorrir e certamente velará por todos os que amou e ainda por cá continuam ...

Mãe, é  isto mesmo !!!...

Anamar

sexta-feira, 4 de maio de 2018

" A FOTO "





Normalmente nas minhas escritas adiciono uma foto, um vídeo, enfim, algo com que acho valorizar o que escrevo.
Desta feita, escrevo sobre uma foto ... esta, exactamente esta !

Tem esta foto, gratas memórias para mim.  Digamos, que memórias gratas por inusitadas, por incomuns, por engraçadas ... memórias vivas.
Remontam a um período da minha vida sui-generis, já lá vão alguns, razoáveis anos. 
Um período em que me pus em pé, depois de tormentas atravessadas.  Um período de reabilitação e ressurreição, depois de uma turbulência sem tamanho.  Um período de me repintar, depois de um cinzentismo nebuloso e insípido  me ter tomado, parecendo não haver mais luz ou cor à minha espera.

Talvez por isso, ou mesmo por isso, escolhi para mim, na altura,  como fetiche, esta imagem espantosa, de plenitude, esperança, vida, sonho, liberdade ... Tudo o que eu precisava desencavar então, do buraco fundo onde me encontrava.

Tudo isso eu precisava voltar a vivenciar .  Tudo isso eu agarrava então, com toda a força preênsil dos meus braços, com toda a ânsia das minhas mãos, com toda a fé do meu coração.
E fi-lo com uma "fome" de vida que urgia voltar a sentir.
Fi-lo, com uma entrega de alma que me animava o âmago.
Fi-lo, num mergulho alucinado, de cima da falésia, não importando se me salvava ou me perdia, não importando se encontrava rocha ou tapete de flores à minha espera.
Era preciso que me sentisse viva, apenas !

Atravessei um tempo estranho, incomum, desconhecido, insuspeito.  Saltei baias, desafiei limites, enjeitei convenções.  Tapei os olhos, os ouvidos e a boca e deixei-me ir, na doçura do bote à deriva nas águas mansas de um riacho sereno.
Fiz descobertas, medi-me, tomei-me o pulso, alucinei-me talvez ...  saboreei o sal, o doce e o amargo.
E sinto-me muito grata por isso.
Fiz uma travessia no desconhecido e sinto-me abençoada por o ter feito.  Descobri ilhas inóspitas, galguei montanhas, desci ravinas, percorri desertos ...  Voei com o condor, senhor dos rochedos. Planei com as gaivotas, no auge de liberdades plenas. Tornei-me muitas, sendo uma só.  Senti-me sufocada de emoções.  Desafiei o escuro com o sol a pino ...

E saí-me bem.  De tudo me saí bem.  Mais feliz, mais mulher, mais eu !

E sinto-me privilegiada, incomensuravelmente privilegiada, porque posso olhar para trás e sorrir docemente, cúmplice com a vida que foi generosa comigo e me mostrou valer a pena vivê-la, sempre, porque tudo é sempre surpreendentemente ENORME, pelo facto de nos sentirmos vivos !

Anamar

segunda-feira, 23 de abril de 2018

" COISAS DE MULHERES "





O dia amanheceu de borrasca, mas a tarde compôs.  Um sol amarelo adocicado de Primavera emoldurava a paisagem.  A estação não enganava.  Os pássaros chilreavam em devaneios de acasalamento.  A excitação das urgências libidinosas, neles como nos seres humanos, começavam, ainda o dia esfregava os olhos ensonados.
Sempre assim é.  Esta estação é poderosa.  O sentido da renovação, remoça-nos, torna-nos capazes, crentes, imparáveis, irresistíveis.
De repente há um acreditar generalizado de que a vida reinicia mesmo.  Saímos das trevas dos Invernos escuros e olhamos de frente a luz da vida, com que o sol ilumina e pinta os nossos sonhos.
A vontade dispara, a força multiplica-se, a esperança agiganta-se e, da noite para o dia, ficamos outros, tornamo-nos outros, surpreendentemente, o milagre opera-se ...

Lembrei uma tarde igual a esta, naquela mesa de café, à beira-rio, faz tempo.
Também havia chovido toda a manhã e custámos a confirmar o encontro pela tarde.  Afinal, o dia não garantia nada seguro.  Mas acabámos por ir, num Abril lá para trás, com um sol amarelo adocicado de Primavera ... como hoje, a emoldurar a paisagem.
Como sempre, falar das "nossas coisas",  " arear os talheres", como diz um amigo meu ... inevitável entre mulheres, quando se encontram.
Há sempre um atraso notório ... Ainda não te contei,  cheguei a dizer-te ?   Imagina tu ... e por aí adiante.
Ela estava apreensiva, um pouco silenciosa demais para o hábito.  Estranhei-a.  Mas connosco era questão de começo.  Como as cerejas, as conversas não se negariam.

Acreditas que a última vez que fizemos amor foi há mais de dois anos ?  Sei exactamente qual o dia.  Já então a nossa relação resvalava.   Ele nunca entendeu.  Uma mulher só faz amor se houver amor, se houver afecto, se houver romance, história.  Se houver lastro afectivo e emocional, cumplicidade.  Caso contrário, uma mulher faz sexo.  E juro-te, é muito mais fácil fazer sexo, que amor.  O amor implica dádiva, partilha, presença.  O amor tem códigos secretos, linguagens, memórias, imagens.  Deixa rasto, marca uma mulher.  O sexo não.  O amor faz-se de perto ... não com lonjura ...
E ele deixou de ter tempo para mim ... para nós.
Havia um fosso cavado dolorosamente, já então.

Eu olhava-a em silêncio.  Conhecia a história ao pormenor.
Juro que vi raiva, mágoa e dor nas lágrimas que lhe afloravam os olhos e que custava a dominar.
Mantive-me em silêncio.  Se quisesse ser honesta com ela, ela sabia exactamente o que lhe diria. Talvez hoje não quisesse ouvir ... Era uma mulher profundamente sofrida ! Uma mulher decepcionada face à vida ... triste, quase desinteressada.
E continuei apenas uma ouvinte atenta.
As amigas têm estas partilhas, a qualquer preço.  Contra tudo e contra todos.  A solidariedade e o afecto, um afecto fraterno consegue torná-las muros de lamentações silenciosos.
Não julgam, não censuram.  Choram junto, vibram junto, festejam junto ... mas sem juízos ou recriminações.  Com um entendimento que eu acho ser coisa de género.

E depois, ele começou a afastar-se mais e mais.  Sempre tinha justificações que não me faziam sentido. Nem podiam.  Afinal, para mim, a união, a partilha das dificuldades é que poderia tornar-nos fortes, corajosos, vencedores.  Quando se quer, não se abandona.  Quem ama, não promete ... faz.  Sempre encontra forma de fazer.
Mas ele nunca o fará.  Eu sei que não conseguirá fazê-lo. Ele nunca será capaz de alterar o esquema cómodo em que vive.  Os homens acomodam-se.  Acobardam-se.  Não enfrentam.  Também é coisa de género. E auto-justificam-se, numa comiseração consigo mesmos, que dói ...
Arrastam uma infelicidade sem tamanho, compensam-na com infidelidades mais ou menos satisfatórias e romanceadas, e seguem sempre o mesmo caminho.  Continuam no mesmo trilho.  Aquele que conhecem e lhes é mais cómodo.
Achas que alguém pode viver assim ?  Achas que se suporta indefinidamente uma insatisfação, ano após ano, semana após semana, fins de semana, férias, festas ... só... completamente só ?
Isto é uma relação entre duas pessoas ?
Ele achava que sim, e que eu, porque o amava, o esperaria indefinidamente.  Eu continuaria ali sempre, se preciso fosse, até que a vida lhe permitisse alcançar os patamares que considerava imprescindíveis para assumir a relação.
E eu fui vivendo, de facto.  Tanto sofrimento, tanta mágoa na minha vida então ... como sabes.
Tanta insegurança, tanta dúvida e ansiedade.  Tudo tão escuro à minha frente.  Tantas lágrimas de impotência e desespero.  Solidão atroz.  Infelicidade que me roía as entranhas ...
Mas fui vivendo ... Só ... sempre só !
Das recordações, das loucuras, dos risos e das gargalhadas felizes, que cada vez pareciam mais longe.
Fui vivendo dos sonhos que continuava a sonhar ... Do mar e da serra, das falésias e das gaivotas sobranceiras.  Dos sítios e das memórias.  Dos cheiros, das cores, das palavras e da música que haviam feito o mágico da nossa história

As lágrimas romperam diques.  Eram de mágoa e injustiça....

Mas tu sabes, o cansaço domina-nos.  A dor corrói-nos e a angústia mata-nos.
Cheguei a hoje.  A minha vida parece-me uma fraude.  Sinto-me com o coração amordaçado.  E pergunto-me ... fazer o quê ? Perdi totalmente a fé e a confiança.  Nada disto deixa dúvida.  Sempre tudo foi rigorosamente coerente na sua postura.  Não há absolutamente nada a esperar.  Sempre tudo foi sem surpresas. Expectável.
E no entanto, tudo poderia ter sido diferente.  Daí, a raiva que sinto. A mágoa que me toma.  E tantas vezes lhe toquei os alarmes ... atenção, olha o rumo das coisas... atenção, eu não sou de ferro. Eu sinto-me só e desamparada.  Eu não tenho um ombro, um apoio ... nada ! E no entanto, nunca lhe neguei os meus ...

Diz-me ... o que faço com isto que sinto no meu peito ?  Para onde deito as rosas magoadas que tenho no coração ?  O que faço com os dias ensolarados, no azul do mar cavalgando as rochas ?  Com as matas, os pinhais, as flores vadias e insubmissas,  ou simplesmente os sonhos que sonhei ?
O que faço, quando Enya me canta docemente  que "só o tempo o sabe" ?...

Coisas de mulheres ... Todas diferentes e todas iguais.  Dramas vividos no feminino.  Dúvidas sem resposta.  Histórias sofridas, estradas percorridas vezes sem conta ... sem saída, bifurcação ou sequer escapatória !

Era uma tarde de Abril, com um sol amarelo adocicando a paisagem ...
Onde é que eu já ouvi algo semelhante ?! ...

Anamar

terça-feira, 20 de março de 2018

" AS MARGARIDAS SELVAGENS "





Elas já romperam por aí ...
Adivinho-as no alto das falésias, com este sol de Primavera com pressa de chegar, tímidas, humildes, singelas.
São elas, as margaridas não semeadas.  As que assomam quando Março adentra, quando Abril acena com as suas "águas mil"...

Não passeio faz tempo, no alto das ravinas, com o vento a despentear-me, com este azul meio sim meio não, pontilhado por farrapos brancos que se esqueceram de partir.  Com o mar lá em baixo em aguarela de azul e verde, e com as gaivotas vagueando no preguiçamento do costume ...
Vou pouco para além.
Tenho memória de as ver.  A elas, e às flores amarelas sem nome, no meio de outras mais ... mas isso parece fazer parte de uma vida que nem é já bem minha ...

As nossas existências são fatiadas em períodos, em épocas, em realidades.  Cada período, cada época, cada realidade pintou-se com as suas particulares cores.  Encheu-se dos seus particulares sons, palavras e acordes musicais.  Decorou-se com as suas especiais vivências, emoções e sentimentos.

Assim, quando lembramos a meninice, logo somos assaltados por este ou aquele pensamento, este ou aquele rosto, este ou aquele momento ...
Quando avançamos no tempo, a adolescência traz-nos outros sentires e outras emoções diversas.
A idade adulta, da mesma forma, faz-nos atravessar realidades qualitativamente diferentes, caracterizadas e povoadas por personagens diferentes também.
E cada espaço temporal por nós vivenciado nos acende mais e mais memórias, nos firma mais e mais apontamentos, todos pintalgados por aquela risada especial, adoçados por aquela ternura perpassante, sofridos por aquela mágoa que desceu, assaltados por aquele desencanto que nos tomou ...
Por isso não é à toa que neste puzzle da existência, esta peça só encaixa aqui, aquela outra, ali ...
E não é à toa que indelevelmente o colorido deste matiz, é pertença deste momento e jamais de outro.  O sol que brilhou naquele dia, jamais teve o mesmo brilho em mais nenhum outro.  As palavras trocadas então, pertencem só e exclusivamente àquele contexto e são irrepetíveis em mais nenhum outro !...

Por isso, o tempo das margaridas selvagens todos os anos chega, quando Março adentra e quando Abril acena com as suas "águas mil" ... Mas não é a mesma coisa ... ainda que eu possa vaguear por além, ainda que eu possa passear no alto das ravinas, com o cabelo em desalinho e com as gaivotas volteando no espreguiçamento do costume ...

As fatias do tempo vão-se cumprindo.  As folhas do livro vão-se desfolhando.  As nossas existências vão-se consumindo ...

Anamar

terça-feira, 20 de fevereiro de 2018

" SONHAR AINDA É POSSÍVEL ?... "



Na passada quarta-feira, dia 14, viveu-se mais um dia de hipocrisia social, criado pela exploração da hipocrisia comercial.

Já escrevi várias vezes sobre o dia de S.Valentim, dos namorados e quejandos, importação trazida de outras latitudes, aliás como outras semelhantes que me irritam e arrepiam ... a do Halloween, por exemplo.
Importada, assimilada, encaixada.
Nada de novo que não conheçamos, peritos que somos nas importações fáceis, sem critério e sem demais juízos de valor, de quase tudo o que nada tem a ver connosco, nossas raízes e cultura
.
E aí temos nós, jovens e menos jovens, milagrosamente derretidos como picolé em dia de calorina !
O comércio acena-nos com o êxtase da felicidade afectiva, ao alcance de uma comprazinha ainda que por vezes à última hora, de uma rosinha vermelha, de um qualquer presentinho inevitavelmente decorado com os corações "ensarampados"  (que estampam toda a profusão de cartões e cartõezinhos para qualquer  gosto ),  da caixa de chocolates em coração, do peluche com coração, da caneca com corações ... enfim ...

Cumprido qualquer um desses desideratos, tranquilizam-se os espíritos, porque o alvo a atingir perceberá como o amor é tão importante para nós !...
Os cartões até já trazem as dedicatórias escritas, o que simplifica a coisa ...

Depois ... bom, depois, temos 364 dias para recarregar baterias e  tomar fôlego para a próxima jornada valentinesca ...
As rosas entretanto secam ao ritmo do esquecimento das juras de amor seladas.  Os bombons comem-se e recheiam-nos com mais umas quantas indesejáveis calorias. O resto, repousa por uns tempos nas prateleiras ou desce directo às gavetas.
O amor ... o amor de valer a pena ... o amor espécie em vias de extinção ... esse, o amor a vivenciar, a adubar, a regar ... a valorizar  em suma, confina-se muitas vezes a um processo de intenções, e pouco mais.
Cada vez mais os sentimentos são plastificados, descartáveis, inconsistentes ... recicláveis.  Troca-se de amor com a facilidade com que se troca de projectos, de sonhos, de opiniões.
Estamos no tempo da volatilidade de sentimentos e emoções.  Estamos no tempo da desaposta, às vezes por bem pouco.  Estamos no tempo da desvalorização dos reais valores, em benefício de uma liquidez escorregadia, ajustável, cómoda, de relações de fácil consumo e afectos precários ...
Estamos na época em que parece não haver vagar para partilhar, dividir, saborear a beleza de um pôr de sol a dois, escutar os sons da terra a dois, ouvir o mar ... perdidamente ... dançar um "slow" na cumplicidade dos corpos colados, das mãos entrelaçadas, dos olhos enternecidos ...
Até porque penso que também já parece não haver "slows" ... desgraçadamente !

Bom, este meu texto foi meramente uma sinalização da data.
Nada traz de novo.  Constata, não questiona, não discute.
São meras convicções minhas.  Já as expus em anos anteriores.  A idade só mas reforça e alicerça.  Não mais !
É o que vejo e analiso à minha volta.

Gostaria de auspiciar futuros diferentes para as gerações que aí temos.
Gostaria de poder acreditar que as vidas teriam outros rumos, mais consistentes e de sorrisos simples.
Gostaria !...

O sonho ainda não nos está vedado ... não é ???...

Anamar