sexta-feira, 16 de outubro de 2015

" A LINGUAGEM SECRETA "




Não sei quanto tempo mais, a minha mãe viverá.
Não sei por quanto tempo, ainda, beneficiarei do seu cólo ...

Hoje, as pernas descarnadas semi-esquecidas, a figurinha frágil de passarinho, a mente que oscila entre o certo e o errado, o real e o irreal, já não abrigam grande coisa.  Já não fazem regaço de embalar ... porque não podem.
Hoje,  a  minha  mãe  aninha-me  no  coração.  Esse,  cresceu  na  proporção  do  mingar  do  corpo ...

É a esse ninho que nunca ma faltou, é a esses ouvidos que nunca ensurdeceram para mim, é a essas mãos que continuam sábias no acariciar, que recorro, onde continuo a buscar arrego ... ainda que não me perceba direito, que não me escute com clareza, que não saiba nem sonhe, tudo o que tenho aqui dentro.

Ainda que os seus horizontes sejam agora os limites daquela sala dividida com estranhos, agora "amigos" ... ainda que a televisão lhe conte ininterruptamente, histórias cá de fora, do mundo que deixou, ainda que acorde de manhã sem ter por perto os rostos familiares que gostaria ... tem aqueles que já se tornaram extensão dos outros.  Dos que estão agora um pouco mais longe fisicamente, porém ali, ao lado, no afecto e no espírito ...

A minha mãe teve um período demasiado longo e sofrido, de corte com a realidade.  Um período em que deixou de estar no meio de nós.  Um período em que a sua única ponte  era, ou com os que a deixaram há muitos, muitos anos, ou com aqueles que espera "encontrar" no futuro.
Então, aquela minha mãe, não era mais a minha mãe !

E ela sabia-o.  Sempre o soube.
Nos lampejos de lucidez que tinha no meio daquela bruma cerrada da mente, dizia-me em desespero : " Filha, a tua mãe já cá não está há muito " !
E era um grito lancinante e um sofrimento atroz, que me aterrorizava e me deixava sem chão e sem ar, olhar e ver à minha frente, uma desconhecida, um lamentável equívoco do destino, uma injusta e patética pirraça da vida ...

E de facto, a minha mãe havia "partido" mesmo ...

Mas como sempre foi teimosa, obstinada, determinada, e sempre lutou contra todas as marés adversas no seu caminho ... como nunca foi mulher de "entregar os pontos" e sempre driblou o que parecia irreversível ... "regressou" ...

Hoje, ali onde divide os dias com os seus parceiros de percurso, parece a menina que no infantário escolhe amigos, partilha brincadeiras, conta e ouve histórias, sorri e parodeia com todos ( e são quase todos mesmo ) que se aproximam do seu rosto aberto, sorridente e disponível.
Um rosto que se ilumina à nossa chegada ... aqueles que ela guarda no mais fundo de si.

E percebo como é aconchegante, preenchedor, IMENSO ... pegar-lhe de novo nas mãos secas de carnes, onde apenas as veias desenham rios, beijar-lhe de novo a face "plissadinha", olhar-lhe sem pressa os olhinhos "piscos" ... ou simplesmente ... e é TUDO... absorver a linguagem silenciosa da sua alma, os recados mudos do seu peito, deixar-me tocar pelos fios invisíveis do seu amor, sorver a generosidade escorrente do seu coração, ler a mensagem eloquente e terna do seu olhar, sentir-me embalada nos seus braços outra vez ... e dizer-lhe tão somente, sem falar, com todo o tempo do mundo : " Mãe, estamos aqui !...  Continuamos aqui ... ainda ... OBRIGADA !... "

Anamar

segunda-feira, 12 de outubro de 2015

" MAIS QUE UMA TRILOGIA ... "




Os melhores companheiros das janelas, são o gatos.   Os gatos e as flores.

Os gatos maravilham-me, as flores sempre me deslumbram e as janelas  ... as janelas, já sabem, fascinam-me e desafiam-me.
Contam-me histórias intermináveis, de quem é e de quem foi, do agora e do antes, dos segredos ou das conversas banais.
Uma janela é um pouso sem tempo.  É uma pausa, para seres sem pressas ou compromissos.
São locais de luz e de vida.  As flores buscam-nas, e nelas sorriem, florescendo.
Os gatos aninham-se-lhes nos parapeitos, semi-cerram preguiçosamente os olhos, transformando-os numa fresta desenhada, e alongam-nos rumo ao nada e ao tudo que só eles vêem ...

Os velhos também.  Os velhos também as buscam, também as amam.
Junto à janela, tomando os raios de sol que a atravessam, quase sempre dormitam.
Às vezes "cuscam" o movimento de quem lhes anima os dias.
Meditam, distantes, e deixam-se ir, com aquele ar sapiente, legado do destino ...

A mim, as janelas aguçam-me o espírito.
Mas  não  as  janelas vulgares das colmeias urbanas.  Essas, são todas iguais, incaracterísticas, insípidas ...
Essas, são demasiado jovens para terem grandes coisas para contar ... porque as não viveram ...
Interessam-me as janelas com carisma, com porte, com estirpe.
As  janelas  concebidas  com  maestria,  por  artistas  que  ainda  tinham  tempo  para  as  conceber ...
Ou simplesmente aquelas em que a patine implacável do tempo, lhes conferiu aristocracia, dignidade ... lhes deu "marca", singularidade ... distinção !

Essas, têm histórias intermináveis, no seu espólio da memória.
Histórias de felicidade, ou histórias de intempéries de vida.  Histórias de dor, mas seguramente também, histórias de muitos risos e alegrias.
A pé firme, continuam a atestar os percursos das gerações que por elas passaram, e só não no-los desvendam, porque  aquelas  pedras, discretamente,  há  muito  desistiram  de  falar ...
São baluartes de  sonhos sonhados.  São testemunhos de projectos cumpridos.  São histórias da História das gentes que as viveram.

E depois, quando os anos que não perdoam, por elas passam, quando a sua tirania indiferente, como furacão, as abala, quando tudo à sua volta sucumbe e desiste ... ainda assim, aqueles aros esventrados permanecem hirtos, inabaláveis, com a coragem e a determinação dos fortes.
E oferecem-se então, generosamente, como molduras reais, às plantas livres e selvagens que as amarinham e as entrelaçam ...
As vidraças que as compunham, estilhaçaram há muito.  Já não delimitam o dentro e o fora, de antanho ... Mas mais bonitas do que nunca, deixam-se possuir com deleite, ostentando em segredo, o silêncio da eternidade, gravado em cada recanto secreto, em cada pedra instável, em cada musgo atrevido !...

Janelas ... janelas ... janelas ...

Velhos, gatos e flores ... Muito mais que uma trilogia !
Com  elas, as janelas, uma combinação perfeita ... uma estrada que se foi partilhando !...




Anamar

terça-feira, 6 de outubro de 2015

" POEMA DE AMOR "



Não há tempo para olhar o firmamento,
nem há tempo p'ra escutar a voz do vento
e sonhar ...
É um tempo de sombras e de silêncios,
em que o sol deita cedo,
junto ao mar ...
Era o tempo de seres cais e eu ser navio
Era o tempo de navegar o teu rio
de águas doces, da nascente até à foz ...
Era o tempo de viver acreditando,
De acordar com os pássaros cantando,
Tempo de elos, de promessas e de nós ...
Era o tempo de dormir no teu regaço
De sonhar e me envolver no teu abraço,
e me perder ...
Houve um tempo em que partiste, e me deixaste
na beira do caminho que trilhaste ...
Foi um tempo de morrer ...
E na cama que era meu ninho e meu porto,
no desenho do teu corpo
cabia perfeito, o meu ...
Mas o tempo que é o meu tempo presente,
seguiu o seu rumo indiferente,
e indiferente, me esqueceu ...
E agora ... Qual tempo é o meu tempo ?
Já não escuto a voz do vento ...
Já não navego o teu mar ...
Nas mãos, só tenho a saudade
que espalho pela cidade,
qual veleiro a naufragar !...

Anamar

sábado, 3 de outubro de 2015

" E É ASSIM ... "






De dia para dia, me sinto mais e mais uma estranha dento do invólucro que carrego.
De dia para dia, as minhas emoções, os meus sentires, tudo aquilo que me perturba ou me balança, tudo o que me aflige ou me gratifica, retorna adentro de mim, mergulha nos meus silêncios ...
Os diálogos são muito mais comigo mesma, as interrogações são muito mais dirigidas apenas à minha mente e ao meu coração, as dúvidas e as ansiedades, sentidas muito mais só na paz da minha interioridade.

Pareço um bivalve que cerra lentamente a concha, mantendo apenas uma fresta precária aberta ao exterior, numa espécie de fuga ou recusa aos confrontos com a realidade de que disponho.
Não sei se é doença, do corpo ou da alma, não sei se é cansaço, insatisfação, desânimo ... ou se me sinto simplesmente perdida por aqui.  Uma estrangeira no seu próprio "chão" !...
A cidade sufoca-me, a casa espartilha-me, o meu mundo fica-me progressivamente curto e desinteressante !

Talvez tenha a ver apenas com o Outono que vivo, por dentro e por fora.
Talvez tenha a ver apenas com o apelo da Natureza, ao ensimesmamento, à pausa, ao abrandamento ... ou não !...
Talvez seja apenas uma inabilidade de vida, um desajuste com a realidade, uma perda da expectativa de horizontes, uma insatisfação utópica face à existência, uma premência idiota e absurda de encontrar rumos outros, caminhos outros ... outras realidades ...
Talvez seja apenas ausência de fé ...
Não sei.
Sinto um apelo fundo e profundo a fechar portas e janelas, apagar as luzes, parar a faxina, cortar os circuitos ... desligar a vida ...

Daniel Sampaio refere no seu livro "Tudo o que temos cá dentro", que os suicidas não são os cobardes que simplesmente fogem às dificuldades.
Não são os desinseridos ou desajustados que não conseguem encaixar-se satisfatoriamente no figurino.
Não são os egoístas, que só pensando em si próprios, são indiferentes  ao tsunami emocional, familiar e social que desencadeiam e deixam depois de si.
Não são os desertores que oportunistamente abandonam o campo de batalha ...

São sim, aqueles que mais amam a vida e mais a quereriam viver !
E tanto a amam e tanto a anseiam, que não conseguem vivê-la com o sofrimento que ela lhes representa.
Não conseguem aceitá-la, com a incompletude que ela lhes oferece.
Não suportam mais, a dor objectiva ( porque de dor real se trata ), que ela lhes inflige dia após dia.
Não convivem mais, com a precariedade da satisfação que ela lhes propicia.

E por isso, há um dia em que "basta" parece ser a única chave de tudo.  Em que "chega", parece ser o alívio ansiado.  Em que "não" parece ser a alternativa salvadora de que dispõem ... a  libertação  do calvário  que  experimentam ... a  "luz"  nas  trevas  que  atravessam ...

E é exactamente assim !   Eu sei que é exactamente assim !...

Por isso, os entendo claramente !
Por isso , não os julgo !
Por isso, os respeito tanto !
Por isso até os admiro, e quase ... quase, lhes invejo a coragem e a determinação !

Pelo menos, eles não sucumbiram atolados no pântano, eles tiveram força para definir um caminho !!!

Anamar

segunda-feira, 28 de setembro de 2015

" UMAS E OUTRAS ... "



Andei atrás dela, a noite toda.
Eu, e eles. Os gatos ... desaustinados e endemoninhados.  Como "possuídos" por um qualquer sortilégio que não se descreve !...
Às vinte ( previsivelmente já nascida ... ), às duas, às quatro, depois às cinco e tal....
Prevenindo-me ... porque em 2033, não sei se estarei cá, para a recepcionar de novo.

Catorze por cento maior ... trinta por cento mais brilhante ... quarenta e oito mil quilómetros mais perto dos terráqueos ... mais difusa, mais vermelha ... por aí !
No eclipse, ou fora dele ... antes e após ter sido "engolida" pela sombra terrestre ... com óculos, sem óculos, com máquina fotográfica ... de menor e maior zoom ... no perigeu, ou ainda não ...
Andei atrás dela a noite toda !...

E até moro de varanda privilegiada, juntinho ao firmamento ... E até vivo paredes meias com as estrelas,  as  nuvens,  o  sol ... e  claro... as  luas,  que  me  visitam  com  generosidade ...

Mas apesar de todo este desassossego, não tenho normalmente muita sorte nestes eventos.  Acho que sempre vou com "demasiada sede ao pote"... Deve ser isso !
É certo que a minha vista já deve claudicar ... É certo que a minha ânsia de transcendência é imensa ... É certo que sempre tenho com elas ( as luas ), longas conversas de "pé de orelha", assim  numa  de  igualdade  cúmplice  e  conivente,  em  diálogos  de  mulher  para  mulher ...
Mas sendo tudo isso certo ... não deu realmente rotundamente certo !...

Quando se trata das prometidas e anunciadas estrelas cadentes... a chuva de perseidas, que são as maratonistas do céu ... sempre penso que a minha inabilidade em vê-las, se deve ao destempo óbvio, entre a corrida da lebre e da tartaruga ... Elas têm pressa... o meu olhar vagueia lento ...

Agora, uma lua gigantesca, uma superlua que se dá ao desfrute, lânguidamente deitada num céu doce e manso, como leito de amante sem pressas ... não ter matado a minha ânsia imaginada de vê-la "posar"em grande estilo ... já é demais !

Acho que, quando a fasquia sobe além da conta, tudo fica estragado !
Ingenuamente, devo ter acreditado que catorze por cento maior ... trinta por cento mais iluminada, quarenta e oito mil quilómetros mais perto de mim, "lua de sangue", assim lhe chamaram ... seriam particularidades tão visíveis e suficientes, que satisfariam estrondosamente as minhas expectativas retumbantes de fenómeno único ...
Tonta, mesmo !...

Grandiosa ?... Sim, estava !  Esmagadoramente bela e mágica ?... Sim, estava !  Comprometedoramente feminina, capciosa e tentadora ?... Sim, estava !  Desafiadora e irreverente ?... Também ... Num jogo de sombras e luzes em erotismo cósmico, sedutor e inatingível !
Ela era, de facto, uma jovem voluntariosa e atrevida, cavalgando o céu ... com a soberba de uma amazona distante e inalcançável !...

No entanto, mesmo sem luneta, sem telescópio, sem  que a tivesse esperado num descampado escuro e silente, ainda assim a superlua me devassou  com a sua luz branca  inigualável, violando-me o quarto, intencionalmente desprotegido de persianas, portadas, sequer cortinados ...
Inundou-me a cama, ofuscou-me os olhos, desnudou-me a alma e o corpo ...
E desvendou-me os segredos inexplicáveis do Universo, confrontou-me com a pequenez do humano, tangeu-me  um canto celestial ... em serenata com dimensões divinas ...

... e  marcou encontro comigo, para daqui a dezoito anos !...


Anamar

domingo, 27 de setembro de 2015

" SONHO "



Partiste e foste sombra outra vez,
além ... onde o vento faz a curva ...
Deixaste a minha vida mergulhada
neste charco tenebroso de água turva ...

Serviste-me o licor, frutas e mel,
do festim que do sonho é alimento ...
Em cálices de cicuta e de indiferença,
fizeste órfão de ti, meu sentimento !

E o tempo que vai e que volta, nas voltas da gente,
ignora a dor fria e vazia desta solidão
Amei-te  acima do certo, do tudo e do nada,
ficou-me a saudade e a dor, no meu coração !

E os dias que chegam e partem no Inverno da vida,
não sabem, nem sonham razões deste meu sofrer ...
Caminham comigo, a meu lado, numa despedida
e estarão comigo p'ra sempre, enquanto eu viver !...

E o sonho que foste e que já não és mais,
escureceu o meu dia, tirou-me o alento ...
Foi maré de praia vazia ... de areias desertas ...
Foi folha arrastada no mundo, em dia de vento ...

Foi sol que desceu no ocaso, lá longe ...
Foi batalha  perdida antes de começar ...
Amei-te acima do certo, do tudo e do nada ...
O meu crime e castigo, foi apenas sonhar !!!...

Anamar

quarta-feira, 23 de setembro de 2015

" O ENCONTRO " - flagrantes da vida real



" Estou à espera do Mário !...

Voz de timbre marcado e assertivo, num corpo débil, alquebrado, semi-curvado.
Aquele homem idoso, apoiado numa canadiana, óculos fortemente graduados e passinho muito miúdo, entrou no café e disse que ia almoçar.  Pediu uma sopa.
O seu andar era de pardalito indeciso.  Não andava ... tacteava o chão !
Titubeava em cada passo, perigando cair a cada movimento.

Pouco depois, entrou outro homem bem mais jovem.
Caminhou decidido, não parecendo surpreendido, em direcção ao velho.  Pelos vistos, seria previsível encontrá-lo ali.

- " Então, não tinha lá comida ? " - perguntou.

O velho rejubilou frente ao rosto que lhe era familiar.  Como uma criança feliz que acaba de ganhar um presente, insistiu efusivo : " Almoça comigo !  Almoça comigo ! "

- " Não ! Vamos para minha casa !  A Teresa está à nossa espera para almoçarmos ! "
- " Não posso !  Estou à espera do Mário.  Ele disse que vinha aqui ter !...  Eu estava à janela e vi-o passar, com uma criança.  Não posso ir ! "

Pacientemente, o homem novo respondeu :
- " Não.  Ele não vem.  Ele morreu há mais de vinte anos !  Vamos, a Teresa está à nossa espera ! "

E o velho, confuso, desalentado e perdido : " Então e eu não soube de nada ? "

Silêncio.  Frio.
O velho com as mãos na cabeça :  "  Ihhh  mãe ... como é que eu não sabia ?!...

A infelicidade no rosto pregueado.  O sofrimento nos olhos opacizados.  A orfandade e o abandono nas mãos trementes ...  O vazio, o medo e a escuridão !...

Mais silêncio.  O homem novo procurando no bolso, as moedas para pagar a despesa do velho.

- " Vamos ... agora  vamos  para  minha  casa, almoçar ...  A Teresa  espera-nos ! "

- " Não  posso !  Estou  à  espera  do  Mário -  repetiu, irredutível.   Ele  disse  que  vinha  aqui  ter ! "
- " Ele não vem !  Ele era seu irmão.  Eu sou filho dele, e ele morreu há mais de vinte anos, tio ! "
- " Não pode ser !  Ele disse.  Ele disse para eu esperar aqui.  Ainda há pouco o vi.  Eu estava à janela, e ele disse !... "

O passado e o presente.  O passado que apaga o presente.  Desesperante ... patético !...

A casa, os afectos, a família ... Hoje, o Lar ... As sombras demasiado espessas que cobrem o que já foi !...
E o Mário que já não vem !...

Silêncio ... demasiado silêncio ... Vida ... ou ausência dela !...

Anamar

sábado, 19 de setembro de 2015

" SONHO "



Todos deviam ter direito a um palmo de terra de plantio, que  pudessem revolver com as mãos e perceber o milagre ...
Todos deviam ter direito a um quintal, a uma floreira, a um canteiro, a um vaso de flores...

Eu sinto isso todos os dias, desde que deixei de o ter, e me confinei, dadas as circunstâncias da vida, à casa do betão, mergulhada no meio dos "cogumelos" que todos os dias eclodem à minha volta, no cinzentismo das colmeias que proliferam, genericamente iguais, como fardas de meninos de orfanato ... nem sempre bem comportados ...

"Sufoquei" a casa há largos anos atrás, quando entrei na sanha de angariar todo o espaço possível, empurrando as divisões, fechando recantos, à custa de varandas abertas à rua.
Ganhei com isso, centímetros de paredes, áreas de chão, mais móveis, mais candeeiros, mais tapetes ...
E perdi o sonho de verde, o sonho de céu, a esperança de andorinhas nos beirais, que também sumiram ... a magia do vento livre nos cabelos ... e claro, a remota hipótese de trepadeiras rumando ao firmamento, de cheiro de terra molhada em vasos inventados, e de êxtase de cor generosa em miscelânea genuína ...

E tenho saudades infinitas !

Depois, cortaram-me também a palmeira centenária frente às minhas janelas, ex-libris daquele meu chão.  E o plátano dourado, pousio de pássaros nocturnos pelas madrugadas, e de aves arribadoras, no prenúncio das Primaveras, em cada ano ... cumpriu  o mesmo destino.
E foi como se me amputassem por dentro, me empobrecessem a alma, me cerceassem o sonho ...
Foi como se apagassem o sol na minha paisagem.  Como se me extorquissem o coração ... me orfanassem o espírito ...
E entristeci, fiquei mais pobre ainda ... mais sem "amigos" por perto ...

Por isso fujo.
Sempre que posso fujo e vou atrás do apelo da terra.  Busco o chamamento das sombras, procuro o silêncio embalador das matas, a paz dos matizes, o perfume de tudo o que nasce sem ser semeado, o estalido  crepitante  do  areão  calcado  debaixo  dos  pés, em  cada  volta ...

Sempre que posso, aspiro o ar leve e transparente pela ausência de mácula, escuto o gargalhar de um riacho solto por entre as pedras, oiço o sussurro das brisas nas ramagens, as conversas dos pássaros empoleirados nos galhos ... as histórias dos silêncios nas penedias ...

Sempre que posso, perco-me de olhar uma flor já esquecida no pé, extasio-me por entre os dourados e os vermelhos das novas roupagens da natureza, sigo a nuvem que faz e desfaz bonecos no firmamento ... deixo o vento desalinhar-me o cabelo e voar-me o pensamento ...

Sempre que posso, sento-me numa pedra qualquer do caminho, num muro perdido de curva de estrada ... ou simplesmente num tufo de erva fresca ...

... e esgravato a terra, sonhando-me com chão, com rumo, com destino !!!...

Anamar

quarta-feira, 16 de setembro de 2015

" FALL "





E pronto, como sempre, no cumprimento do ciclo inevitável, mais um Outono nos espreita já aí, numa volta da estrada !

Os dias começaram a ficar meio pardos, o sol perdeu a luminosidade convincente do Verão, mas sobretudo enfraqueceu no calor com que nos afaga ...
As primeiras chuvas, o vento já desabrido e as nuvens de cara mais feia, pairam sobre nós. Acordamos com eles e escutamo-los pelas madrugadas.  De longe, encompridamos o olhar seguindo o movimento sinuoso dos novelos encastelados e caprichosos, bem à nossa frente, varrendo o cinzento uniforme.

Eu moro juntinho do céu.
Tenho o privilégio de, por cima de mim, só ter o firmamento, ter os telhados do casario espreguiçando-se aos meus olhos ... e com sorte, ter alamedas abertas até ao sol ( desde que se ergue, até que adormece,  lá ao fundo ) ... E  ter caminhos francos até à lua, e às estrelas aqui por cima !
Por isso, o meu horizonte é quase sem horizonte !...

Eu nasci no Outono, no entanto é uma estação que custo a atravessar ...
Por um lado, estes primeiros sinais de recolhimento  impostos pela Natureza, sempre me convidam à introspecção, ao intimismo, ao ninho ... ao útero ...
E talvez, disso já sentisse  saudades ...
E isso agrada-me, aconchega-me e aninha-me ...
Por outro, para quem está só, para quem os tempos não são fáceis, a redução da luz, o encurtar dos dias, a aragem fria que nos enxota para casas silenciosas ... desconfortam,  e potenciam todos os sentimentos mais sofridos do ser humano !

É o tempo da folha  cair, é o tempo em que o fulgor das cores estivais dá lugar ao recato doce dos tons quentes e aveludados, dos dourados aos vermelhos, passando por todos os cambiantes de castanhos ... Como se a Natureza quisesse presentear-nos apenas com emoções cálidas e calmas, como se quisesse remeter-nos ao afago do embalo, rumo à estação agreste que virá depois ...
A "hibernação" inicia-se.
À nossa volta, os "decibéis" da Vida, baixam ... na antecâmara do sono que a aguarda.

Época de recolecção.   A Natureza, generosa, oferece o que de melhor nos preparou.
E despe-se.  Despe o manto garrido de folhas e flores, sons e aromas dos tempos que nos deixam,  e encaminha-nos para o ensimesmamento, para o "baixar das luzes" ...
Tempos de reflexão, propiciados por dias curtos e noites compridas ... Tempos de solidão ... Tempos pesados !...

Mas são também tempos felizes.  Tempos de partilhas e cumplicidades.
São gostosos os passeios sem horas,  mergulhados nos primeiros agasalhos,   pelas veredas da serra, ora  atapetadas de folhagem ...
E sentir o cheiro intenso das carumas, dos musgos trepadores de caules seculares ... o cheiro inconfundível da mata !...
É gostoso cortar as uvas, apanhar os cogumelos selvagens, os arandos, os mirtilos, as framboesas, as nozes, as avelãs, os medronhos, as romãs ... e também os marmelos e os diospiros ... Tudo  quanto há-de virar compota de dias doces!...
É gostoso  deambular pelos areais já vazios, rasando a beirinha da maré ... e brincar com os seixos, olhar as gaivotas ...  mais donas das praias do que nunca, colher os ouriços dos castanheiros, úberes das castanhas já maduras ... dividir as mãos em bolsos que se tornaram comuns ... e seguir rindo ou silenciando, conforme o momento ... conforme a emoção !...
É gostoso ... para quem pode ...

Sempre assim ...
Sempre igual ... e contudo, sempre diferente, sempre novo, sempre inesperado !

Damos por nós a concluir que ainda fora ontem ... e que afinal, mais um ano entretanto passou !...




Anamar

domingo, 13 de setembro de 2015

" QUIMERA "


A minha mãe pediu-me um colar
e em cada conta do mesmo, estava um sonho de sonhar ...
Pediu-me uns brincos também ...
Neles se guardavam histórias,
e pingavam as memórias,
que a sua vida contém...

Foram lendas, foram esperanças,
Foram contos e lembranças
que p'lo seu rosto, passaram ...
Sorriu ao espelho outra vez,
e num milagre que se fez,
as mãos que tremem, pararam ...

Todas as cores  e matizes
lembrando dias felizes
no seu rosto a afoguear,
devolveram-lhe a candura,
despertaram-lhe a doçura,
quando lhe dei o colar !...

E em cada sonho sonhado,
feito um rosário desfiado,
por momentos, renasceu ...
A menina, hoje velhinha
com a cabeça bem branquinha
de novo,  sonhos teceu ...

E o seu silêncio profundo
que continha  a dor do mundo,
tinha  a imensidão do mar ...
Mas ...
Olhou ao espelho e sorriu,
adormeceu e "partiu" ...
quando lhe dei o colar !...

Anamar

sexta-feira, 11 de setembro de 2015

" ADIANTE ... SEMPRE ADIANTE !... "


Liga-se a televisão, e é inevitável.  Lêem-se os jornais e é inevitável.  Entra-se na Internet e é inevitável !

Não há como fugir às notícias, como ignorar a realidade, como esquecer o terror, como encolher os ombros à angústia.
A sangria rumo à Europa, de fluxos intermináveis de gente em fuga, de continentes em dor e sofrimento, lembra a escorrência incontrolável das avalanches monstruosas encosta abaixo, nas derrocadas e deslizamentos das altas montanhas.
Também aí o processo não se trava.  Também aí, o caminho é imparável ... e há uma inevitabilidade de morte e destruição, que não se detém.
O Homem não tem capacidade de freiar essa catástrofe.

O êxodo dos refugiados, a migração desesperada de milhares e milhares de seres humanos, em fuga da guerra, da miséria e da morte, configuram talvez já, o maior flagelo do século XXI, e reportam-nos de novo, aos tempos escuros e doídos, da Segunda Guerra Mundial.
As imagens eram então a preto e branco ... agora são bem coloridas. Mas os rostos de famílias inteiras em desespero, transportam em si, o mesmo tipo de sentimentos : horror, cansaço, medo, dor, angústia ... dúvida, incerteza ...
Mas também esperança, determinação e fé.
No limbo, entre o nada ter e o poder assegurar pelo menos a vida ... na divisória que separa o risco do que virá, e o nada ter já quase para  arriscar, há uma força interior que impulsiona  aquelas torrentes humanas,  que sem rumo ou norte definido, assumem que é proibido olhar para trás ...

Impressiona-me particularmente, o rosto dos milhares de crianças arrastadas no caudal, pelas mãos ( num esforço exigido, seguramente acima das suas reais capacidades ), aos ombros, em carrinhos, nos braços de mães e pais que tentam desesperadamente  aninhá-las, protegê-las, subtraí-las, se isso fosse possível, às agruras de toda a ordem a que são submetidas.

E seguem, em rios de gente ... seguem sempre ...

Que se passará nas suas cabecinhas infantis ?...
Que será feito dos amiguinhos de rua, da escola onde deveriam estar, da casa que habitavam, das bonecas e das bolas com que deveriam jogar ?...
Que lhes será dito, sobre a insanidade que vivem ?...
Que lhes será explicado, sobre os afectos que lhes ficaram pelo caminho ?...
Que lhes será exigido, para também elas não desistirem, não adoecerem ... não morrerem antes de tempo ?!...

E não há parança.  Não há remédio.  Não há solução.
A chaga social há muito aberta em África e Oriente Médio, continua a purgar.  O exsudado fétido corre inevitavelmente, como se os diques precários tivessem cedido ... como se fosse impossível estancá-los !

E nós por aqui, numa Europa humana, política e socialmente incapaz, sentimo-nos agoniadamente mal ... muito mal !
Os homens não se concertam nas políticas a tomar, nas acções a desenvolver, nos rumos a dar a esta gente.
Os esforços dos organismos de apoio humanitário são curtos, são gotas de água, são pequenos curativos, visando minorar apenas temporariamente, a dor e o sofrimento pungentes.

Erguem-se fronteiras, arames farpados,  constroem-se "campos de concentração", levantam-se muros ... outra vez !...
Engendram-se combóios, cheios ao milímetro, no transporte, por vezes enganador e desumano, dos migrantes. Lembram Auschwitz, Birkenau ... o caminho  para o horror !...
A Europa barrica-se de novo.  E barrica-se também em si mesma, porque os medos e os terrores, também lhe minam as entranhas !...

As sociedades e os países vivem crises inomináveis.  Sobre o nosso chão mesmo, também os nossos "refugiados" e "migrantes" se avolumam, com a ausência de recursos, a precariedade das condições de vida e oportunidades.
Também aqui, a maioria sobrevive ... Pouco se vive !
Os nossos velhos estão desprotegidos, e arrastam fins de vida indescritíveis.  Os jovens vêem horizontes limitados à sua frente, e confrontam-se com uma desvalorização e desaproveitamento das suas valias e capacidades ...  E partem, também eles !
A geração charneira, aqueles que estão etariamente pelo meio, vão percorrendo o trilho destinado ... um dia de cada vez, em cinzento e pardo ... de sol manso e enevoado ... esperando apenas, que nenhum maior sobressalto  lhes assombre a marcha, ou que de repente, lhes tire ainda o curto e incerto chão, que têm debaixo dos pés ...

Como se pode então pedir, que estas sociedades doentes, de doença crónica  contudo com dor controlada, se abram a amanhãs desconhecidos, imprevisíveis, com consequências inimagináveis, mas que se adivinham gravosas ?

Porque a chegada desta leva incontrolável de pessoas, é como o assalto de mais ocupantes, a um bote precário, de lotação há muito esgotada ... É como a chegada de um salvador,  junto de quem está na iminência de afogamento ...
São questões de sobrevivência ... e o desespero da sobrevivência, tudo permite, como sabemos.

Em sociedades com sérias precariedades, com desequilíbrios e assimetrias profundas sem resolução visível ... como assimilar uma sobrelotação que implica a todos os níveis, um agravamento do peso social, que não conseguimos carregar nas costas  ?!...
Como aceitar a entrada de povos, cujas raízes culturais e religiosas pouco conhecemos e nada têm a ver com as nossas, acarretando o risco inerente de maiores  clivagens e fracturas sociais ?!...
Como não recear, que estando conotados com fundamentalismos religiosos e políticos extremistas, estes povos ( que talvez  injusta e levianamente reconhecemos por norma, associados a actos bárbaros e de vandalismo absoluto ) ... não aproveitem esta infiltração encapotada, subscrita e aceite pelos países hospedeiros, para  aí  alcançarem os seus desígnios criminosos ?!...
E como tal, o racismo e a xenofobia recrudescem, como defesa, eventualmente  legítima !

E depois, há todo um aproveitamento político, que se joga nos bastidores e que o comum dos mortais não alcança, e que advém duma engenharia ardilosa, dos lobbies de que infelizmente tanto ouvimos falar ...
Passam-me pela cabeça infindáveis interrogações, cujas respostas não descortino com clareza :
porquê a Alemanha, super potência do velho continente, sempre tão rigorosa, pouco maleável e radical nas exigências aos seus parceiros europeus, encabeça agora uma posição de tanta tolerância, colaboração e disponibilidade ?!
De tanta filantropia e redenção?!...
Será mesmo e apenas, isto ?
Que interesses e manipulações menos louváveis, se escamotearão e presidirão por detrás de um "rosto" aberto e generoso ... franco e fraterno ?
Quem se "serve" também, de toda esta situação ? Porque será indubitável, que também se jogam economicamente interesses fortíssimos, em todo este xadrês ...

Depois, porquê os irmãos de "sangue" e de convicções religiosas, os parentes ricos do Médio Oriente, os que falam a mesma linguagem de coração ... não se chegam agora à frente, e não assumem a postura humana e religiosa expectável e propagandeada nos seus dogmas ?!
O que ditariam os seus Profetas ?
O que ordena o Alcorão, na questão em apreço ?!...

Enfim ... demasiado complexo para mim !
Demasiado obscuro para todos nós, acredito  !
Intencionalmente demasiado confuso, para o entendimento do maioritariamente desinformado e ingénuo cidadão ... ( com quem também se joga em chantagem emocional ) ... quer-me parecer !
Nada linear !  Nada exactamente o que parece !  Nada exactamente o que na verdade será ... seguramente !...

Enquanto isso, as hordas de gente perdida, atravessam mares, calcorreiam caminhos, engolem pó, engolem a fome, a dignidade e o desespero que os corrói ...
Enquanto isso, secam as lágrimas, carregam os filhos ... calam os gritos de aflição ... silenciam a revolta dentro do peito ...
Enquanto isso, enterram os mortos, pelo caminho ...
Enquanto isso, as crianças não mais adormecem as bonecas, na beira das estradas, não mais carregam os livros nas mochilas da escola ... não mais pontapeiam bolas, em campos passados e felizes ...
Enquanto isso, não mais escutam canções de ninar, em sonos que não são de paz e tranquilidade ...
Enquanto isso, os seus olhos incrédulos e sem luz, opacizam de cansaço e doença, os corações esvaziam de sonhos nunca vividos, e as suas almas desesperançadas e sem futuros, sufocam o medo ... e continuam em frente, sempre em frente ... ao ritmo do que as suas pernas pequeninas, as levam...

... adiante ... sempre adiante ...
Num suplício e num pesadelo, que nós, os que por aqui estamos, não sonharíamos ainda, ter que assistir, impotentes, nesta nossa existência !!!...





Anamar

quinta-feira, 3 de setembro de 2015

" VIAJANDO ... "





Gostava de voltar a encontrar-te ... Pensa nisso.
Que idade tens tu agora ??  Quarenta e quatro, e tu ? Conversa estrategicamente contornada.  Para quê, pensar nisso ?...
Cinquenta vai fazer o António, breve, breve ... e o João ... Sempre o João !
Reencontrei-o, tinha trinta e oito ... Como é possível ?  Ainda foi ontem !...

Tudo inacabado !  Esquinas e mais esquinas.  Ângulos rectos de vida, a impedirem o olhar de se insinuar outra vez, no trajecto percorrido.
Sim, porque nas curvas, a gente sempre espicha os olhos pela paisagem que foi, e pela que há-de ser ...
Assim o é, nas encostas das montanhas.  E nada se perde quase em definitivo !

Tudo estranho !

Saudades da Maria.  Esquisito saber-se alguém nosso, que já não é bem nosso.  Que anda por aí ... Bem ?  Mal ?  Vivo ?
Sim ... tem que estar vivo.  Ainda que longe.  Ainda que seja um filho nosso ( que dizem ser um pedaço de nós ... )
Então, como pode um pedaço de nós ter-se soltado, e voejar ... sem que o saibamos ?
E como existimos nós, sem esse pedaço ?!
Por que é a vida feita de amputações ?!

Esquisito ... tudo esquisito !

Quero ir e quero ficar ...

Como é que alguém pode dizer  que vai  lutar sempre ... insanamente ... numa  roda louca de hamster ?!
Assim, sem pensar.  Engrenado,  simplesmente ... atordoadamente ?!  Sem sequer querer sentir o que deixa, o que dispersa,  nos restos que vai largando pelo caminho ?!
E que um dia morrerá ... mas que até lá vai continuar adormecido, autómato de um destino, morto-vivo,  sem o saber ?!...  Como pode ?!...

Percebo-me numa varanda, numa mansarda ... E só olho os bocados de histórias semi-escritas.
Passam vertiginosamente, ligeiras ... umas ... Outras estão amodorradas nas soleiras dos bancos de jardim ... sem pressa.
Fazendo render os minutos, que têm a mania de escoar-se rápidos.
Essas são as histórias que mergulham em silêncios.  As outras, tagarelam pelas ruas, gargalham nas esplanadas, que são sempre lugares de sol.

Gosto de me perder no penedo, em frente ao mar.  Porque aí, eu mando no horizonte.
Levo o sol, devagarzinho, devagarzinho, a percorrer a descida, ao ritmo que eu quiser.  E só o deixo dormir, quando eu também estiver cansada.
Comigo, o vento no seu zunzum entorpecente.  Comigo, os pássaros que vão e que vêm.  Que são livres e soltos.  Comigo, os caminhos incompletos que percorri.  As veredas que me fizeram retroceder.  As estradas sem saída, os ziguezagues do destino ... os labirintos da vida ...
Vida !...
Como o vai-vem das ondas lá em baixo, onde o mar se faz mar a sério.
Sempre diferente, enganadoramente igual, na melopeia da sua canção ... Como os dias ...

Os olhos húmidos ...

Sem nexo ... quase tudo sem nexo !

Acordar, dormir ... acordar, dormir.  Que brincadeira mais sem norte !...
Marionetas ... palhaços ... robots ... sei lá !
Como aquele homem de olhar macerado, que naquele café, lavou o olhar na água fria, como se quisesse acordar ... como se quisesse lavar a alma ...
E saíu sem dar por nada, sem estar ali ... carregando na mesma, o pesadelo escuro que lhe pairava por cima , e não sabia ...
"Marionetas" ... somos só marionetas.  "Peões de xadrês", disse o João.  E o "Arquitecto", a divertir-se sei lá onde !
E as lágrimas a escorrerem-me.  Porquê ?  Porquê isso ?!
Perplexidade e impotência !  Triste ... demasiado triste !...
Há tanto tempo já !...
Será  que  o  homem  ainda  anda  carregando  por  aí,  aquela  nuvem  negra,  ameaçando  borrasca ?!
E aquela sombra de desesperança no rosto, que a água daquele café não lavou ?!

O João já não lembra ... seguramente.  Só se eu o recordasse.  Então, eu tenho a certeza que ele lembraria aquela longa conversa, de pequeno almoço fora de horas ...
A existência ... o viver ...
Esta coisa do acordar, dormir ... acordar, dormir ...
E nós, pequeninos, pequenininhos ... por cá, neste terreiro de feira ... a sermos olhados, sadicamente ... Só a sermos olhados ...

Tudo estranho, tudo esquisito ... tudo sem nexo !...

Quero ir e quero ficar ...

Os olhos húmidos ...

Anamar

terça-feira, 1 de setembro de 2015

" CURTINHA ... "




Setembro chegou.
Enfarruscado, mal humorado ... cinzentão !
Chegou com prenúncios de chuva, com ameaças de vento, com mercúrio a cair no aparelhinho.
Chegou uma coisa assim, mal convencida, com cara de quem não é carne nem peixe, apitando o fim da partida ... doa a quem doer !

Recomeça a azáfama.
A "canalha" já anda eléctrica, a antever aquilo que irá fartá-los, lá mais para a frente.
Os livros pintam-se de cores convidativas, por enquanto.  As mochilas, os ténis, os fatos de treino ... e mais os estojos, os cadernos e tudo o que faz e mais o que não faz falta, mas que se insinua das vitrinas, deixa os putos acelerados, em "palpos de aranha".
Os pais, esses fazem e refazem as contas de um mês que promete ser " longoooo " ...

Sempre assim ... sempre igual !
Ano após ano, a miudagem recém chegada do calorzinho dos areais ainda bem mornos  mas muito mais vazios ... tem uma urgência urgentíssima, de rever os amigos, os colegas, os companheiros.
As novidades de férias fazem-lhe cócegas debaixo da língua.  Há uma pressa no ar  que se percebe , que se sente, que se transmite.

Até o sol amarelou, com cara de parvo.
Não consegue mais pintar a bochecha radiosa, com todo o empolgamento dos dias decorridos.
Já só convence poucos !

Começa a olhar-se a roupa e os sapatos ... e a verificar-se como num passe injusto de mágica, as mangas puderam encolher tanto !..
A constatar-se como as biqueiras  se tornaram impiedosas ... E já que as sandalinhas, não demora estão de lado ... fazer o quê ???!!!...

Como foi possível os ganapos terem medrado assim, em escassos meses ?!
Será que os regámos de mais ?!...
Será que nos distraímos,  mergulhados que estávamos, no creme suculento das bolas de Berlim ?!...
Será que adormecemos nas areias mansas, e recusámos acordar antes de tempo ?!...

Sempre assim ... sempre igual !

E como tenho saudades !...

Anamar

sábado, 22 de agosto de 2015

" OCASO "





Aproveita este minuto
porque o depois, é depois ...
e o que passou, já não é ...
Logo, a flor vai  dar fruto
E o fruto morre no pé ...

Respira o ar do agora ...
Quando acordares, já é tarde
Mal nasce, o sol pousou...
Tudo passa e não demora
Quando vires, chegou a hora
O caminho já cansou !...

Prende bem juntinho a ti,
cada ilusão que tiveres,
cada sonho e cada crer ...
Colhe braçadas de esperança,
Ramos de cada lembrança ...
Tudo isso, foi viver !

E esgota todo o momento,
como sendo o derradeiro,
aquele que queres guardar ...
Um dia, ao virares a esquina,
a mulher, ontem menina,
não tem mais o que sonhar !...

Anamar

quinta-feira, 20 de agosto de 2015

" PORQUE HOJE É DIA DE FESTA ... "




O Kiko comunicou-me que está num "parque temático"...  Que vai entrar agora, e depois logo me conta.

O Kiko faz hoje oito anos, e é o terceiro da "escadinha".
Talvez por ser o terceiro, é o mais descontraído, o mais desinibido, despachado e independente, dos três.
Não tem papas na língua, tem resposta para tudo e vive permanentemente "ligado à corrente" ...

Está de férias em Madrid com os pais e os irmãos, e pelos vistos, de visita a um "parque temático" ... ( rsrsrs )
Quando lhe perguntei se achava bem esta coisa de fazer anos e não estar ao pé de mim, riu-se com aquele riso complacente de quem dá o desconto a quem não sabe muito bem o que diz !...

É assim !...
Ainda nasceu "ontem", e pronto ... já está aí a fazer-se à estrada !

Tenho a sensação de que o Kiko tem uma estrelinha de " vencedor", a pairar-lhe no destino, face à postura que já lhe adivinho na vida.
É um pequeno-grande homenzinho, responsável, bem disposto, sempre em festa !
É o que se criou, sem que déssemos por isso.  É decidido e cumpridor na escola.
É adepto e aplicado nas práticas desportivas, no seu Sporting de coração, onde elegeu o judo, como modalidade no tapete, e eu acho que na vida também ...
Vai interiorizando os seus princípios subjacentes, no caminho do aperfeiçoamento pessoal, reforço do auto conhecimento e auto confiança.  Não no espírito competitivo agressivo, da sociedade actual, mas sim numa base de humildade, generosidade e acima de tudo, cooperação, tão fundamentais nestes tempos conturbados de hoje ...

Alguns destes aspectos, o Kiko já evidencia ter assimilado, felizmente !

Parabéns Kiko !
Que a vida te premeie, numa estrada que ainda só adivinhas, mas que terás que trilhar ... e que o seja, na senda da FELICIDADE !...

Anamar

sexta-feira, 14 de agosto de 2015

" PORQUÊ ? "



Nunca me ofereceste um búzio ...
Vi isso agora, que vasculhei outra vez a gaveta das memórias ...

Por que será que eu colecciono memórias ?!  Devo estar a envelhecer !
Os velhos é que recuam no tempo, e vivem disso.  Os velhos é que obscurecem o presente que já não amam, e buscam aconchego no passado.
Nele, deambulam para a frente e para trás, e não o largam mais ...

Tenho conchas e seixos de todas as praias ... Tenho mesmo areia e corais.
Tenho até estrelas, que já haviam desistido de viver no mar ...
Mas não tenho um búzio !  Não, dado por ti !...

Já sei ... tiveste medo que ele me contasse segredos que querias invioláveis ... que me trouxesse notícias de outros oceanos ... me deixasse ouvir de novo, as confissões que me fizeste então, quando as falésias, os limos e as algas eram nossos, quando jogávamos à bola, no meio dos rochedos ...
Ou quando perdíamos simplesmente o olhar, no voo preguiçoso das gaivotas ...

Os búzios são indiscretos.  Contam sempre tudo.
Mesmo no pino do Verão, põem-nos a escutar o bater alteroso das ondas em dias de borrasca, quando o Inverno é agreste e impiedoso.
Basta chegá-los ao ouvido e escutar.  Saber escutar ... porque está lá tudo : os queixumes do mar que açoita a orla das praias distantes, o sopro do vento que embrulha a espuma e a joga em rendas entretecidas na rebentação ...
Está lá tudo !
E se escutarmos bem, os grasnidos das gaivotas, dos albatrozes, das andorinhas do mar e das fragatas ... também  lá  estão,  como  numa  fita  de  gravação.  Sempre,  de  noite  e  de  dia !...

Quem os tem, nunca está só.
Eles trazem as saudades de longe.  Lembranças dos mares do sul.
Lá, onde o calor é tórrido, lá onde os cheiros doces e os silêncios sábios nos tactuam a pele ... e o cruzeiro do sul governa o rebanho luminoso que pastoreia no escuro, bem escuro, do firmamento ...
Lá, onde o caminho é tão longo, quanto a liberdade do sonho ...

Mas tu nunca me ofereceste um búzio ... Vi agora.

Tenho as rosas e as madressilvas, tenho as pinhas e as flores sem nome ... tenho até as margaridas silvestres, já desfolhadas.
Tenho os caminhos e as sombras, e os muros, de pedras plantadas a esmo ...
Tenho os pores de sol e as amoras dos carreiros.  Os canaviais e todas as histórias infinitas que contavas ...
E a mata e o pinhal ... E o tempo todo do mundo, que eu achava que nunca se acabaria ...

Mas que tonta !
Não há nada que mais rápido se esgote, que este tempo já sem tempo ... porque o cansaço se abateu ...

Tenho tudo !
Tudo o que me povoava, naqueles dias soltos e leves.
Foi ontem.
E já passou uma eternidade !...

Pronto, vou ter que fechar outra vez a gaveta das memórias.
Vou ter que me conformar ... Não tem mais jeito !...
Aqui, de tão longe, afinal não posso mesmo ouvir o mar !...

Tu nunca me ofereceste um búzio !!!...

Anamar

domingo, 9 de agosto de 2015

" ATÉ BREVE ! "






O Alentejo tinha deitado para a sesta.

A quietude e o silêncio haviam descido à terra.  As sombras projectavam-se no chão, e era nelas que o  gado  que  pastoreava  se  acomodava,  na  fuga  ao  calor,  insuportável  àquela  hora ...
A boca de uma fornalha acesa !...

Os únicos verdes ainda viçosos que assomavam, eram das vinhas e dos campos de girassol.  Tudo o mais era um braseiro de castanhos, ocres e amarelos queimados.
O restolho e o feno ressequido, eram o que restava das searas já ceifadas.
Os ninhos das cegonhas, agora totalmente abandonados, continuavam encarrapitados nos postes de alta tensão e no alto das árvores esquálidas.
Surgiam-nos aqui e além, charneca fora, lembrando que ali houvera vida há tempo atrás.
Era então Primavera, e o Alentejo, verde e florido ...

Não há sons na paisagem.  A dormência abate-se.
O Alentejo respira paz ...
Não mexe uma folha, e apenas o som dos besouros e abelhões que parecem cirandar sem destino, atravessa a planície.  Até as cigarras deram uma trégua.
Também os pássaros recolheram.  Voltarão, quando a tarde descer e alguma brisa fresca abençoe a terra.

E do chão sobe aquela coisa que é berço, é colo, é útero e é eco ...
É um apelo sem voz ... é a terra que fala ... é o resfolegar do silêncio e da solidão ...
Não se explica ... só se sente !
É como um retorno aos braços da mãe ... É como o abraço do amante ausente.  É o ombro, é o afago, é a carícia no cabelo, quando a brisa mansa sopra do montado ...
É um convite ao embalo, como se uma canção de ninar nos desse arrego, nos convidasse a deitar a cabeça e a repousar ... simplesmente a repousar na eternidade, porque o Alentejo é eternidade ...

Volto lá, sempre que o peito sufocado precisa de ar.
Volto lá, sempre que a "fome" me aperta as entranhas, sempre que o coração mingua no peito e a alma fenece e me atormenta.
Volto  lá,  quando  preciso  reencontrar  as  raízes,  reavivar  as  memórias,  conferir  os  espaços ...
Quando preciso achar cada esquina imutável, no sítio exacto onde a deixei.
Quando preciso escutar o som das gerações, no lajedo das calçadas.
Quando preciso  rever as sombras que permanecem, ouvir a voz dolente e cantada de todos os que foram... Porque todos já foram ...

Quero encontrar a minha avó com o cabelo em carrapito, avental à cintura, com o negro perene da viuvez ... a chamar-me, ao portão ...
Quero encontrar o meu avô, comigo pela mão, a caminho do chafariz, na hora de dessedentar o Carocho ...
E a minha tia a migar as sopas da açorda, na mesa de pedra ... e o pratinho da romã para o lanche ...
Quero o queijinho seco e as azeitonas retalhadas, roubadas aos punhados, da "tarefa" da despensa, e comidas  às  escondidas, no  terreiro  do  quintal, por  onde  as  galinhas  ciscavam ...
Quero os pirolitos fresquinhos, da cesta mergulhada no poço, junto às avencas que cresciam espontâneas, nos rochedos do fundo ...
E quero que me façam de novo as tranças, me vistam o bibe, e me deixem jogar à "faia", riscada no largo de terra batida em frente à porta ... ou ao berlinde, na sombra das árvores de copa farta ...

E nunca chegam para saciar o que tenho aqui dentro, as horas que por lá fico ...
Nunca mitigo esta fome de reencontro.
Nunca preencho os espaços devolutos do afecto.
Nunca recupero os pedaços da minha identidade, para que possa reconstruir-me outra vez ... que não seja já, hora do regresso ...

E o Alentejo lá fica ... de novo, à minha espera.
De novo, aguardando que a voz da terra ecoe rumo ao horizonte, e me alcance ...
Aqui,  deste  lado  do  Tejo ... aqui,  nesta  terra  de  ninguém ... aqui,  onde  a  orfandade  dói  mais !!!...

Não é uma despedida.  Não é um fechar de porta.  Não é uma partida ...
É, e será sempre, um "até breve" !...

Anamar

terça-feira, 4 de agosto de 2015

" AQUELE LUGAR AO SUL ..."




De alguma forma, eu sou apátrida.

Nascida dos quatro costados na charneca alentejana, a vida encarregou-se de me saltitar de "déu em déu"...
Ainda não tinha dois anos e já deixava a aldeiazinha raiana, da qual obviamente não guardo nenhuma memória, e rumava a Évora.
Em Évora espiguei.
De Évora retenho as primeiras memórias doces de consciência a forjar-se, os primeiros creres, os primeiros sonhos, os primeiros amigos ... o primeiro amor ...
Amor de doze, treze anos ... Tão "sério" quanto o permitem  ser, toda a ingenuidade, toda a singeleza, toda a autenticidade dos sentimentos forjados no peito de uma menina metida a mulher !...

Em Évora comunguei  a História, a tradição, senti as raízes cravadas na planície, aprendi a liberdade de horizontes sem limites, entendi o som do silêncio das searas ondulantes, partilhei a melopeia  das cigarras no meio de tardes escaldantes ... ou segui o voo largo da cegonha, demandando o ninho ...

Em Évora,  miscigenei-me com os sentires de Florbela, embalei-me no som dormente dos cantares do monte ... suspendi a respiração, com a sonoridade do sino da aldeia distante, às avé-marias ... ou confundi-me  simplesmente, com os chocalhos do gado na sossega do fim de dia ...

Em Évora, ouvi o som dos passos no lajeado das travessas e alcárcovas solitárias, escutei o eco das palavras nos claustros silenciosos ... bebi a seiva, que trepa o corpo de quem nasceu no Alentejo !

Em Évora, senti a intangibilidade do carácter vertical de um povo !
Palpei o tamanho da solidão, no monte perdido no nada, o inconformismo das eras, e a força de um sangue que não verga !...

Mas  arrancaram-me da minha cidade, como quem arranca a flor da esteva nascida sem ser perguntada, na  planície sem fim ...
Extiparam-me  a liberdade de potro solto no montado ...
Cortaram as asas à garça que plana na terra recém-revolvida ...
Apagaram  a estrela do boeiro, no meu céu afogueado da canícula da tarde.  E todas a miríades estelares que ponteiam as madrugadas escuras, e que só lá, naqueles campos se desvendam ...

E trouxeram-me para a cidade grande.
E na cidade grande eu tornei-me órfã de coração.
Na cidade grande, eu entristeci de alma ...

O apelo da terra povoa as minhas noites despovoadas !  O chamamento do chão  corre-me quente nas veias !  A simbiose dos genes  leva-me inapelavelmente para o sul ... como um suão que soprasse, e ao qual eu não quisesse resistir !...
Lá, onde o branco é muito mais alvo, o ocre e o cobalto, emolduram as vidas ...
Lá, onde repousam todos os que eram eu, antes de mim ... e que hão levar além, a minha linguagem da carne ...
Lá, onde as memórias estão inscritas em cada pedra da calçada, em cada esquina, em cada sombra que se alonga ...

Irei ao Alentejo muito em breve.  Não sei como, mas sei porquê !

Como uma febre sazonal  que me toma, me invade e  me domina, a minha mente não pergunta, não questiona, não resiste  ...
Leva-me ... simplesmente me leva !!!!

Anamar

sexta-feira, 31 de julho de 2015

" AQUELE AGOSTO ... (memórias idas ... ) "



Era assim ...

Chegava  Agosto, e o destino estava traçado !...
Iríamos  enfrentar  a  Nacional  nº1 ( ao  tempo, a  autoestrada  era  só  uma  esperança  remota )  !...
Uma odisseia e tanto !

Nada, que umas sete ou oito horas não resolvessem ! Isto, se a praga dos camiões TIR, não se plantasse bem  à nossa frente na estrada ... Aí, o pára-arranca seria  inevitável, e o tédio da viagem, crescia.

Nada, que nos livrasse de cinco, seis ou mais paragens, distibuídas entre  o xi-xi, o pão caseiro da Benedita, os panados com arroz de tomate malandrinho do Manjar do Marquês, as especialidades doceiras de Penacova, e mais as pausas  p'ra um cigarro fumado  e os músculos desentorpecidos ...

Nada, que evitasse sermos  massacrados cem vezes, com a pergunta recorrente e desesperante :  "Ainda falta muito " ??!!

Carro atulhado ( parecia o "camião das mudanças" - dizia o pai ), um calor exasperante, a raparigada no banco de trás, dividindo ao milímetro o espaço.
7 e  3 anos, não davam paz a ninguém. Discussões, gritaria, puxões de cabelos, choros e ofensas, exigiam permanente  necessidade  da  interferência  da  mãe, a  pôr  ordem  nas  hostes ...
Sem alternativa, depois de esgotados todos os jogos possíveis, todas as cantorias imaginárias, vistos todos os livros de histórias, e sem que o sono desse tréguas ... depois de todas as  tentativas de entendimendo, com uma guerra desenfreada das almofadas, e já semi-despidas, as pestinhas eram silenciadas, em desespero  de  causa,  com  a  arma indiscutível  de  uns  quantos  oportunos  tabefes, distribuídos a eito ... acerta  aqui,  acerta  ali !!!

De nada adiantava lembrarem o rio, que corria lá no finzinho da terra . Nem os "alfaiates", que planando adormecidos sobre a água fresca, provocavam gritinhos de pirataria entre a miudagem menos habituada a nadar no meio deles ...
De nada adiantava lembrarem a pilhagem das maçarocas de milho, nos milheirais dos vizinhos ... que nunca da avó, claro ...
Ou as uvas, que já maduras enfeitavam os muros do caminho, a prometerem doçuras gulosas para o lanche ...
De nada adiantava lembrarem a brincadeira sem fim, descalças na terra, os "bolinhos" feitos  com a farinha das galinhas, desviada à surrelfa, para "venderem" nas quitandas do sonho ...
De nada adiantava degustarem por antecipação, os jogos de cartas, ao sete e meio, ao burro deitado e em pé ... que  a mãe  haveria  de  deixar,  contra  os  horários  da  cidade,  debaixo  da  tileira,  na  mesa  de pedra, e  os  meninos  todos  do Vau  em  roda,  chilreando de felicidade !...

De  nada  adiantava ... porque  a  maldita  viagem  era  uma  Via  Sacra, que  nunca  mais  tinha  fim !

"Ainda falta muito" ???
"Quantos  quilontros" ?  - dizia  a  mais  mindinha, com  língua  de  trapos  pouco  desembaraçada ...

Era assim, Agosto !
Eram os grilos, as bicicletas, as amoras, as abóboras para retalhar e fazer carantonhas ... e tudo, tudo o que ficaria a ser lembrado o ano inteiro !
Era a Júlia, a Rita, o Rui, o Alberto e o João, amigos que o serão até morrer !

"Venham almoçaaaaarrrrr .... "- gritava a mãe na porta da cozinha.
Vá-se lá saber por onde as crias andavam !!!....

O martírio da viagem já ficara para trás.  Valeram  a pena as traulitadas, os berros e as promessas de castigos, logo esquecidos pela mãe...
Valeram a pena, porque era  Agosto ... e  aquele Agosto ... acontecia só uma vez no ano !!!

Anamar

" BALANCEANDO A VIDA ..."





Há vinte e três anos que o meu pai partiu.  Há seis, partiu o Óscar.  No dia de hoje, 30 de Julho.

Não ponho obviamente as duas efemérides, em igual patamar.  Nem poderia.
O Óscar era "só" um gato, que partilhou comigo toda a sua existência, desde que ainda tinha os olhinhos azuis do leite, até que a doença implacável lhe findou a vida, talvez com dezasseis anos, ou perto disso.
Meu companheiro, contudo !
Foi-me oferecido no aplacar da dor da ausência do meu pai.
Mauzinho, bravio, sobranceiro ... safado, guardou para mim, o melhor de si.  A única ternura que tinha por alguém, era a mim que a dava.  As festas que recebia com alguma bonomia, eram também as minhas ...
Amei aquele gato !

A vida entretanto roda, roda, faz-se todos os dias ... ou não se faz.
A minha está parada, mortalmente parada.
É interessante, ou talvez não, constatar como neste momento as minhas emoções estão totalmente embotadas.  À excepção de uma, que vale por todas, e me toma por inteiro, sem remédio : uma profunda tristeza, desalento e cansaço.
Uma espécie de limiar de nada.  Uma espécie de antecâmara de coisa nenhuma !...

E não estou a conseguir já, enfrentar nada disto.  não estou a conseguir reunir munições para esta guerra !
De dia para dia me sinto mais no fundo, com um fundo que eu julgava fixo, e que se afasta sem remédio, levando a descida a continuar sem limite.
Cada vez o "buraco" é mais longe.  Cada vez o túnel escuro avança mais, o poço fica mais frio e profundo, e a progressão da queda não pára !...

Conheço estes sentires.
Identifico claramente este "não viver", esta desistência, esta insatisfação que dói horrores, este desnorte que nauseia ... este fazer de conta que existo !
Conheço este atoleiro, esta astenia anímica ... esta incapacidade de me ajeitar por aqui ... esta vontade louca de ir embora ...
Conheço esta sensação de me saber perdida no meio de gente, aturdida no meio do caos, estonteada como no vórtice da montanha russa, esgotada como nos labirintos sem saída, aterradores, que nos atormentam nos pesadelos ... sufocada, como se uma mão gigante me espremesse o peito e tapasse a boca !...
Conheço demais !!!

E quando sonho, sonho sonhos azuis , de horizontes translúcidos, e águas cristalinas em fragas ensolaradas ... apesar de tudo ...
Porque, bem no fundo, eu sonho ...  Às vezes eu sonho !...

E nesses momentos,  recupero a esperança de reverter  a minha vida.  Porque eu ainda hei-de ter uma vida que valha a pena !
O pano não poderá descer, sem que eu tenha vivido uma derradeira cena feliz, digna de quem tanto apostou, se digladiou e apesar de tudo, acreditou ...
Seria injusto demais !...

Anamar

segunda-feira, 27 de julho de 2015

" ERA O TINTO, MEU BEM ERA O TINTO !!! "




Sabem aqueles dias, que não se "salvam" de nenhuma forma ?
Sabem aqueles dias, em que dizemos: "não deveríamos ter saído da cama" ?
E aqueles em que temos a sensação que, em desespero de causa, só os salvaremos, fazendo uma asneira monumental ??!! Porque, perdido por um, pedido por mil ???.... ihihih

Pois é ! O meu dia de hoje, foi mais um, "destes"... valha-me a santa !

Chegada a casa, depois de uma perda de horas sem tamanho, que devo cumprir, por inerências familiares, e em que me desdobro a inventar algo interessante que mas ocupe, e em que o estado de espírito em que mergulho, não propicia sequer fazer alguma coisa de que goste ( como ler, escrever ... não  exactamente  contar,  mas  ouvir  música  por  exemplo ... ) ...
Horas essas em que o melhorzinho que consigo, é olhar perdidamente a paisagem, que é muito tranquilizante e bela, mas sempre a mesma, todos os dias ...
Consultar o relógio de meia em meia hora ( para constatar como certo e determinado tempo custa a passar !... )
E esfalfar-me a apanhar sol ( o que também não é muito ortodoxo, porque estamos em Julho, porque os dias estão quentíssimos ... e por todas as razões  que conhecemos, desfavoráveis à saúde, ) ...
uma sensação de vazio e tempo perdido, preenche-me.

Compensações procuradas, em desvario, pelos armários, lembram-me que :
as cerejas já acabaram, desgraçadamente ...
nem um chocolate esquecido, habita esta casa ...
nem um biscoito, quiçá um bolo, por aqui se perdeu ...  O máximo de que disponho, é um triste pacote de bolachas  de água e sal, desenxabidas e desconfortantes ... ( maldita mania das dietas !!! Agora é que vejo !...) Até  como  sucedâneo,  o  meu  espírito  as  enjeita !...
batatas fritas de pacote, também não há !
nem uma goma ... talvez uma pastilha elástica .... Nada !...

Espero que conheçam, este "desespero", este "destempero", esta "aflição" surreal, talvez tipicamente femininos ... não sei ?!

Bolas, que desassossego ! Parece castigo imerecido, creio ... punição do além !...

Desalentada, mexo e remexo no esconso dos miolos, na busca de uma qualquer outra ideia luminosa, que me solucione este problema existencial ...

Numa das dez idas ao frigorífico ( parece que acredito em milagres ... :), deparei-me com uma tímida garrafa de tinto alentejano, reserva especial, colocada meio adormecida, numa prateleira, à espera de melhores dias !
Não acredito em coincidências ... mas, talvez a dita estivesse ali para salva os restinhos do meu dia !...

Acho que os meus olhinhos, que primeiro constataram, depois analisaram, e depois ainda reflectiram ... piscaram e sorriram malandros e felizes ... com aquele ar debochado, de menino prevaricador ...
Tenho a certeza que se eu fosse um boneco animado, era a altura exacta em que uma lâmpadazinha sugestiva, se acenderia sobre a minha cabeça !...

"Eureka" ... Aqui está o x da questão " !... - foi o que pensei !

Cálice de pé alto, vidro fino ao melhor estilo ... e, olhem ... já vou no segundo copo !!! ihihih

Um único senão : isto com uma companhia boa, é que era !!!!  ihihih

Ah..... Uma última informação : juro que, em momento tão solene,  não me trajei tão a preceito, quanto documenta a foto que acoplei ao meu texto  !!!! ihihihih

Anamar

domingo, 26 de julho de 2015

" DEVANEIOS "




Aqui donde estou, eu vejo o mar ...

Vejo-o, sempre que fecho os olhos.  Vejo-o, sempre que olho o céu aqui por cima.
Depois, caminho mais além, derrubo as serras, os montes, afasto a cortina do arvoredo cerrado, e de repente, lá está ele ... no fim daquela encosta sobranceira .
Está calmo ou agitado, conforme o olho.  Não começa, nem acaba nunca.  É de mil tons. Tem as cores do arco-íris ... mais todas aquelas que ainda não inventaram !...

A mata de pinheiro manso termina no topo da falésia, a vegetação rasteira, de solo arenoso, forra a rocha agreste por ali abaixo.
As flores silvestres, que não pedem para nascer, pintalgam aqui e além, com tufos coloridos.
As amoras bravas adocicam os viajantes, e o sol aquece, envolve e embala ...

E está tudo lá, que eu sei.  Nos mesmos sítios.
Os muros com  as pedras empoleiradas, os caminhos tímidos e o verde matizado.
As gargalhadas e as palavras que por lá esqueci ...

Por que não posso eu ver o mar, daqui ... ora essa ?!
Eu sei que os meus olhos já não enxergam direito.  Eu sei que os contornos nítidos, já só são coisa da minha mente e do meu coração ...
Tudo, porque o tempo anda a brincar comigo !
Mas o meu querer manda no sonho.  E eu sonho sempre que quero.

Basta que cerre os olhos, ou que olhe o céu aqui por cima ...

E  também  invento  gaivotas ...  E  oiço-as  nos  voos  planos  que  fazem,  bailando  na  aragem ...
E sorvo o cheiro intenso da maresia, porque essa, eu transporto no bolso da alma, na caixinha dos segredos.
E escuto, nítido, o vai-vem das marés que nunca cansam, que nunca dormem, mesmo quando os Homens repousam no cólo das mães .
Sou salpicada pela espuma que rendilha a beira do mar ...
Abro a porta à brisa da tarde, e deixo-a ir, solta e leve, bênção e paz de corações atormentados ...
Como eu, ela vai sempre mais além.  Como eu, ela rompe distâncias, busca caminhos, procura destinos.
Não há correntes que a prendam.  Não há prisões que a amarrem.  Não há cansaços que a demovam ...
Ela vai sempre mais além !...

Eu quero dormir no mar! 
Tem que ser o mar, o meu berço de eternidade ... Onde mais ?!
A  minha  terra  tem  mares  de trigo, a minha mente tem mares de sonhos, o meu sonho tem mares de infinito !...

Um dia, eu quero dormir no mar !!!...

Anamar

sexta-feira, 24 de julho de 2015

" NÃO HÁ VOLTA A DAR ... "




A gente não gosta de confessar que vive em solidão.  E não gosta, por muitas razões.

A solidão pode ser uma mera circunstância do destino, mas admiti-lo, pode também ser o reconhecimento de uma incapacidade pessoal : a inabilidade para "reter" junto de si, laços afectivos, empatias ou afinidades, ao longo da vida.

De alguma forma, quem se ama nunca se separa verdadeiramente, quem tem empatia ou reconhece afinidade com alguém, normalmente não se afasta desse alguém, porque com linguagens próximas, interesses similares ou gostos idênticos, o eco emocional que retorna da partilha, é gratificante e ajuda a viver.

Poder reflectir junto, sonhar junto, olhar na mesma direcção com alguém ... fazer planos, arquitectar futuros, ou simplesmente não dizer nada e apenas "sentir-se" ... aliviam a carga que nos é destinada diariamente, atapetam caminhos difíceis, amaciam veredas sinuosas, dão-nos vitaminas para a alma ... devolvem-nos a esperança !
 A divisão do fardo, alivia esse mesmo fardo, enquanto que a partilha de uma emoção cúmplice, potencia essa mesma emoção !...

E por isso, o aceitar-se que não se alcançou esse desiderato, o colocarmo-nos alvo de alguma comiseração ou "simpatia solidária", de alguma forma inibe e fragiliza, porque estigmatiza socialmente.
E o Homem silencia em si, a mágoa dessa incapacidade !

Neste momento, calculo que a solidão seja uma das maiores "pragas" à superfície da Terra.
Nos grandes centros populacionais, é mesmo gritante.
A grande metrópole cria muros, nunca pontes, entre os indivíduos.  As pessoas cada vez vivem mais sós, em verdadeiros guetos, entrincheiradas nas suas colmeias, reduzidas à célula quase anónima das suas casas.
O ser humano vive embiocado em "construções de lego", impessoais e descaracterizadas, e com um bocadinho de jeito, não conhece sequer os que partilham consigo o seu espaço próximo.
Pode estar feliz, pode sorrir, pode chorar, pode desabar entre as suas quatro paredes ... pode sofrer ... pode morrer ...
Dificilmente alguém o pressentirá ... dificilmente alguém o saberá.  Pelo menos, atempadamente ...

Na generalidade, o mundo é de indisponibilidades.
O Homem, nesta época de tecnocracia exacerbada, da sociedade massificada, da competição desenfreada, da formação para o sucesso fácil, da ascensão a qualquer preço, da valorização do supérfluo em detrimento do essencial ... o "salve-se quem puder", num egocentrismo sem tamanho, a ausência de escrúpulos e de solidariedade  ... isolam as pessoas, centram as pessoas em si mesmas  e nos seus interesses, e privilegiam a solidão.
A correria da vida actual, as necessidades prementes, impostas por uma estrutura social excessivamente musculada, que não se condói, promovem o afastamento progressivo, por reais incompatibilidades de figurinos ajustáveis, semeando uma solidão muitas vezes acompanhada, mas real !

Por outro lado, também o avanço da faixa etária tende obviamente a instalá-la.
Numa fase da vida em que muito do melhor que possuíamos nos vai sendo sonegado, em que já perdemos fisicamente muitos dos nossos afectos, em que a pujança, a robustez e a frescura nos falham, em que os sonhos começam a assombrar-se com a realidade objectiva, em que o crer e o querer também claudicam face às naturais e irreversíveis leis biológicas, a solidão será então a mais devastadora, injusta e dolorosa pena, que algum ser humano poderá em cúmulo, sofrer !!!...

A gente não gosta de confessar que vive em solidão, por muitas razões ...
Mas na verdade, se mais não for, como seres gregários que somos, jamais nos habituaremos a conviver com ela !!!...

Anamar

segunda-feira, 20 de julho de 2015

" QUASE SEMPRE VOU ... "





Todos os dias eu vou.

Vou para qualquer lugar ... onde o pensamento me leva.  Onde o coração me conduz.  Onde o sonho me transporta ...  aonde a saudade me desencaminha ...

Bato asas, olho o galho onde poiso, e lanço-me no azul.
E voo na brisa da tarde, além, além, e mais além.  Há muito que não tenho horizontes que me limitem.  Não tenho muros, paredes ou barreiras que me tolham.
Nem os caminhos sem sinais que os orientem, me constrangem.
Não tenho desertos, sequer dunas ociosas  com veleidades de prisão, que me demovam ...

Basta-me o ramo da cerejeira ... porque de lá vejo o Mundo.  E o Mundo passa a ser meu, refém da minha vontade, submisso ao meu desejo, escravo daquilo que invento.
E invento todos os dias.  E espero todas as horas.  E respiro esta ânsia marinheira de barco sem amarra, cada minuto !
Sou viajante de destinos sem destino, que desenho na mente, que imprimo no espírito, tactuo na pele e grito no vento !

Os meus pés pesam infernos.  Praguejaram-me raízes fundas, que tentam em vão prender-me na rocha ...
Cortaram-me as asas, pensando que me esqueciam o caminho ...
Cerraram-me os olhos, julgando que me faziam desistir da emoção da viagem ...
Taparam-me a boca, achando que me sufocariam o grasnido solto de gaivota livre na aragem ...
Ataram-me os braços, para que desistisse do abraço quente, do universo infinito ...
Esfacelaram-me o coração, não sabendo que ele continuaria a pulsar sangue quente, nas minhas veias ...

Mas até os caramujos são livres, e em cada onda que os afaga, enviam recados de esperança ...
Até as algas que pernoitam as marés, devassam os fundos e passeiam à bolina, pelo mar de Deus ...
Até as árvores milenares não se condenam ...
Silenciosamente, sobem acima de todas as copas, na floresta fechada ...
Corajosamente, engrossam troncos de vontade, e espreitam o sol, garante de vidas que ainda hão-de viver ...

Esqueceram-se que me reinvento.  Esqueceram-se que tenho mil vidas numa só ...
Esqueceram-se que sonho ...

E que todos os dias vou ... Vou para qualquer lugar !!!...

Anamar

quarta-feira, 15 de julho de 2015

" O DESFAZER DO NINHO ... "




Que sensação estranha, esta que experimento !...

Desde o afastamento definitivo da sua casa ( por razões irreversíveis de saúde ), da minha mãe, que eu passei a ir lá, com a mínima frequência possível.  Apenas o indispensável à retirada do correio, e ao regar das plantas que enfeitavam a cozinha.
Não consegui abandonar  flores que sempre cuidou com esmero, gosto, e muito carinho.  Eram para ela, "companheiras" da vida, como fazia questão de dizer.  Havia pois, que tratá-las !

E era de facto um "jardim" lindo, o que existia junto à janela larga, de parede a parede, naquele apartamento de rés-do-chão, sempre estranhamente obscurecido, à excepção daquele espaço.
Ali, a luz que entrava a jorros, propiciava plantas saudáveis, verdejantes, denotando um "astral" muito positivo.
Sempre invejei aquele "verde", eu, que não tenho o condão de conservar junto de mim, plantas felizes ...
"Carecem de uma conversa, de uma carícia ... " - dizem.  Eu não sou muito dada a essas coisas ...

Não me fazia bem encarar a escuridão daquelas divisões fechadas, olhar a imobilidade daquele espaço inerte e silencioso, a acumular poeira, a denotar abandono, a transpirar solidão.
É um espaço adormecido, a morrer, também ele, aos poucos, como se o tempo lá tivesse parado,  como se apenas as recordações, as memórias, as imagens do passado, ali circulassem.
Como se apenas os fantasmas ainda ali vivessem ...

Foi uma casa de mais de cinquenta anos.
Para ali fui viver ainda menina.  Dali saí, casada ... menina ainda.
Ali, estudei madrugada adiante, na ciclópica empreitada das férias de ponto, nos exames.  Lembro os do quinto ano, que com matérias  a perder de vista, nos matavam a cabeça...
Ali, verti as primeiras e sentidas lágrimas, nos primeiros, e por isso "grandes" amores.
Ali, pintava os olhos com lápis de cor, às escondidas da minha mãe, antes de sair para o liceu, nos meus quinze aninhos de então ...
Para lá entrei com a minha filha mais velha nos braços, acabada de nascer.
Lá, ficava com a avó enquanto eu trabalhava.  Lá, almoçávamos diariamente, os petisquinhos da minha mãe.  As crianças chegadas da escola, eu, do liceu ... o meu pai presente ainda ... parando já muito por casa ...
Lá, tive o meu pai numa cama, dois anos, até que um dia nos deixou.
E tantas, tantas outras histórias, que mais não são do que a história de vidas, as vidas que por ali se fizeram, por ali se cruzaram ...
Se calhar, afinal como com toda a gente, se calhar como com todas as casas ...

Hoje, tenho em mãos a dolorosa e ingrata necessidade de desfazer aquela casa.

E o retirar das peças da sua impecável arrumação, o violar das gavetas e dos armários com recheios desconhecidos, o simples profanar daquele ar, são uma violência sem tamanho, na minha alma.
Entro, e fico parada, hirta, sem forças ... quase petrificada, tolhida, incapaz ...
Parece que procuro alguma coisa, sem encontrar.  Parece que saqueio.  Sinto-me um ladrão de sonhos, de emoções, um salteador de vida vivida ...
Sinto-me numa viagem inglória, de regresso ao passado, sem o resgatar, num presente demasiado doído.  Sinto o peso da tristeza ali instalada ... e "vejo" as janelas abertas, a luz a entrar ...
Escuto os sons, as vozes, as conversas, os risos e até as discussões de antanho ...
Oiço os bifes da minha mãe a frigirem na cozinha, e o seu cheirinho denunciador, a alcançar a escada ...
Lembro a surpresa das farófias no frigorífico, ou a taça da salada de fruta ...
E lembro o meu pai, agastado com a correria das netas em torno da mesa, perigando as benditas "jarras" ( que sempre achei horríveis, mas que ele amava ), sobre o aparador ...

Não sei como será, passar por lá, um dia destes, percebendo outras vidas naquele espaço, outra gente naquelas janelas, adivinhando-a a deambular naquele chão ... secando roupa naqueles estendais, atravessando a soleira daquela porta ... Não sei !...
A casa dos meus avós, tornou-se já "lenda" na minha história.
A dos meus pais, breve será uma memória sangrante !...

Hoje, é já um pesadelo ir àquela casa.
É um desencavar de tudo o que já não existe há muito, é um vasculhar nas sombras idas, é um perturbar a quietude dos silêncios, é um chamado longínquo às lembranças distantes, é um acordar dos que partiram ... é o arrastar do peso monstruoso de mais uma perda na minha existência !...

Afinal, nada mais é do que o derradeiro voo da ave, que abandona para sempre, o ninho desfeito !!!

Anamar

sexta-feira, 10 de julho de 2015

" MORRE-SE ... "




Morre-se um pouco quando se perde alguém.
Seja alguém que nos deixa fisicamente, seja alguém que a vida nos rouba, por muitas e quase sempre injustas razões.

E as pessoas morrem-nos talvez mais doídamente em vida, do que partindo pela inevitabilidade da mesma.
Para isso, acho que estamos mais preparados, pois afinal esse é o destino a que ninguém escapa.
Esse é o destino que a todos espera, pelo simples facto de termos nascido.

Contudo, perder pessoas pelo caminho, perder pessoas que desviaram da nossa rota, porque fizeram encruzilhadas em sentidos diversos ... porque mercê de tantas circunstâncias não puderam ou quiseram seguir-nos lado a lado no mesmo trilho ... ou ainda, perder pessoas que nos morreram nas "mãos", nos morreram no coração e acabaram secando na nossa alma ... é excessivo, é monstruoso ... é quase insuperável !

Morre-se ... embora eu não saiba bem, o que também parte de nós.
Não sei se é a saúde, a alegria, a vontade ... não sei se é a esperança, o sonho, o sorriso, a paz, a força de viver ...
Sei é que não voltamos a ser os mesmos.  Sei é que nos sentimos amputados em algum lado, e pela profundidade da dor lancinante, a ferida só pode ser no coração.
Lá, onde todo o repositório da nossa vida descansa ... nem sempre em sossego.

E fica-se assim ... vazio, exaurido ... com um buraco cavado no peito, com uma ausência na alma, como se de repente o único horizonte que nos resta, fosse um écran gigante, branco, totalmente branco e despido.  Um horizonte desesperançado que não convida ao caminho, à progressão e ao esforço.
Um horizonte que não tem sol a nascer nem a pôr-se ... que não tem estrelas ou luas brancas ...
Que nos remete a uma hibernação interior, que nos mergulha num estádio letárgico, que nos coloca a alma em quarentena, como um feto aninhado no útero materno.

E uma escuridão abate-se, uma cerração fecha-se, e só o sono é retemperador, só ele apazigua, só ele alimenta, só ele parece proteger.

E nele nos refugiamos.  Quando também ele não nos falta !...

E o mundo fica a preto e branco, e as cores esbatem, esbatem, até que indefinem os contornos e a luz dá lugar à sombra, em olhos que apenas estão abertos, só olham, mas não vêem mais ...
E um cansaço atroz desce, envolve, cerra, como se portadas de janela se fechassem, como se penumbra densa invadisse a sala e escurecesse a tarde, como se um crepúsculo antecipado, gélido e petrificante, caísse e findasse o dia ...

E então, mesmo as tais flores amarelas que por engano floriram no canteiro, não terão mais razão para sorrir !...

Anamar