quarta-feira, 9 de abril de 2014

" UM DIA ISTO TINHA QUE ACONTECER "

Hoje fala por mim, um homem que admiro, na formação pessoal e literária .

Mia Couto é quase sempre claro, objectivo, assertivo, realista ... e espeta-nos bem o dedo, no meio das feridas, daquelas que transportamos de trás, daquelas com que não estamos a saber conviver, daquelas cuja existência é uma pústula fétida e mal cheirosa, na inabilidade com que conduzimos a gestão do futuro, da geração que temos aí, e sobre a qual, Mia Couto diz TUDO !!!

Realmente, "um dia isto tinha que acontecer " ... e acontece-nos todos os dias, pais que somos duma camada de jovens ainda, muito frequentemente sem norte, muito frequentemente sem couraças, ambições, exigências, com valores mal colocados ... frívolos e vazios !
E arrogantes ! Maioritariamente arrogantes, também !

Li este texto, e como digo, Mia Couto fala por mim.
Pareço ler em voz alta a minha mente, e não haveria sequer uma vírgula, que carecesse ser acrescentada.

Assim sendo, reporto como muito importante, a  sua  divulgação, aqui, neste meu espaço.

De tudo isto, e esgaravatando no mais recôndito de mim mesma, apenas consigo encontrar um só argumento atenuante, da azia e do mau estar que estas reflexões me provocaram :  por um lado, todos sabemos  que os filhos não traziam  "livro de instruções" consigo ... por outro, aos pais, também nenhuma universidade de vida, deu regras claras e correctas de "know-how",  nas formas educativas adequadas !

Assim, cada um tacteou por conta e risco, o melhor que pôde ... cada um "desengomou-se" como soube, errando, julgando muitas vezes acertar ... cada um imbuíu-se do seu melhor saber, tacto e bom senso ... e navegou nessas águas !

A boa intenção é que conta, "quem dá o que tem, a mais não seria obrigado" .... Mas foi curto, foi manifestamente insuficiente ... subverteram-se os métodos correctos, em nome de muitos sentimentos, medos e valores nossos, erráticos !!!
E obviamente, um dia, isto tinha que acontecer !!!...

Estas, as nossas únicas justificações possíveis, porque a penitência, bem amarga e doída ... essa, estamos sem piedade a cumpri-la todos os dias, em todos os dias das nossas vidas !!!!...


Um Dia Isto Tinha Que Acontecer.


(por Mia Couto)

Está à rasca a geração dos pais que educaram os seus meninos numa abastança caprichosa, protegendo-os de dificuldades e escondendo-lhes as agruras da vida. 
Está à rasca a geração dos filhos que nunca foram ensinados a lidar com frustrações. 
A ironia de tudo isto é que os jovens que agora se dizem (e também estão) à rasca são os que mais tiveram tudo. Nunca nenhuma geração foi, como esta, tão privilegiada na sua infância e na sua adolescência. E nunca a sociedade exigiu tão pouco aos seus jovens como lhes tem sido exigido nos últimos anos.
Deslumbradas com a melhoria significativa das condições de vida, a minha geração e as seguintes (actualmente entre os 30 e os 50 anos) vingaram-se das dificuldades em que foram criadas, no antes ou no pós 1974, e quiseram dar aos seus filhos o melhor.
Ansiosos por sublimar as suas próprias frustrações, os pais investiram nos seus descendentes: proporcionaram-lhes os estudos que fazem deles a geração mais qualificada de sempre (já lá vamos...), mas também lhes deram uma vida desafogada, mimos e mordomias, entradas nos locais de diversão, cartas de condução e 1.º automóvel, depósitos de combustível cheios, dinheiro no bolso para que nada lhes faltasse. Mesmo quando as expectativas de primeiro emprego saíram goradas, a família continuou presente, a garantir aos filhos cama, mesa e roupa lavada.
Durante anos, acreditaram estes pais e estas mães estar a fazer o melhor; o dinheiro ia chegando para comprar (quase) tudo, quantas vezes em substituição de princípios e de uma educação para a qual não havia tempo, já que ele era todo para o trabalho, garante do ordenado com que se compra (quase) tudo. E éramos (quase) todos felizes.
Depois, veio a crise, o aumento do custo de vida, o desemprego, ... A vaquinha emagreceu, feneceu, secou.
Foi então que os pais ficaram à rasca.
Os pais à rasca não vão a um concerto, mas os seus rebentos enchem Pavilhões Atlânticos e festivais de música e bares e discotecas onde não se entra à borla nem se consome fiado.
Os pais à rasca deixaram de ir ao restaurante, para poderem continuar a pagar restaurante aos filhos, num país onde uma festa de aniversário de adolescente que se preza é no restaurante e vedada a pais.
São pais que contam os cêntimos para pagar à rasca as contas da água e da luz e do resto, e que abdicam dos seus pequenos prazeres para que os filhos não prescindam da internet de banda larga a alta velocidade, nem dos qualquercoisaphones ou pads, sempre de última geração.
São estes pais mesmo à rasca, que já não aguentam, que começam a ter de dizer "não". É um "não" que nunca ensinaram os filhos a ouvir, e que por isso eles não suportam, nem compreendem, porque eles têm direitos, porque eles têm necessidades, porque eles têm expectativas, porque lhes disseram que eles são muito bons e eles querem, e querem, querem o que já ninguém lhes pode dar!
A sociedade colhe assim hoje os frutos do que semeou durante pelo menos duas décadas.
Eis agora uma geração de pais impotentes e frustrados.
Eis agora uma geração jovem altamente qualificada, que andou muito por escolas e universidades mas que estudou pouco e que aprendeu e sabe na proporção do que estudou. Uma geração que colecciona diplomas com que o país lhes alimenta o ego insuflado, mas que são uma ilusão, pois correspondem a pouco conhecimento teórico e a duvidosa capacidade operacional.
Eis uma geração que vai a toda a parte, mas que não sabe estar em sítio nenhum. Uma geração que tem acesso a informação sem que isso signifique que é informada; uma geração dotada de trôpegas competências de leitura e interpretação da realidade em que se insere.
Eis uma geração habituada a comunicar por abreviaturas e frustrada por não poder abreviar do mesmo modo o caminho para o sucesso. Uma geração que deseja saltar as etapas da ascensão social à mesma velocidade que queimou etapas de crescimento. Uma geração que distingue mal a diferença entre emprego e trabalho, ambicionando mais aquele do que este, num tempo em que nem um nem outro abundam.
Eis uma geração que, de repente, se apercebeu que não manda no mundo como mandou nos pais e que agora quer ditar regras à sociedade como as foi ditando à escola, alarvemente e sem maneiras.
Eis uma geração tão habituada ao muito e ao supérfluo que o pouco não lhe chega e o acessório se lhe tornou indispensável.
Eis uma geração consumista, insaciável e completamente desorientada.
Eis uma geração preparadinha para ser arrastada, para servir de montada a quem é exímio na arte de cavalgar demagogicamente sobre o desespero alheio.
Há talento e cultura e capacidade e competência e solidariedade e inteligência nesta geração?
Claro que há. Conheço uns bons e valentes punhados de exemplos!
Os jovens que detêm estas capacidades-características não encaixam no retrato colectivo, pouco se identificam com os seus contemporâneos, e nem são esses que se queixam assim (embora estejam à rasca, como todos nós).
Chego a ter a impressão de que, se alguns jovens mais inflamados pudessem, atirariam ao tapete os seus contemporâneos que trabalham bem, os que são empreendedores, os que conseguem bons resultados académicos, porque, que inveja! que chatice!, são betinhos, cromos que só estorvam os outros (como se viu no último Prós e Contras) e, oh, injustiça!, já estão a ser capazes de abarbatar bons ordenados e a subir na vida.
E nós, os mais velhos, estaremos em vias de ser caçados à entrada dos nossos locais de trabalho, para deixarmos livres os invejados lugares a que alguns acham ter direito e que pelos vistos - e a acreditar no que ultimamente ouvimos de algumas almas - ocupamos injusta, imerecida e indevidamente?!!!
Novos e velhos, todos estamos à rasca.
Apesar do tom desta minha prosa, o que eu tenho mesmo é pena destes jovens.
Tudo o que atrás escrevi serve apenas para demonstrar a minha firme convicção de que a culpa não é deles.
A culpa de tudo isto é nossa, que não soubemos formar nem educar, nem fazer melhor, mas é uma culpa que morre solteira, porque é de todos, e a sociedade não consegue, não quer, não pode assumi-la. Curiosamente, não é desta culpa maior que os jovens agora nos acusam.
Haverá mais triste prova do nosso falhanço?


Anamar

terça-feira, 1 de abril de 2014

" FUGAS "



À medida que os anos passam, à medida que já andei mais do que tenho para andar, mais me afasto do ser humano e mais me aproximo da Natureza, e de tudo o que ela nos disponibiliza.

Neste momento da minha vida, há duas coisas que não só aprecio, como valorizo primordialmente, e me são imprescindíveis : por um lado, desde logo, poder usufruir de uma conversa amena, sem pressas, em paz, bem tranquila, com alguém que me interesse vivamente ... por outro, poder mergulhar na quietude que a Natureza pródiga e generosa nos oferece ainda, em pequenos retalhos deste nosso conturbado mundo !

De facto, poder estar junto de alguém com quem sinta afinidade, conversando de tudo e de nada, como uma personagem nua em cena, sem limitações, sem preocupações de retoques ou artificialismos,  quer na presença,  quer na palavra, quer no gesto ...

Poder mergulhar numa partilha de opiniões, de pensamentos, preocupações, ansiedades ... ou alegrias, ou novidades, ou dúvidas, ou projectos ... ou mesmo sonhos ... ( aquelas pequenas / grandes coisas que nos afloram à cabeça, com ou sem relevância, mas que são a nossa vida em cada momento ) ...

Poder sentir gente com coração, calor e cumplicidade ... aquela coisa invisível que passa e nos aquece a alma, nos sustenta o espírito ... numa identidade perfeita, na identidade que se reconhece, quando do outro lado, ao nosso lado, está alguém que amamos, seja o filho, o amigo, o amor ... alguém a quem dizemos tudo, sem receios das nossas fragilidades, porque não nos julga, apenas nos ouve ... e nos aluga o coração gratuitamente ...
em suma ... alguém que fala a nossa língua ...

Poder tudo isto, é sem dúvida, verdadeiro luxo da existência, privilégio da vida, que nos faz sentir ricos e sortudos ...

Por outro lado, confundir-me com a Natureza, miscigenar-me com a assombrosa generosidade com que nos surpreende diariamente, mês após mês, estação após estação, olhá-la simplesmente, ou mergulhar apenas no seu silêncio, é retemperador de forças, é equilibrante para a alma, e é uma alegria sem limites para o nosso ser !...

De facto, cada vez mais me afasto das aglomerações de gente, dos eventos sociais normalmente desinteressantes, entediantes, frívolos e vazios.
Lugares de arrebique e ostentação de "plumagem", de arroubos narcísicos e carícias para os egos enfunados, infelizmente.
Não passam quase nunca, de feiras de vaidades, despojadas de conteúdo de valer a pena.
São quase sempre, verdadeiras perdas de tempo !...

E refugio-me então, em espaços tanto mais interessantes, quanto menos foram sujeitos à intervenção humana. 
Os  locais mais selvagens, mais inóspitos, menos "trabalhados", são sem dúvida os mais gratificantes, preenchedores e enriquecedores.
O homem sempre estraga, sempre adultera alegando alindar, ordenar, disciplinar.
Como se a Natureza carecesse de disciplina, e não tivesse a sua, a própria, a harmonia ditada pelo Artesão que a arquitectou, jamais inigualável ou substituível !...

Por isso, sempre que posso, fujo da babilónia em que o Homem vive,  fujo do labirinto de betão, onde quase sempre o sol tem que pedir licença para entrar, onde o verde é regateado ou plastificado, onde o azul do céu se espreita "à surrelfa" por entre muros, onde os sons têm a agressividade do matraquear humano e do motor das máquinas, onde o ar tem o peso dos escapes poluidores, onde não há pássaros, não há insectos, não há o embalo manso da brisa no arvoredo, não há o aroma adocicado das flores espontâneas e coloridas ... muito menos o cheiro a terra molhada ...

... e procuro um pouco de tudo isto, e submerjo no cerrado da serra, atravesso os córregos da planície, subo ao alto das escarpas, e converso com a claridade esbanjadora do astro-rei, e sorrio com os farrapos brancos da espuma nos rochedos verdes, e sugo e deixo que a aragem se me entranhe até ao mais recôndito de mim mesma, e tactuo-me com as estrelas do firmamento escuro,  onde a lua altiva, impera ...

... para não definhar, entristecer ... morrer ...
Para ter a certeza que, apesar dos pesares, ainda estou viva !!!...

Anamar

quarta-feira, 26 de março de 2014

" ELES NÃO SABEM NEM SONHAM ... "


Chego a ter pena deles !...

Nasceram com um telemóvel na mão, cresceram rodeados de toda a panóplia de jogos electrónicos, vivem com as consolas de preços proibitivos, com os Ipads, os Iphones, os tablets, os mini-computadores, depois os computadores ...
Tratam por tu, e respiram os mecanismos da informática, usam as aplicações possíveis e impossíveis, desenham e pintam no monitor, fazem vídeos e colocam-nos no ciber-espaço, arquivam e tratam   fotos pessoais, mexem-se nas redes sociais ( vou acreditar que sempre com controle superior ... ) ... nas escolas não funcionam sem calculadoras de elevada sofisticação ... Enfim ...

Os meninos de hoje, vivem na sombra, nos redutos  fechados, que são os seus quartos, onde tudo acontece.
A brincadeira nos larguinhos e nos parques, ou à beira de casa, as corridas de bicicletas, as correrias infindáveis do agarra, ou a emoção das escondidas, não povoam os seus dias !

Os meninos cansam precocemente a vista, de a aplicarem horas a fio, nos pequenos écrans, sujeitos às radiações inerentes.
Respiram pouco oxigénio, porque os tempos  para caminhadas nas matas, a ida aos ninhos, ou os passeios à beira-mar, não fazem  parte dos seus esquemas de vida ...
Vivem encaixotados nas torres das cidades, preservados dos perigos da rua ... entregues aos perigos da Net mal controlada, ao desábito da leitura, que era potenciadora do sonho e da criatividade ... e vivem mergulhados em muita solidão !

Os seus amigos, são quase só os colegas de escola, que têm os mesmos horizontes que eles próprios ...
Não conhecem outras relações, de outros meios, de outras classes sociais.
Não convivem, como na minha infância, com o menino que tinha piolhos, ou com o menino que limpava o ranho à  fralda da camisola, com os meninos descalços, com fundilhos nas calças de suspensórios, ou com os joelhos a espreitarem no buraco dos calções !...
Não convivem com os meninos do bairro dos "ciganitos", lá do fim da vila, que vinham ao largo da minha avó, em busca de brincadeira e amizades fixes ...

Não atiram pedradas uns aos outros, quando a brincadeira azeda... raramente dizem palavrões ( pelo menos, quando há adultos por perto )...
Os meninos têm uma pálida ideia, da adrenalina dos pequenos riscos corridos, em disputas acaloradas de bola, em pequenas rixas, que  ensinam os primeiros limites das hierarquias nos grupos ...
Esfolam pouco os joelhos, partem pouco os braços, e lenham pouco as cabeças ...
Dentro dos limites, sempre foi saudável !...

Os meninos experimentam desde cedo, a solidão de demasiadas horas sozinhas.
Os pais trabalham, chegam tarde, estão cansados, sem paciência ou vontade ... e os meninos, ou se entupiram, entretanto, de actividades extra-curriculares ( para lotarem horários ), ou inventaram, como souberam e puderam, como ocupar as horas, quase sempre demasiado e longamente vazias !
Aos  meninos,  não  sobraram  horas, de  serem  verdadeiramente  meninos,  de  serem  verdadeiramente crianças !...

Os meninos não jogam mais ao pião, à cabra-cega, não saltam mais à corda, não jogam à macaca, e os carrinhos de rolamentos, não sabem nem sonham, o que foram ...
Os meninos não trepam mais às árvores, não caçam borboletas, não fazem  as rodas da "linda-falua", ou o jogo do lencinho ...
Sequer têm abafadores, guardados no fundo dos bolsos rasgados das calças ... Porque já não há berlindes, e as calças de hoje, também já não se usam rasgadas nos bolsos !!!  Nas pernas, sim ... nos bolsos, seria de mau tom !
Os meninos nunca fizeram uma fisga, com um pauzinho talhado a canivete, e não apanharam grilos.
Com um bocadinho de jeito, nem lhes conhecem o canto ...
Não soltam papagaios, depois de horas a fazê-los, com canas, papel de seda, cola e cordéis. 
Por isso, não se deliciam a subir com eles, pelo firmamento, quando o vento da colina, os eleva, como sóis, e com eles transporta a sensação sem limites, da mais absoluta liberdade !!!...
Não saltam ao eixo ... aposto.  E as meninas, nunca jogaram ao ringue ...

Eles não sabem nem sonham, como foi viver então !....
Mas também não sabem nem sonham, o que estão a perder, por não viverem, como então !...

Chego a ter pena deles !!!!...



Anamar

terça-feira, 25 de março de 2014

COM "PHOTOSHOP" DE VIDA ...



A velhice e as suas inerências, as suas limitações a nível físico e psicológico, a nível mental, ou simplesmente apenas a nível do aspecto que o "invólucro" exterior de cada um, exibe ... são devastadoras !

Eu  sei  que  isto,  é  mais  coisa  de  mulher,  mercê  da  exigência  que  esta  carrega  em  si,  como  símbolo  sexual que sempre ocupou e ocupa, na sociedade machista em que ainda vivemos.
Sei que para os homens, a beleza ou o desvanecer desta, as rugas, a gordura, o embranquecer do cabelo, não incomodam tanto, não angustiam, não são tão determinantes ... Os arquétipos sociais, são bem mais permissivos para eles .
Aceitam pacificamente o seu declínio, como óbvio e natural.
Por  outro  lado,   afecta-os  sim,  a  incapacitância   ou    a  quebra   de  vigor  físico , muscular  ou   sexual ( porque isso coloca em causa o seu perfil de macho dominante ), ou mesmo mental ( porque coloca em causa, o seu protagonismo enquanto líder, na célula social em que se inserem ) ...

Para mim, a velhice é um drama, já aqui o afirmei vezes sem conta.
A perda de todo o tipo de faculdades que me reconhecia há anos atrás, ou actualmente mesmo, incomoda-me, magoa-me, entristece-me, amargura-me ... atormenta-me ... aterroriza-me !
É uma causa perdida, eu sei, porque tudo o que tem a mão do tempo por detrás, é uma balança desequilibrada, é um jogo de cartas viciadas ...
E eu sinto o seu avanço, como uma medusa a estender tentáculos, que nada nem ninguém sustem !

Às vezes penso que esta raiva incontida, que não me leva rigorosamente a nada, obviamente advem de me sentir defraudada em termos de vivências, na minha vida passada.
Acho que, mercê da educação que recebi, da época em que vivi, de uma má administração, também por incapacidade minha, da vida ( certamente por inépcia e falta de inteligência ), não a conduzi de maneira a sentir-me plena,  hoje, tranquila e em paz, volvido o transcurso dos anos.
Creio que pulei etapas, sem as viver plenamente, creio que não esgotei até à exaustão, todas as experiências que me foram devidas, creio que me deixei condicionar excessivamente, por arquétipos sociais, por valores morais, por educação obsoleta e limitativa, contra os quais talvez me devesse ter rebelado, questionado, reagido ... face a condicionalismos que me abafaram, castraram e limitaram o percurso, contra os quais, hoje me insurjo.

Acho que me deixei embolar, desde demasiado cedo, num novelo crescente de exigências, responsabilidades, expectativas condicionantes  ( familiares, sociais, afectivas e outras ),  tendo embora um interior  pouco  submisso,  pouco  subjugável,  intranquilo  e  em  permanente  dialéctica  comigo,  e  com  os outros ...

E pronto, desemboquei num ser controverso, em  conflito  permanente, com um azedume persistente e idiotamente insatisfeito, contra alguma coisa, com um tamanho desajustado ao meu, alguma coisa que olha para o ser insignificante que eu sou, e sorri, num verdadeiro desafio  de forças, de  David contra Golias ...
Eu ... contra o avanço implacável, imparável e frenético dos tempos !!!

Bom, isto tudo, porque ontem assisti na televisão, a um programa sobre mulheres, de várias faixas etárias, que me fez reflectir.
Mulheres que envelhecem, dizia-se, "com classe e inteligência" ...
Mulheres belas em qualquer idade, mulheres em paz, equilibradas, na assunção plena das marcas inerentes à idade que já têm,  aos 47, 57 e 74 anos ...
Mulheres, que "sem truques ou batota", dizia-se também, esbanjavam beleza, irradiavam claridade, ostentavam conforto interior, equilíbrio  e alegria !...

Ex-modelo e empresária de sucesso, as duas primeiras ... A terceira, não sei ...

Não é difícil imaginar-se, o nível sócio-económico das personalidades entrevistadas.
Aliás, a reportagem mostrava-o claramente.  Casa "provocadoramente" sumptuosa ( Cascais / Sintra ... verde e mar ... ),  estatuto bem classe alta, luxo e requinte, a transbordarem  em todo o aparato que rodeava a reportagem ...  Tudo muito "clean", muito "asséptico", muito "adequado" ...

Neste contexto, talvez seja fácil, aceitar-se como uma mais valia, a sabedoria, a maturidade, a ausência de sobressaltos, que  cada  dia  acrescenta  a  estas  vidas ... no  acesso  a  uma  velhice, seguramente  cinco estrelas !...
Talvez seja fácil imaginar-se, que se não há dinheiro a contar, se não há noites mal dormidas com preocupações acrescidas, se não há desemprego por perto, se não há prestações a serem vencidas e sem se ter como, se não há angústias condicionantes sobre o futuro do futuro ( e o futuro pode ser logo, o dia seguinte ... ), talvez não seja difícil imaginar-se, dizia, que estas mulheres, possam de facto olhar o espelho e encararem o dia de amanhã, calmamente, orgulhosamente, sem perturbações, perplexidades e raivas ... mas com uma plenitude gratificante, com um colorido ainda promissor, de cores não empalidecidas... em suma, com expectativas valorizáveis e preenchedoras, dos respectivos egos.

"Assim, também eu !... " - diria o outro.  Qual o real mérito ?  Mulheres de sucesso, até na forma pragmática de encararem  a vida ...  a "custo zero" ???!!!...

Só que ... não são seguramente paradigmas de nada, estes exemplos. Não representam, nem se podem rever seguramente, em mulher nenhuma  REAL, neste país real em que vivemos  ...
Não são representantes, nem longinquamente, da mulher comum que nos cruza o caminho ...
Em suma ... de nenhuma mulher à séria, sem "photoshop" de vida !!!...


Anamar

domingo, 23 de março de 2014

" A MATA "



Na mata havia um casal de melros, uma borboleta branca, e uma única mimosa ...

Demorei a redescobri-la, e pensei para mim, que na devastação que por lá provocaram, ela também teria ido.
Mas não !
Verdade seja, que seria uma vergonha, uma mata, sem mimosas !...
Vi-a há alguns dias, porque as bolinhas amarelas, começaram a abrir e a tornarem-se novelinhos de algodão, fofinhos  e  cheirosos, dependurados pela ramagem.  Faz de tudo para espreitar o sol, na clareira onde habita ...

As flores também deitaram o nariz de fora.  São brancas, amarelas e lilazes.
As azedas, ora abrem os cálices às abelhas, se o sol der a sua graça, ora ficam espremidinhas e dormem, bem fechadas, se o dia acinzenta, e alguma chuva miudinha desce.
Atapetam tudo, e na companhia  dos dentes de leão, dos pampilhos, das biscutelas, ou dos malmequeres silvestres, todos amarelos ( como são as primeiras flores que despertam no início das Primaveras ) ... dos folhados ( delicados bouquets brancos ), ou ainda das vincas ou  erva donzela, azuis arroxeadas, decoram e perfumam aquilo por lá ...

E depois, há o silêncio.
Esse, não tem preço, porque é um bem em vias de extinção, com um valor inestimável ...

Gente ... gente não encontro.
E é uma paz ... porque acho que gente, estragaria todo o contexto !

Ando com pouca paciência para encontrar pessoas ...
Estou mais no registo do urso pardo, que vagueia pela floresta, sozinho, com todo o tempo do mundo, dia após dia, seguindo a determinação da sua natureza biológica, simplesmente.
E não parece infeliz, o urso pardo !...

"Infeliz" ... que engraçado !...
Só o ser humano conota os estados de espírito, as contrariedades, as frustrações, as ansiedades, as amarguras ... com felicidade, ou infelicidade.
Felicidade ou o seu contrário, essas coisas que não existem, já aqui defendi, e que não passam de uma tradução, em linguagem humana, do grau de insatisfação, de desequilíbrio, de desajuste, de desarmonia, que o Homem experimenta ...
E complica a droga da vida !...
Coloca a existência, permanentemente na corda bamba, no "tem-te não caias ", do equilibrista de circo ... sem rede por baixo !...
Tudo, porque o Homem tem miolos, dentro da caixa negra que lhe colocaram por entre as orelhas.
Miolos, que são os "complicadores" de serviço, maioritariamente ...
Depois, quando resolvem entrar em negociações com o quartel-general, que está bem no meio do peito, fica tudo lixado !
Há um equilíbrio de forças "desequilibradas", tipo guerra fria, porque aqueles dois centros de resolução, estão quase sempre de candeias às avessas, de costas voltadas ...


E há então uma degladiação de forças, na capacidade decisória.  Há uma guerrilha constante, há guerra de emboscada, há golpes baixos, há toda uma panóplia de safadezas, que aqueles dois fazem um ao outro.
Parecem o governo e a oposição ...
Normalmente, se os miolos mostram um indicador de prudência, perante determinada  circunstância , o coração manda as tropas p'ra frente, com uma inconsciência que só ele, de facto, exibe ...
Outras vezes, este, sabe perfeitamente quão devastadora será esta ou aquela decisão, mas os miolos ordenam, que custe o que custar, é por ali, o caminho !
E aí temos nós, o ser humano, nesta maré de recuos e avanços, que destrói, que desgasta ... que mata !...

Por isso, eu ando cansada de gente que nem eu !...

Gosto mais de bichos, de plantas, de marés, de chuva, de vento e de sol ...
Gosto mais de nuvens, que embora sempre em fuga, constroem castelinhos lindos, no firmamento ;  pintam carneirinhos, em rebanhos de algodão pelos céus !...
Gosto mais da lua, que conversa comigo, e nunca me questiona, do sol que me alimenta os sonhos ... e das estrelas também, que como eu, fojem deste céu sem cor, e emigram para o deserto ... onde eu também acho que se está bem ...

Ah ... e de florestas ... de matas ...
Gosto da simplicidade, da harmonia, da paz e da alegria despreocupada e irreverente, da mata ... mesmo que só tenha um casal de melros, uma borboleta branca, e uma única mimosa !!!...

Anamar

sexta-feira, 21 de março de 2014

" PRIMAVERA VERSUS FELICIDADE "



Já é Primavera !
Ontem, antes das cinco da tarde, o posicionamento dos astros determinou mais um equinócio, o equinócio de Março, potenciador das mudanças sempre auspiciosas das condições atmosféricas e naturais, que nos rodeiam.
Tivemos um Inverno excessivo, que, reforçado pelas condições socio-políticas em que vivemos, nos invernou a todos, e nos sugou a energia da esperança, da fé, e da paciência que lhe assiste.
O pessoal hibernou, ou pelo menos, eu tenho-me sentido hibernada !
Dias sem nenhum colorido, que é como quem diz, sem aquelas pequenas / grandes coisas, que nos injectam flashes de adrenalina, que de repente acendem uma luz intensa na nossa vida, que de repente nos fazem acreditar que tudo isto tem potencial para andar, e não é apenas material de sucata, a enferrujar progressivamente com os anos !...
E quando estamos em alta, neste estado de graça, tudo tem de facto graça, e faz sentido de novo.

Enternecemo-nos com a árvore à nossa porta, que, de um dia para o outro, se cobriu com pequenos borbotos tenros e verdes, que prometem as primeiras folhas a despontar, e os primeiros botões que tomarão cor, quase logo ...

Enternecemo-nos e aconchegamo-nos, no calor fraco de um sol que ainda não se atreve muito ...

Enternecemo-nos com o esplendor de um céu  azul diáfano, sem nuvens, ou com a frescura de uma brisa, que é mansa e nos acaricia  ... não nos açoita, como as rajadas do vento agreste, que ainda há um mês soprava ...

Enternecemo-nos com o pipilar das aves, afobadas no acasalamento, porque Março é época de "ninho", de família, do milagre da vida se renovar ... ou com as borboletas multicores, recém-chegadas dos casulos, que voejam, livres e despreocupadas ... apesar do efémero de vida que lhes é destinada, cumprindo o ciclo biológico para que estão programadas ...

Mania, de atribuirmos sentimentos humanos a tudo !...

Ontem, sobre a Primavera, uma frase sábia, dizia : "Se o Homem "pensasse" como o pássaro, saudava cada manhã, com uma linda canção !..."
Privilégio de não ser Homem, de facto, estou crente !...

Ontem também se assinalava, supostamente associada à Primavera, outra efeméride ... o Dia Mundial da Felicidade.
A felicidade, que não é um sentimento, mas um estado de alma, dizia um especialista nestas coisas, no telejornal da noite.
É um vector resultante, da consonância entre equilíbrio, harmonia, realização, plenitude ... bem estar, paz !...

As pessoas são felizes ou infelizes, por uma predisposição biológica.
De facto, quanto maior for a capacidade de procesamento  e tratamento desses sentimentos e estadios pessoais, mais facilmente o indivíduo atinge o Nirvana, em termos de felicidade, sendo que a infelicidade que as pessoas dizem sentir muitas vezes nas suas vidas, não é infelicidade ... mas sim, insatisfação !

A maioria das vezes, está-se insatisfeito por este ou aquele motivo,  com tanto mais frequência, quanto mais alta colocamos a fasquia das nossas exigências.
Consequentemente, desencadeia-se aquele desajustamento que nos deixa perdidos em maré de turbulência, e sem ânimo de prosseguir ... e julgamo-nos profundamente infelizes.

Esta tese, é corroborada efectivamente, quando pensamos na natural e espontânea felicidade, experimentada e exibida, incidentemente  nos povos menos insatisfeitos do globo, na sua vivência diária.
São exactamente, aqueles que, por não terem necessidades especiais, porque a elas não têm acesso, não lhes sentem a falta, não são determinantes nas suas vidas, não se amarguram com a sua ausência.
E é por essa razão, que a civilização dita primeiro mundista ( por que todos, em última análise, ironicamente lutamos ), a sociedade de bens e regalias, que nos sufoca e nos trucida, a sociedade que nos promete o bem estar, um mundo dourado de "felicidade" ... é aquela que gera a insatisfação dos misantropos e dos deprimidos em número crescente, dos que esquecem progressivamente o sorriso e a alegria .,..
É aquela que alberga  seres mais e mais descoloridos e escurecidos, por um mal estar progressivo, por uma solidão devastadora, uma apatia e uma indiferença , incapazes de enxergar e valorizar já, o verdadeiramente merecedor ... Uma tristeza que frequentemente faz sucumbir ...

Afinal, uma sociedade de insatisfeitos / infelizes !!!...

Anamar

terça-feira, 18 de março de 2014

" VÁ-SE LÁ SABER PORQUÊ !..."



Daqui a pouco é Páscoa ... daqui a pouco é Verão, e depois ... daí a pouco é Natal, !
E  pufft !.... Mais outro ano !...
A vertigem do tempo é qualquer coisa de loucos !...

Este tempo de Páscoa, vá-se lá saber porquê, chama-me ao Alentejo.

Não  sei  se  é  porque  os  campos  verdejaram, e as  flores   silvestres  os  adornam  despudoradamente ...

Não sei se é porque as cegonhas regressaram às suas antigas "casas", e as chaminés, os postes eléctricos, os locais altos e protegidos, ponteiam o céu com o branco da sua plumagem, encarrapitadas a desníveis ...

Não sei se é porque o sol ainda não castiga os campos, e apetece agarrá-lo todo, por inteiro, e prender a sua luz, que nesta altura é particularmente doce e luminosa, e com ela nos envolvermos e aquecermos por dentro ...

Não sei se é porque a brisa mansa que perpassa, traz em si todos os aromas, de tudo quanto é bravio, e se engalana de cores reinventadas e cheiros redescobertos ...

Não sei se é porque à tardinha, as andorinhas, em labuta incessante, rasam a planície, em volteios de "prima-dona", na busca de gravetos para os ninhos ...

Não sei se é porque as memórias passadas começam também a fervilhar, com a mesma pujança emocionante, com que os borbotos re-adornam os galhos das árvores adormecidas, e que num milagre, acordam ...

Não sei se é porque , a  terra púbere, em pousio, castanha e ocre, se assoma de onde em onde ...  E sobe e desce em amenas encostas, com ondulação espreguiçada, salpicada pelas vacas no pastoreio ... E  estas, dormem e amodorram, enquanto a melopeia dos chocalhos se ouve ao longe, e ecoa na planura deserta ...

Não sei se é porque as badaladas dos sinos nos campanários dos vilarejos e aldeias, perdidas naquele fim sem fim, nos pacificam a alma, nos lavam o coração e nos purificam o ser ... com avé-marias dolentes, na fresca da tarde ... e no céu em crepúsculo, a "estrela do boeiro" manda recolher o gado ...

Não sei se é porque aquela terra sem horizontes ou limites, berço do sol ao dormir, me acena com a liberdade, a paz, e o embalo de um regaço de mãe ... permitindo o reencontro comigo mesma ...

Não sei se é porque aquele silêncio de interioridade, desperta a menina azougada e feliz que eu era ... desperta a moreninha das tranças, rabo de cavalo e joelhos esfolados ... que me fugiu ...

Não  sei  se  é  porque  os  meus  pais, os  pais  dos  meus  pais,  os  meus  amigos, e  os  meus  "todos" ( e todos eram muitos, ainda assim, naqueles anos idos ... ) estão por lá, vão sempre estar por lá !!!...

Não  sei  se  é  porque  os  meus  "sítios",  por  mais  que  os  disfarcem, os  mudem, os  componham  ( dizem eles ) ... estão iguaizinhos, estão intocados, inalterados, com a força do mesmo sangue a correr-lhes nas veias ... porque eu, afinal, sempre continuei lá ...

Não sei se é porque, de quando em vez, os sonetos de Florbela , na minha cabeceira  adormecidos, saltam e povoam os meus sonhos ...
E ela vem contar-me histórias nossas, da charneca em flor que eu sei, das paixões e das mágoas ... que eu também sei ... porque ambas somos mulheres ...

Não sei se por alguma destas razões ... Não sei  se por todas elas ...
Sei lá !!!...

Tenho que voltar ao Alentejo !!!...

Anamar

domingo, 16 de março de 2014

" QUANDO AS MAGNÓLIAS FLORESCEM "



No Porto, as magnólias já voltaram ... lê-se em relatos locais.  Anunciam a Primavera, dizem .
Primeiro, as brancas ... depois as rosa, mais claras ou  mais intensas, florescem, quando os primeiros raios de sol, de um tempo que precisa convencer, se anunciam.
O Inverno ainda não abdicou por completo, percebe-se nas entrelinhas das neblinas, ou das nuvens esparsas, que de repente se impõem, num céu anteriormente azul.
Mas já não tem  a convincência de há semanas atrás.
Também, este ano, brincou e judiou, impiedoso, mostrando bem quem mandava por aqui ...
O que é facto, é que o ameno das temperaturas já nos envolve, e o sol irreverente, leva-nos a deitar a cabeça de fora  como os caracóis, dos muros de pedra sobre pedra, lá nas encostas.

Não me ocorre, que em Lisboa haja avenidas, adornadas de magnólias.
Não me ocorre, que os seus cálices, abertos ao céu, parecendo esperar que alguém poderoso, neles pingue um qualquer licor afrodisíaco, por aqui ornem praças ou ruas.

Em Lisboa, temos os jacarandás, que são igualmente espectaculares, e que formam abóbadas de lágrimas roxas.  Apenas, noutra época do ano ...
As suas flores têm também uma beleza ímpar, mas creio que são desprovidas de aroma, ao contrário das magnólias que nos inebriam pela beleza, cheiro e aristocracia ...  Sim, porque a majestade das magnólias, encerra uma sobranceria de distinção ... confere-lhe uma categoria de flor incomum !

Tive uma única magnólia, na minha vida, num jardim do passado.
E ainda assim, não passou de uma incipiente juventude, enquanto eu pude admirá-la .  Três, quatro cálices desabrochados ... já era uma festa.
Era rosa, entre o rosa e o lilás. Delicada !!!...
Hoje, não sei se essa magnólia alargou braços, ganhou corpo, se tornou mulher parideira de cálices apontando o firmamento ...
Não sei ... não mais a vi !

Se eu tivesse um pedaço de campo, neste Março promitente de Primavera, hoje perder-me-ia pelos seus carreiros e veredas ;  saltitaria de pedra em pedra, saborearia a doçura deste sol pouco ousado, dançaria nesta brisa, para cá e para lá ... ou só para lá, porque ela transporta-nos  mais e mais, além.
Recuar não é próprio desta aragem.  Recuar tem a ver com os ventos de temporal, redemoinhantes, dos Invernos agrestes, que sempre esbarram connosco.
E deixaria que os cheiros das verduras e flores silvestres, que pintalgam a paisagem, me envolvessem e me acariciassem ... solta, solta por aí, como as aves que também são livres, e não carecem de autorização para chamar o mundo, de seu !

Mas não !
Estou e continuo no betão.  Tenho como paisagem, colmeias de morte, de solidão e indiferença.
Prédios com olhos que não riem.  Varandas, que nem uma flor geram.  Pássaros que não poisam, porque não há onde.  Nesgas de azul, onde o horizonte ainda permite retalhos de sol, em fuga pelos meandros das sombras agigantadas, que os "monstros" que desafiam os céus, projectam !
Riachos que só gorgolejam nos meus ouvidos.
Zumbidos de abelhas, que apenas povoam a minha imaginação e a minha vontade indomada, de sonhadora inveterada ...

Que  saudades  duma  cancela  ao  fundo  do  caminho,  por  onde  o  roseiral   voluntarioso,  assomasse !...
Que saudades de deixar o cabelo em desalinho !... Que saudades de lançar um xaile pelas costas, de aninhar no seio, a primeira flor que a beira da estrada me oferecesse ... e poder ir por aí, com os pés descalços na erva fresca ... sem rumo e sem destino !!!...
Que saudades da liberdade no espírito, da harmonia e da paz no coração ... da plenitude bebida na simplicidade das coisas !...


Anamar

sexta-feira, 14 de março de 2014

" A MULHER, O ESPELHO E REFLEXO "



Deambulando por aí, deparei-me com este artigo, bem interessante, escrito também por uma mulher.

Achei-o curioso, e tanto mais, porque vinha o mesmo, como que em continuidade do que eu escrevera no post anterior.
Parecia que o meu pensamento, e o da autora, se haviam cruzado !
Trata-se dum texto muito bem escrito, muito lúcido, muito objectivo ...
E  com  um  toque de extrema  sensibilidade,  na  delicadeza  das  abordagens, devido  evidentemente, a uma  alma  e  a um  espírito femininos !

Achei-o merecedor de divulgação, e ofereço-o em particular às minhas leitoras, obviamente. Espero que o apreciem.


Por: Benedita Enildes de Campos Corrêa

A mulher, o espelho e reflexo


O tempo passou, a idade avançou e é como se eu tivesse atravessado a fronteira do tempo entre a juventude e a maturidade quase sem me dar conta. Agora, é mais fácil entender os idosos quando dizem que o tempo passa tão rápido.

Aos 47 anos, a relação com a vida mudou. Com o espelho também. Às vezes, ele parece refletir quase a mesma imagem de tempos atrás. Outros momentos, todavia, o espelho traz à tona um novo rosto, revelando como de uma só vez, abruptamente, as mudanças ocorridas no decorrer dos anos.

Agora, diante do espelho, percebo-me de forma diferente: uma expressão com a sua própria unicidade, a qual não rotulo mais, de bonita ou feia, como antes. Aos poucos, vou desapegando-me da imagem física. Afinal, nós não somos o corpo. Questiono-me acerca do mistério da alma contido nas camadas profundas do corpo. Quem é esse Ser na sua totalidade que o corpo cobre e testemunha tudo o que acontece? Quem olha através dos meus olhos para o espelho? Quais as faces que permanecem desconhecidas dentro de mim e que ainda poderão ser reveladas?

Faço uma  retrospectiva no tempo e vejo meu corpo como um palco no  qual transcorreram  cenas de lutas com vitórias e derrotas, resistências e entregas, atos de bravura e fraqueza, encontros e desencontros, encantos e desencantos,  risos e prantos, gritos e silêncios, amargores e êxtases.  Cenas que não tiveram ensaios prévios, acontecimentos que deixaram uma forte experiência e muita gratidão com tudo que me remeteu para dentro de mim, fazendo-me buscar o encontro comigo mesma, sem o qual é impossível o nosso encontro com o Todo. 
Experiências vivenciadas neste corpo que me foram desamarrando, libertando de ilusões, bloqueios e de muitos apegos, dando-me a impressão de ter vivido mais de uma encarnação num único corpo. Quantas transformações! Em contraste com a experiência adquirida, dentro há uma jovialidade que transcende tempo e forma. É como se houvesse em  mim várias mulheres de idades diferentes - de uma  criança a uma anciã. E uma disposição para confiar na vida que o mergulho em mim mesma através do tempo fez acontecer.

A dedicação ao autoconhecimento me abriu um espaço de profunda intimidade e compreensão do mundo interno, o que tem me permitido lidar com as mudanças físicas de um modo mais natural, apesar, é claro, de o espelho testemunhar alguns conflitos e contradições, que é normal em toda fase de transição, em especial, na vida da mulher. Quando entramos no nosso  interior entendemos melhor a relação entre corpo, mente e energia. Não nos tornamos presas fáceis dos desejos e das loucas demandas da mente, bem como das exigências desta nossa sociedade de consumo que cultua a imagem do corpo de forma extremamente exacerbada, tornando-se uma insanidade.

Nesta nova experiência com o espelho, o corpo e o reflexo, chegam-me as palavras do querido amigo, Dr. Paraná de Oliveira, o qual deixou o corpo aos 89 anos:  “ter o senso de beleza mais desenvolvido é uma qualidade excepcional. Não é qualquer um que a tem. A beleza  física  não tem muito mérito, é transitória, passageira. A beleza  interior é permanente,  porém, mais difícil de encontrar e atrai a simpatia das pessoas. Ela é obra pessoal  do titular. O titular a constrói. E para aqueles que gozam da beleza interior, o  corpo pode  não ser  tão  bonito, mas sempre se descobre um ângulo que o favoreça, mesmo com a idade. É como o fotógrafo que concebe o ângulo mais bonito da mulher para fotografá-la e termina descobrindo aquele que a deixa mais bela.”
Durante um satsang com Kiran Kanakia na Índia, místico sufi indiano, alguém  lhe perguntou como aprender a permanecer em harmonia com o corpo  quando este vai  envelhecendo.  Eu fiz um registro de  parte da sua mensagem:

“Envelhecer é um fenômeno biológico natural do corpo. Compreenda o corpo, as suas demandas, o que e o quanto ele necessita neste momento. Ouça-o. Esta compreensão da linguagem e da situação do corpo o mantém em harmonia. Uma vez que você está em harmonia com o corpo, há uma  beleza natural nele com a idade também. Não há nada errado em aceitar que o corpo está ficando velho. Aceite isso. Uma vez que você aceita não vai forçar o corpo a se tornar jovem.  Há uma aceitação harmoniosa do envelhecimento.

Não há beleza  somente nas pessoas jovens. Há beleza nas pessoas idosas também. Beleza é a harmonia que está no corpo. Beleza não é a forma do nariz,  dos olhos, do rosto, do corpo. Beleza não está na idade. Beleza está na harmonia. Harmonia é beleza. Uma vez que você vai entrando em harmonia com a vida, há uma beleza interior que ressalta. Se você permanece em harmonia há uma beleza natural e fica livre de todo esse medo de envelhecer.”
Tenho aprendido com Kiran que a compreensão e a aceitação da natureza da vida do jeito que é, interna e externa, nos conectam com a harmonia - nosso estado natural. Que é possível viver com celebração, da infância à velhice. A Existência não é miserável e a cada momento nos dá muitos presentes. Só precisamos estar de olhos abertos para enxergar.

À medida que o tempo passa, dou-me conta de que a melhor fase  é aquela em que nos inserimos na vida com totalidade e consciência. Então, permanecemos no aqui e agora, onde aspiramos o perfume da sagrada comunhão com a Existência. Vivendo a idade da maturidade constato haver certos frutos que, normalmente, só podem ser colhidos a partir desta época. E em qualquer idade é possível descobrir o nosso melhor ângulo, mesmo diante do espelho.

Dou graças à Vida por tomar consciência de que dentro do corpo há aquela parte que não envelhece, que nunca morre. E agradeço a Deus a paz, a harmonia, a beleza e, por que não, o Mistério de cada dia.


Anamar

terça-feira, 11 de março de 2014

" A ESTRANHA EM MIM "



Olho-me no espelho, e não sei ver-me.
Olho aquela imagem, lá por detrás dele, e nela sobrepõem-se mil outras, que são e não são, minhas !
É estranho conviver, com a estranha que se desenha por detrás daquele vidro, postado bem na minha frente.
Não consigo perceber se estou gorda, se estou magra, se envelheci, se ainda tenho frescura no rosto ...
Não  consigo  distanciar-me  o suficiente  para  dizer, como  facilmente digo daqueles com quem me  cruzo ; " Ah, está tão diferente !" ... "Ah, está tão caída !"... " Ah, está mais novo !"...

Todos esses, são entidades fora de mim, que eu posso tocar, que não têm pontes físicas ou psicológicas comigo, com os quais não tenho um "compromisso" emocional, assumido.
É como quem olha um quadro.  Sem nenhuma envolvência emocional, consigo ver, analisar com objectividade, pelo menos, a minha objectividade ... e raciocinar a propósito, fazer a propósito um juízo de valor, uma apreciação !

Esta imagem aqui, atrás deste vidro manipulador, joga comigo de gato e de rato, não se corporiza na verdade, não consigo afastar-me dela o suficiente, para a analisar com olho clínico de observador atento, ou olho perspicaz de detective.
Aquela ali, devo ser eu ... mas na verdade, não me deixa margem de isenção, para que eu raciocine sobre ela, porque com ela estou envolvida.
É efectivamente, uma estranha em mim !...

Somos obrigados a conviver com um invólucro, desde que nascemos, até que o transportamos à porta de saída.
Um invólucro em permanente mutação, que às vezes nos agrada, noutras nos decepciona.  Que às vezes nos angustia, noutras nos enfurece. Com que guerreamos, com que nos empolgamos ...
Por vezes torna-se muito pessoal e próximo.  Noutras, fica desconhecido, distante, rejeitado, porque não queremos sequer, ter consciência dele.

Creio que projecto no espelho aquilo que quereria ver.
Se calhar, as outras pessoas, também !
Queremo-nos jovens, e com frequência, sem capacidade de senso crítico, permitimo-nos agir como tal !
E não temos distanciamento suficiente, para que percebamos que somos aquela imagem, e não a outra, a que temos no espelho cerebral !

O ser humano, quase sempre, afasta o que não quer, por defesa, por comodidade, desagrado, por insatisfação ... por sonho ...
Quantas vezes olhamos numa revista cor-de-rosa, um rosto obviamente bonito ( são ... ou põem-nos, quase todos ), e pensamos : "aqui está o corte de cabelo que me deixaria deslumbrante !  Tenho que fazê-lo ! "
Mas depois, quando caímos em nós, percebemos que mesmo ostentando o cabelo daquela forma, na ausência daquele rosto, jamais ficaríamos deslumbrantes, como a pessoa em causa, obviamente.

Não sei se as outras mulheres são assim também, ou se serei só eu, que tenho a auto-estima aos calcanhares, sou tonta, ou deliro ...
Mas isto é consequência única, de um "equívoco",  pelo qual  recusei momentaneamente assumir a minha real imagem, porque a enjeitei e não me gratifica !...

Depois, quando reflicto sobre estas minudências ridículas, envergonho-me do ser pequenino que revelo ser, ao deixar aflorar tanta tonteria ;  mas logo a seguir, incho como algumas aves fazem, puxando dos "galões", para me impressionar.  Acaricio o ego, e digo : " o que na verdade conta, não é a imagem exterior de um ser humano, mas sim o que ele guarda em si mesmo, enquanto ser humano que é.
O que conta é a sua essência, o seu conteúdo ... não, o seu continente !
O que conta é a sua genuinidade, a riqueza interior, e não a frivolidade ...
E um ser bonito por dentro, jamais poderá ser feio e escuro por fora.  Um ser com um interior rico, forçosamente reflectirá essa luz à sua volta, não sendo necessária  muita perspicácia, para que isso se denote e perceba ! "...

E patati, e patata ...

E encharco-me com estas máximas sonantes, para me redimir e tranquilizar ...

Como se vê, este hoje, foi um post "da treta" !
Mas as pessoas são assim mesmo, creio ;  no seu dia a dia,  flagram-se com posturas, atitudes, pensamentos irrelevantemente caricatos, que são isso mesmo, irrelevantes e caricatos, frívolos, atingindo as raias do ridículo.
De tal forma que, quando os consciencializamos, os achamos profundamente idiotas ...

Mas olhem, e por que não falar também deles, se eles, embora pouco ortodoxos, pertencendo à área menos nobre do indivíduo, embora pertencendo ao "avesso" do socialmente adequado, embora estando na "ourela" de nós mesmos ( e a ourela, é o que não convém nunca ser exibido ) ... também fazem parte da minha imensa imperfeição, enquanto mulher ??!!...

Portanto, não salvei o mundo, não publiquei um assunto de estado, não assumi altruísmos sociais, desta vez, não esgrimi considerandos sobre assuntos proeminentes e avassaladoramente importantes, não estive politicamente correcta ...
... Enfim, deitei fora um "véu", pela janela, sem perturbações ...
E pelo menos, quem me ler, terá rido, seguramente ...

E dizem que rir, rir muito, é uma excelente profilaxia  do avanço das rugas !!! ... (rsrsrs)

Anamar

sexta-feira, 7 de março de 2014

" ÀS MINHAS TRÊS GERAÇÕES DE MULHERES "



Amanhã, celebra-se mais um Dia Internacional da Mulher .
Mais uma efeméride "vendida", para obviamente vender ...

Não sei o que é ser mulher !
Sei que  há diferenças notórias, substanciais e visíveis, entre os géneros, ou pelo menos, entre  o  arquétipo de cada um dos géneros.
É teórico que o Homem seja tido como racional, mais distante, pragmático, na colocação prioritária dos seus interesses, centrado funcionalmente, emotivamente mais volúvel, já que o Homem é reconhecido como fundamentalmente "visual" ( como se diz ), nas suas relações afectivas ... e  a  Mulher, como "emocional" ... menos "cabeça" e mais "coração" !

A mulher de hoje, é multifuncional,  e penso que isto lhe foi determinado pela necessidade vital de se distribuir, com competência, e em simultâneo , por meios familiares, profissionais e sociais.
A mulher é sensitiva  ( não é em vão que se fala no seu sexto sentido ) .
É abnegada, esquece e limita-se a si mesma, em função da sua realidade envolvente, e dos que dela precisam, convive e é,  com frequência, sustentáculo de dificuldades sérias, na sua própria estrutura familiar.
E supera-se, funcionando como esteio,  dessa mesma célula, inventando e reinventando, um "modus vivendi", suportável.
Tende  a  ser  uma  boa  profissional,  de  excelência  às  vezes,  embora,  estou  certa,  nunca  a  família ( mormente os filhos ), seja preterida, em função da profissão.
Porque isso é biológico, e genético.
Como tal, a exigência que faz à sua pessoa, para cumprir esse desiderato, traduz-se num sacrifício, globalmente acrescido, e numa transcendência de si própria .

Quando ama, a mulher dá-se, rende-se, entrega-se com satisfação, e pode mesmo, apenas exigir o mínimo retorno.
E nada do que lhe é pedido, constitui uma carga ou uma impossibilidade.
A mulher chega a ter o mérito, de segurar um amor incondicional, por um homem que não lhe corresponde em idêntica proporção ...
Mas não desiste ... desdobra-se,  frustra-se com  frequência, dói-se, morre aos poucos ... mas  continua  lá ( quantas  vezes,  analisando-se  com  frieza ... estúpida  e  injustamente ... Esta a  única palavra que nos ocorre ... ) !

E chora ... A mulher chora muito ...
Mas chora no seu silêncio, no seu canto ... isola-se p'ra chorar.
Porque, muitas vezes, tira das lágrimas que lhe assomam, risos de fazer de conta ...
Colhe na ausência de esperança, uma poalha de luar, para seguir no seu caminho ...
Pinta na escuridão que desce, sírios estelares, que lhe iluminem o trilho a percorrer ...
Transforma os espinhos em tapetes mansos de musgos e erva verde, fofa e macia, para que, quem venha atrás, sinta o andar atapetado ...
Abre os braços, como asas protectoras, como ninho, onde os ventos de borrasca não derrubam os seus ...
Busca no desespero, força, mordendo os lábios até sangrarem,  ditando um compasso de espera  ao coração, para que ele adormeça e se aquiete ... até que a paz o invada !

É simultaneamente, uma fortaleza inexpugnável, e o aconchego duns braços, doce e macio, onde acolhe o Homem, enquanto filho, enquanto irmão, enquanto amante, e mesmo enquanto pai, velho e alquebrado, sendo  ombro e bengala ... ajudando-o  a transpor a derradeira  ponte da sua vida !

Sou charneira, entre três gerações de mulheres.
Atrás de mim, fica-me a minha mãe, que é tudo isto, foi tudo isto ... nos seus noventa e três anos de vida.
Geração forjada na dureza da terra que a viu nascer,  com  a  força e  a  perseverança, que  aquele  Alentejo  ( pouco generoso às vezes ), lhe conferiu !
Foi / é, uma combatente, uma resistente, uma sobrevivente ... uma Mulher !...

Depois de mim, tenho duas outras Mulheres, que na idade que já têm, ombreiam comigo, nos percalços, nas dificuldades, nas alegrias, nos momentos bons, mas também nos menos bons, desta nossa existência !
Já me couberam no cólo, já as guiei pelas mãos, com elas já ri...por elas, já chorei muito !
Continuarão comigo, se o Destino assim o quiser, até que sejam elas que chorem comigo, riam comigo, me alinhem os cabelos prateados dos tempos, me dêem as mãos, para que  um dia, em passo titubeante, eu possa ainda chegar à janela, eu possa ainda, perder-me a olhar o sol, descendo no ocaso !...

Mais  à  frente,  está  alguém,  que  nos  seus  nove  anos, começa  agora  a dar os  primeiros  "passos" ...
Alguém que vai saber, forçosamente, aos poucos e poucos, qual o seu real lugar no Mundo ...
Alguém que vai perceber em si, este privilégio não partilhado,  único,  insubstituível, incomparável, de dar a vida, e de dar a sua própria vida, junto ...
O privilégio de ter nascido Mulher !...
À Vitória,  particularmente,  eu  saúdo !  Que  ela  albergue  em  si,  sempre, um  coração  bem  feminino ! Que nele, ela encontre sempre, uma fonte de generosidade, de amor e transcendência !

Eu, bem ... Eu devo ser um misto destas raízes, um enxerto destes caules, a frutificação, do antes e do depois de mim,  nestas formas  imperfeitas, de se ser Mulher !...

Anamar

quarta-feira, 5 de março de 2014

" A VIDA É MUITO LONGA " ( J. S. Elliot )

 

O passado já passou, o futuro não sabemos se chega, a "hora" é o presente ... dizem ...

O passado  foi  ontem, teoricamente morto e enterrado, talvez recusado, talvez esquecido, por tão remoto já ...
Normalmente, quando se pensa no passado, ou em acontecimentos do passado, há quase sempre uma cortina de nevoeiro, que se abate sobre ele, lançada pelo tempo implacável, que entretanto correu, ou porque a nossa memória selectiva, pretende ofuscá-lo, recusa "olhá-lo", por defesa emocional, muitas vezes.
E mercê do "drible" que fazemos aos anos, apagamos intencionalmente, muito de nós, lá para trás, numa negação do que nos marcou, talvez desfavoravelmente ...
Ou talvez doídamente apenas, porque não conseguimos então, segurar o fluxo da vida, embora o tivéssemos querido.
Às vezes fica a saudade, que é o reviver do que acabou mas não acabou, restando-nos a projecção na tela da memória, num exercício de esforço mental, do que morreu mas não morreu, e onde frequentemente esgravatamos, tentando pôr cor no que já está a sépia, no que já está tão esbatido e tão pálido, que começa a ficar inevitavelmente difuso ...
Tentando pôr som e calor, vozes, risos e lágrimas, nos "takes" que, de imediato, tentam sumir !...

E definidos, ficam apenas alguns "flashes", ficam por instantes fugidios, cheiros, emoções, palavras ditas, momentos sentidos, instantes que repentinamente parecem saltar de uma amálgama de mortos, que se negam a partir ...
E mói-se, e remói-se, e a mente pára, e os olhos perdem-se, a olhar ... como se ainda pudessem ver !
E o frio instala-se mais e mais, oferecendo uma resistência feroz a largar-nos !

E fica aquele cinzento de chuva miúda, a tombar-nos cá dentro, a encharcar-nos até à alma ...

É também uma saudade, não só do tempo, mas talvez e sobretudo, de nós mesmos, daquilo que nós éramos então.
Saudade da força, da vontade, da esperança, das ilusões, dos sonhos, de tudo para o que ainda tínhamos então, coragem, fé e tenacidade, para arrostar ...
Saudade da juventude que julgávamos deter, da força com que apostávamos em cada momento, da loucura pelo que experienciávamos, e jurávamos incapaz de morrer ...

Julgo poder dizer  que sou uma mulher "de passado", ainda que o passado possa ser o ontem, o último ano, dez anos atrás, o dia em que nasci ...
E não sou "de futuro", porque ele me assusta, e não me é credível !
O futuro para mim, é um monstro decrépito, que vai chegando, com o único objectivo de apenas me encaminhar adiante, queira eu ou não, que ri, indiferente à minha raiva e decepção, que é carrasco e justiceiro.
O futuro, cumpre a injustiça da Vida ...

O presente é isto, esta coisa de filme a preto e branco.
É esta prisão com corredor de morte, ou de pena perpétua.  O presente são algemas nos braços e grilhetas pesadas nos pés, que eu bem as sinto !...
Arrasto-as com muito cansaço.  Têm um peso infinito.  Oiço o arrastar das correntes, e o ranger dos aloquetes ...
Fazer o quê ??  Estou cansada, demasiado cansada deste trilho longo, longo !!...

Resta-me obviamente o passado, que já passou ... dizem ...
Mas  esse, ao  menos  é  certo,  porque  já  o  vivi.  Esse, não  me engana  mais, com  falsas  promessas ...
Esse, já não me reserva surpresas ou novidades, doces ou  amargas, porque esse ocupa as páginas já lidas, do meu livro !...

Só que está a fugir-me cada vez mais ...  Está a sumir-se  rapidamente, como as fotografias nas molduras.
As que atestam felicidade encaixilhada, as que revelam dissonantes estados de alma, as que narram história, mais ou menos rocambolesca, mais ou menos bem contada, de tempos reais ou inventados, num jogo de sombra  e  luz ... as  que  desnudam  sonhos  vividos, ou  apenas  sonhados ...

Qualquer dia, nem esse já tenho !
De facto,  " A vida é muito longa "  ( J.S. Elliot ) !!!...

Anamar

domingo, 2 de março de 2014

" A VIDA "



Escrevo quando estou triste, escrevo quando estou louca, escrevo quando o cinzento envolve o meu céu, e me embrulha junto com ele.
Escrevo quando a solidão sobe as paredes do meu quarto, e nelas se agigantam sombras.
Escrevo quando os gatos miam lá fora e os pássaros voam longe, atrás do sonho.

Porque, quando tudo se encaixa na casa, na minha mente e no meu coração, não há lugar p'ra palavras ...
Quando tudo se completa no meu eu, e no meu mundo, as cores que todos vêem,  pintam de aguarela, os medos e as dores ... não há lugar para palavras ...
Quando a perfeição mascara a ausência de sono, e me faz acreditar que estou feliz, as palavras emudecem na garganta, as frases não se alinham na ponta da caneta, e as letras fojem e brincam de duendes endiabrados, à minha volta.
E eu, não escrevo ...  Não há lugar para palavras !...

Para que escreva tem que me doer a alma, e nas veias, o sangue que sobe e que desce, tem que parar, para que eu fique entre o cá e o lá, no limbo do ser e do não ser.
Para que escreva, tenho que me sentir criança largada no cimo do monte, no topo do mundo, no sussurro do areal.
Tem que a lua se apagar no céu escuro, e as estrelas têm que partir por já ser madrugada !
Aí, oiço os lobos uivarem no cerrado da serra ... e eles entendem-me.
São solitários, no meio do grupo.  Eu acho que os lobos são individualidades herméticas, no meio da matilha, embora se julgue que não.
Um dia, um, me contou, e eu acreditei, porque também eu sou corpo de mulher e alma de lobo.
A solidão é uma segunda pele, que há muito vesti, e com que aprendi a viver.

Hoje, o dia está de letras e sinais.  A meia-noite confundiu-se com o meio-dia.
A chuva fria, impiedosa e agreste, fustiga-nos por dentro e por fora.
Está um dia de casulo, de ninho, de toca, de útero ...
O Homem forma-se numa concha de águas e algas, macias e quentes.  O Homem forma-se no aconchego da escuridão, no embalo do balanço materno, no golpe da aragem que torna a crisálida em borboleta.
E então solta-se, voa, pensa que voa ...
E fica simplesmente preso, na liberdade do acreditar !
Há muitos anos que eu sei disso ...  Há talvez mais, além de muitos ... há eternidades !...

Absurdamente  desconhecida de mim própria, rebolo-me no leito do infortúnio, sem que o tenha, na verdade ...
Absurdamente incompleta, navego com ventos de través, que me cansam e me derrubam ...
Absurdamente  ingrata,  apago  com  borracha  de  tinta, os  horizontes  laranja  e  todas  as sete  cores  do arco-íris ... Se  ousam  desenhar-se ...
Absurdamente claustrofóbica, sinto-me num aquário feericamente iluminado, perturbadoramente devassado por olhos curiosos de artista de circo, como numa montra do Red Line District, onde as bonecas de carne esperam e acreditam ...

E fico apenas com as letras teimosas que não se ordenam, com as frases relapsas que não se arrumam, com as ideias enlouquecidas que se deixam arremessar contra os rochedos, pelas marés carrascas que insistem em fingir dançar ... sem que resistam ... e neles se desfazem  ...
E fico apenas com os gemidos roucos de um coração enraivecido, que já pouco reclama e se indigna ... por indiferença ...

A Vida é o Carnaval dos Homens !...

Anamar

terça-feira, 25 de fevereiro de 2014

" A PONTE "



Estava sentada junto à janela, no rés-do-chão do edifício.
Dali podia ver o espaço circundante, ajardinado, com algumas árvores, por onde os pássaros se atreviam já a pipilar, e sob as quais se abrigavam bancos de madeira.
Sentadas em alguns, até que a temperatura permitia, estavam  mulheres como ela, que como ela partilhavam aquela casa.
Falavam entre si, soltavam monossílabos de quando em vez ... ou não falavam, simplesmente !

Há muito que ela deixara de ir até ao jardim .
As flores, agora que o tempo amainara, haviam começado a rebentar.  As suas corolas, de mil cores e mil formas, exibiam já alguma pujança primaveril.
Contudo, o tempo atmosférico estava longe ainda,  de se aproximar da estação que vinha aí ...
Por acaso, hoje, uns breves raios de sol atravessaram algumas nuvens, às vezes ameaçadoras, outras cordatas em não massacrarem mais os dias, com chuva.

Há largo tempo que estava ali.  Não sabia quanto.
Perdera a noção do passar das horas, dos momentos, dos dias.
Sabia que a seguir ao almoço, a sentavam naquele lugar, junto à janela, com a mantinha nos joelhos, e o livro no cólo.
O livro ... sempre o mesmo livro, aberto na mesma página, da qual, dia após dia, nunca passava.
O seu olhar perdia-se indefinido lá fora... longe, fixado em algum lugar ... em lugar nenhum !
Apático, deixara de transmitir emoções, fazia tempo...  Talvez, desde o tempo em que mais nenhum rosto familiar, dela se abeirava.
O silêncio pairava naquele quarto, com a cama de colcha florida, a mesa de cabeceira com um candeeiro de luz mortiça, uma cómoda encimada por um espelho, um sofá no canto mais afastado, um roupeiro, onde estariam por certo, os parcos pertences, ladeado de prateleiras, nas quais, quando lá a deixaram, colocaram alguns livros ( seguramente os que acharam, que talvez a transportassem mais, ao que fora a sua vida ) ... e aquela cadeira que a aproximava da janela, e do mundo exterior !...

Sobre a cómoda estavam dispersas várias molduras com fotografias ... de adultos, de crianças e até de velhos !...
Se lhe perguntassem quem eram, ela não saberia.  Tinha esquecido qual a proximidade daqueles rostos com a  sua  pessoa, à  medida  que  alguns  deles, deixaram  mesmo  de atravessar  a  porta  daquele  quarto .
Lá para trás, tudo estava nebuloso ...

Sobre a cómoda,  Leonor, que de quando em vez passava pelo seu quarto, colocara uma jarra, e fazia questão, de sempre nela ter flores frescas, apanhadas no jardim ( porque percebera, que pelo menos no início, isso sugeria transmitir-lhe uma certa alegria e paz  ... parecia serená-la, aquietar-lhe as lágrimas, que com o passar dos tempos, e à medida que o distanciamento se lhe colara ao rosto, deixaram mesmo de escorrer ).
As flores eram, neste momento, quase a única ponte visível, ainda, entre ela própria e o seu passado.
Leonor não sabia grande coisa, mas conseguia auscultar que havia alterações no seu semblante, quando as flores  frescas  eram  colocadas na jarra ... Conseguia perceber herméticas emoções, nos seus olhos distantes ...

O mesmo se passava com a música. Costumavam tocar-lhe temas calmos, doces, nostálgicos.
Sorria, quando ouvia os primeiros acordes.  Sorria, mas não emitia um só som.  Há demasiado tempo que parecia ter feito um pacto de silêncio, ou talvez as palavras já não lhe fizessem sentido.
Havia  de  facto  um  claro  corte  com  o  mundo  real, uma  indiferença  instalada, como  se  nada  valesse já  a  pena !

Olhava-se no espelho, quando lhe compunham os cabelos, prateados  dos tempos, e lhos prendiam atrás, conferindo-lhe um certo ar, quase aristocrático.
Olhava-se mas não se via. Ou melhor, via um outro alguém, sem saber quem ...

As mãos descarnadas impediam que o livro tombasse ao chão, apenas ...
Por entre as suas páginas, havia muitas, muitas flores secas, esmaecidas na cor, mas que haviam sido religiosamente guardadas.
O que elas representavam, Leonor também não sabia. Pressentia que elas haviam sido seguramente importantes, no destino daquela mulher .
Dele, tombavam também, papéis amarelados do tempo, com letra desenhada, inscrita a tinta permanente.
Será que ela os saberia ainda ler ?  Será, que lendo-os, eles ainda lhe diziam alguma coisa ... abririam aquele cérebro, aparentemente cerrado ?

A família foi espaçando as visitas àquela casa, e quando as faziam, encurtavam-nas no tempo.
Na verdade, parecia indiferente que lá estivessem ou não. Ela não mostrava dar por eles, e o seu rosto mantinha-se impassível.
Assim, ficava difícil, parecia inglório ... E afinal, cá fora havia tantas coisas a fazer, que o tempo disponível, quase já só para tranquilizar consciências, ia ficando escasso !...

Júlia parecia cada vez mais, apenas vegetar.  Deixaram de se descortinar totalmente emoções, ou algo que lhe alterasse a expressão facial, indiferente, como quem há muito desistiu, e com a desistência, cortou pontes com o mundo e com a vida.
Afinal, parecia apenas, querer confinar-se ao seu eu interior, que ninguém desvendava.

Os dias foram passando, os meses correndo, os anos também.  Uns, após os outros !
Os que deixara cá fora, sempre achavam que ela já ali "não estava" há muito, apesar de, Verão ou Inverno, frente àquela janela, sempre fixar um ponto inexistente.
No Inverno, a chuva açoitava os vidros, no Verão, o sol tentava penetrar a meia penumbra do quarto, que se tornara apenas ante-câmara, de uma partida ou despedida.

Aquele sábado, era só mais um ...  Irrelevante ...
Júlia nem sabia que era sábado ;  parecia pouco saber, ou nada saber do que quer que fosse.
Depois do almoço, uma vez mais, sentaram-na frente à janela.
Era quase Primavera, e os primeiros botões brotavam no roseiral. As árvores começavam a cobrir-se de verde, os jasmins, os narcisos, os amores-perfeitos e os junquilhos, festejavam a renovação da Natureza .
As aves já saltitavam de galho em galho, em promessa de vida ...

Haviam-lhe entreaberto a vidraça, para que os cheiros doces, do exterior,  penetrassem, e a aragem lhe pudesse, quiçá, lembrar, que um novo tempo estava prestes a começar.
A cortina esvoaçava levemente, por isso.

O homem entrou.
De costas para a porta, Júlia não deu por isso.
Era um ancião, com o cabelo completamente branco, periclitante no andar.
Estacou à entrada do quarto silencioso, e olhou longamente, incrédulo, o seu recorte magro, seco, débil, sentada imóvel ... Como se procurasse alguém "lá atrás", talvez outra mulher, talvez outra Júlia ... como se rebuscasse na sua memória ... como se escavasse no seu coração.
Trazia um narciso na mão.  Amarelo, como o sol ...  Um, apenas !...

Chegou perto dela, e olhou longamente a sua palidez, a sua degradação, as suas mãos esquálidas, pousadas inertes, nos joelhos.
Uma lágrima teimosa escorreu-lhe pelo rosto, também macerado pelos anos.
Ajoelhou com dificuldade, à altura dos olhos distantes de Júlia, beijou a flor e colocou-lha, abandonada, no cólo, sobre a mantinha que a protegia.

Júlia estremeceu.  Ergueu os olhos ;  por eles perpassou um esgar súbito, de surpresa, como se tivesse lembrado alguma coisa ...
Um sorriso largo iluminou-lhe o rosto ...
Enorme, doce, grato ... surpreso, quase feliz, dir-se-ia ... envolvido numa emoção transbordante ...

Como se toda a vida, junto àquela janela, olhando o jardim vazio lá fora, sempre, ela não tivesse feito mais que esperá-lo, e apenas tivesse sido capaz de viver até àquele dia, porque  um narciso, amarelo como o sol, haveria de cair no seu regaço ...

Júlia, atravessara finalmente, a última ponte da sua vida !!!...

Anamar

sexta-feira, 14 de fevereiro de 2014

" MERA CURIOSIDADE "



O S.Valentim, está ligado a muitas histórias e tradições, até mesmo diferentes, de país para país.
Relato aqui, mais uma história, a Ele associada, por curiosidade, e porque a achei ternurenta ...

Feliz Dia de S.Valentim, para quem o valoriza !



Sabia que as celebrações populares do dia de São Valentim estão associadas às aves? 

Pensa-se que os costumes populares associados a estas celebrações, tenham tido a sua origem na Idade Média, época em que se acreditava que 14 de Fevereiro era o primeiro dia de acasalamento das aves. 
Por essa razão, este dia era considerado como sendo a ocasião apropriada para escrever cartas de amor e enviar presentes. 

De acordo com alguns historiadores, terá sido Chaucer (conhecido poeta inglês do séc. XIV), o primeiro a referir esta ligação entre o São Valentim (santo católico) e o amor romântico. 
No seu poema de 1381 escrito em honra do noivado do rei Ricardo II de Inglaterra com Ana da Boémia, Chaucer associou o noivado, a  época de acasalamento das aves, e o São Valentim: 

       “For this was on St. Valentine's Day, When every fowl cometh there to choose his mate".| 

     ( Porque foi no dia de S. Valentim, quando todas as aves vieram escolher o seu par (tradução livre).

Anamar

" TAMBÉM É AMOR ..." ( a propósito do dia de S.Valentim )



No último post abordei os "muitos rostos" do amor, a partir de  "rostos" com que me cruzo, que observo com frequência, que analiso, rostos cujas histórias conheço, a minha experiência pessoal, enfim, expus o meu entendimento a propósito.

Calhou ser esse o assunto.   Calhou simplesmente, já que, como sabem, e constitui nota introdutória a este meu espaço, ele foca temas de forma aleatória, de conteúdo aleatório, e que surgem por isto, por aquilo, ou por nada, às vezes.
Acontece com alguma frequência começar num "rumo", e mudá-lo à medida que vou escrevendo.

Contudo, hoje, 14 de Fevereiro, é mais uma efeméride das tais que nos calendarizaram, importada não há muitos anos.
Quando eu era adolescente, na tal idade dos grandes e inflamados amores, nem se ouvia falar dele.
O S.Valentim, neste momento, está suficientemente "comercializado", suficientemente "plastificado", e adesivado aos corações que se vestem de vermelho, nem que seja só hoje, porque o vermelho é a cor da paixão, dizem ...
Todos os anos tenho abordado o assunto, por este ou por aquele ângulo, por forma a estar ciente de já o ter feito exaustivamente, por todos os ângulos possíveis e inventados.
Por isso, este ano, esgotado que está no meu espírito o tema, e procurando evitar redundâncias, recorrências, carência de originalidades, os tais lugares comuns que todos conhecemos, decreto um S.Valentim à minha maneira !...

Não deixa de ser na mesma o "rosto do amor", a celebração do amor, mas de uma certa forma de amor.
Não o amor homem-mulher, o amor-namorado, o amor recriado ( nem que seja só por um dia, por "decreto", e no qual não sei se vale a pena acreditar muito ), mas vou falar de um amor muito mais incondicional, muito mais despojado, muito mais autêntico por isso, puro, fiel, seguro e certo, sempre !  Afinal, um amor para toda a vida ...

Só podia mesmo estar a falar do amor pelos animais, sobretudo e em especial ( é justo que realce ) , a transmissão unilateral, deles para o ser humano, mais ainda do que a dedicação e o afecto, que o ser humano é capaz de lhes retribuir.

Só comecei a conviver com animais, a analisá-los, a apreciá-los, a entendê-los, e a sentir-me por isso, sortuda e gratificada, não há muitos anos.
E cumpre-me dizer, que devo isso a uma das minhas filhas, essa sim, dedicada afectivamente sempre, apaixonada sempre, fascinada sempre, por eles, sejam gatos, sejam cães, que de facto são aqueles que mais interagem com o ser humano, não excluindo contudo, qualquer outro animal.
Enquanto criança, os meus pais não estavam despertos ou sensibilizados para a questão, e como tal, fui criada sem que existissem animais domésticos, junto de mim.
Quando ia ao Alentejo, a casa dos meus avós, o máximo que conseguia, era levar diariamente o Carocho, o burrico lá de casa, a dessedentar-se ao chafariz.  E como isso me fazia feliz !
Em nossa casa existia um canário, que eu encarava mais como um objecto decorativo, do que como outra coisa.  Não havia qualquer interacção, entre mim e ele.

Casei com um homem, que embora oriundo da província, vivendo mesmo numa zona rural, convivia com animais, encarando-os numa perspectiva muito particular.  Para ele, bois, vacas, galinhas, coelhos, ovelhas, porcos ... e mesmo os gatos e os cães, eram vistos, não como companheiros do homem, mas, alguns como fonte de sustento familiar, quer pelo seu consumo, quer pela sua venda, outros, meros guardas das propriedades, sendo que os gatos eram vadios ... apareciam por ali ...
Isto, quando à nascença, não os metiam num saco e os afogavam no rio ...

De todas as formas, os animais, indistintamente, existiam para viverem na rua , e nunca dentro de casa.
Assim sendo, sempre se opôs, apesar das várias investidas da filha, a que houvesse animais no nosso apartamento.
Ela, contudo, nunca desistia, e inteligentemente foi esticando a "corda", introduzindo subrepticiamente, à vez, os que menos se faziam notar, e por isso, menos perturbavam.
Começámos com peixes, inicialmente de água fria, num modesto aquário de balão, que permanecia no seu quarto.  Depois, um aquário de água quente ( com todos os pertences adequados à criação das espécies que contemplava longamente, com fascínio) Esse, já teve honras de sala.  Uma tartaruga, posteriormente um hamster, viveiros de canários e periquitos de todas as cores possíveis, bicos de lacre ... e finalmente, quando eu fiz 44 anos e havia perdido o meu pai recentemente, o que me remetera para uma profunda depressão, apareceu-me, como presente de aniversário, com quinze centímetros de um gato peludo e fofinho, de olhos ainda azuis, enfiado num cestinho, com fita e laço a compor ...

Era p'ra me ajudar a ultrapassar a perda, e me chamar de novo à vida ... dizia ela !

Já aqui contei, algures num post, algures num ano lá para trás, a história, pelo caricato de que ela se revestiu.
Perante o facto consumado, daquela coisinha que me caíu nos braços,  como prenda do meu aniversário, eu não tinha como negar, e nem vontade tinha de fazê-lo ...
O meu marido saíu de casa.
Segundo  ele,  ou  ele,  ou  o  "animal" ( como  fazia  questão  de  afirmar ) !
Bom, esteve a " curtir a fossa", e a medir forças comigo, durante mais de um mês, findo o qual, percebeu lindamente, que o Óscar viera para ficar, e que o melhor era esquecer o acontecimento.
Quem nunca esqueceu a rejeição, foi o Óscar, que lho lembrava sempre que podia ...
Os animais são um espanto !

Assim, o Óscar foi o meu primeiro companheiro patudinho.
Era "mau como as cobras", como "soi dizer-se", mas a mim, elegeu como dona, contra tudo e contra todos.
O Óscar partiu há mais de quatro anos, ao fim de talvez uns catorze, passados junto de mim.
Depois, e simultaneamente ao Óscar, entrou a Rita, gato com nome de gata, por aqueles equívocos do destino ...
Aí, o meu marido já não ousou fazer birra., Afinal, um ou dois, era quase irrelevante ...
E a Rita, um europeu cinzento e preto, doce que só ele, acompanhou-me até há um ano atrás, em que também me deixou.
A Rita não era um gato, era uma criança.  Dormia comigo no interior da cama, como um bébé, bem juntinha ao meu corpo.
Nunca a Rita  me arranhou, nunca a Rita me mordeu.
Adormeceu, mansamente nos meus braços, a olhar ainda confiante, para mim ...

O Nico era um cão castanho, rafeiro, médio, desvalido da sorte, a degradar-se de dia para dia, nas ruas da minha cidade.
O Nico era um animal muito doente. O seu corpo era uma chaga total, pela sarna que o apodrecia em vida .
Tinha doenças muito graves, do foro auto-imune, e psico-motor.
Viveu com a minha filha, devotando-se mutuamente um amor sem limites e uma dedicação extrema, contra todas as previsões, para cima de dez anos.

Depois veio o Gaspar, outro rafeiro, reguila das ruas, e de doçura e gratidão extremas, com a minha mãe, para cuja casa foi.
O Gaspar e a minha mãe, muito velhinha já, entendiam-se claramente, com diálogos que partilhavam.
"Só lhe falta falar" ... dizia ela.
O Gaspar partiu há cinco anos, e a minha mãe sente até hoje, a ausência de um familiar, e beija a fotografia do Gaspar, que tem junto à cama, antes de dormir ...

Depois entraram duas gatas persas, a Cuca e a Concha, depois entrou uma cadela, a Nicas, depois o Sansão e a Dalila ( um casal de gatos ), por fim o Jonas e o Chico, dois gatos que coabitam comigo, e cuja companhia, eu não trocaria por a de nenhum humano ...

S. Valentim, a festa do amor ...
Do amor indistinto, porque para mim, o amor é simplesmente o "AMOR" ...

E o amor que os animais devotam aos donos, ou simplesmente a quem lhes estende uma mão, é a representação suprema, creio, do que deverá ser este sentimento :  puro, desinteressado, fiel, constante, grato, sem restrições ou limites, incondicional e por isso, autêntico, como disse ...

É um amor de Vida, e por vezes, muito além da Vida !...


Anamar