sexta-feira, 24 de fevereiro de 2012

" SE ACORDAR A HORAS ..."

Não cultivo muito as relações.
As relações interpessoais, as de vizinhança, as de conhecimento superficial, se calhar as de amizade, se calhar as de afectos reais.
E no entanto, de alguma forma, dependo delas ou de algumas, para me equilibrar ...
Vivo muito na minha concha, no meu buraco, no meu "figurino" excessivamente musculado, que eu sei !

Dizia eu num post recente, que os "psis" buscam na cesta desarrumada das nossas infâncias, razões para linhas personalísticas definidoras do que somos, como somos .
A minha "cesta", acho que é um pouco parecida às já anedóticas malas das mulheres. Têm tudo, está tudo baralhado, nunca se acha nada ( embora saibamos que está lá ), ou seja ... um perfeito estado caótico ou caixa de Pandora !!!

Mas algo muito concreto me surge desde sempre, como claro e perfeitamente objectivo : a ausência de relações entre pessoas, que tive ao longo da vida, sobretudo enquanto vivi em casa paterna.

Recordo bem, em miúda, o perfeito boicote exercido pela minha mãe, a idas ou vindas de outras crianças a nossa casa e consequentemente de mim a outras casas.
Não queria "desarrumações", nada podia estar fora do sítio, o ritmo e esquema de vida, não podiam alterar-se.
Por outro lado, sempre me inculcou um sentimento de desconfiança e defesa, face a terceiros.
Amiga verdadeira era exclusivamente ela, pessoa confiável também, já que os outros quereriam apenas saber, para comentar ou criticar.
As potenciais amiguinhas e confidentes que qualquer criança ou adolescente arregimenta para clã seu, ficavam assim proscritas de relação mais próxima ...

Hoje, ao pensar nisto, arrepio-me, e um sentimento de raiva "amarinha-me", porque efectivamente, assim, desta forma tão simples, se moldam personalidades, se direccionam irreversivelmente formas de ver e viver a vida, de nela estar e a sentir ...

Dou de barato que a minha mãe tinha por mim um sentido protector obsessivo e possessivo ... dou de barato que sentia sobre si, excessivamente o peso da responsabilidade única da minha educação / formação, porque a vida do meu pai lhe impunha ausências prolongadas ...
Dou de barato que o fez por não o saber fazer melhor, porque ela própria não tinha instrução / conhecimento / cultura para mais, e os seus horizontes serem estreitos e próximos ...
Compreendo tudo isso, entendo-o ... se calhar aceito-o ( fazer o quê ? ), mas guardo em mim uma mágoa profunda ( por tal como tatuagem feita na pele, se tratar de algo praticamente irreversível, ou seja ... imutável ).
E imutável, com todas as consequências que daí advêm, que sempre sinto ao longo da Vida, e que não consigo "desagarrar" de debaixo da pele ... porque não consigo mesmo !
Estou assim formatada, e talvez também por falta de inteligência, de empenho, de força meus ... não consigo alterar nada !

Tive portanto uma infância profundamente sozinha, tão sozinha que recordo com uma nitidez perturbadora, as escassas excepções ... momentos pontuais e verdadeiramente fascinantes para a criança que eu era :
lembro um único aniversário, em que tive permissão para convidar algumas,  poucas, meninas do colégio que frequentava ( e "vejo" nitidamente ainda hoje, a mesa de anos, posta na sala de jantar, em Évora, onde vivíamos ...  Sou mesmo capaz de percepcionar a luminosidade que envolvia a sala !...  Engraçado !... ) :

Lembro uma festa de anos em casa da Elisinha, minha amiguinha, só de colégio, filha do presidente da Câmara da cidade, que até tinha um quarto de brinquedos, verdadeiramente saído de um conto de fadas do meu imaginário ... onde existia mesmo, uma tábua de engomar, com dimensão de criança, e ferro  que aquecia e tudo !...

Lembro a permissão, para nos Verões escaldantes do Alentejo, pela tardinha, quando a frescura já nos abençoava, poder brincar na rua, com crianças vizinhas ... uma delas, uma "menina rica" ( foi assim que ela me ficou "desenhada" para todo o sempre ), tinha a única bicicleta da avenida, e que, em boa maré, nos deixava dar uma voltinha, contudo muito negociada e de duração regateada !!!

Depois lembro, que nunca vizinhos ou amigos vinham a nossa casa.  Familiares também não existiam por perto !
E também recordo  como ( quando numa única vez, os sócios da firma comercial que o meu pai detinha, se deslocaram à cidade, a passeio ), isso ter constituído uma afobação, um mau estar incómodo de desestabilização, uma transcendência artificial em relação ao dia a dia, que parecia ser o presidente da república a visitar-nos, ou em nossa casa ter caído uma bomba atómica.
Tudo tinha que estar irrepreensível, não poderia haver uma única falha, nada era natural ou sequer normal !
Resultado ... um cansaço, uma intranquilidade, uma "chatice" ( passo a expressão ) ... e um alívio finalmente quando vimos as pessoas pelas costas ...

Tudo isto é tão espantoso quanto anormal, visto assim à distância ...
Tudo isto é profundamente grotesco e incompreensível ...  Mas era assim !!!...

Casei muito cedo, como já vos contei, e seguramente no meu "enxoval", também trouxe esta "herança".
Convívio restrito, relutei sempre e restringi o quanto possível, os relacionamentos, as visitas, as recepções, quer em nossa casa, quer indo a casa de terceiros ( porque depois seria de bom tom, retribuir, óbvio ... ).
Lembro que "castrei" sempre que pude, os desígnios da pessoa com quem partilhei a vida ( infeliz ou felizmente, exactamente o oposto da que eu era, nesta matéria ), o que sempre motivou um braço de ferro constante entre nós, com as consequências inerentes ...
Sei hoje, claramente, ter sido esse aspecto uma das grandes "pechas" do nosso casamento.
Claro que o radicalismo não era tão acentuado, mas existia.

O matriarcado da minha mãe ( muito próxima sempre de nós ), entretanto continuava a fazer-se sentir ...
Não podendo interferir directamente nesses convívios, sempre os repudiava ( por ela continuariam a não existir, como nos bons velhos tempos ... ) e assumia absurdamente a mesma postura resistente, em relação às amiguinhas das minhas filhas, no convívio que elas exigiam ter, na minha própria casa !...... Espantoso !!!...

Bom, hoje vivo só ...
Não sou a criança de Évora, não sou a adolescente de liceu ou Faculdade ( sem  grandes amigos ) ... considero ter sorte porque as pessoas com quem convivo gostam de mim ...
Tenho relações afáveis com quase todos ( de vizinhança, profissionais, sociais indistintamente ... )
Tenho quatro grandes amigas ( aquelas que até aturam telefonemas não atendidos por mim, quando me dá a neura ... indisponibilidades persistentes ... falta de "rega", muita falta de "rega" mesmo, na amizade ... posturas de egoísmo e comodismo atrozes, da minha parte )... mas continuo a ser uma pessoa que cultiva o isolamento, que não desce facilmente as "pontes levadiças", que não pratica o afecto, exibindo uma espécie de insensibilidade afectiva, de muralhas inexpugnáveis, que se calhar existem, porque simplesmente não conseguem ser derrubadas !...

Mas porque sou um ser gregário, sendo humana, e não sou propriamente um "monstro", questiono-me, analiso-me, sofro com tudo isto ... e quando racionalizo, tento alterar um pouco, insuficientemente um pouco !...

Todo o Homem precisa de afecto, precisa trocar emoções ...
E há uma fase da vida, na qual já me encontro, em que, porque os amigos se escolhem ou escolheram, ao invés da família que obviamente se herda, serão eles que tenderão a ser as nossas escoras, os nossos pilares, as nossas "bengalas" de apoio, nos caminhos cansados e tortuosos ...

Nesse campo, terei então seguramente, muito a aprender ... se "acordar" a horas !!!...

Anamar

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