quarta-feira, 15 de janeiro de 2014

" A VIDA QUASE HÁ CEM ANOS ..."



A minha mãe nasceu em 1921, numa pequena vila, perdida no Alto Alentejo.
Era a filha do meio de cinco irmãos, duas raparigas e três rapazes.
Nessa altura, as pessoas oriundas de famílias modestas, e no Alentejo interior, viviam mal.
Ainda assim, os meus avós não subsistiam a partir da terra, porque os que trabalhavam para os latifundiários ( meia dúzia de famílias abastadas e detentoras das propriedades ), e que não detinham nada seu, a não ser a jorna quando trabalhavam, tinham uma vida de verdadeira escravidão.
O trabalho era de sol a sol, não existiam leis laborais que o regulassem, menos ainda, sindicatos ou reivindicações.
Um pai de família dava-se por muito feliz, se trabalhasse para algum lavrador, e conseguisse com isso, garantir na mesa, o pão dormido da açorda e o azeite na almotolia !
Os Invernos eram extremamente rigorosos, e havia meses e meses, em que as terras alagadas, não permitiam sequer, que nelas se entrasse .

Era o tempo da fome ...

Muitas crianças iam para a cama, com umas sopas de leite no estômago, porque o pão fazia-se em casa, para toda a semana, e o leite sempre vinha de alguma cabra, ovelha, ou vaca, que criassem, e que, com meia dúzia de "bicos" na capoeira, para os dias festivos, lhes compunham a mesa.

Existia na vila, um convento de freiras, que acolhia meninas órfãs, e que durante todo o ano, por iniciativa da mulher do Presidente da Câmara de então, garantia alimentação diária aos velhinhos do asilo - a "sopa dos pobres".
Pois bem, aí recorriam também os trabalhadores, que no período rigoroso do Inverno, por falta de trabalho,  não tinham do que viver.
E havia depois, como diz a minha mãe, a "pobreza envergonhada", de quem precisava e não pedia ... Mais dramátiva, portanto !

Os meus avós não viviam da terra, como disse.
O meu avô era sapateiro, e foi entretanto mobilizado para a guerra.
Fez a Grande Guerra de 14-18, e quando partiu, já cá deixara, a mulher e um filho.
Em condições precárias, a minha avó, foi então "servir", numa das casas ricas da terra, para garantir o seu próprio sustento, o da criança de meses, e ajudar a mãe que ficara viúva com trinta e um anos, e três meninas para criar.

Na Guerra, o meu avô,  incorporado nas tropas aliadas, esteve à morte, devido a um bombardeamento alemão, já então com armas químicas.
O "gás mostarda ou iperita ", tinha efeitos tremendos nas vias respiratórias, quando inalado, e queimava em profundidade o corpo.
E os alemães usavam-no !...
Salvou-se por mero golpe de sorte ; ainda recebeu a Extrema Unção, na eminência de morrer.
Ficou contudo, com sequelas para o resto da vida.
Isso ocorreu numa noite de passagem de ano, e desde então, ( ele que não era católico ), guardou um qualquer sentimento de gratidão e de respeito particular, por essa noite, enquanto viveu ...

Considerado um ferido de Guerra, muito grave, foi desmobilizado, e regressou a Portugal, com uma saúde tão precária e uma debilidade tão devastadora, que esteve à beira de uma tuberculose.

Decidiu então virar-se para o comércio, porque a saúde já não lhe permitia continuar com a sua profissão de origem.
Abriu um espaço polivalente, que era simultaneamente pensão de hóspedes, mercearia e cavalariça para recolha e guarda dos animais, e de quem viajava nos carros de canudo, ou nos carros de varais, pela planície adiante.
Ainda me lembro de ver lá alojados os "tendeiros", que eram feirantes de terra em terra, os ciganos que  negociavam pelas feiras, cavalos, mulas, e burros, e que se movimentavam, como nómadas que são, com toda a família e os animais, assentando acampamentos nos campos, onde lhes aprouvesse.
Às vezes, em noites tempestuosas, o meu avô dava graciosamente guarida, no palheiro ou na cavalariça, aos errantes, sem eira nem beira, que percorriam, como pedintes, as estradas do Alentejo.
Eram chamados de "frausteiros" ( que suponho ser uma adulteração popular, de forasteiros ).
A minha avó, às escondidas do marido, sempre lhes levava um prato de sopa, para aliviarem um pouco, a fome ...

Eram tempos muito difíceis, efectivamente !...

Depois do meu primeiro tio, nasceram mais quatro crianças, como também já disse.  Abaixo da minha mãe, vinham portanto dois rapazes.
A casa dos meus avós era de permanente labuta.  Havia alguma ou algumas "criadas", como se chamavam, mas as duas filhas raparigas, trabalhavam lado a lado, e em iguais condições que elas.
A minha avó era a cozinheira ( de mão cheia, ao que parece ), mas todo o restante trabalho, desde servirem à mesa, prepararem os quartos dos hóspedes, tratarem da casa, com todas as inerências que se conhecem, passavam pelas mãos das criadas e das filhas.
Todas as semanas se amassava o pão, e anualmente se faziam matanças de porcos, e se preparavam os enchidos ...

Por tais motivos, a minha mãe foi retirada da escola primária, a escassos dois meses de completar a terceira classe, porque havia que vir ajudar a criar os dois irmãos mais novos.
Apesar de ser uma aluna exemplar, e do interesse manifestado pela professora, de que ela continuasse, não houve qualquer sucesso, e talvez com oito ou nove anos, já ela era mãe substituta, porque a minha avó paria, mas não tinha condições objectivas para cuidar e criar as crianças !

Quando oiço a minha mãe contar memórias desses tempos, pasmo, de facto, e pergunto-me como viveriam os meninos de hoje, naquelas condições ...

Não existia luz eléctrica, nem água encanada.  Não existiam casas de banho ...
Os banhos eram tomados dentro de um alguidar de zinco, e a água era despejada sobre o corpo, com um jarro de esmalte.
As camas eram as tradicionais e bonitas camas de ferro, vendidas hoje, como antiguidades.
Tinham um estrado de arame, sobre o qual existia um enxergão de palha, e sobre este, um colchão feito de pedaços de trapos.
A palha do enxergão, era viveiro habitual e inesgotável de percevejos, parasitas que se alimentam do sangue obtido, pelas picadas no ser humano.
Tentavam debelá-los, ao que parece, com rodelas de cebola, ou petróleo ... mas infrutiferamente !

Nos quartos, existia um lavatório em loiça, com um balde por debaixo, para recolher a água, e um jarro ao lado, com essa mesma água..
Tanto quanto sei, em toda a pensão, existia um único bidé de esmalte, que circulava para os quartos, cujos hóspedes o reclamassem, e que não eram muitos ...
À cabeceira das camas, na mesinha de cabeceira, existia uma palmatória com uma vela, com a qual, o quarto era alumiado, e  uma garrafa de vidro com água, com um copo sobre o gargalo.
A maior parte dos cobertores, se assim se poderá chamar, era feita com bocados de tecidos, cosidos uns  aos outros, e havia ainda os cobertores de "papa", que era uma espécie de lã grossa, com pelo, alguns já com marcas das traças.
Remontam estes cobertores ao tempo do Marquês de Pombal, tendo existido, perto da Guarda, na aldeia de Macainhas, uma desenvolvida produção têxtil dos mesmos.
Hoje em dia, a última fábrica, na Serra da Estrela, fechou portas em Dezembro de 2012.
Eram feitos da lã da raça ovina churra, fiada especificamente para este fim, e eram imensamente pesados !
Como consequência, o peso da roupa sobre cada pessoa, jamais era proporcional ao aquecimento
produzido ...
Ainda nos quartos, existiam, para resolver as necessidades fisiológicas das pessoas, uns bacios  altos, de barro, com uma tampa em madeira.
Diariamente, eram os mesmos, colocados nas ruas, às portas das habitações, até que o Tio Rico ( assim se chamava a figura ... ), com um carro puxado por um boi, com uma canga de guizos a anunciar-se, os despejava, para dentro desse contentor.

O "destino" ... a minha mãe não sabe !   Talvez o campo, talvez adubasse terras ...

Os comensais fixos, na pensão, pagavam uma diária de 16$00, que incluía o quarto e as três principais refeições : pequeno almoço, com leite com café, e onde o queijo, a manteiga, os enchidos e o pão, se  faziam  presentes ;  o almoço, com sopa, prato de peixe, prato de carne, pão, vinho e fruta ... e o jantar,  de igual forma.

Havia quem apenas tomasse as refeições, e se deslocasse à Estalagem do sr. Barrancos ( como era conhecida ), devido aos pitéus da Sra. Brites, a  minha avó.
Incluiam-se  como tal,  figuras proeminentes da terra, destacadas para lá, a trabalho : o juíz em exercício, o escrivão do tribunal, alguns médicos, o delegado do Procurador da República, o Padre Serrão, e outras personagens com algum protagonismo ...

Ao tempo, não existiam sabonetes, gel de banho, shampôs e outros artigos de toillete.
Existia sim, para tudo, desde a lavagem criteriosa das tijoleiras de barro, da loiça, da roupa, e de tudo o resto, até mesmo às lavagens pessoais, exclusivamente o sabão azul e branco.

A iluminação caseira era feita por velas, como disse, por candeeiros de petróleo, ou candeias de azeite, espalhados pela casa.
Cozinhava-se em fogões de lenha  ( só mais tarde apareceram os de petróleo ), passava-se a roupa com ferros a carvão, por vezes difíceis de pegar, outras, queimando a roupa, porque algumas brasitas saíam para fora, ou com ferros que se aqueciam na chapa do fogão, simplesmente !

As ruas eram iluminadas com candeeiros de pé, os quais tinham um depósito, que diariamente era provido de petróleo, e assim se iluminavam.
Nas noites quentes do Verão alentejano, terminada a labuta diária, o local mais aprazível para as famílias se juntarem, era  as soleiras das portas, ou mesmo, os poiais das mesmas.
Para garantir a frescura, regava-se a rua previamente.
A água, claro, ou provinha do poço do quintal, ou era buscada diariamente, vezes sem conta, ao poço da Faia, que  ficava  na  estrada, já  fora  da vila, em  cântaros de  barro, à  cabeça  e  no  quadril ...
Muitas rendas do seu enxoval, e muitos livros, diz a minha mãe, ter feito e lido, à luz do candeeiro da rua ...

As roupas usadas, eram frequentemente de chita, ou de riscado.
Com a chita, confeccionavam-se blusas, saias, vestidos, sendo que  cada metro custava vinte e cinco  tostões ...
A roupa interior, as camisas de noite e as combinações ... eram feitas em casa, por quem sabia costurar, e eram exclusivamente de flanela.
O guarda-roupa era parco. Só o essencial, e uma roupita para os domingos, já estava bem!
O material escolar era transportado numa bolsa de flanela, feita em casa, e passava de irmão a irmão. Resumia-se ao livro, ao caderno, à tabuada, lápis e borracha, a ardósia e o ourelo para limpá-la.
As carteiras escolares tinham um tinteiro incorporado, e com uma caneta de aparo, aí molhada, escrevia-se a tinta ...

Bom, não me alongo mais.
Isto tudo, este "modus vivendi", é uma realidade tão longínqua, mas sobretudo tão irreal, que custamos a concebê-la .
Fui tentando descrevê-la, o mais fielmente possível, à medida que a minha mãe ma relatava.
A cada observação minha, a cada espanto meu, a minha mãe dizia-me : "Pois, filha ... mas era assim ! E tudo se criava !!!..."
É tudo tão surrealista, que nem a geração das minhas filhas ... que direi a dos meus netos ... o conseguirá conceber.
Olhando à nossa volta, pergunto-me, como os meninos dos Ipads, Iphones, computadores, telemóveis de última geração, toda a parafernália que nos rodeia, incluindo alimentação, hábitos caseiros, vestuário ... meninos que sabem que o Homem pisar a lua já nada tem de especial, que a concepção de crianças "in vitro", também não, que a clonagem e que a genética mudam o Mundo ...
Pergunto-me, que sentido tudo isto fará/faria, para eles???!!!

Seguramente,  achariam  tratar-se  de  um  filme  do  tempo  das  cavernas !!!...

Anamar 

segunda-feira, 13 de janeiro de 2014

"QUEREM VER QUE A CULPA FOI DAS PASSAS ?..."





Querem ver que a culpa foi das passas?

2013 a ir-se, 2014 a chegar ... 

Aquele, cansado, decepcionado, desgastado, velho ...  
E pior, bode expiatório de tudo quanto foi desgraça acontecida.
Este, fresco como uma alface, com a pujança, a fé, a ingenuidade e também a inconsciência dos jovens, prometendo  isto e aquilo, acena garbosamente com outras intenções, outros dias menos enevoados, outras realidades que jura irão cumprir-se, o que dará lugar a festejos ...

Do velhinho eu despeço-me, sem já lhe guardar raivas ou rancores, com aquela complacência com a vetustez, dos nossos, chegados ...
Já lhe perdoei as indelicadezas, os sofrimentos, as angústias, e mesmo as raivas que me fez sentir, e que de mim fizeram, uma pessoa pior ...
Enfim, resignei-me a esquecer a intolerância, e a deixá-lo partir, com a certeza que ele não ficará no meu álbum de memórias !...

Deixou-me acreditar em muita coisa, p'ra me defraudar a seguir. E isso, com o meu mau feitio, de flor que não se deva cheirar ... não perdoo. Reservo, guardo, e às vezes, as marinadas acabam azedando, como se sabe, e fica tudo estragado !...


Na passagem do testemunho ... obviamente a meia noite de 2013, manda a tradição que nos despeçamos,  prometendo esquecer, e que recepcionemos com pompa e circunstância, esperança e fé !
O novo ano fica assim, de imediato, completamente sufocado  com uma enxurrada de pedidos, de desejos formulados, por cada mês, por cada uma das doze badaladas da meia noite, por cada passa que se vai comendo, ao soar dessas badaladas.

Obviamente que não há viandante que se preze, que, acabado de chegar, possa ter de imediato um bom desempenho, se lhe cai tudo em cima ! Só pode mesmo sufocar, ou fazer "orelhas moucas" !!!
Por isso, o ano, à medida que se desenrola, vai sempre "dando bota"... digo eu !...

Nos tempos em que eu ainda fazia passagens de ano, mais ou menos felizes, as passas eram previamente contabilizadas, reservadas, e aguardavam que chegasse a hora adequada..
Depois, era aquela afobação, em que o ritmo das badaladas não dá, nem de perto nem de longe, para que se  mastiguem  as  passas,  se  façam  os  pedidos, e  se  felicitem  os  amigos ( tudo ao mesmo tempo ), a menos que as ditas, sejam simplesmente deglutidas, o que não me parece de bom tom ...
Passei então a fazer uma falcatrua, para simplficar a coisa : comia e mastigava as passas todas de uma vez só, e reduzia os pedidos, àqueles, sem os quais, isto ainda se torna uma desgraça maior.
A saúde, à cabeça, o amor em segunda preferência, e algum dinheiro, constituíam o meu cabaz, creio que pouco exigente, de desejos e anseios ...

E depois, é como uma chave fixa do euromilhões ...nuns anos somos mais premiados, noutros nem tanto ...

De  facto,  o  tempo,  tem  vezes  que  nos  magoa, e  outras  que  nos  cura ...
Tem vezes que nos afasta, e outras, que nos aproxima ...
Leva-nos a ignorar algumas coisas, mas a importarmo-nos com tantas mais ...
O tempo decepciona-nos impiedosamente , e leva-nos a perdoar essas decepções, miríades de vezes ..,.
E por isso lembramos as coisas, ou esquecemo-las, conforme o caminho ...
Tem dias  em  que  nos  mata, e faz desistir de  tudo...para  no seguinte, nos levar a uma persuasão sem limites, a não abdicar da luta ...
Faz-nos julgadores de gentes, momentos e  afectos ... ou inversamente, aceitadores incondicionais do que os mesmos têm para nos oferecer ...

Este ano, não tive "passagem", recusei réveillons, fiquei só, comigo mesma e com as minhas estórias ... as recentes, e as que já têm barbas ...
Constatei em desespero, que ao contrário do que supunha, não existiam passas, nesta casa ... Vinho, ainda se arranjava, passas é que não.
Conjecturei descer, para as comprar ... Mas para quê, se eu  não tinha amigos com quem as dividir, não tinha memórias a festejar, os únicos seres viventes ( os meus gatos ) já dormiam há muito ... e não me fazia nenhum sentido,  fazer os tais pedidos ??!!

E lembrei uma vez mais, o que para mim, é uma máxima : na verdade, o tempo tira-te hoje, o que te deu ontem  ... Sempre !

E é por isso que eu corro em contra-ciclo.  Para ter tempo ainda, de protelar para depois e depois, tudo o que eu sei que ele me vai tirar !
Queria  ser,  por  instantes  Alguém,  alguma  Coisa, Ninguém, sei  lá ... ( olhem que pretensão !!! ), uma peça do mecanismo do relógio ou da ampulheta que o regula, para brincar com ele.
Pará-lo, atrasá-lo, acelerá-lo, espreitá-lo à frente, re-olhá-lo atrás, apagá-lo, re-escrevê-lo ... saborear de novo o que me deixou  memória indelével no coração, cuspir para longe, o fel que me amargou tantos momentos ...

Reconheço agora, que afinal, esse poderia ser o único desejo a formular, na décima segunda badalada da meia noite, ano após ano, tempo após tempo ...

Só que, de facto ... eu não tinha passas, eu não tive passas !
  
Eu desconsiderei  intencionalmente, aquele momento místico, desvalorizei os segundos que leva a descolar o envelope da carta, cujo conteúdo não conhecemos, e que mesmo que nos armemos em fortes, sempre nos cola, por momentos, o estômago às costas, nos dá um nó no respirar, e nos acelera o ritmo do peito ... o reinício de  outra fatia desconhecida, do caminho que nos foi destinado ! 

Atrevi-me a medir forças com o tempo, como David contra Golias, desmistificando, indiferentizando, tentando insensibilizar e racionalizar, o que afinal talvez deva mesmo ser racionalizado, de facto :  o  romancear daquele lapso de tempo, em que as doze passas encerram um Mundo de sonhos, como se ele não fosse apenas e só, um lapso do tempo imparável, igual ao antes, ao depois, ao ontem, ao hoje, e certamente ao amanhã ...

Nada mais que Tempo !!!...

Anamar

terça-feira, 7 de janeiro de 2014

" TRINTA MIL ..."




Não escrevo, faz tempo.
Direi mesmo que há um ano !  Encerrei os meus escritos no fim de 2013.
Janeiro de 2014 iniciou-se, a vida regressou ao ritmo normal, com um tempo atmosférico arrasador, não só no país, como em todo o norte da Europa, Canadá e Estados Unidos, com manifestações naturais e atmosféricas, nítida e assustadoramente indiciadoras de uma mudança clara do clima, que já se detecta com uma nitidez, que não deixa margem para dúvidas, e que assusta !

O Homem, neste momento, é cada vez mais o artesão da sua própria desgraça, e da antecipação da finitude do planeta que habita.
As catástrofes que estão a fazer-se sentir, mostram-nos um domínio descontrolado da Natureza, com uma dimensão não vista antes, com consequências apocalípticas imprevisíveis ...
Ventos fortíssimos, temperaturas anormalmente gélidas, ondas até dezasseis metros, varrem e engolem tudo o que lhes aparece pela frente !
Lembro o tsunami de má memória, em 2004, na Tailândia e não só, com cicatrizes irrecuperáveis na devastação deixada, material e humana, numa zona já tão desfavorecida da Terra ...

Por cá, num país que está roto por todos os lados, só nos faltava que também o clima, sempre tão generoso, se tornasse carrasco, e espalhasse ainda mais, a miséria que já nos assola e nos deixa a viver em condições extremas, maioritariamente.

Bom, o início  deste post, parece um comunicado da Protecção Civil, ou um relato noticioso da metereologia ...
Efectivamente, ando exactamente como o céu que nos amanhece cinzento-chumbo, uniforme e ameaçador, com borrasca à vista !
As gaivotas corroboram a previsão, pois recolheram definitivamente a terra.
Nem elas, campeãs das ondas e das praias, se atrevem a desafiar as condições tão adversas.  Volteiam ao sabor da aragem, oportunisticamente aproveitam os golpes de vento, e de asas esticadas, passeiam-se por aqui, bem perto da minha janela !
E não é raro acordar com os seus grasnidos, o que me informa de imediato, quais as condições atmosféricas que me esperam !...

E não escrevo, faz imenso tempo, como dizia ...
Sinto que não tenho nada, de que valha a pena falar.
Entretanto, este meu espaço, registou  trinta mil entradas de leitores, o que não deixa de me espantar.
Não é um "sítio" divulgado, tem características de abordagens pontuais, específicas, são crónicas do imediato na maior parte das vezes, tem este ou aquele assunto que me "mexe" de alguma forma, artigos mais ou menos intimistas, mas ... nada de novo !...

Contudo, creio que tendo iniciado este blogue em 2008, atingi em 2013, vinte mil, e ainda em 2013, trinta mil acessos, de alguém que perdeu o seu tempo, lendo irrelevâncias, coisas comuns, meras formas pessoais e muito particulares na focagem dos assuntos ...
Afinal, um olhar, simplesmente ... o meu ... que vale o que vale !...
E sinto-me tão pequenina e tão insignificante, quando penso que me atrevo a escrever, face a "monstros" da escrita, com publicações empolgantes, geniais e brilhantes !

Li  recentemente dois livros que me preencheram, como há muito não acontecia ...
Duas obras de arte, seria assim que os classificaria ... Aquilo, sim, é que é escrever !
Perante eles, os meus trinta mil leitores, mesmo que tivessem acedido uma única vez, já constituem para mim, um deslumbramento, uma gratidão, e uma empolgação dos diabos !!!...
De repente, sinto-me uma "estrelinha" aos meus próprios olhos, sinto-me qualquer "coisita" no universo da literatura, sinto que terei semeado alguma coisa, por aí ...
E como já fiz um filho, já plantei uma árvore, e já tenho doze volumes, da reprodução em suporte de papel deste meu blogue, cumpri os desígnios do Homem, ao passar pelo planeta ...
E como trinta mil  "qualquer coisa ", é um valor que mentalmente custo a conceber, até parece que fiz o jackpot do euro-milhões !!!...

Só que  tenho um profundo "contragosto" :  Eu, que sou uma mulher de diálogo, de dialéctica, de partilha de emoções, pareço falar sozinha, como se pregasse no deserto ... porque são pouquíssimos os comentários que recebo às minhas opiniões, e até parece que não falo para ninguém ...

Dará assim tanto trabalho às pessoas que acedem, exporem-se, convergirem, divergirem, opinarem, positiva ou negativamente, face ao que exponho ??!!
Como sabem, podem fazê-lo sob pseudónimo, ou mesmo, anonimamente.
Com isso, eu sentir-me-ia mais estimulada, incentivada, desafiada mesmo, a escrever mais, talvez melhor, a superar-me ... em suma, até mesmo a ver o mundo com outros olhos !!!

Mas ainda assim, comentando ou não, não posso deixar de agradecer a todos quantos vêm espreitar, quantos passam por aqui, voltem ou não !!!

O meu  "MUITO OBRIGADA" !!!


Anamar

terça-feira, 31 de dezembro de 2013

" UMA SIMPLES ROTAÇÃO "...



O último dia de 2013 amanheceu cinzento e chuvoso, como aliás tem sido o tempo, neste Dezembro manhoso e castigador.
Cá estamos a encerrar o último capítulo da saga tradicionalmente vivida nesta altura : a passagem de ano.  A mudança do ano velho que nos deixa, para o ano novo que se  inicia, e de que não sabemos nada.

As pessoas saúdam-se com alguma euforia, com os tradicionais votos de "Bom Ano" !

O que será "Bom Ano", e porquê esta euforia ???

Reli o post que no ano passado ( já passaram trezentos e sessenta e cinco dias, portanto ), escrevi a propósito, também no dia de hoje, e juro-vos, fui tentada a fazer "copy-paste" do mesmo, porque se o fizesse, tudo encaixaria na perfeição, para o ano que agora parte.
Nada se alterou substancialmente, ou melhor, tudo quanto era negativo e assolava a nossa gente, se agravou e agravou-se dramaticamente ...
As vidas pioraram, o desemprego é uma chaga que não fecha, a miséria das famílias acentuou-se, as pessoas jogadas nas ruas, também, a precariedade fez disparar a emigração, os desajustes sociais são cada vez mais gritantes, o desespero e o cansaço têm levado gente demais, a atingir situações limite.
A  insatisfação  grassa,  o desânimo  também, a  tristeza  generalizada  ( ao  invés  dos  slogans governamentais ), instalou-se, e sente-se efectivamente um espírito desistente, entre todos.
Uma espécie de coisa consumada, uma qualquer maré alterosa e desgovernada, contra a qual já não adianta erguermo-nos.
O povo português está anestesiadamente conformado, parece-me.
O povo português está sem força anímica, porque sem esperança, ou  fé  na  reversibilidade  do  estrago feito ... Bem ao contrário, aliás !

Entretanto, o Algarve, a Estrela e não só, têm os hotéis lotados, têm ceias de réveillon a duzentos e muitos euros por pessoa ... que se esgotaram, e ainda que se quisesse, hoje, já não se conseguiria o lugar e o entretenimento, para meras escassas horas .
E são sempre os mesmos, que têm esses privilégios !

Acho que as pessoas se atordoam, brincam de serem felizes entre as dez da noite e a madrugada, num divertimento "plastificado" muitas vezes, creio, forçado, socialmente adequado à ocasião, ao evento e ao tipo de "sucesso", que normalmente essas pessoas sempre exibem, na vida ...
E depois amanhã, junto com o vestido de festa, despem também essa alegria postiça, retomam muitas vezes a infelicidade e o vazio que são as suas vidas,  tantas vezes sem muito mais significado, além da futilidade, do "faz de conta", da "peça teatral" que encenam, e exibem diariamente.
Penso que há gente demais, cujo registo é exactamente este ...

E depois há os outros.
Os que fazem as contas, ou não, e ainda conseguem engendrar uma festinha modesta e particular, em casa, rodeados de amigos, com a genuinidade do afecto, de amizades muitas vezes de largos anos, transversais a vidas partilhadas, em histórias que se foram cruzando, neste nosso caminhar ...
Apostaria, que estarão autenticamente mais felizes, no intimismo de uma lareira acesa, de um bom vinho, de algumas vitualhas na mesa, e gargalhadas e alegria espontâneas.
Os votos trocados são seguramente mais sinceros, o carinho circula pelas veias de todos, porque aquelas pessoas, são, por qualquer razão, pertença umas das outras !!!

Já tive passagens de ano exactamente assim, e recordo-as com profunda saudade ...

E depois há ainda, os que numa espécie de exorcismo, parecem querer  auto-punir-se, não sei bem de quê ( o ser humano, gosta de se vitimizar de quando em vez, saboreia um toque de masoquismo, numa chamada de atenção, que visa suprir desequilíbrios emocionais e afectivos ).
Esses, desligam telefones, dizem que tomam, ou tomam mesmo, um comprimido para dormir, e mimetizando um "sem abrigo" cinco estrelas, vão para a cama quentinha e confortável, antes que os minutos se escoem rápido, e a  meia  noite  chegue  depressa  demais, e  os  apanhe ainda  antes  da "função" estar em acção, o que seria chato !...

Amanhã acordam azedos, defraudados, magoados com a vida, e muito, muito infelizes.
E dizem para si próprios " Merda ... tudo exactamente igual !... "
E reiniciam o caminho de sempre, só que agora amanhecem num ano novo / velho...

Afinal, a Terra fizera apenas uma rotação sobre si mesma !!!...

Anamar

domingo, 29 de dezembro de 2013

" A DEPRESSÃO DAS FESTAS "



Cada vez se ouve dizer mais : "se me apanho em Janeiro, nem acredito" ! ou "estou morta que passe esta época " !... ou ainda, em jeito de alívio : "este, já passou" !...
Normalmente são mais mulheres que homens, que o dizem.
Chama-se a isto, a "Depressão das Festas", e é um fenómeno que se tem acentuado de ano para ano, particularmente nos últimos tempos.

Quando eu era criança, não lembrava "ao careca", que houvesse alguém a "rejeitar" o Natal ou a Passagem de Ano.  Ao contrário, o Natal que era sempre uma festa simples e despretensiosa, pelo menos no meu estrato social ( a dita e desaparecida "classe média" ), era uma festa de Amor.
Amor real, verdadeiro, privilegiado.  Sentia-se a alegria da reunião, sentia-se a partilha do afecto, no seio da família.
Havia poucos presentes, é verdade, havia uma roupita que se estreava, ou uns sapatos que se ganhavam, alguns chocolates para as crianças.  Os adultos não tinham presentes, tanto quanto me lembro.
Mas a noite era feliz, plena de momentos inesquecíveis ...

Era a Missa do Galo, pela mão da avó de xaile e lenço, no gelo da noite alentejana, era a lareira, acesa sempre com o maior madeiro que o meu avô reservava todo o ano, para o efeito, eram as iguarias que nos esperavam ( e que eram feitas pelos que ficavam em casa, a minha mãe e as tias, velhas ou novas ), o lombo, os enchidos e o entrecosto, fritos no lume do chão, as filhós, as fatias douradas, as azevias, os sonhos, os mexericos, a pinhoada, o arroz doce ... tudo acompanhado pelo bom tinto da região, e os cânticos ao Menino Jesus, entoados em uníssono, por todos ...

"Oh meu Menino Jesus, da lapa do coração, dai-me da Vossa merendinha, que a minha mãe não tem pão ..."
"O Menino chora chora, porque anda descalcinho, dá-lhe tu as meiazinhas, que eu Lhe dou os sapatinhos..."
"Nossa Senhora lavava, e S. José estendia, e o Menino chorava com o frio que fazia ..."

Todos, seguramente terão lembrado, e lembram, enquanto viverem, essa festa inesquecível ... e ninguém se deprimia !
As pessoas não ambicionavam mais, não sonhavam mais alto, não tinham frivolidades, não desvirtuavam o espírito de união, partilha, dádiva e amor ...
As pessoas eram felizes !

A Passagem do Ano, também não apoquentava ninguém.
Quando eu era adolescente, a passagem do ano era sinónimo de um bailarico, na Sociedade Filarmónica Harmonia, a mais bem frequentada da terra.
As raparigas da minha família, tinham por companhia e como responsável, uma das tias, que por não ter tido filhos, tinha uma pachorra incrível para nos aturar.
A minha mãe nunca ia, mas não era preciso, obviamente.  Estávamos todas bem entregues !

Era uma emoção só, aquele baile, aguardado a semana inteira.
A sala tinha um palco, onde tocava um conjunto musical ao vivo, o conjunto "Planície", lembro bem !
As cadeiras distribuiam-se em cercadura em torno do salão.  As meninas "comprometidas", ou seja, as que tinham namorado oficial, nunca se sentavam na fila da frente, já que não seria de bom tom, dançar com mais ninguém, além do namorado.
As "disponíveis", aguardavam os acordes da música, sentadas nas cadeiras da frente, com o coração aos pulinhos.

Ao fundo do salão, existia uma sala mais pequena, onde os homens se juntavam.  A chamada "sala de fumo", exactamente porque aí podiam fumar.
As mulheres e as raparigas, não !  Não se fumava na altura, ainda ...
Não esqueçamos que estávamos no Alentejo interior, conservador e castrador ...

Quando a música começava, como numa montra, as meninas eram escolhidas para dançarem, pelos rapazes, que se aprestavam a avançar pela sala, na sua direcção, "catrapiscadas" que o haviam sido já, do fundo da sala de fumo.
Proferia-se a célebre frase : " A  menina dança ??? "
E se a rapariga declinava o convite, ou seja, dava uma "tampa", o que não era de bom tom, tal, era vexatório para o "macho" interessado !

Dançava-se em pares, classicamente.  Não havia os ritmos actuais das discotecas, em que ninguém dança com ninguém ; é tudo  "à molhada" e fé em Deus !
E dançava-se com os corpos algo afastados,  e com rostos que por vezes, tentavam "colar-se", só tentavam ... porque se o "entusiasmo" os aproximava ( e acontecia muitas vezes ), lá estava o olhar fiscalizador da tia responsável, a chamar a jovem a entrar na linha ...

Eram bailes, sem dúvida, potenciadores de uma iniciação sexual.
A liberdade dos jovens então, coibia-os de experienciarem qualquer outro tipo de aproximação.
Os namoros eram controlados pela família, sair-se só com o namorado, não acontecia ...
Existia sempre alguém, que era obrigado a fazer o frete de ser o famigerado "pau de cabeleira", ou seja, uma presença incómoda, para os que ansiavam estar sozinhos.
Normalmente uma irmã mais nova, que o namorado convencia, com um qualquer regalo, a ir dar uma voltinha, regressando ao ponto de encontro, passado determinado tempo, e dando assim, alguma liberdade e privacidade ao par romântico ...
Mas nada de mais acontecia, além de um beijo mais caloroso, de um estreitar e de uma fugidia troca de calor dos corpos, ou de uma comprometedora percepção das respostas dos mesmos, à excitação do momento ...

Tempos aqueles !!!...

Não havia portanto,  também angústias, insatisfações, traumas, balanços ( os benditos balanços traumatizantes da vida, porque nos projectam sempre  a  magoadas recordações do passado, e ansiedades do futuro ) , atribulações existenciais, com dúvidas, medos, inseguranças e incertezas, que nos "matam", na actualidade !

A vida, parece-me, corria mansa.
Não se tinha muito.  Tinha-se o necessário, que era por isso, o suficiente !!!...

O ser humano era mais feliz, tenho a certeza !  Tal como em quase tudo, é o ser humano que cria as suas próprias condições adversas de vida, e a sua própria infelicidade.
É  ele  que  estraga, que  destrói, que  mata ... e  "morre"  às  suas  mãos !!!

Saudades ... saudades, tenho  sim, da simplicidade de então, do tempo em que esta quadra nos fazia rir, afastava a solidão e a tristeza, se teimassem instalar-se, e era desejada ansiosamente ao longo  de  todo  o ano !

Em suma, a doença moderna que mina mais e mais a espécie humana, a depressão, e que é consequência da vida e dos valores que o próprio Homem escolhe para si, não existia, menos ainda a aparente aberração dos tempos que correm :  a "Depressão das Festas" !!!...

Anamar

sábado, 28 de dezembro de 2013

" BATEM LEVE, LEVEMENTE ... "



Os dias parecem túneis mal iluminados.
O cinzento uniforme e tempestuoso, abate-se sobre tudo e sobre nós também.  Chove, há vento desabrido, neva nos locais habituais do país, deixando por todo o lado uma paisagem única ...
O desconforto chega-nos cá dentro.

As gaivotas recolheram ao interior, porque há tempestade no mar.  Fui acordada pelos grasnidos, das que pousam perto da minha janela.
Alguma delas será a "minha gaivota" ?
Sim, porque houve tempo em que eu tive uma gaivota ( que perambulava aqui por cima, e pousava junto de mim, mirando-me com aquele jeitinho de cabeça inclinada e olhinhos perspicazes ), e um farrusco que parava lá em baixo, no abandono dos terraços, e de que, do meu sétimo andar, eu só distinguia os olhões amendoados, na pelagem totalmente negra.

Eram companheiros meus, sem o saberem !
E era reconfortante, por estranho que pareça, quando chegava à janela, e procurava com os olhos, os encontrava, um em cima, outro em baixo a olharem-me também ...  Sempre  me  aflorava  um sorriso  ao rosto !
Era no tempo em que a Rita já estava no fim da linha, velhinha e doente, e havia demasiado silêncio na minha casa.
O silêncio persiste, e tem dias em que eu diria, que um frio de neve, penetra no meu espaço, intencionalmente restringido ao quarto e à cozinha, e a sua brancura, que estranhamente acho aconchegante, deixa-me nostálgica, entristece-me  a alma, emudece-me o coração .

Nunca vivi em locais de tradicionais nevões.
Contactei  com a neve, ao vivo, por escassas ocasiões ;  não aprecio mexer-lhe, sofrer-lhe o frio, brincar com ela.  Mas extasia-me e emociona-me olhá-la, simplesmente, por detrás de uma vidraça, através da lente duma câmara, ou no registo de uma fotografia.
Acho que essas imagens têm muito a ver comigo, com o meu "eu" interior, o meu estado de espírito, transmitem-me uma doce solidão, que afinal já existe dentro de mim, faz parte da minha forma de sentir e estar.
E uma paz, que eu gostaria também de vivenciar, e que a vida não me traz ...

As imagens apenas corporizam os sentimentos, e descrevem-nos,  mudos, com palavras não ditas, mas eloquentes !
As imagens têm pulsão cardíaca, têm cheiro, têm som, ou melhor, têm silêncio audível ...
As imagens envolvem ...  Aquele cobertor branco e macio, acaricia e aninha ...

Será  mesmo  assim, ou  eu, que  não sou  lá  muito  certa, sinto-o  assim ??!!
Será normal sentir isto, ou não passo de um ser estranho, no isolamento em que me posiciono, por dentro e por fora, no mundo que me rodeia ??!!
Não sei !...
Reconheço-me "sui generis", bicho raro, meio adoidada, e percebo também, que não me percebam, porque eu própria me sei desenraizada, não enquadrada, não muito ligada a esta terra, por aqui !
Ainda não descobri a que mundo deveria pertencer, mas sei que neste, me sinto incómoda, defraudada, desconfortável, desinserida ... não "pertença" !...

A neve é silenciosa, como eu o sou no meu âmago.
A neve é envolvente e aconchegante, é uma carícia da Natureza, por cada floco que tomba nas folhas que restam, das árvores despidas.
A neve é uma canção dolente, uma melopeia, talvez um mantra ...
É uma música de deuses, tem uma beleza etérea e diáfana, é uma tela que o Arquitecto pinta, com a mescla de todas as cores existentes no Universo : o branco !...

Branco de paz ...
Seguramente, esse é o sentimento real que ela me transmite ...  Mas também silêncio e solidão, como disse.
Três formas de sentir, que levam o Homem ao encontro de si próprio, conduzem-no ao seu equilíbrio pessoal, mergulham-no no seu espírito, sintonizam-no no reencontro da meditação, transportam-no a um patamar superior, de ascetismo transcendental e deificante, na busca imparável da perfeição, e no caminho da melhoria !!!...

Anamar

quinta-feira, 26 de dezembro de 2013

" NO RESCALDO ... "



Mais um Natal que já foi ... Metade da "odisseia" está resolvida !

Percebem ao que me refiro, com certeza...ou seja, à obrigatoriedade calendarizada, de se festejar algo a que chamam de Quadra Natalícia.
Abomino esta época, pelos seus rituais, pela imposição feita pela civilização judaico-cristã, em que quase todos fomos criados, e que estabelece um "figurino" a que até os mais resistentes se submetem.
Eu  entro  impositivamente  nos  moldes  tradicionais e convencionais, sempre  impositivamente,  como  digo, porque  tenho  uma  família ( pequena,  apesar  de  tudo ), conservadora, onde existem três crianças,  que vivenciam a época, através do que lhes é veiculado, quer em casa, quer no colégio que frequentam, de índole eminentemente católica.

Assim, este evento não é para mim, nem mais nem menos importante que qualquer outro, e tem o mérito, e é apenas  esse que lhe reconheço, de reunir quem se gosta e se quer bem.
Eu retirar-lhe-ia qualquer outra conotação, e reservar-me-ia o direito de o revivenciar, sempre, só  e quando, me desse na "bolha" .... não mais!
Escuso de dizer que toda a parafernália material alucinada, com ele relacionado, desde a loucura das doses industriais de comida, às doses loucas de presentes e mais presentes, indiscriminadamente reclamados por crianças que teriam já obrigação e alguma consciência, ( mercê da idade ), de não ignorarem a realidade que nos cerca ... eu enjeito, rejeito e contesto ...
Mas enfim !...

Este ano, a minha mãe, pela primeira vez na vida, não quis estar presente.
Com quase noventa e três anos, já lhe é penoso aguentar uma noite que se reclama de longa, aguentar a barulheira de três miúdos em completo desvario e ansiedade, pela chegada do presumível Pai Natal ( há um deles que ainda acredita ), aguentar a deslocação do conforto de casa, ainda para mais, neste ano, com a intempérie que se fez sentir ... enfim, aguentar o sair da sua rotina diária, de nove horas da noite em vale de lençóis, jantar bem leve, e sossego de cabeça.
Dizia-me ela : "Um dia vão mesmo passar sem mim ... ", e portanto, pragmaticamente, não achou nenhum despautério, não estar presente já este ano.
Eu entendo-a lindamente, e certamente um dia, quando ela tiver efectivamente partido, talvez nao sintamos tanto a sua ausência.
Afinal, verdadeiramente, e isto o que p'ra mim é o Natal, é a possibilidade de festejarmos a Vida, quer dos presentes, quer dos ausentes, porque eles nunca morrem nos nossos corações ...

A minha filha mais nova, numa das profissões de carácter humanitário, no ramo da saúde, esteve também de Banco, durante esta noite.
Orgulho-me muito disso, apesar de não a ter tido connosco, à mesa do jantar ... Não estava ... mas estava !
E deve ser muito gratificante, particularmente nessa noite, ajudar a chegar a este Mundo, um novo ser, que inicia, sem o saber, o seu percurso, por aqui !

Há pouco, contava-me a Larissa, que é ucraniana, que por tradição, na terra dela, na mesa da consoada, sempre é posto um prato, um talher, e um copo, a mais.
No prato, "esquecem" um pedaço dos bolos tradicionais, no copo, colocam um pouco do vinho que degustam, sendo que, tudo isto permanece na mesa ao longo das festas.
Sobre  as campas, deixam migalhinhas  do  pão  e dos bolos da ceia,  para  que  os  passarinhos  as encaminhem ...
"Corporizam" dessa forma, a memória dos que não estão mais entre nós !...

Enfim ... o que se sonha, o que se deseja, o que se concretiza, o que se recorda ... o que se espera ... ou o que já não !...
Tudo  isto  será  Natal !...
E  se  reduzirmos  o  seu  significado, ao  seu  REAL  significado ... tudo  isto  será AMOR !!!...


Reflectindo a propósito, remeto-me a um pequeno texto de Pessoa, que me chegou às mãos, como prefácio de um livro que me ofereceram :

"Cada um cumpre o destino que lhe cumpre,
E deseja o destino que deseja ;
Nem sempre cumpre o que deseja,
Nem deseja o que cumpre "
                                                                                                             Fernando Pessoa

Anamar                                     

sábado, 21 de dezembro de 2013

A "TERRA"...



Costuma dizer-se, que quem nasceu em Lisboa, não tem terra .
Isto, porque a capital é um puzzle de peças, de todo o país.  Foi portanto trazida à cidade, uma multiculturalidade tão diversa, que penso que verdadeiramente sua, em tradições e costumes, é inexistente.

Estou a pensar na quadra que atravessamos, o Natal, que como exemplo, continua a levar as pessoas " à terra " para o passarem, porque lá encontram os seus, as suas raízes, tradições, as vivências que os terão acompanhado ao longo da vida.
A " terra" ... aquele torrão onde nasceram, que as viu crescer, onde se perceberam gente, um dia, e onde estão enterrados os que já partiram, onde as coisas e as memórias lhes fazem sentido.
Os cheiros são nossos, as cores são nossas, os sons também são nossos, e sempre se opera um milagre de uma tão grande fusão, que nos aquece por dentro !

Vêm os emigrantes, chegam os migrantes, busca-se um sentido de vida, apelativo a partilha, sobretudo, e muita cumplicidade ... porque há uma linguagem, uma qualquer corrente emocional e afectiva, comum a todos, que nunca nos deixam  indiferentes.
Essa, a razão de uma urgência na viagem, uma pressa de chegada, uma alegria interior que nos põe o coração aos pulinhos.
Há um entrosamento que não passa por religião, por evento social, pela exigência de calendário, pela hipocrisia que se vive na cidade grande, tão anónima, indiferente e "fria" !
A " terra ", a bendita terra, ainda guarda a ingenuidade, a pureza, e a autenticidade das coisas simples, para receber quem a busca.

Eu sou alentejana, logo, teoricamente, eu tenho " terra ".
Apenas, tristemente, nessa terra que agora me surge lá tão longe, resta-me um único familiar.
Todos os outros, são memórias, são fotografias, são vozes que ainda se escutam, são hábitos  que ainda se  recordam ... são  sítios,  apenas !
As casas estão lá, embora agora pareçam "fantasmas" nas nossas vidas.  Aquelas casas descaracterizadas, fecharam as portas que tantas vezes atravessámos, desde meninos, ao longo dos tempos;  imaginamo-las deserdadas de todo o recheio que tocávamos, inodoras dos petiscos da avó e das tias mais velhas ou mais novas, órfãs de todas as canções de Natal, partilhadas então à lareira, geladas, porque o calor dos corações já não pulsa naqueles espaços, e as alegrias já não têm veias para circularem ...

E sentimo-nos repentinamente espoliados, roubados injustamente.  Parece que o justo, seria que tudo aquilo continuasse a ser nosso, tivesse sido nosso "ad eternum" , fosse pertença intocável ... as coisas, os sentimentos, as vivências, mas sobretudo as pessoas ... E que tudo o mais, não faz sentido !...

Já não vou portanto, à "terra" ...

Agora, como filhós de contrafacção, como rabanadas atamancadas pelo fabrico em série, sonhos, que muitas vezes, de tão enzeitados, viram pesadelos, azevias a fingir que são as " nossas ", roubadas no recheio de grão, e que eram feitas por aquelas mãos sábias, que se foram .
E mesmo o bolo-rei, que ainda tinha prenda e fava, e que lá não existia, começa agora aqui, a ser já enteado na mesa da consoada ... Ninguém lhe pega !...

Aqui, é frequente o bacalhau comprar-se já empratado, porque não há tempo para confecções ( as pessoas trabalham no próprio dia da consoada ), e também já não é com as couves, as batatas e os ovos, regado com o bom azeite alentejano ( o  que  já  não  garante,  obviamente,  a  almejada  "roupa velha"  no  dia seguinte ) ... mas sim um "rafiné" bacalhau "à qualquer coisa" ... ;
o perú chega-nos feito também, e com um bocadinho de jeito, até fatiado mesmo, porque é muito mais prático ser só aquecê-lo no forno, em cima da hora ;
os doces, serão três ou quatro, e não a prodigalidade que decorava aquelas mesas gulosas, de antanho.
Não incluem seguramente o arroz doce, bordado desmesuradamente  com canela, pela avó, nem a aletria, nem o leite-creme, que serão substituídos por algo menos "prosaico", e consequentemente mais criativo e "requintado" ...

O cheiro da caruma a crepitar não se ouve já, os fumos a saírem das chaminés na noite gelada, também não se vêem mais ...
O aquecimento central, de muitos apartamentos de hoje em dia, pretendem substituir as "nossas" cúmplices lareiras, são confortáveis, impecavelmente "clean", e adequados ao requinte da casa ...
Por isso tudo,  fica aquela coisa "desasada", desenxabida, insossa, do Natal das pessoas sem "terra" !!!...

Bom, mas depois há ( e são cada vez mais ), os que têm por tecto, as estrelas quando brilham, qualquer portada mais resguardada ( onde os deixem ficar ) como cama, os cartões e alguns cobertores com que se cobrem, os andrajos que nunca despem, e o gelo da noite que nunca perdoa ...
E  ... que pelo menos o sono misericordioso os invada, e os proteja de pensarem ou recordarem, a " terra ", e o Natal que um dia tiveram, ou não !!!...

Anamar

segunda-feira, 16 de dezembro de 2013

" CONFLITO DE INTERESSES "



Fiz anos, e ofereceram-me dois livros que me despertaram o interesse por lê-los, de imediato ( o que nem sempre acontece ).
Quando estou em casa, não tenho por hábito ( e devia ), sentar-me num sofá, calmamente, e passar algumas horas placidamente, a ler, como faz o comum dos mortais, sobretudo quando a vida lhe é tão desocupada quanto a minha, se calhar.
Tenho até um confortável sofá no quarto, um candeeiro de leitura à maneira, e demasiadas horas vazias ...
Mas ... tenho um espírito inquieto demais, para conseguir parar, concentrar-me e ler durante algum tempo, sem que o meu espírito indisciplinado, não se solte de mim , à minha revelia, e vá por aí fora, sei lá para onde ...
Tenho aquela coisa a que chamamos meio humoristicamente, "bichos carpinteiros", que deduzo serem os bichinhos que incessantemente atacam a madeira, e não param.
Isto, sou eu a deduzir !

Pois eu, padeço do mesmo, e por isso, a leitura de qualquer coisa, livro, revista, jornal, seja o que for, no remanso da casa, faz-me voltar atrás dezenas de vezes, para reenquadrar a ideia, para repegar a história, faz-me ir contar quantas páginas faltam para uma hipotética paragem ... enfim, um cansaço !!!
Sofro de desconcentração, deve ser ...

Resolvi então passar a ler, durante a minha ociosa hora do pequeno almoço, no café do costume, no lugar do costume, com o barulho do costume.
Parece que aí, a coisa resulta ... vá-se lá saber porquê !!!

Apenas, temos aqui, um verdadeiro conflito de interesses. Isto porque, é também a esta hora, neste "intermezzo" temporal, que escrevo a maior parte dos meus posts, aqui deste espaço, e portanto é óbvio que, se leio, não escrevo, se escrevo não leio, e isso tem-se notoriamente reflectido na minha fraca produção literária, nos últimos tempos.

Depois,  acho  também  que  ando  com  uma  escassez  de  assuntos,  com  uma  irrelevância   de  narrativa,  com  um  nada ,  sobre  que  nada  a  dizer ...
A minha criatividade, "puftt" !... Ou então, ao longo dos tempos, já falei de tudo por aqui, e, ou me repito com alguma genialidade, ou fico insuportavelmente maçante !...

A minha realidade diária, é despida de emoções, é repetitiva, e vítima de um entediante queimar de horas, mais ou menos iguais.
Sendo assim, imaginem o que eu não daria por uma boa história, uma boa ocorrência, um bom acontecimento, que colorisse o cinzento desta ausência de adrenalina !!!

Contudo, estamos noutro Natal .

E sobre o Natal, já se disse tudo, as pessoas já disseram tudo, eu já disse tudo.
Já falei sobre como abomino a época, como anseio, se calhar anormalmente, chegar a Janeiro, como odeio visceralmente ter que obedecer a "figurinos" hipócritas, em que, por mais planos que faça anualmente, de ser esse o ano em que furo o esquema e escapo ... ou sinto-me "vendida" ... nunca alcanço tal desiderato ...
E como nunca é de facto esse "o ano" ... sinto-me vendida mesmo, porque acabo por me embrenhar na roda  dentada  do  presentinho  a  este, a   esta  e àquele,  porque  tem  que   ser,  porque   sim  e   porque sim !...

E lá estou eu, e lá estão os portugueses todos, espantosamente, a correrem em romaria ou procissão, para as lojas, numa espécie de loucura colectiva, de alucinação de massas, a gastar, a gastar, a gastar o que não têm !!!
" É só uma coisinha " ... "não tem importância" ... "o que conta é a intenção" ...
Porra, até parece que a Troika partiu definitivamente no trenó do Pai Natal, que a senhora Lagarde não dá mais bitates por aqui, que a senhora Merckel foi pregar p'ra outra freguesia, e que de repente, nos conciliámos todos numa boa, ou nos anestesiámos num rodopio insano, contrariando o que juraríamos implementar justo este ano : não dar nada a ninguém, e um só presente por criança !
Porque, caraças, afinal a crise é brava, cair "na real" vai doer muito em Janeiro, e fazer de conta que esquecemos os cortes dolorosos nas pensões e vencimentos, o ainda maior estrangulamento de cintos, que já não têm por onde apertar, é apenas isso mesmo ... fazer de conta !

E a última vez em que eu achei graça a fazer de conta, foi quando fazia de conta que acreditava nas historinhas infantis das fadas e das bruxas ... há um ror de tempo !
E aí, não fazia mal nenhum eu acreditar !...

Mas o fenómeno "Natal", mobiliza mesmo, temos que convir.
Com o mesmo esbanjamento ou talvez não, com as mesmas atitudes perdulariamente inconscientes ou não, mergulhamos, empurrados por uma qualquer força inexplicável e materialmente absurda, e nem com crises aterradoras no país e no mundo, nem com a devastação a alastrar na sociedade, nem com as pessoas a serem atiradas diariamente, mais e mais, para as ruas, nem com crianças que chegam aos hospitais, doentes ... por fome, nem com filhos a viverem à custa das pensões dos pais ( que apenas já só sobrevivem ), nem com os velhotes a racionarem os medicamentos nas farmácias, nem com o desemprego a afundar e a desestruturar lares e famílias ... nem com tudo isto, conseguimos esquecer o folclore, o supérfluo, o "plastificado", o desnecessário, o excesso insano, o exagero absurdo, o consumismo desembestado, e valorizar o que deveria ser o verdadeiro, o autêntico, o genuíno espírito de Natal, e a essência dos seus reais valores !!!...

Realmente, não temos emenda possível !!!
Ou então, gerámos uma qualquer alteração biológica, um qualquer antídoto milagroso, inexpicável, que nos retirou os sentimentos, e nos robotizou simplesmente, para a Vida à nossa volta !!!...



Anamar

sábado, 7 de dezembro de 2013

" AQUELA HISTÓRIA "



Há mil histórias iguais, mas aquela história, era "aquela" história !...

Do outro lado da rua, sentado na calçada, com as pernas cruzadas e a cabeça entre as mãos, estava aquele jovem.
Não olhava nada, nem ninguém, não erguia sequer a cabeça à passagem dos transeuntes, que o ignoravam e seguiam apressados.
Era magro, pobremente vestido, e tinha uma mochila nas costas.
A seu lado, sobre a calçada, estavam algumas moedas, ( poucas ), a maioria, de cêntimos, e pelo menos uma tablete de chocolate ( não sei se teria mais ... ), vi depois.

Eu passava em frente, do outro lado.  Olhei, e pareceu-me alguém que estivesse a sentir-se mal, que não estivesse bem, e para não cair, talvez se tivesse sentado ali, naquele sítio.
À distância, só vi um jovem esquálido, com as mãos a cobrirem-lhe o rosto ... desalentado, talvez em todos os locais do mundo, menos naquele ... quem saberia ?...

Hesitei.  Fazer o quê ?  Continuar o meu caminho ?
Mas ... pode ser alguém a precisar de ajuda, de socorro, alguém subitamente doente ...
E resolvi atravessar a rua.

Ao chegar junto dele, percebi que afinal chorava.
E nem à minha aproximação, levantou a cabeça.
Quando lhe perguntei se estava a sentir-se bem, se não precisava de nada, ergueu os olhos para mim, e disse : " Não, minha senhora. Apenas estou humilhado, muito humilhado ...  De vez em quando, tem que se chorar para aliviar a pressão, senão, sai-se por aí a cometer uma desgraça " !...

Era brasileiro, talvez vinte e poucos anos.
Disse-me que lhe custava muito, esmolar, porque não era dinheiro que queria, mas sim um trabalho que pedia.  Ele queria um trabalho, porque o dinheiro, por muito que lhe dessem, gasta-se, e um trabalho garantir-lhe-ia a sobrevivência.
Estava há quatro meses em Portugal, onde demandara só com a mãe, em busca da "vida" que a sua terra lhes negara.
Era neto de portugueses, embora já não tivesse família por cá.
Viviam na rua, segundo ele, e era maltratado e humilhado frequentemente, por aqueles a quem pedia trabalho, ou a quem tentava vender as tabletes de chocolate.

E dizia-me : " Não é preciso isso, pois não ?...  Uma  pessoa  tem  que  chorar, para  aliviar  a  pressão interior "!...

Tentei dizer-lhe meia dúzia de "tretas" de circunstância, daquelas coisas que se dizem sem convicção, que não servem para nada, que nos constrangem, apertam o coração, e de que temos a perfeita noção da irrelevância.
De qualquer forma, o Douglas ( era o seu nome ), estava emocionado porque alguém parara perto, e se preocupara com ele.
Dizia que ninguém tinha um minuto sequer, para o ouvir ...
Olhou-me e perguntou : " Você é psicóloga "?
Sorri e retorqui-lhe : " Não ! Eu fui professora ... e sou mãe "!...
"Ah ... por isso você me "viu", e teve tempo para me escutar "!...

Era quase uma criança que eu tinha à minha frente.  Uma criança sem sonhos, sem esperança, sem fé ...
Uma criança derrotada, a quem tinham roubado, cedo demais, a inocência !...

Dei-lhe algum dinheiro.
O ser humano sempre tenta resolver tudo com dinheiro, não é ?
Dar-lhe-ia muito mais, se pudesse ... dar-lhe-ia um trabalho, dar-lhe-ia esperança, devolver-lhe-ia um sorriso ao rosto macerado pelo desespero, dar-lhe-ia colo e embalo ...

Assim, disse-lhe apenas : "Não desista, lute, não chore perto da sua mãe, mas sobretudo, NUNCA se deixe humilhar !  NUNCA aceite da parte de ninguém, um mau trato gratuito !  Nenhum ser humano merece isso !
Posso dar-lhe um beijo" ?

Ele deixou-se beijar na testa.
Perguntou o meu nome, e sorriu, por ser o mesmo de uma sua bisavó.
Esboçou uma expressão triste e magoada, e disse-me : " Posso dar-lhe também um beijo na testa ?"
"Claro Douglas, claro que sim, e sobretudo não esqueça  o que eu lhe disse hoje, aqui !  Boa sorte, e não desista nunca !
A juventude e o coração ninguém lhe pode roubar "!...

Acenei-lhe, e em jeito de agradecimento pelo que lhe dera, ainda me disse : " Fique com isto !" - e estendeu-me o chocolate, que tinha para vender...
"Não ... É seu "!...

Atravessei a rua de novo, agora em sentido contrário, sem olhar mais para trás.
Não consegui.
Fiquei esvaída de forças, senti-me a mais impotente das criaturas viventes, fiquei com o estômago embrulhado, fiquei com um aperto no peito, e uma escuridão atroz na alma ... que nem consigo descrever ...

Há  mil  histórias  iguais,  mas  aquela  história,  foi  "aquela"  história !!!...

Anamar

" O TEMPO CERTO "



Não gosto de frases feitas, embora reconheça que frases feitas são  feitas exactamente porque têm  fundamentos às vezes ancestrais, que as sustentam.
Parecem óbvias e evidentes essas frases.  Quando as lemos, sentimos que não nos acrescentam nada de novo.
Às vezes, apenas nos fazem reflectir em verdades tão óbvias, que já nem damos por elas ou as valorizamos, ou então, confirmam-nos que não estamos sozinhos, nesta postura ou maneira de pensar, na vida.

Uma das frases que por aí circulam, uma das tais frases que não nos subtraem nem adicionam nada, diz simplesmente que "cada coisa tem o seu tempo para acontecer " !

Esta afirmação parece deixar entregue a uma completa aleatoriedade temporal, qualquer acontecimento da nossa existência.
Esta afirmação, parece dizer-nos que podemos degladiar-nos aqui ou ali, insurgirmo-nos aqui ou ali, contra destinos, futuros indistintos ou vontades próprias.  Parece  desincentivar  lutas titânicas para contrariar um determinado percurso, que nunca nada acontecerá, antes de chegar a sua altura própria, a sua maturidade de acontecer, a conjugação de factores, que só então, naquele preciso momento, convergiram, para que isto ou aquilo, ocorresse, sempre à nossa revelia, contudo !

Esta conclusão transmite-me uma sensação insegura e alarmante, de um determinismo na vida, incontornável pelo agente da mesma.
Parece que, que rememos nós para onde remarmos, tudo só acontece, se tiver e quando tiver que acontecer, independentemente das nossas urgências ou vontades, das nossas capacidades para alterar o rumo das águas ...

Obviamente, este pensamento contraria a convicção dos mais pragmáticos e racionais, que advogam que o Homem é, o que ele fizer da sua vida .  É ele que delineia e decide o seu próprio "trilho", é ele que, com o seu livre arbítrio, sempre decide os rumos, faz as escolhas, marca o compasso.
É ele que decide para onde vai, por que vai e quando vai !...

Isto não deixa de ser engraçado, porque enquanto desenvolvo estes raciocínios, ou analiso estas reflexões, sinto não obstante, que nitidamente, na minha vida, tive, duma forma clara e sem erro, momentos em que, e só então, poderia ter ocorrido determinado acontecimento.  Nem antes, nem depois !
Antes, porque não estava capacitada para o assumir.  Depois, porque despropositadamente ele se transformaria em algo serôdio e "requentado", sem significado já de existir, sem eficácia ou gratificação !...

Há momentos claros e nítidos, em que largamos para trás, sem dor, ou com menos dor, isto ou aquilo, há momentos em que escolhemos caminhos diferentes, por esta ou aquela razão, às vezes sem divisarmos de imediato o porquê ... e não estaríamos preparados para o fazer, noutra qualquer outra ocasião.
Esses momentos advêm de um "clique" qualquer interior, não têm uma razão lógica, muitas vezes, para acontecerem, mas percebe-se que têm que ocorrer, justo naquele "timing", e não noutro !...

É quando percebemos, que embora queiramos muitas vezes dar um "jeitinho", ou um empurrãozinho no destino que trilhamos, fica imperioso e impõe-se-nos a tal aleatoriedade, o tal "tempo certo" de acontecer, o tal sinal dos tempos ... na  vida, no "eu" interior de cada um de nós, e que não há quem os contenha ou altere !!!...

Anamar

domingo, 1 de dezembro de 2013

" O IMPROVÁVEL ... "



As gaivotas já volteiam por aqui.
O dia está totalmente fechado, a falésia desenha-se fantasmagórica na linha do horizonte, lá longe, no entremeio da ramagem.  Está uma temperatura atmosférica demasiado baixa.

Contei-as ... uma, duas, três, em formação rectilínea, de asas esticadas frente à vidraça, que não convidava a que se entreabrisse.
Há de certeza tempestade no mar, porque elas voam determinadas, em busca de comida, e não em espreguiçamento lúdico, como gostam de fazer, aproveitando os golpes da aragem.
Chove, chove aquela chuva miudinha, que por indefinição, se torna irritante.
Há desconforto à minha volta. Há desconforto dentro de mim ...

É Outono, mas lá fora, apenas algumas das árvores circundantes daquela casinha, com uma porta e duas janelas, de bordadura azul e cortinas de renda no postigo, começavam a amarelecer.
O verde ainda predominava por ali. Afinal, o terreno não regateava a água que escorria das encostas.

Da escrivaninha envelhecida e bichada, da casa dos avós, encostada ao parapeito da janela  ( para que o jarro antigo mantivesse bem vivas as flores frescas, que sempre fazia questão em colocar-lhe, mercê da luz que por ali penetrava ), e onde o candeeiro aceso,  sempre  dava  um  ar  acolhedor  e  intimista  àquela sala,  vista  de  fora ...
da escrivaninha envelhecida, dizia, podia ver a cancela atamancada de velha, com uma aldraba a pedir conserto, que rangia nas dobradiças, aos abanões implacáveis do vento, podia ver o caminho que se desenhava adiante, e lá longe, como disse, a falésia rochosa sobranceira às águas zangadas do Atlântico ... e não mais ...

Aquela casa fora a concretização dum sonho muito recuado, quando o cabelo ainda não lhe embranquecera, o xailinho de lã pelas costas ainda era dispensável, e os óculos de leitura, ainda não precisavam de andar ao peito.
Fora a busca de uma felicidade e de uma paz, que acreditara encontrar na simplicidade dum lugar de verduras não presumidas, de árvores espontâneas, de algumas flores ( não muitas ), com que resolvera brincar de jardim inventado, e de meia dúzia de gatos seus, meio a meio com a natureza.
Todos amigos, todos matreiros, todos espevitados, ronronantes e preguiçosos à lareira.
Um preto, dois amarelos, um "querubim" de olhos invejavelmente azuis ... e mais uns malhados, que surgiam do nada, na hora da janta, e que nos frios e intempéries de Inverno, como  hoje, apareciam  como  pedintes, a  fazer-se  ao  resguardo  do  conforto  do  lar ...

À volta daquela casa de brincar, havia o silêncio, aquela angústia doce de recordações nunca arquivadas, o chilreio franco das aves veranis, ou o piado das corujas lá longe, na serra.
No seu interior, havia silêncios cúmplices, de serões frente a bons braseiros, com mantinhas de lã nas pernas, e boas leituras partilhadas, mantidos na certeza de que outro coração, outra  mente,  outro  colo  e outros  braços,  estavam  de  aconchego,  sempre  presentes ...
Havia a verdade que só as madeiras velhas garantem, as loiças gatadas comprovam, as braçadas de flores campestres e secas, espalhadas pelos jarros,  em coroas dependuradas nas paredes, ou em cestas sobre os arcazes velhos, as fotografias a sépia, ou a preto e branco, despretensiosamente relembram ...
Havia a genuinidade do que é simples e autêntico ... afinal, como o amor que tão curto no tempo, ali foi vivido !...
Àquela casa, batiam-se palmas a anunciar a chegada, o carteiro trazia de quando em quando, notícias dos demasiado ausentes, porque as lembranças dos sempre presentes, já só existiam nos corações...
E já passara tanto tempo !...

Hoje, as gaivotas já volteiam por aqui.
O dia está totalmente fechado ... e nem a falésia se distingue lá longe.
Está frio, chove, há solidão, saudade, silêncio...demasiado silêncio ... a única herança sobrante !

Há desconforto à minha volta. Há desconforto dentro de mim ...
E uma lágrima rolou, quando olhei uma outra vez, aquele papel amarelecido e velho, que os anos adormeceram, que ficara religiosamente sobre a escrivaninha bichada, e onde se escrevera em letra miúda, o epílogo daquela frase iniciada por mim, há que anos ... e interrompida pelo destino  ... " e no entanto eu amo-te  perdidamente  e  tenho  saudades  loucas  tuas,  perco-me  nos  meus  sonhos  contigo ... sempre !..."

" Um sonho sonhado sozinho é um sonho. Um sonho sonhado junto, é realidade ".
Curta, esta nossa realidade ...  Nem sei se chegou a ser sonho !!!...

Anamar

terça-feira, 19 de novembro de 2013

" DEIXANDO VOAR O PENSAMENTO ... "



O tempo virou de vez.  O sol  faz negaças  no meio de nuvens persistentes, e não consegue ser convincente, até porque a temperatura baixou drasticamente.  Afinal, já neva na Estrela ...

As castanhas já se assam nas esquinas das ruas, e o seu calorzinho, nos cartuchos de jornal, não só nos aquece as mãos, como também nos aquece a alma, já que aqui na cidade, não temos o privilégio de sentir o aconchegante cheirinho das lareiras acesas, que os meios rurais nos oferecem, e que tão gratificante é ao coração.

Adoro uma lareira.
Adoro passar tempos perdidos, olhando apenas o bruxulear das chamas, cutucando as brasas, até que a última se extinga.
E não deixa de ser engraçado, que essa seja a recordação mais grata, que tenho da Beira, de há muitos anos atrás, na casa que então era de família.

O frio gélido desta época do ano, beirando o Natal, cá fora, o calor confortante do lume, aceso desde manhã, e que ardia até toda a gente se recolher, uma sala de pedra e madeira, na meia obscuridade de um só candeeiro de mesa, aceso, e um silêncio e um recolhimento tão intimistas, tão doces, tão pacificadores !...
E ali ficava eu ... Eu e eu, que foi a pessoa com quem sempre tive encontro marcado, já então ...

E punha mais um tronco, e revirava os que já ardiam, e por fim, espalhava a cinza, para que as últimas brasas acesas, dessem o derradeiro calor da noite.
Às vezes só isso.  Nada mais ...
Às vezes não lia, não via televisão, não ouvia música, que não a do crepitar da lenha na fogueira ... às vezes, muitas vezes, apenas pensava, pensava muito, sentindo claramente uma incompletude de vida, de sonhos cortados  a  meio, um  vazio de  alma, uma  ausência  de  direcção, de  rumo, como  barco  de  leme quebrado, e  velas  sem  vento ...

Não sei se ali delineei conscientemente, o que viria a ser a minha vida anos mais tarde.
Não sei se ali percebi, que um dia diria adeus àquela sala de madeira e pedra, de móveis antigos, de louça de outras gerações, de relógio de pé alto e pêndulo, que nunca deu horas, de peças escolhidas por mim, uma a uma, ao longo dos tempos.
Não sei sequer se sonhei todo o percurso que viria a ser a minha vida, as curvas e contracurvas, os caminhos de saídas estreitas e difíceis de encontrar, os becos, as veredas que pareciam não ter horizonte lá ao fundo, ou também os momentos de paz junto ao mar, de  descanso  junto  de uma fonte, de sombra sob uma copa frondosa.
Não sonhei ... seguramente.  Não poderia !...

Aquela sala era o coração daquela casa, e aquela lareira, o pulsar desse coração.
Era uma réplica muito longínqua, da que existira em casa dos meus avós, na minha meninice.
Essa, então, como todas as lareiras a sério no Alentejo, era no chão, mesmo, na tijoleira de barro cozido, e ocupava o fundo da enorme cozinha, de parede a parede.
Lembro-me que os madeiros com que o meu avô a acendia, vinham a rebolar pelo quintal fora, porque ninguém podia com eles.

A casa de pedra e madeira já não é minha, mas lá, ficou enterrado para sempre, um pedaço do meu coração.
Ele está em cada peça sobre os móveis, em cada braçada de flores do campo, secas, nos jarros de loiça gatados, em cada fotografia das minhas filhas, quando crianças, nas molduras espalhadas ... em cada silêncio, em cada sombra, ou até em cada rajada do vento cá fora, soprando desabrido, do lado do rio.

Nada  disso  me  pode ser sonegado, mesmo  que  nada  já exista como eu  deixei  naquele  dia, em  que não  sabia  sequer,  que  estava  a deixar ...
Porque tudo isso eu amei e tactuei na minha mente, porque tudo isso eu sonhei, e o sonho é propriedade do Homem.  Nele, ninguém interfere, ele, ninguém apaga, ninguém destrói ... porque é seu, só seu !!!...

Suponho que não gostaria de lá voltar, porque ninguém, afinal, faz voltar o tempo !
Há filmes que vemos uma só vez na vida, e que vamos recordar sempre, longinquamente, como algo doce que nos marcou, de que não esqueceremos sequer, pormenores.
Apenas, são imagens a esbaterem-se, a fugirem-nos da mente, à medida que a Vida flui, à medida que o tempo vai passando a borracha sobre elas, e depois fica assim ... uma sala obscurecida, uma luz difusa, uma lareira a extinguir-se, e um silêncio quente a embalar a última cena ...

Anamar



 A vida é um incêndio, nela dançamos salamandras mágicas.
Que importa restarem cinzas se a chama foi bela e alta?
Em meio aos toros que desabam, cantemos a canção das chamas!
Cantemos a canção da vida, na própria luz consumida...
Mario Quintana

sábado, 16 de novembro de 2013

" SAUDADE "



Ando a escrever pouco, ando a sonhar pouco, ando a viver pouco demais ... ando a sentir a saudade que me atormenta ...

Saudade do sonho, saudade do amor, saudade até da dor que o amor deixa cá dentro ...

Ando a sorrir pouco, a acreditar  pouco, a não olhar o sol a pôr-se, com aquela saudade doce que ele nos traz, de outros pôres-de-sol ...

Não contemplo mais a lua, lugar de encontro de todos os olhos, de todos os amantes do Mundo ...

Não danço mais na chuva, a aspergir-me com a sua carícia ... Não escuto mais o mar, que levou para longe a minha canção ...

O vento que passa, não me acaricia como outrora ... Também ele não me reconhece mais ...

Deixei de saber cheirar o aroma das flores, o cheiro da terra molhada, depois de uma chuva abençoada ...

Não me enterneço mais, com os caracóis louros de uma cabeça de criança ...

... perdi-me de mim, e sofro já com a  saudade de não me encontrar por aí, pelas esquinas da Vida !...



Deixo-vos um dos "magos" da sensibilidade e da escrita ... o sempre imortal  Pablo Neruda.

Saudade é solidão acompanhada,
é quando o amor ainda não foi embora,
mas o amado já...
Saudade é amar um passado que ainda não passou,
é recusar um presente que nos machuca,

é não ver o futuro que nos convida...
Saudade é sentir que existe o que não existe mais...
Saudade é o inferno dos que perderam,
é a dor dos que ficaram para trás,
é o gosto de morte na boca dos que continuam...
Só uma pessoa no mundo deseja sentir saudade:
aquela que nunca amou.
E esse é o maior dos sofrimentos:
não ter por quem sentir saudades,
passar pela vida e não viver.
O maior dos sofrimentos é nunca ter sofrido.
 
(Pablo Neruda)

quarta-feira, 13 de novembro de 2013

" ONTEM FIZ ANOS ... "



Ontem  fiz  anos, que  é  uma  coisa  que eu já  não  fazia  p'ra  lá  de  tempo ...
Mas ontem rendi-me, que remédio !  E pensei que tenho que os apagar, não no Bilhete de Identidade, mas aqui dentro dos miolos, e ponto final !

Saí para a rua.
Estava um sol espectacular, envolventemente quente.  E fui-o aproveitando, enquanto caminhava.
Passei por debaixo de um jacarandá ( onde passo todos os dias ), neste momento sem floração, mas com uma copa farfalhuda, de um verde intenso e luminoso.
Até  fiz  uma  pausa  para olhar a cabeleira  frondosa, por cima de mim, como se fosse  a  primeira  vez  que o via ...
Que raio tinha o jacarandá ontem ?!...
E pensei, que apesar dos pesares, sempre é melhor estar cá deste lado, onde o sol me aquece e um jacarandá me deslumbra ...

Depois, tinha a minha mãe à minha espera para o almoço.  Com quase 93 anos, havia-se levantado às quatro da manhã, para, no seu ritmo, conseguir ter prontos a horas, uma assadeira de carne com batatinhas no forno, salada, fruta, e uma taça de farófias, que ela sabe ser um dos meus doces preferidos.
Mesa posta, com toalha bordada, e uma alegria que a transcendia.
Pedira-me muito, na véspera, que viesse almoçar com ela ( a velha história de poder ser a última vez ... ) ;  a neta mais velha, em quarenta minutos que tinha para almoço conseguiu por-se cá, a mais nova, que trabalhava até mais tarde, veio depois, para um cafezinho que fomos tomar as três.
Enfim, tive ali, junto de mim, os meus esteios na vida, neste momento : a minha mãe e as minhas filhas ... os afectos reais mais próximos, que me sobram ... e senti-me sortuda por isso, muito sortuda e agradecida à Vida, sem dúvida ...

O dia correu no ritmo de sempre, apenas perturbado por alguns telefonemas ou mensagens de amigos, que nunca nos esquecem, mesmo de longe, e nos aquecem o coração.

Chegou a noite e deitei-me cedo. Li um pouco de um dos livros que me haviam oferecido, e apaguei a luz, porque o sono me pesava nas pálpebras.
Lá pelas 2 h da manhã, fui brindada com uma insónia de horas, daquelas que costumam deixar-nos de cabelos em pé, e uma irritação que nos faz acordar insuportáveis, na manhã seguinte.
Espantosamente, contudo, não me incomodei com as horas que passei, de olho fechado mas de alma arregalada, na escuridão do quarto, sem ousar mexer-me, porque o Chico e o Jonas dormiam a sono solto, e eu não queria perturbá-los.
Nem sequer "encroquetei" muito na cama, porque me sentia cómoda, repousada, e aninhada, e deixei fluir simplesmente o pensamento ...

Foi então a vez de rever a minha vida, como se desfolhasse um livro.
Foi como se, numa sala, assistisse a uma película onde eu era a protagonista, e onde se narrava tudo, tudinho ...
O "tudo", que obviamente só eu conheço.
Assisti a cada período, a cada fase, a cada capítulo ... E as folhas iam sendo viradas ...

Percebi que em cada circustância, tudo foi assim, porque tinha que o ser.
Percebi que agi desta ou daquela forma, porque esse era o sentido em que acreditei, nesse instante.
Compreendi sem revolta ou raiva, que me cruzei com muita, muita gente que ficou para trás, e me deixou seguir, a quem agradeço em silêncio e sem que o suspeitem, porque ajudaram a dar significância, razão e cor, à minha história ...
Revi todos os que perdi, e por que os perdi.
Não me penalizei ou martirizei, por ter acontecido, e ter tido apenas o seu tempo.  Isso significa que eu não sabia fazer de outra forma, naquele momento ...
Percebi claramente o que procurava de cada vez, o que alcancei, e o que não.
Olhei de frente, a minha verdade em cada hora da vida, e corajosamente encarei o bom, o menos bom, e o mau ...

E senti-me em paz, felizmente.  Felizmente senti-me sem arrependimentos ou dúvidas, o que me tranquilizou e foi muito gratificante.
Desfilaram-me rostos, acontecimentos, frases largadas, palavras ditas, sonhos sonhados, a povoarem as nossas existências.  Risos, choros, mágoas, muitas mágoas, mas alegrias ... muitas alegrias também ...

Penso que fiz as pazes comigo mesma, pois assumi e percebi que a saudade e a nostalgia que sinto de pessoas, coisas ... de vida, que ficou para trás, é normal, faz parte de um processo de crescimento, e só pode fazer-me seguir em frente, liberta finalmente, para viver o que ainda me faltar e estiver destinado !...

O coração não se acelerou ... Batia no ritmo compassado de sempre, porque o que eu vivia naqueles momentos, era sobretudo uma quietude, uma satisfação interior, e a paz que habita os espíritos que têm a exacta percepção de que, por cada momento que se viveu, terão feito tudo o que era possível, e só o que lhes era devido e estava ao seu acance ...
E como diz um amigo meu, quando se vivencia essa sensação, e se afere esse balanço, o único sentimento que nos pode assaltar, é o de plenitude e tranquilidade ...
E então sim, podemos repousar a cabeça na almofada, sem sobressaltos ou angústias ... porque o merecemos !

Foi o que eu fiz, e dormi até que a madrugada já se acendia pelo quarto adentro, e eu já tinha completado mais um ano de vida !!!...

Anamar

segunda-feira, 11 de novembro de 2013

" A MATEMÁTICA DA VIDA "



A alegria a dois, multiplica-se. A tristeza a dois, divide-se ...

Há frases e pensamentos que se esgotam em si mesmos.  Este é um deles. Não há nada que se acrescente, ou que se retire, a esta matemática da Vida !
É desnecessário, está tudo dito, todos sabemos que é assim !

O Homem é um animal gregário, e ninguém pode ser feliz sozinho.
As alegrias só são plenas se forem partilhadas com cumplicidade, e as tristezas só se nos tornam mais leves, se houver uns braços que nos aconcheguem, ao suportá-las .
Até os seres mais solitários, aqueles que endureceram, muitas vezes mercê dos atropelos da vida, se rendem, ultrapassadas que sejam as "firewalls" dos afectos, como diz um amigo meu.
E quantas vezes redescobrem capacidades afectivas em que não acreditavam, aptidão para o reviver de emoções, que por esquecidas já, julgavam inexistentes, e de que se julgavam imunizados.

 E a vida vai passando, e vamo-nos degladiando sem justificação frequentemente, vamo-nos desgastando por "nadas" que se tornam "tudos" determinantes e decisivos ... vamo-nos cansando, amargurando, esquecendo o sorriso, esquecendo o quão reconfortante é ao coração, um simples silêncio frente ao mar, enquanto o sol desce lá longe e nos abraça ... vamos esquecendo o sabor dos aromas da serra, o cheiro da lareira acesa, da terra molhada, ou a lenga-lenga do mar açoitando os rochedos ...
Vamos mesmo esquecendo, como hoje, S.Martinho, meia dúzia de castanhas e um copo de água-pé, poderiam constituir um magusto dos deuses, se o partilhássemos, se o saboreássemos juntos ...

Em suma ... vamos perdendo a vida, vamo-la deixando escoar por entre os dedos, vamos abafando as ilusões, até que um dia já não temos idade ou saúde para as construir, e até os sonhos há muito nos terão deixado ...
Vamos desperdiçando os tempos, e nunca  percebemos que " o mal de quem apaga as estrelas, é não lembrar de que não é com candeias que se ilumina a Vida " !!!...

Anamar

sábado, 9 de novembro de 2013

" A LARISSA "



Fui acordada às oito da manhã, neste sábado ensolarado, com os estendais da roupa da vizinha de baixo, emperrados a correr.
Olhei o relógio, e concluí que para sábado, isto era uma verdadeira madrugada, e constatei portanto também, que era sábado, porque me perco no tempo.
Perguntei-me que raio de felicidade terá alguém ( casal aposentado, até de filhos ), estendendo roupa às oito da manhã, num sábado ?!...

Não fui fadada p'ra prendas domésticas.  Aliás, para mim, são um verdadeiro tormento.
A minha mãe poupou-me de as fazer, porque afinal, "eu tinha que estudar" ...
Casei, e como trabalhava e economicamente era comportável, sempre tive empregada.  A chamada mulher a dias, como se lembram.
Passaram várias pela minha casa, porque também sabem por certo, que elas só são boas profissionais, nos primeiros tempos.
Depois, terreno conquistado, confiança ganha, começam a fazer-se de "mongas", a enredar para o tempo passar rápido, a passar ao lado, etc, etc ... todos esses artifícios, fingindo que limpam mas não limpam, partem coisas e não dizem, e por aí fora ...
Neste momento, porque as condições económicas não suportam mais, e porque estou só, tenho a Larissa, que já está comigo para mais de doze anos.

A Larissa é uma ucraniana, que com marido e filho se sediou em Portugal há já largos anos, onde reorganizou a sua vida de emigrante, muito sofrida, por sinal.
A Larissa é um doce de pessoa.  Licenciada em Química, o marido  Engenheiro Civil, trabalham respectiamente como empregada doméstica e na construção, em lugares  subalternos, obviamente.
O filho está a terminar uma licenciatura no Instituto Superior Técnico, e é um aluno brilhante e muito esforçado.

Humilde, dedicada, honestíssima, cumpridora, disponível, é uma pessoa de uma dedicação e de uma educação extremas.
Como foi criada sem mãe, por uma avó adoptiva, revê na minha mãe, a avó que já a deixou há muito, e que ela tratou até que partiu, e tem uma doçura particular e um desvelo enternecedores, por ela.
Neste momento, a Larissa trabalha também em casa da minha filha mais velha, e está totalmente assimilada pela nossa família.

Ela já não é a empregada doméstica, como tantas que por aqui passaram, mas é uma amiga, uma familiar minha.
Comigo conversa todos os problemas que a atormentam, no seu português atravessado, porque continua a sentir-se muito sozinha, num país estranho, longe da terra onde cresceu, e onde deixou o filho mais velho.
Comigo chora muitas vezes, comigo partilha as tradições e os costumes  do seu país, da terra onde viveu, da religião  ortodoxa em que foi criada.
A mim conta todo o seu passado difícil, na Ucrânia ... e fala do pai  muito idoso e doente, a quem não pode dar assistência ...

Claro que hoje, a Larissa, à semelhança de todas, deixou de ser a empregada de excelência que era, eu deixei de lhe chamar a atenção para omissões ou imperfeições no seu trabalho, porque a nossa relação atingiu um estatuto completamente diferente.
Hoje deixei de ter uma tão "boa" empregada, uma tão "boa" profissional, mas ganhei uma boa amiga, uma confidente muitas vezes, alguém totalmente integrado na minha família, alguém com quem posso contar em qualquer circunstância, porque sei que não me faltará ...
... e isso não se compra, não se paga, não tem preço ... isso, é um privilégio na Vida !!!

Anamar

segunda-feira, 4 de novembro de 2013

" O FIM DA LINHA "



11,27 h da manhã ... quase da tarde, afinal.
Uma penumbra de madrugada, no quarto, com as persianas descidas, por forma a coar a luz do dia, que na realidade estava escuro, vi depois.
Aninhei o corpo despido, na carícia da roupa da cama, como se tivesse uma noite inteira ainda, para continuar a dormir, e senti-me violentada pelos números luminosos do relógio da cabeceira, que me arrancavam a um ninho protector, do qual não queria sair.

Ando a levantar-me cada vez mais tarde, como se procurasse adiar mais e mais, o confronto com o dia, o encarar da vida.
Ando a tornar cada vez mais curto o dia, e cada vez mais longa a noite, ou seja, ando a reduzir a existência a metade, num desapego e num desinteresse assustadores.
Aliás, neste momento, o maior conforto e gratificação da minha vivência diária, uma espécie de presente que me concedo, experimento-os  quando a casa ja se aquietou, o computador já se desligou, os gatos já dormem, e já deitada, frente à televisão, assisto, de mente vazia, ao desfilar de imagens em programas da National Geographic, que me tranquilizam, fazem viajar e sonhar.
Transmitem-me libertação e paz, e alienam-me por tempos, da realidade tão insatisfatória, cansativa, desinteressante e castigadora, que vivemos nestes tempos de purgatório,  que é a nossa vida actualmente.
Porque o dia que começa na manhã seguinte, é de facto um castigo, uma espécie de pena que sou obrigada a encarar e a cumprir, sem interesse, objectivo ou meta.

Quem me conhece de perto, dirá que não tenho razões objectivas para me sentir neste martírio ...
Ainda não tenho !...
Isto, se pensarmos no contexto em que mergulhamos, e que neste momento, o cidadão comum vivencia, de uma forma geral.
Não referindo já, as classes mais desfavorecidas,  em  que  os  dramas  humanos  grassam  e  se  multiplicam  de  dia  para  dia, sem  fim  à  vista ...

É suposto neste momento, avaliar-se quem tem perfil de resistente e quem não.
É suposto e imperioso, as pessoas serem fortes, lutadoras, corajosas e heróicas.
É suposto estar a criar-se uma élite de seres que, ou se insensibilizam, endurecem, indiferentizam e criam carapaças de defesa, e sabe-se lá como, vão em frente, sobrevivem ... ou sucumbem, desistem, atolam-se e são trucidados !

Está a cumprir-se uma espécie de triagem ou depuração, na raça humana.
Como Hitler tentou fazer, na selecção dos seres superiores, no apuramento da raça, dos que "mereciam" viver e dos que não, assim neste momento, a sociedade atravessa um processo semelhante.
A realidade social, em fim de linha, actualmete está a deixar pelo caminho aqueles que ficam na berma da estrada e já não conseguem caminhar, os mais débeis psicologicamente, os mais idealistas, utópicos  e sonhadores ;  os que têm menos armas ou defesas :  os velhos, os socialmente excluídos  ( que cada dia são mais ),  os  que  não  têm  robustez  psicológica ... os  tais  que  não  são  heróis, de  todo !...

Eu sei que "dos fracos não reza a História".  Mas também sei que a resistência estrutural do Homem, em termos psicoógicos, é algo que o transcende.
Não se compra, não se cria, não é exercitável, independe da racionalidade e da vontade de cada um.
E também sei que os super-heróis só existem na ficção, e que o mais difícil mesmo, é acreditar, por cada manhã em que acordamos, que um dia de chuva pode afinal ser um dia de sol ...

E por tudo isso, ando a acordar cada vez mais tarde !!!...

Anamar