Estou no café de sempre., para o meu pequeno almoço do meio-dia, com um tempo atmosférico indescritível, lá fora, o que faz hoje, deste espaço, um particular abrigo, tornando quase bem agradável, estar aqui dentro, numa preguiça que é o prolongamento da que trouxe da cama, há pouco.
Quando estou em espaços públicos, a menos que esteja a ler ou a escrever, dou por mim a fazer algo que muito me agrada : observar à minha volta, olhar os rostos, ver as posturas, analisar comportamentos, ouvir inevitavelmente conversas, ser uma espécie de espectadora única, numa plateia onde a desmistificação do ser humano se desenrola, quase sempre, sem que ele próprio, o consciencialize.
Quando nos "travestimos" desta personagem, alheamo-nos de grandes pensamentos existenciais, de dúvidas metafísicas, despimo-nos de emoções nossas, angústias nossas, ou reflexões pessoais.
Estamos eremitamente isolados de nós mesmos, estamos em silêncio, e com uma concentração inevitável, esquecemos tudo aquilo com que vivemos, e nos atropela a tempo inteiro ... a nossa própria vida !
Este exercício silencioso, chamemos-lhe assim, repousa-me, relaxa-me, desperta-me a curiosidade e ensina-me muito, sobre o Homem.
Fala-me muito sobre a atitude do ser humano em público, sem que se dê conta de que é observado, sem estar sob os "holofotes" da crítica social, sujeito portanto, ao socialmente adequado a cada situação, sem disfarces, controle ou "maquilhagens".
São portanto, seres humanos que não se estão a "policiar" ...
Os adolescentes e mesmo os adultos jovens, mercê da geração a que pertencem, e dos tempos que atravessamos, em que a liberalização dos costumes é imperativa, não têm comedimentos ou contenções especiais, sobre quase tudo.
Permitem-se todo o tipo de atitudes mais ou menos exibicionistas, com o ar convencido, de que o mundo é realmente deles, e o resto é paisagem.
Não se coibem de exteriorizarem o que quer que seja, e como a idade ainda não lhes deu grandes ensinamentos, vivem a vida com uma confiança inconsciente.
Por isso, os casais jovens que dão os primeiros passos no amor, na aventura e na sexualidade, fazem questão de exibirem descontraidamente, toda a gama de sentimentos que experimentam, sem contenções, inibições ou timidez.
São pessoas que estão em fase de descoberta, ainda não marcados pelos "trambolhões" da vida, tendo por isso um entusiasmo sem barreiras, estejam onde estiverem, que nos "esfregam na cara", constantemente.
Não têm limites, controle social ou outros, que os detenham.
Por isso, levantam "voo" com toda a facilidade, da ambiência em que mergulham, ignoram-na, apagam-na e isolam-se do mundo que os cerca, como se nele apenas eles coubessem.
Não se importam com o adequado, e não se importam mesmo de confrontar os mais conservadores.
Depois, há os casais na faixa etária dos trinta e tal, quarenta e tais anos, a maioria com famílias já constituídas, com filhos pela mão, ou até já pré-adolescentes, que transmitem uma mornidão apática , na exteriorização do amor.
Tudo muito asséptico, tudo muito contido, rotineiro, sem encantamento visível, tudo muito cinzento ...
Uma espécie de amor já gasto ou a esgotar-se, um indiferentismo instalado.
Não há já cumplicidades visíveis entre as pessoas ... um lê o jornal, o outro, uma revista, pouco dialogam, como se já não houvesse assunto, controlam os filhos à distância, ou largam-nos por conta própria, permitindo que frequentemente façam disparates ... desde que não os macem ...
Esses, esqueceram há muito, o que é namorar ... E pronto !
O amor é entediado e entediante, sem novidade, já a precisar de reciclagem, eu diria.
Esta faixa etária é a que mais contribui para a estatística do número de divórcios, como sabemos, porque as pessoas parecem já terem-se dito tudo, e não terem nenhuma paciência mais, para acordarem diariamente e esbarrarem no mesmo rosto, nas mesmas manias, nos mesmos hábitos, nos mesmos cheiros que adoravam e já não suportam ...
E se não conseguem recriar outra realidade, normalmente o amor sossobra ... até porque eles acreditam piamente, que ainda têm infinitas oportunidades que a vida lhes oferecerá !
Como tal, sempre haverá mais marés, que marinheiros !...
Existem depois os casais idosos, que como rochedos, não se deixaram abater por ventos e temporais, e que se propõem dividir o crepúsculo da vida.
Vê-los, faz-nos sorrir, pela ternura, companheirismo, cumplicidade, entre-ajuda no caminhar, no atravessar da rua, no passeio higiénico diário, na colocação da canadiana no braço ...enfim ...
Falam alto, porque já não se entendem muito bem no que verbalizam. O ouvido endureceu, os olhos opacizaram.
Partilham um amor que desembocou numa profunda e indiscutível amizade, e fidelidade aos valores de bem e de mal, que tenham que enfrentar ainda.
Esses, estão "condenados" a arrastar os seus dias até ao fim, nesse registo. Esses, não desertarão jamais.
Mas esse registo, é uma forma sapiente de partilhar amor, uma maneira inteligente de partilhar companhia, uma forma feliz de acertarem o passo no caminho a percorrer, com a linguagem comum que os une.
E isso torna-os felizes, e não desejam nada além disso !
Depois, há as pessoas que se encontram na idade madura, serôdia diríamos, desadequada ( se isso tivesse algum figurino próprio ), que em contra-ciclo, dispõem do último terço das suas vidas, tentando reviver o romance, o amor, a redescoberta, com uma maturidade, uma sabedoria e uma disponibilidade particulares, de novo com o encantamento do marinheiro de primeira viagem, de novo com a ilusão de uma adolescência esquecida, e que sabem que esse é o seu derradeiro "canto do cisne" ...
Vivem o amor com outra disponibilidade, outra qualidade, outra exigência, outra entrega, outro compromisso, outra paz, outra plenitude, outra verdade ...
São pessoas que ainda não desistiram, que ainda têm energia e qualidade de vida, que ainda não embotaram sentimentos e emoções, e recusam não vivê-los de novo, se puderem ...
São pessoas que não deixarão que lhes roubem o último terço dos seus anos, exactamente os que deveríamos reservar, para saborear as conquistas de uma vida !
São pessoas que recusam ficar amargas, a remoer passados, ou a fantasiar futuros, e que querem absorver o presente até às últimas consequências.
Recusam parar, isolar-se, e esperar apenas que a velhice as tolha e as apanhe na curva, encontrando-as definitivamente, de mal consigo e com o mundo, revoltadas e insuportáveis !
São pessoas que evitam a todo o custo, morrerem lentamente !...
Mas estranhamente, esses casais, por serem de uma faixa etária já não jovem, assumem uma postura em sociedade, de pouco à vontade, como se estivessem a invadir terrenos que já não lhes seriam devidos, sofrendo por vezes a crueldade, da incompreensão das outras gerações, como se usurpassem direitos de afecto, de amor, liberdade, paixão até, que já não deveriam pertencer-lhes ...
É um amor incompreendido muitas vezes, por quem não entende que o amor virginal, possa voltar a ser reconstruído, reinventado, a ter uma feliz "reprise", muitos anos depois.
Sentem-se por isso, um pouco mal na sua pele ...
Trocam olhares cúmplices por sobre as mesas do café, esboçam gestos de ternura em leves toques das mãos, prometem-se com o olhar, uma felicidade que se reveste de alguma clandestinidade, e que os faz corar e sorrir timidamente, denotam a "atrapalhação" de uma criança, quando fez uma tropelia ...
E é tão lindo, este amor ... eu acho !
Lindo, e digno de um imenso respeito e admiração !
O respeito e a admiração devidos aos que se recusam a desistir, aos que ainda acreditam, aos que ainda sonham, e não prescindem de o fazer, aos que enfrentam e que lutam pelo direito ao último e pleno terço das suas vidas, como disse, que deverá beneficiar da mesma qualidade de antes, e deverá traduzir a solidificação de sentimentos, agora mais libertos, para se exprimirem com total entrega, disponibilidade, seriedade e verdade, de alguém que já palmilhou muito, que já perdeu muito, que já prescindiu de muito, que já sofreu muito ... e continua a apostar !...
Muito digna, esta forma de assumir o amor !!!...
Ironicamente, é a que tenta passar mais despercebida, é a que tenta denunciar-se menos, é a que tenta esconder-se muitas vezes, como inapropriada, é a que receia o ridículo ...
Inclusivé, é a que colide muitas vezes com opiniões e comentários familiares, inaceitáveis.
Porquê ???...
Anamar