segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012

" MARGOT "


Margot subiu ao piso de cima.
Estava cansada, exausta mesmo, mas a voz de Giselle ordenara ... não havia escolha. Mais um cliente aguardava no quarto do primeiro andar.  Não havia outras "meninas" disponíveis, e mesmo que houvesse, ele escolhera-a a si !
Naquele momento, como em quase todos, quereria morrer.  As coisas só se tornavam menos penosas, quando "metia" uns copos, da garrafa que escondia entre os seus parcos pertences.
Com eles se anestesiava, com eles se atordoava ... através deles, esquecia.

A sua vida era curta ainda, mas longa demais em sofrimento.
Lembrava os tempos em que na pequena casa em que vivera, com o quintal das sardinheiras e o jacarandá ao fundo, sonhava que os seus sonhos se cumpririam um dia.
Gostava de se sentar à tardinha, quando a canícula se abatera ( e já corria uma breve aragem abençoada ), debaixo da única árvore do quintal, jardim sonhado por si ...
Fora ela, com as suas mãos que a plantara, e todos os anos, como que agradecida, ela se adornava pujantemente de lilás, se enfeitava, como quem vai p'ra uma festa !

A planície de sobreiros e azinheiras, prolongava-se sem horizontes, para além do quintal, até onde a vista alcançava e a terra tocava o céu !
As andorinhas, as garças, as cegonhas, os cucos, os melros, no início das Primaveras perambulavam por ali ... pássaros livres, sem medos ou limites.
Os campos sempre se bordavam de macela, papoilas, esteva ... tufos de giestas ao fundo, junto do ribeiro que por lá corria ; a urze também se perdia, salpicando o montado ...
Flores da sua infância, quando corria solta pelas terras, feito um potro sem freio, para apanhar raminhos e oferecer à mãe !!!

Onde estavam hoje essas flores ??
Onde estava hoje a mãe, o quintal do jacarandá, a brisa da tarde que acalmava o fogo que emanava da terra ??!!
Tudo perdido lá para trás, numa vida que Margot raramente queria lembrar, raramente podia lembrar !

Hoje a sua realidade era aquela casa de pesadelo, aqueles homens de pesadelo, até o seu nome era pesadelo que a atormentava em noites sem sono ...

Margot subiu ao piso de cima.
Entrou no quarto, iluminado apenas por uma meia penumbra do dia que começava a cair.
Ele estava sentado na cama, de costas para a porta, como que preso em pensamentos.  Quase não deu por ela entrar ...
Ah !  Era "aquele" homem, quase o único homem que a tratava como gente, naquela casa.
O homem que a escolhia, e muitas vezes apenas a acolhia nos braços, e no colo que lhe tinha ficado tão longe !...
Nunca o percebera, não sabia sequer o seu nome, não sabia por que ele sempre a preferia às outras, mesmo quando disponíveis.
Não conhecia os seus segredos íntimos.
Ele falava pouco de si, mas do pouco que falava, Margot sabia-o sensível, doído, com um peso de alma inexplicável.
Costumava aparecer meio cabisbaixo, entristecido, parecia, mas tinha uma forma doce de a olhar, de a "ver" ... até de a acarinhar ...

O "homem sem nome",  tinha dentro de si um segredo do tamanho do Mundo, que devia pesar-lhe e o tornava muito "pessoa" ...isso, Margot  pressentia-o claramente.

Naquela casa, naquela vida, era difícil não se ser "invisível", irrelevante, nada !
Era difícil que alguém pudesse ser uma "mulher", verdadeiramente para alguém ... pouco mais que objecto, coisa de utilidade prática, vaso onde se despejava toda a imundície das estórias e das vidas.
Tudo era demasiado impessoal, doidamente impessoal, agressivo e triste !

Naquela casa, Margot era simplesmente a "Margot", uma "menina" mais, sem história, sem passado, sem destino ...
Também, a quem interessaria que ela tivesse tido um quintal de sardinheiras com um jacarandá ao fundo ?!
A quem interessaria que ela tivesse gostado de ouvir os trinados dos pássaros, no fim das tardes de Agosto, quando o calor amainava ?!
A quem interessaria que ela tivesse tido mãe, a quem oferecia raminhos de flores catadas nos campos, quando por eles corria, em criança ?!
A quem interessaria que Margot tivesse sonhado um dia, e acreditado, que os seus sonhos viriam a concretizar-se ?!
A quem interessaria que Margot não fosse de facto Margot ?!

Olhou-o, esboçou um sorriso ( normalmente o seu sorriso nunca era feliz ), e acariciou-lhe lenta e docemente a cabeça ...

Foi então que o "homem sem nome" lhe estendeu o mais bonito ramo de margaridas silvestres, que colhera para ela ... As primeiras, desabrochadas por entre os frios do Inverno agreste, que ainda se fazia sentir !!!...

Anamar

2 comentários:

Anónimo disse...

Anamar,
adoro a sua ficção e imaginação , faz-me lembrar a escrita de Jorge Amado ou ainda mais recente de um escritor amigo o Jorge Marques que tem um livro sobre o mesmo tema.
Parabens.
Jonas

anamar disse...

Olá Jonas

Obrigada, sempre.

Hoje,"saíu-me" um tema sensível que ficcionei ao meu jeito.

Beijinhos

Anamar