Mostrar mensagens com a etiqueta AO CORRER DA PENA. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta AO CORRER DA PENA. Mostrar todas as mensagens

sexta-feira, 30 de agosto de 2019

" VOANDO COM O PENSAMENTO ... "



O meu humor mudou.  É estranho, nem sei bem porquê, mas acho que é a nostalgia que sempre se apodera  de  mim, nesta chegada do Outono que já espreita.
O Verão foi perfeitamente atípico em termos atmosféricos, embora pareça preverem-se temperaturas muito elevadas, agora que Setembro se aproxima.

Só que esta sensação de encerramento de qualquer coisa, deixa-me sempre meio ensimesmada e escurecida por dentro.  E Setembro, queiramos ou não, fecha a porta às chamadas "férias grandes" e inicia um período laborioso, o início das aulas e com ele a mexida da miudagem, a mexida dos pais, as escolas a reabrirem-se outra vez, o azul a partir e o cinzento da nova estação a chegar...
E totalmente à minha revelia, eu tenho e acho que terei até morrer, este esquisito relógio biológico dentro de mim ...

O início dos anos, para mim e talvez para muita gente, era exactamente este recomeço, esta azáfama, como se de uma epifania se tratasse, ritmicamente .
E pronto, da noite para o dia claudico no humor, que também se acinzenta.
Tenho andado animada, como se o " frou frou" que se começa a sentir, também me pertencesse.
Mas não.  Já há algum razoável tempo que não.
Neste timming da vida, é agora a vez da minha primogénita se preocupar, e não será pouco, com um a entrar na faculdade, outra no décimo ano e o caçula no oitavo ...  Uma razoável dor de cabeça, convenhamos !...
Eu estou nos bastidores apenas, assistindo de longe e sabendo aquilo que querem contar-me.

E por isso fico com esta sensação de "desemprego" ... Tudo à minha volta se agita, e as minhas rotinas, mais coisa menos coisa mantêm-se !
É engraçado, porque quando estamos no activo, reclamamos, suspiramos pelos fins de semana, feriados e férias, e a aposentação então, será o culminar do "paraíso" !!!...
Aí, temos a convicção que chegados lá, tudo o que existe na lista de espera do tempo que não temos, final e seguramente irá concretizar-se ...
Leremos muito, conviveremos mais de perto com os colegas que também sonham com isso, passearemos muito mais, iremos a cinemas, museus, exposições ... e sobretudo poderemos usufruir de tudo isso sem o maldito relógio nos contabilizar o tempo despendido, como se estivéssemos a ser perdulários ...
Os malfadados testes em rimas e rimas para corrigir deixarão de existir, as aulas sempre para preparar, nem que tenhamos leccionado quarenta anos ou mais ... também não, as reuniões intermináveis e quase sempre uma "seca" pela ineficácia, menos ainda ...
Enfim, será altura de saborear com todos os condimentos, e sem afobações ou culpas, o estatuto ganho merecidamente, claro, com o trabalho, a dedicação e o esforço quantas e quantas vezes roubado à nossa vida privada, de uma carreira longa e vivida plenamente ...

Engano.  Rotundo engano ! Pura ilusão !
Agora que as horas deixaram de ser "horas", agora que a pressa deu lugar à disponibilidade, agora que a agitação deu lugar à tranquilidade e à paz de quem não tem rigores de horários a cumprir ... agora que acontece tudo isso que sonháramos lá atrás, falta tempo, falta ocasião, falta vontade e parece que ainda deveríamos correr mais do que antes, se de facto quiséssemos cumprir e honrar o tão almejado calendário ...

E este "fenómeno" que me acontece, juro-vos, é relatado igualmente, sem falhar uma vírgula, com a maioria das pessoas que se encontram nesta circunstância.
E por isso, sempre é motivo de riso, perplexidade e no fim, complacência e aceitação, quando nos encontramos.
E lá dizemos, com ar penitente : " a ver se passamos a encontrarmo-nos mais, para não ser só naqueles lugares e em circunstâncias dramáticas que cada vez mais, infelizmente nos ocorrem ... a despedida de colegas e amigos de uma vida !"...

De facto, boas intenções sobram.  Nesses momentos equacionamos a importância e a efemeridade da vida.  Lembramos o caminho percorrido e perguntamo-nos quanto mais teremos para percorrer ...
E juramos, juramos mesmo que dali em diante, tudo será diferente ...
Porque até temos saudades reais uns dos outros, bolas !  Porque até teríamos coisas p'ra contar, assuntos para dialogar, partilhas de momentos vividos, uns mais, outros menos felizes ... Porque até teríamos histórias, fotografias, novidades para dividir ...

Teríamos, sim.  Teríamos tudo isso !...
E depois ???   Bom, depois tudo retoma o seu ritmo do dia a dia, e o tudo desfaz-se em nada ou pouca coisa, esmagados pela imbecilidade e insensibilidade do tempo que trucida, que desfaz sonhos e que transforma as cores dos futuros de cada um de nós ... nos cinzentos que o Outono nos trará !!!

De facto, o ser humano é obra !!!...

Anamar

sábado, 24 de agosto de 2019

" FELIZ "





Cheguei da caminhada há pouco.  Uma e meia - três, hora bem suada,  , porque "caminhada suada ... é caminhada redobrada ! "... 😂😂😂
Julgava eu que ia caminhar à bolina, ou seja com a brisa prometedora a dar-me de frente, o que tornaria a dita, um pouco menos penosa ... Nem tanto. A temperatura está suficientemente elevada para quase não deixar sentir a brisa que corre !

Como previsível, hoje, na mata não encontrei vivalma.  Vivalma ?... Minto.  Encontrei um gato, ou melhor, encontrei "o" gato ... Ou gata, não sei bem.
Incrível como sendo a terceira vez que ele me sai ao caminho, e no maior despudor e confiança aceita as festas na barriga que me vira, a pedi-las, eu ainda não consciencializei a "documentação" da criatura ... 😂😂 Sou mesmo distraída !
Tem tudo para ser um gato vadio. Aparece-me sempre na zona mais improvável da mata.  Longe das casas, onde, aí sim, há gatos selvagens alimentados por moradores de quem vive paredes meias.  Não tem coleira, e parece fazer a vida por ali mesmo.
O ar tranquilo, pacífico, bonacheirão com que dorme em paz nas sombras das árvores, nos caminhos sombreados ou no meio da erva rasteira, denota uma personalidade totalmente amistosa.
Como não sei se é gato ou gata, passarei a chamá-lo de "Feliz" ... É um adjectivo uniforme, que não distingue género, e feliz  seria  eu,  se  gato fosse  e  tivesse  aquela  mata  como "quintal ", e a liberdade como presente !...

Claro ... se gato fosse, porque ainda que eu olhe os recantos convidativos, aliciantes, escondidos, isolados, onde a erva parece macia, as plantas crescem a esmo, as árvores se multiplicam  na sombra que generosamente nos disponibilizam ... como humana que sou, não estaria certamente confortável sem uma mantinha por baixo ...  E as formigas, meu Deus, as formigas !... E as abelhas, os besouros e as vespas que volteiam ... já sem falar das moscas, varejeiras ou não ... 😃😃😃
O Homem é mesmo um ser muito complicado !!!

Quanto mais conheço os Homens, mais adoro a Natureza ... sem eles ... 😉😉😉
Tornei-me absolutamente ecologista.  Neste momento, o meu respeito é total por todas as espécies.  Herdei um pouco esta aprendizagem, da minha filha mais nova.  Desde sempre, o raio da rapariga tinha umas coisas que na altura eu atribuía a alguma insanidade.
Era ela que com sete, oito anos, nas férias no campo, já colocava os grilos que os amiguinhos apanhavam, numa caixa de fósforos, com um pirilampo por companhia.  Dizia que era para dar luz ao grilo ... 😊😊
Certo dia apareceu-me com um pequeníssimo embrulho de presente.  Dentro da caixinha encontrava-se uma ninhada de ratos, recém nascidos, pelados e cegos ainda, bem acomodados em cama de algodão fofo.  Achava que dessa forma, poderia garantir-lhes um futuro promissor !...
Inevitavelmente foi recambiada à procedência, ela e a ninhada, óbvio !!
Moscas em casa, não havia ordem de se matarem.  Com um saco de plástico apanhava-as e soltava-as na janela ...
Carreiros de formigas ... um crime, se pisados !!!
Enfim, eu achava aquilo tudo um pouco destrambelhado ...

Esta minha filha, que é, digamos um pouco "arisca" para mim,  isto para não adjectivar mais profusamente a coisa  ( Em público, não ficaria lá muito bem, mas quem me ler, poderá sempre fazê-lo, porque não errará seguramente muito ! ... 😄😄 ), continua acérrima defensora e respeitadora da Natureza, das plantas aos bichos, do mar ao sol, e felizmente educa a filha, agora com dois anos, da mesma forma.  É uma ternura ver a Teresa  fazer festas às flores, sem nunca as arrancar !...

Pois eu, neste momento também apanho as moscas e outros voadores que se atrevam, e solto na janela.  E não faço o mesmo aos mosquitos, porque convenhamos ... magrinhos como são, não teriam por certo nenhum futuro depois do salvamento !!!  😄😄😄
Afinal todos eles dividem connosco, este planeta que se está a acabar !!!

Bom ... este meu post hoje, meio humorístico, meio sério ... é pelo menos, feliz.  Porque feliz é o sentimento que me invade, depois do feliz encontro com a doçura do meu amigo "Feliz" !!!

Os animais, em qualquer circunstância, e sem sombra de dúvida, são sempre melhores que o Homem!!!...

Anamar

segunda-feira, 12 de agosto de 2019

" NADA OU TUDO ... "




Admiro as pessoas que têm sempre do que falar, que têm sempre uma história p'ra contar ... uma novidade, um acontecimento, uma memória ... e até mesmo uma invenção !...😁😁
Aliás, há vidas carregadas de emoção, muita adrenalina, muitos altos e baixos, muita coisa a correr bem, muita coisa a correr mal ... enfim ... ricas em criatividade, fazem de um nada um tudo, que apreciamos ler ...

Acho que padeço exactamente da ausência dessa criatividade, mas duma criatividade de valer a pena ... Esmifro-me para arranjar a ponta dum pintelho sobre que falar. Remexo os miolos, meto no shaker, agito e ... a maior parte das vezes ... nada !
Tenho que concluir que vivo uma sensaboria duma vida, de um cinzentismo atroz !
Nada p'ra rir, nada que valha a pena ... mas também, felizmente ( a verdade deve dizer-se ), também nada para chorar, o que seria bem pior !...
O que é um facto, é que estou para aqui  a encher chouriços sem qualquer préstimo ...
Mas pensando melhor, a minha vida é na verdade uma caixa de Pandora que não pode, não deve ser aberta ... O que seria narrável, não pode ser narrado !  E talvez desse p'ra um bom romance ! 😃😃
Mas não arrisco, como a Pandora fez ... já chega de desgraças neste mundo !...

Bom ... mas amanhã a minha gente aniversaria.  Mãe e filho no mesmo dia.   Uma semana depois, é a vez  do benjamim daquela equipa ...
Sempre o referencio.  Nunca me passa em brancas nuvens. 
Este ano, o António faz um aniversário muito particular, e presumo que importante para ele.  Aquele menino que ainda ontem tinha fraldas, dançava quando os discos infantis lhe eram tocados, e que hoje, mais que penugem já tem barba na cara, fará 18 anos !
Além de o parabenizar como habitualmente, escrevi-lhe este ano, pela primeira vez, uma cartinha, por correio e tudo, como manda a tradição, onde lhe ponho o coração de avó, desnudo, deixando-o falar livremente.
Reiterei-lhe  tudo aquilo que entendi como importante, neste dealbar da adultícia.
Nem sempre, porque a vida é corrida demais, temos ocasião de soltar os nossos sentimentos, mesmo com os nossos mais chegados ... Outras vezes temos mesmo um certo acanhamento, por poder ser tomado como alguma pieguice.
Mas convém que não se percam nunca, as oportunidades de aconselhar, lembrar, disponibilizar, reconfirmar e garantir sempre o nosso afecto incondicional, o nosso apoio, a nossa presença ... o nosso colo, ainda ... Porquê não ?!...

A mãe, é a minha filha mais velha, que completa 46 anos.  Também ela era ontem ainda, uma menina de bibe e ganchinhos no cabelo, depois uma estudante responsável, uma excelente aluna, posteriormente uma mãe de uma família de três miúdos, com dotes inimagináveis, quando ainda era adolescente ... e finalmente hoje, uma profissional de mão cheia ( claro que poderei ser suspeita ao afirmá-lo ), reconhecida pelos seus superiores hierárquicos, numa profissão que não se deseja a ninguém.
Neste momento mesmo, toda a família goza férias no sul, e ela sem as ter, trabalha até altas horas todas as noites, sozinha em Lisboa.  E está, inclusivamente, com alguns problemas de saúde ...
O sentido da responsabilidade, da justiça e de serviço, não permitem que uma pessoa idónea possa descurar ou aligeirar a seriedade com que se trata a Vida !!! Não permitem pactuar com facilitismos ou menor exigência !!!  E ela, sabe disso ...

Para eles, vão indirectamente também por aqui, os meus votos mais sinceros de que toda a felicidade deste mundo possa abençoá-los !
Como mãe e avó, só posso reafirmar o meu orgulho por o ser, e desejar que o futuro os premeie de acordo com os seus merecimentos !...

E pronto ... o meu post hoje, deu nisto !...

Anamar

domingo, 4 de agosto de 2019

" NA RENTRÉE "








Regressei de fora há quase duas semanas.  O tempo desliza à velocidade da luz !
Por aqui, o dia a dia repete-se.  Quem de cá não saíu, manteve obviamente, as rotinas.  Agora, café abre, café fecha, boas férias, boas férias, desejam-se as pessoas.  Afinal, tradicionalmente Agosto continuará a ser por excelência o mês escolhido pelos portugueses, para gozo de férias.
Os que estão, não foram e não irão, falam inevitavelmente das mesmas coisas ... política, que agora também está no defeso, futebol ... em época baixa com algumas competições avulsas sem interesse de maior, e claro ... doenças, porque as maleitas chegam em força a partir dos sessenta .
Depois ... desgraças ...  Acontecem todos os dias e a comunicação social, em especial alguma, adora e vive delas ...
É a faceta masoquista do ser humano !...

Existe uma espécie de hibernação por aqui.

Mala guardada, roupas tratadas e arrumadas, retoma dos hábitos de sempre ... Sinto-me como que "desempregada" ...

Por enquanto os meus sonhos, nocturnos, pelo menos, mantêm-se por lá, pelos sítios por onde andei.
Revivo o mar doce de quente, revejo a costa emoldurada pelo coqueiral, pelos pássaros e pela brisa que acaricia, revisito as caminhadas às seis da manhã, quilómetro a quilómetro, com os pés beijados pela maré espreguiçada e sonolenta.
Revejo o azul  turquesa e transparente, ora mais verde, ora mais intenso no azul que ostenta, ora prateado, escurecido se há nuvens encasteladas em abóboda brincando de fantasminhas, ou dourado e em fogo, se o sol nele se projecta, nos nasceres e nos pores.

Tudo está fresco e recente, as fotos estão-me nas mãos, e aquela "comichão" na sola dos pés que me empurraria para qualquer destino, é uma doença crónica.  Decididamente, eu padeço da síndrome das malas às costas ...  😃😃😃

Agora entrou Agosto, e com ele, esta modorra de um Verão meio descaracterizado que em termos meteorológicos ainda não se afirmou.
Vento e mais vento, dias frescos e enfarruscados ...  Bons para a minha caminhada.
Retomei-a esta semana, depois de uma de descanso, em que tentei por em ordem os pés que chegaram tremendamente inchados da viagem longa.
A circulação sanguínea, deficitária na imobilidade de um avião em horas e horas de voo, a isso leva !
Tromboflebites são um risco nestas circunstâncias, mas, faço de conta que não vejo, menos ainda valorizo.
Acho que também nisto, sou como o meu pai.  Não queria nada com médicos, como dizia.
Quando partiu, com noventa anos feitos, a sua secretária guardava no fundo das gavetas, medicamentos aviados e nunca tomados !  Era endiabrado, o meu pai !!!
Era um ser livre.  Talvez o mais livre que atravessou a minha vida.  Tinha uma faceta de menino desobediente e refilão.  Não passava cartão a convenções e obrigatoriedades.  Geria e regulamentava por si, a sua própria vida ...
Procurei, e penso que de alguma forma alcancei este estádio, também para mim própria.  Deixei de dar satisfações a terceiros, organizo-me ao meu jeito e modo, e tenho um pouco o lema de ... "quem gosta, gosta ... quem não gosta ... temos pena " ... como "soi dizer-se" !

Entretanto,  Agosto é "aquele" mês ... Três dos meus, aniversariam.  Mãe e filho no mesmo dia, completam respectivamente 46 e 18 anos.  O  "caçula" dessa equipa, uma semana depois, atinge os 12.
O António ... "vejo-o" de fraldas, bamboleando-se  ao som da "Joana come a papa" em fins de semana em casa de avós ... já fez o acesso ao Superior.  Ganhará o estatuto de universitário e prepara-se para tirar a carta de condução ...
Incrível, como isto é possível !  Como é que o rapaz cresceu desta forma, e eu nem dei por isso ?!...
A menorzinha, de outro "team", nos seus recentes dois aninhos, tudo fala, tudo conversa, numa alegria só, como criança livre, feliz, desinibida e sociável que é !

E como não estar eu própria,  feliz também ?...
Tenho saúde, tenho amigos, tenho uma família com as imperfeições e dificuldades maiores ou menores de todas as famílias ... vejo-os crescer, fazerem-se gente, sem demais atribulações.  Amo os que me amam.  Vivo cada dia de "per si" ... pois já percebi que quem sofre de véspera, é o perú do Natal ... 😌
Sonho ... continuo a sonhar, e tenho que acreditar que o melhor dia será sempre o de amanhã ...
Tenho muitas saudades dos meus pais ... sobretudo da minha mãe que ainda há pouco partiu.  Mas tenho a certeza que por onde quer que ela ande, também estará feliz.  Teve uma vida longa e realizada ao seu modo, e sentir-se-à orgulhosa, seguramente, ao espreitar cá para baixo  ( ? ), por todos os que por cá deixou ...
Porque afinal, todos não somos mais do que sementes da árvore que ela foi !...






Anamar

" ETERNAMENTE GRATA "


Amigos

Assinalo mais um momento importante neste meu espaço : a ultrapassagem de mais de 70000 acessos aos meus escritos.
Como muito já repeti, este meu blogue é um espaço lúdico que ME dou, mas que partilho com muitos de vós.
Comecei-o absolutamente por acaso, no passado ano de 2008, e ele tem sido, mais ou menos assiduamente, companheiro de jornada em todos os momentos da minha vida.
Escrevo-o aleatoriamente, com temas quase sempre particulares e intimistas, que não tenho nenhum pejo de expor e repartir convosco.  Afinal, a grande maioria dos que me lêem, não me conhecem, embora alguns possam achar que sim.
Nele e com ele, tenho atravessado muitos altos e baixos na minha vida.  Momentos bons, momentos de festa, e momentos menos bons ... momentos de dor e sofrimento.  Afinal e tão só, como toda a gente neste mundo...

Sei que muitos acedem por gosto, muitos nele se revêem, outros acedem por hábito ... outros, por curiosidade ... e  outros,  porque  julgam  controlar  um  pouco  a  minha vida,  por  aqui !...  👀  👀
Aprecio e adoro essa pachorra !  Afinal é reveladora de muita coisa !
Só que ... talvez lhes saia muitas vezes ao lado !....  ihihih
Desculpem este meu sarcasmo e ironia. É que eu também tenho de quando em vez, uma faceta de "nat" ...

Esclareço ... na minha recente viagem a Myanmar, conheci, na cultura e na religião deste povo, estas entidades ou divindades, melhor dizendo. E adorei-os !
Os "nats" são por assim dizer, almas penadas, espíritos inquietos que ainda não encontraram lugar de paz, que perambulam por aí, para normalmente infernizarem a vida dos mortais.  São espíritos inquietos, truculentos, endiabrados ... quais meninos pirracentos, que se divertem a fazer tropelias.
Se forem "mimados" pelos mortais que assombram, tudo bem, favorecem-lhes as vidas e até os protegem.  Se não ... estão tramados ... de tudo farão para lhes trocar as voltas !.... ihihih
Incontestavelmente, seres bem "simpáticos" !.... 😃😃

Esclarecidos ???
Afinal, também me divirto no meu blogue !...

Bom, sem pretender alongar-me, este meu post tem o objectivo único de obviamente demonstrar a minha gratidão a todos ... mas todos mesmo, duma maneira geral, que embora na "sombra" desse lado e ainda que sem comentarem, são presenças sentidas e companhias muito, muito importantes para mim !....  OBRIGADA !

E até aos 80000 !!!

Anamar

segunda-feira, 17 de junho de 2019

" SIMPLESMENTE UMA RECAÍDA ... "



Um pardal cisca na mesa da frente, as migalhas por ali deixadas.  Reparo que as alfazemas já estão em flor e os jacarandás, eu sei que iluminam de lilás esfusiante as ruas, os largos e alamedas por toda a cidade.
Na mata, os "bordões de S. José" estão também a começar a florir, neste mês de santos, que não o seu ...
Tempo vai em que Junho era um mês de muitas ocupações.  Desde logo, os exames à porta, no quinto ou no sétimo ano, relegavam-nos ao reduto do quarto, em noites de estudos intermináveis, quando a rima dos manuais a serem dissecados, parecia infindável.  Três de História, três de Geografia, três de Física e outros tantos de Química dos terceiro, quarto e quinto anos, e por aí adiante ... em todas as disciplinas curriculares.
Eram noites para estudar e manhãs para dormir, já que o silêncio da concentração só nos ajudava pelas madrugadas. Eu vivia num rés-do-chão de uma avenida barulhenta e movimentada, e por isso, não era fácil durante o dia conseguir o sossego desejado.

Já aqui contei, creio, que a minha mãe entendia que se me fizesse companhia noite dentro, tudo me seria mais fácil. E por isso, vinha para junto de mim  fazer renda e obsequiar-me com miminhos constantes ... miolo de pinhão, bolachinhas a gosto, ananás em calda, pratinhos de arroz doce, frutas caramelizadas e tudo o mais que lhe viesse à cabeça.
Sempre gostei de estudar com música, baixinha, e nessa altura do ano, toda a noite as marchas populares ocupavam as estações de rádio.

Depois, Junho era o mês dos casamentos de Sto.António e assisti-los pela televisão, era um programa e tanto ... As  marchas  populares, no  desfile  pela avenida, eram  outra  "maravilha" !...
Os afazeres eram aligeirados ou acelerados mesmo, para que não se perdesse pitada !
O Festival da Canção parava o país ...
E a vida corria mansa e simples.  As tecnologias que nos absorvem e estupidificam hoje em dia, não existiam, e por isso, ler, escrever, desenhar para quem gostava e deliciar-se com o que um dos dois únicos canais televisivos exibiam, já estava de bom tamanho ...

Os horizontes passavam muito pelos desígnios norteados pelos pais, que ansiavam que os filhos fossem mais além do que a bitola e a fasquia das suas próprias vidas !
Os objectivos a atingir eram por isso óbvios.  A vida era modesta, aparentemente sem grandes surpresas ou sobressaltos.  Os valores eram aqueles que a boa formação que nos era transmitida, impunha.
As casas eram lares, as famílias eram clãs, os sonhos eram direito da existência, os relógios pareciam correr devagar, e os anos pareciam mais generosos do que agora.
As estações estavam definidas, e sabíamos perfeitamente que grossas camisolas de gola alta eram imprescindíveis no Inverno.  Sabíamos que as andorinhas e as cegonhas haviam de emigrar, quando os primeiros tremores da estação se fizessem sentir.
Sabíamos vagamente que no mundo havia conflitos, e que existia um fantasma que se chamava "guerra fria" ... Mas tudo isso era lá longe !... O muro de Berlim parecia dividir o mundo, e tudo se passava entre a América e a Rússia, que assustava, e onde existia uma gente estranha, dura e má ...
Por cá, convinha ser discreto, andar na linha, não fazer politiquice ...
As férias do Verão eram intermináveis e passavam-se por aqui mesmo. Quem tinha "terra", recolhia uns dias ao chão onde nascera e donde no regresso vinham as batatas, as chouriças, até o azeite e o vinho, da colheita do ano ...
As roupas faziam-se nas modistas.  Pronto a vestir era ainda uma ideia estranha.  E não havia marcas. Todos usávamos mais ou menos indumentárias semelhantes, sem luxos ou exibicionismos.  Não existiam as "jeans" e as raparigas quase sempre usavam saias.
Víamos o Flipper, golfinho inteligente que sempre nos deliciava, e a Bonanza entrava-nos em casa na garupa dos cavalos dos Cartwright ...
A mãe comprava a Crónica Feminina, a Flama, os Lavores Femininos e nós líamos os "Caprichos" meio à surrelfa. Amor e sexo, pertenciam um pouco ao imaginário de adolescentes como eu ...
Passávamos o cabelo a ferro na tábua de engomar, e em vez de condicionador usava-se cerveja para o fortalecer ...
Começávamos a reivindicar os primeiros biquinis, que não o eram, mas sim os púdicos "duas peças" ...
Sonhávamos ouvindo Roberto Carlos, delirávamos com o romantismo de Adamo, Hardy, Silvie e o seu romance escaldante com Hallyday ... Bécaud, Aznavour ...
Livros existiam, alguns ... não muitos ... os clássicos ... Eça, Herculano, Guerra Junqueiro, Florbela, Camilo e outros. Encadernados, com bordaduras e letras a ouro, davam requinte às estantes que os exibiam ...

Enfim ... o pardal acabou voando, o perfume das alfazemas impregna-me o coração e eu ... acabei "acordando" desta recaída nostálgica a um tempo já esbatido, como o são as imagens a sépia que ocupam ainda muitas das nossas molduras ...

Saudades do que era ... das que éramos ...

Anamar

terça-feira, 7 de maio de 2019

" CARTAS DE AMOR ... "






“Cartas de amor, quem as não tem ?...“   cantava  Francisco José ... 

Ainda sou capaz de trautear a melodia, embora ela pertença mais à geração da minha mãe, do que à minha. Era eu então uma criança, quando este tema, à semelhança de outros mais, que alguns recordarão, fazia estremecer os corações à boa moda do romantismo da época.
Exactamente a época das "cartas de amor"...

Escritas, trocadas, lidas, relidas, cheiradas, suspiradas e guardadas em laço de seda e fitas acetinadas, nos baús e nas gavetas, formavam o espólio dos apaixonados de então.
Devolviam-se também, quando os romances punham fim aos sonhos daqueles que as escreviam.
Eram cartas longas, cheirosas, osculadas muitas vezes pelos lábios da mulher que as endereçava, transportavam juras, promessas eternas, levavam sonhos pueris, desejos inconfessáveis ... e flores meio secas, como um bouquet de sentimentos ...

Eram clandestinas, às vezes.  Corri atrás de algumas, à posta restante dos correios, à revelia da vigilância da minha mãe ...
Era o tempo da adolescência, dos amores nem sempre aprovados, muitas vezes contrariados ... escondidos, por isso.
Mas sempre se arranjava forma de driblar os esquemas...
E tudo era por isso, de uma dimensão de fogueira descomandada.  Tudo se vivia  no ímpeto e na chama da pureza dos sentimentos, que eram sempre imensos, na altura, com uma exuberância fatal e sofrida, como nas telas ... o que os envolvia numa magia de história romanceada !

Havia "tempo" para se escreverem as cartas ... para se rascunharem primeiro e burilarem depois.  A vida não era tão assoberbada e corrida.  Os valores eram absolutamente díspares dos de hoje.  A realidade e os interesses também.  As pessoas eram menos descartáveis, as emoções igualmente.  Os códigos de conduta estereotipavam-se em modelos rígidos e pouco permissivos.  A sociedade, de certa forma, era mais espartilhante e controladora.
Hoje, a liberdade alcançada, a capacidade de escolha, o livre arbítrio e a determinação prodigalizados pela cultura, pela informação e pelo acesso a todas as fontes disponíveis, orientam por isso o Homem, para outros padrões comportamentais.

Mas os sonhos são transversais à vida, e sempre fazem sentido e norteiam os seres humanos.  São determinantes e impulsionadores do amanhã de todos nós.
E os amores e os afectos, felizmente continuam com a doce "pieguice" do ontem e com a capacidade suprema de nos surpreenderem e nos "melarem"os corações ...

E embora os anos avancem e teoricamente a disponibilidade emocional pareça regredir, já que  tendemos a endurecer-nos a nível sentimental  ( afinal, a vida, "grosso modo", encarrega-se disso mesmo, retirando-nos o espaço da emoção, da surpresa e da ingenuidade, em que a inocência se vai quase sempre, perdendo ), deveremos lutar para que se reverta essa situação. 
Manter, adubar e regar tudo aquilo que ainda consegue acelerar-nos as pulsações, enrubescer-nos o rosto, e potenciar-nos  um  sentimento de bem estar e felicidade ... é determinante à vida e ao estar-se vivo !

Cartas de amor, há muito não recebo.
Tenho nos meus guardados, bilhetes ternurentos, guardanapos de papel escritos, textos incipientes,  naïfs, rabiscados às vezes ... pedras da praia com locais e datas ... folhas secas e flores meio desfolhadas ... botões de rosa esmaecidos, mas sobreviventes aos tempos e às vicissitudes ...
Todos são afinal, verdadeiras cartas de amor indeléveis, codificadas nos afectos, nos sentimentos,  nas linguagens,  eternizadas  no  coração  e  na  mente,  até  ao  fim  dos  meus  dias !...
Pois afinal ... "cartas de amor ... quem as não tem ?... "

Anamar

sábado, 30 de março de 2019

" HOMENAGEM RECONHECIDA ..."



Tão estranho entrar no Pigalle e aquele lugar estar vazio !
E tudo tão aparentemente igual ao de sempre !  Igual, não ... porque aquele lugar continua teimosamente vazio !...

O Pigalle é o café de sempre, as horas são as de sempre e as pessoas habituaram-nos há muito, a ser uma "família" alternativa.
É um café com uma população "sui generis".  Um café "de velhos", dizem-me, com uma frequência mais ou menos fixa, por horas.
É um "ex-libris" da cidade onde vivo.  Um espaço com mais de sessenta anos, creio, em que as gerações vão passando, mas ele continua apostado em ficar.  Mesmo quando as crises se sucederam teimosamente no país, ele resistiu, apesar de parecer padecer de um anúncio de morte iminente.  Resistiu, de teimoso !
As conversas nos grupos de todos os dias, rondam muito inevitavelmente em torno da saúde ou da ausência dela, dos frequentadores.
Conhecem-se as histórias, quase sempre das maleitas, dos presentes e dos ausentes ligados aos presentes ...
Assim se criam laços de alguma proximidade e mesmo cumplicidade entre as pessoas.
Diariamente, quando entro, tenho três ou quatro mesas a cumprimentar.  E há realmente "tipos" bem carismáticos por ali.

Aquele "bom dia" da chegada e aquele "até amanhã" da partida, são garante da fidelidade entre os convivas.  São a certeza de que, "amanhã por aqui estaremos de novo" ...
E assim por cada dia que passa, por cada semana que transcorre.
Quase nos sentimos na obrigação de, prevista alguma ausência, não deixar de informar ... para tranquilidade dos espíritos.
"Até amanhã, não ... porque este fim de semana não estarei ... "

Por tudo isto, qualquer "desistência" ou "abandono", logo serão notados.

Têm aberto outros cafés na zona.  Mais novos, melhor qualidade, mesmo maior simpatia no atendimento.  Mas, muitos de nós entre os quais me incluo, parecem sofrer de um qualquer determinismo estranho, ou mesmo de um hábito tão enraízado, que o raio dos sapatos, ainda que sob protesto, sempre para lá nos encaminham !
Bem reclamamos, com a caturrice típica dos velhos.  Que é uma estupidez, que só podemos ser masoquistas, que até parece gostarmos de ser mal atendidos.  Que o que não falta são lugares mais merecedores do nosso dinheiro.  Que aquele ambiente catapulta-nos desavergonhadamente para uma "quarta idade" que ainda não merecemos ... e patati e patata ...
Há quem me diga ... " Credo ... qualquer dia só sabes falar de doenças !  Ah ... e de futebol...é verdade ! ( outro dos temas recorrentes, sobretudo na tertúlia masculina )  Por isso, corres sérios riscos de te miscigenares com o ambiente ! Não te acauteles, não !..." e sorriem com descaro ...
Depois há quem me diga debochadamente : " Bom ... amanhã vou ter contigo ao centro de dia ! "

Mas é verdade ... Não adianta.  Sou mesmo reincidente na coisa, ao ponto de, quando o Pigalle não abre, me sentir desasada no destino.

Lá, escrevi muito.  Lá, li muito.  Lá, conheci, como disse, muita gente. Lá, também já chorei ... meio para dentro ... recatadamente ...
E de lá também lembro alguns, que na verdade simplesmente "desertaram" ... ainda que a contragosto, tenho a certeza.  E já vão sendo muitos.

Assim foi ontem.  Entrei e informaram-me de chofre, que aquele lugar ia mesmo ficar vazio.  Ontem, hoje e sempre ...
Assim ... sem que o pudéssemos esperar.  Com o despudor da morte  que não se anuncia, que não pergunta se pode entrar e vai logo empurrando a porta.
Não me parece nada justo.  Nem lógico,  com este sol que amanhece todos os dias.  Nada aceitável ...  Ainda por cima, fazendo-se desentendida com  o transtorno que causa, exactamente quando não estamos nada a contar com a sua visita ...

A Dra. Joana, pequenina, loira, de voz doce e baixinha como ela, porte aristocrático, nos seus oitenta e um anos, só faltava ao Pigalle quando as dores ósseas  da escoliose profundíssima que apresentava, lhe inviabilizavam de todo, a deslocação.  Com o apoio do braço da empregada e da bengala que lhe conferia o ar distinto e frágil de uma dama do século passado, aparecia, acompanhada pelo marido, seis anos mais velho.
Era alentejana, oriunda de Évora.  Fora professora, na área da Linguística.  Amava Pessoa e reverenciava Florbela.
A Dra. Joana tratava-me carinhosamente por "Margaridinha".
Deambulava por algumas mesas, queixava-se dos incómodos que a não deixavam descansar, e sempre tinha palavras amáveis, brincalhonas, bem dispostas, para espalhar ... "Portem-se mal ! ..." - dizia sorridente, em despedida, com ar maroto e maternal, na mesa onde o nosso grupo, de cinco ou seis, vinte anos mais novos, "jogava conversa fora" ...

Ontem, sem nos avisar, resolveu ir embora.  Afinal, Évora esperava-a.  A charneca em flor, aguardava recolhê-la no seu seio ... O sol ia a pino e a Primavera despontara em força.

Aquando da publicação do meu livro de poesia, "Silêncios", em 2017, a Dra. Joana escreveu o texto que transcrevo, com uma generosidade comovente :

        Margaridinha

" Silêncios" - poesia intimista e reflexiva, sugestiva, metafórica, "vestida" de uma natureza exuberante e personificada.
Plena de amor, carnal ou não, vencedor ou vencido, numa linha que nos lembra Florbela, mas na expressão desinibida do nosso tempo, a melodiosa poesia de Margarida é, a um tempo, afectiva, profunda, enérgica porque nasce dos sentimentos, das vivências, da meditação e reflexão, dos "Silêncios".
E perdurará na minha memória a "pintura" sintética, expressiva, emocionada e forte do Alentejo que também "será meu até à morte"...
Obrigada pelo que é, Margarida e um beijinho grande da

                                                                              Maria Joana Ribeiro
         
                                                                                     Julho 2017


Na pagela que a recordava, na capela funerária,  Pessoa dizia :

       " A morte chega cedo,
pois breve é toda a vida
O instante é o arremedo
de uma coisa perdida.
O amor foi começado,
O ideal não acabou,
E quem tenha alcançado
não sabe o que alcançou.
E tudo isto a morte
risca por não estar certo
No caderno da sorte
que Deus deixou aberto.

                          Fernando Pessoa

28-12-1937     *     25- 03-2019

 ...... Quem melhor, o faria ??

Que descanse em paz, Dra. Joana ... no Alentejo que nos viu nascer !

Anamar

segunda-feira, 25 de março de 2019

" UMA FRESTA NO CAMINHO "




A " menina Ofélia " zurrava no pasto, em jeito de cumprimento ... Há quanto tempo eu não escutava a linguagem dos burros, à distância de uns metros de terra verdejante ?!...
Lá longe, naquele silêncio absoluto, apenas cães ladravam em algum monte próximo.  A brisa soprava leve e o céu era um deslumbramento só.  Totalmente limpo e escurecido pela ausência de luzes próximas, exibia uma poalha estelar com todas as constelações bem visíveis ...
Há quanto tempo  também, eu não admirava a maravilha que é um céu estrelado, sem horizonte que o limite ?!
E no firmamento uma super-lua arrogava-se, altaneira, dona da noite !
Era Alentejo, era o silêncio aconchegante de um chão que logo se assinala como nosso ... era a terra a amarinhar pelas veias que levam directo ao coração !...

Sendo finais de Março, com uma Primavera acabadinha de chegar, a temperatura mais lembrava um Verão quase a pino, com dias generosos, de céu azul, de sol luminoso e excessivamente quentes.
Os campos verdejantes, douram-se encosta acima, pelo amarelo do tremoço, agora em floração, mas também pintalgados pelo colorido de todas as flores que crescem por conta e risco.  São as macelas, os malmequeres, as rosas bravas, as estevas e os pampilhos brancos, os lírios roxos, as alcachofras e o rosmaninho ... é a urze, as papoilas, a dedaleira ... já  que  as  giestas  aguardam  o  mês  que  também as  nomeia , o  Maio,  para  se  abrirem  ao  sol ...
As cegonhas empoleiram-se a desníveis, pelos postes de alta tensão.  E são verdadeiras comunidades, as que vemos e ouvimos encarrapitadas nos ninhos.

O mar não está longe, embora dali ainda não se pressinta.  Haveria de vê-lo, mais tarde, numa romagem a memórias de infância e juventude.
E como foi gratificante e ao mesmo tempo surpreendente, revisitar lugares que o tempo não macula, uma vez desenhados na mente e no coração !
Apenas, muitos desses lugares, ou quase todos esses lugares já somente guardam, lapidadas nas ruas, nas igrejas, nas calçadas ... nos rochedos e areias ... nas ondas, no verde e azul das águas,  as memórias, somente as memórias, as quais têm a dimensão do que éramos então, do que vivíamos então, do  tamanho dos sonhos que dimensionávamos então ...

Vila Nova de Milfontes, do tempo das ruas sem luz, em que o Mira espelhava no prateado das águas mansas, a magia do céu estrelado também, no passeio nocturno ao ancoradouro dos botes para as Furnas ...
A Barbacã, mirando o outro lado ... "Rio Mira vai cheio e o barco não anda ... tenho o meu amor lá na outra banda ... Lá na outra banda e eu cá deste lado ... Rio Mira vai cheio e o barco parado " ...
A banda para onde se atravessava em barquinho a gasolina, pés chapinhando na água fresca e cabelos em desalinho ... buscando mar a sério, com ondas com vergonha na cara, e não aquela pasmaceira de águas fluviais, preguiçosas e sonolentas ... cá deste lado ...
As dunas, bem lá no cimo, onde uma rotunda maldosa, desenhou o apagão das nossas lembranças ... Eram dunas alterosas que demarcavam fronteira entre a praia da Vila e as praias do oceano, e que eram pistas de deleite, no rebolar encosta abaixo, quando as gargalhadas eram soltas e a despreocupação das vidas tinha o tamanho dos anos que detínhamos ...

"Era aqui ... do que me lembro, acho que só podia ser aqui "....
E para onde foi tudo ... mais de cinquenta anos depois ?..."
O coração aperta, a garganta emudece ... uma espécie de silêncio quase religioso medeia entre o hoje e o ontem, entre nós e todos os que já foram e pertenciam àquele retrato que perdeu o colorido e só mantém a patine dos tempos.  Sensação estranha ...

Anos adiante, a Ilha do Pessegueiro desenha-se no horizonte.
Porto Covo fala-me de outra fase da vida.  Já então com filhas na barra da saia, tempos despreocupados, ainda assim.  Muitos amigos, quase duas dúzias, dividindo as conversas, os risos, os banhos e os passeios na rebentação ... as brincadeiras, as cantorias, as lancheiras também ... as sombras dos mesmos chapéus, as futeboladas nas areias quase desertas, até as sestas, em dias inteiros de praia ...
Partilha de amizade, de cumplicidades, de companheirismo ... Criançada na partilha dos baldes, das pás, das conchas catadas na maré baixa ...
A Praia dos Búzios, a Praia Grande ... ou a preferida sempre ... a da Samoqueira, com os fios de água fresca despencando falésia abaixo, no simulacro de chuveiro de água doce, ou de fonte ali à mão, pronta a encher os baldes da pequenada ...
Continuam a correr ao ritmo dos tempos, ao ritmo das vidas ... mais ou menos intocados !
O "31" ainda mantém o nome.  No "Quadrado", como era conhecida a Praça Marquês de Pombal, ex-libris da vila, lá se mantém, mesmo ao lado da igreja, o bar que na altura era o único ponto de diversão nocturna, na calmaria do povoado.
Não pude deixar de esboçar um sorriso para dentro de mim.  Como eram doces todas aquelas lembranças !...

E pronto ... fui até ali, junto da paliçada,  corresponder ao cumprimento.  A "menina Ofélia", simpática e deferente,  honra, sem dúvida, os burros de quatro patas !
Até à volta ...



Anamar

quinta-feira, 21 de março de 2019

" PRIMAVERA OUTRA VEZ ..."




A Primavera começou ontem.  O equinócio anunciou-se este ano, a 20 de Março, quando uma super lua, a última super lua de 2019, coincidiu no céu com o seu começo.
Não há quem não fique feliz.  Afinal, é a estação que amanhece sorrindo, com uma braçada de flores e uma paleta de cores a tiracolo .

Já levo muitas Primaveras na minha vida.  A minha mãe viveria a sua última, no passado ano.
E nem dela mais, terá dado conta ...  Logo ela, que amava as flores.  Logo ela, que lhes sabia a conversa e os segredos ...
Eu, não.  Não sei sussurrar-lhes as minhas histórias, nem com elas dividir as mágoas, as dúvidas, os sonhos e as esperanças.
Mas extasiam-me, adoçam-me a alma, espantam-me pelo milagre, emocionam-me pela certeza.
Elas são garante de vida.  São promessa de recomeço.  São oferta sem cobrança, a única oferta sem cobrança que o destino nos faz ... a da renovação da Natureza, com a proposta da renovação pessoal de cada um de nós.
Saibamos ser capazes de o fazer !...

A Primavera é inspiradora de muitos lugares comuns poídos e gastos.
Os poetas cantam-na.  Os apaixonados também.  É a estação adolescente nas nossas vidas.  É poderosa, redentora e mágica.  Cobre-se do verde esperançoso de dias promissores e da luz clara de vida que recomeça ...

Quando ainda leccionava, a chegada da Primavera era uma manifesta lufada de ar fresco, na escola.
As hormonas fervilhantes, eclodiam nos corpos jovens, como o sol rompia no radioso azul do firmamento ... desbragadamente ...
Os corações aceleravam em resposta biológica, enquanto que as cabeças "no ar" desacertavam os comportamentos.  Havia, como na Natureza, uma ânsia de vida, um respiro de sonho, uma urgência de fruir, uma aposta confiante no amanhã.
Os miúdos ficavam "impossíveis", como costumávamos dizer, sorrindo ternamente benevolentes.
O romance perpassava, a incontenção dos corpos a cada canto, era o apelo da seiva circulante ... Mostrava-se, exibia-se, ostentava-se ...
As aves acasalam, os céus enchem-se do seu pipilar chamativo, dos seus gorjeios convidativos, dos seus trinados provocadores.
A copa do arvoredo compõe-se.  Os ninhos começam a construir-se ou a reconstruir-se.  Há que fazer a casa.  Vêm tempos generosos !
Sempre o apelo da vida, do renascimento, da continuidade, da eternização do ciclo !...

Dizem-me que estou pouco primaveril.  Que ando mais para tons outonais rasando o Inverno.
Dizem-me que pareço ter hipotecado muito, da irreverência e juventude que me caracterizavam.
Que, de repente ou gradualmente, penumbrei.  Que me estou a tolher por medos, enquadramentos meio desistentes e pouco combativos ... e me deixo ir ... simplesmente me deixo ir, com alguma apatia e indiferença, parece.
Admito que sim.  Mais admito, e penso advir  daí muito do meu estado de espírito, que tal se deva ao facto de ainda não ter decorrido sequer um ano sobre a partida da minha mãe, com o que se encerrou um processo violentamente desgastante  na minha vida , temporal e psicologicamente.
Costuma dizer-se que "elas não matam mas moem" ... e tenho para mim que o desgaste, é sempre um processo mais arrasador do que uma destruição cataclítica, já que um desgaste é efectivamente uma destruição lenta, corrosiva, com contornos cirurgicamente demolidores.  Intencionalmente demolidores.
E o ser humano não recupera tão fácil, desse processo.

De facto, a minha forma de encarar a vida  hoje, a minha capacidade de olhar o futuro, a minha resistência psíquica, foram, sem dúvida, profundamente beliscadas.  E inevitavelmente observo em mim, um endurecimento e um cepticismo face à realidade, que se me pinta com cores menos generosas, dando as ilusões lugar a certezas menos fantasiosas.  Digamos, que perdi mais um pouco da "inocência" que nos adocica a caminhada !

Mas ... a Primavera está aí.  O céu está azul e luminoso.  Os pólens irrompem nas flores que engalanam os campos, a brisa é leve, os pássaros cantam em melodias ancestrais e tudo continua harmoniosamente  perfeito ... tudo  sempre  continuará  por forma  a que o MILAGRE  se repita outra vez !...

Anamar

sexta-feira, 8 de março de 2019

" AS MINHAS TRÊS GERAÇÕES DE MULHERES "





Hoje, celebra-se mais um Dia Internacional da Mulher .
Mais uma efeméride "vendida", para obviamente vender ...

Não sei o que é ser mulher !

Sei que há diferenças notórias, substanciais e visíveis, entre os géneros, ou pelo menos, entre o arquétipo de cada um dos géneros.
É teórico que o Homem seja tido como racional, mais distante, pragmático, na colocação prioritária dos seus interesses, centrado funcionalmente, emotivamente mais volúvel, já que o Homem é reconhecido como fundamentalmente "visual" ( como se diz ), nas suas relações afectivas ... e a Mulher, como "emocional" ... menos "cabeça" e mais "coração" !
A mulher de hoje, é multifuncional, e penso que isto lhe foi determinado, pela necessidade vital de se distribuir, com competência, e em simultâneo , por meios familiares, profissionais e sociais.
A mulher é sensitiva ( não é em vão que se fala no seu sexto sentido ) .
É abnegada, esquece e limita-se a si mesma, em função da sua realidade envolvente, e dos que dela precisam, convive e é, com frequência, sustentáculo de dificuldades sérias, na sua própria estrutura familiar.
E supera-se, funcionando como esteio  dessa mesma célula, inventando e reinventando, um "modus vivendi", suportável.
Tende a ser uma boa profissional, de excelência às vezes, embora, estou certa, nunca a família ( mormente os filhos ), seja preterida, em função da profissão.
Porque isso é biológico, e genético.
Como tal, a exigência que faz à sua pessoa, para cumprir esse desiderato, traduz-se num sacrifício, globalmente acrescido, e numa transcendência de si própria .
Quando ama, a mulher dá-se, rende-se, entrega-se com satisfação, e pode mesmo  apenas exigir o mínimo retorno.
E nada do que lhe é pedido  constitui uma carga ou uma impossibilidade.
A mulher chega a ter o mérito, de segurar um amor incondicional  por um homem que não lhe corresponde em idêntica proporção ...
Mas não desiste ... desdobra-se, frustra-se com frequência, dói-se, morre aos poucos ... mas continua lá ( quantas vezes, culpabilizando-se ainda ... estúpida e injustamente ... Esta a única palavra que nos ocorre ... ) !

E chora ... A mulher chora muito ...
Mas chora no seu silêncio, no seu canto ... isola-se p'ra chorar.
Porque, muitas vezes, tira das lágrimas que lhe assomam, risos de fazer de conta ...
Colhe na ausência de esperança, uma poalha de luar  para seguir no seu caminho ...
Pinta na escuridão que desce, sírios estelares, que lhe iluminem o trilho a percorrer ...
Transforma os espinhos em tapetes mansos de musgos e erva verde, fofa e macia, para que, quem venha atrás, sinta o andar atapetado ...
Abre  os braços, como asas protectoras, como ninho, onde os ventos  de borrasca não derrubam os seus ...
Busca no desespero, força, mordendo os lábios até sangrarem, ditando um compasso de espera ao coração, para que ele adormeça e se aquiete ... até que a paz o invada !
É simultaneamente  uma fortaleza inexpugnável  e o aconchego duns braços, doce  e macio, onde acolhe o Homem, enquanto filho, enquanto irmão, enquanto amante, e mesmo enquanto pai, velho e alquebrado, sendo ombro e bengala ... ajudando-o  a  transpor a derradeira  ponte da sua vida !

Nos últimos tempos tem-se assistido a uma escalada alucinada de violência social contra as mulheres.  Desde logo no reduto do seu lar.  Frequentemente, pelas mãos do companheiro escolhido, ou de quem lhe deveria querer bem, protegendo-a, defendendo-a  e amparando-a.
Socialmente, o julgamento, a desprotecção e a irresponsabilidade assumidos  pelas autoridades competentes,  não só não demonstram a eficácia necessária às situações,  como ainda discriminam miseravelmente as vítimas destes processos persecutórios.  Descuram  e tratam de ânimo leve os maus tratos, a violência  e as sevícias indiciadoras de futuras  situações  mais graves  e  ameaçadoras, favorecendo e facilitando a actuação dos agressores, que infeliz e normalmente, acabam  consumando  lamentavelmente, os crimes.
Neste ano de 2019, que vai apenas com três escassos meses incompletos,  já morreram às mãos de carrascos frios e  monstruosos ,  13 mulheres !

Sou  charneira   entre três gerações de mulheres.

Atrás de mim, fica-me a minha mãe que infelizmente já não está entre nós  e  que foi tudo isto ... nos seus noventa e sete  anos de vida.
Geração forjada na dureza da terra que a viu nascer, com a força e a perseverança, que aquele Alentejo ( pouco generoso às vezes ), lhe conferiu !
Foi, até ao fim dos seus dias,  uma combatente, uma resistente, uma sobrevivente ... um exemplo ... uma Mulher !...

Depois de mim, tenho duas outras Mulheres, que na idade que já têm, ombreiam comigo, nos percalços, nas dificuldades, nas alegrias, nos momentos bons, mas também nos menos bons, desta nossa existência !
Já me couberam no cólo, já as guiei pelas mãos, com elas já ri...por elas, já chorei muito !
Continuarão comigo, se o Destino assim o quiser, até que sejam elas que chorem comigo, riam comigo, me alinhem os cabelos prateados dos tempos, me dêem as mãos, para que um dia, em passo titubeante, eu  possa  ainda  chegar  à janela, eu possa ainda, perder-me a olhar o sol, descendo no ocaso !...

Mais à frente está  a Vitória que caminha para os quinze anos e a Teresa que com os seus vinte e um meses ainda não guarda em si qualquer noção de género, na sua curta vida.
Irão  saber, forçosamente, aos poucos e poucos, qual o seu real lugar no Mundo  ...
Irão  perceber em si, um dia, este privilégio não partilhado, único, insubstituível, incomparável, de dar a vida e de dar a sua própria vida, junto ...
O privilégio de ter nascido Mulher !...

À Vitória, particularmente, eu saúdo !
Que ela albergue em si  sempre, um coração bem feminino ! Que nele, ela encontre  uma fonte de generosidade, de amor e transcendência  !
À  Teresa,  saúdo  igualmente, auspiciando  que  na  vida  saiba lutar e defender  o seu lugar e o seu papel, sem esmorecer perante as dificuldades, as injustiças, as adversidades  e  desigualdades  com que infelizmente ainda, a sociedade machista em que vivemos, faz a discriminação gratuita de género.

Eu, bem ... Eu devo ser simplesmente,  um misto destas raízes, um enxerto destes caules, a frutificação, do antes e do depois de mim, nestas formas imperfeitas, de se ser Mulher !...

Anamar

domingo, 3 de março de 2019

" SOLILÓQUIO NA MATA "





A melhor aproximação que consegui  à  Natureza ( eu, que vivo no betão, como já disse vezes demais ), é a caminhada que faço pelo meio da mata.
A mata, a bem dizer, é só uma matazinha que remata o concelho de Sintra, aqui nas imediações da Amadora.  Delimita os terrenos de um e outro lado, e por isso é desfrutada pelos munícipes de ambos os concelhos.
Em dias como os de hoje, em que a chuva anunciada pela meteorologia do meu telemóvel deu lugar afinal, a mais um dia de céu azul, sol claro e brisa primaveril, poder caminhar na mata, sente-se como uma bênção, privilégio de estar vivo.
Nesta altura do ano e com uma Primavera que se anuncia por antecipação notória, fruto das temperaturas elevadas que se têm feito sentir, a mata é particularmente convidativa.  O verde é mais radioso do que nunca, a vegetação despida começa a ostentar borbotos promissores pelos caules acima, flores modestas eclodiram por todo o lado, os pássaros, porque já é Março, mês de acasalamentos, trinam, gorjeiam e mostram-se saltitantes de galho em galho, as borboletas rodopiam pelas corolas e os zumbidos das abelhas soam e fazem-me sorrir ...  A  Natureza, uma vez mais não nos defrauda, e o seu ciclo de vida repete-se generoso, sempre !...
Afinal ela é uma permanente jarra de flores frescas ... quando umas morrem nascem outras ... quando não é época dos jacarandás, é tempo das mimosas ... se as madressilvas  não perfumam ainda, as glicínias inebriam ...Nunca a nossa casa deixa de estar florida !
A brisa, nem de mais nem de menos, mais afaga e acaricia do que incomoda.

E depois há o silêncio.  Silêncio daqueles ruídos perturbadores e desagradáveis, que os humanos causam ... as vozes, os carros, as máquinas ... tudo quanto nos agrada dispensar nestas circunstâncias.
E há quase ausência total de gente. Lá se encontra um ou outro, correndo, passeando os cães, ou simplesmente usufruindo do remanso e do ar puro que a mata oferece. Mas poucos ...
E há gatos sem dono que por ali vivem, certamente na maior felicidade do mundo.  Almas caridosas deixam-lhes comida e água, e depois eles têm a pradaria à volta, toda por sua conta.  Têm na dieta os roedores, rastejantes e voadores que por lá proliferam e que lhes desafiam os ímpetos felinos da caça.
Devem ser felizes, gerindo a sua vida livre e despreocupada !

E no silêncio que se "ouve", estou eu comigo mesma, nos monólogos surdos ou mesmo nos monólogos a meia voz, porque não há objectivamente nenhum perigo de me acharem tonta por falar sozinha ...

Hoje, eu pensava como a vida se revela  uma surpresa constante.  É uma história nunca terminada, com voltas e curvas, e esquinas e cotovelos que sempre escondem em jeito de caixinha de surpresas, o que vem adiante ...
O segredo é "bebê-la" aos poucos e poucos, em pequenas doses, sem afobações ou exigências.  Sem expectativas ou ansiedade.   Apenas recebendo-a tal qual nos chega.  E esgotando-a sempre, para que nunca possamos lembrar com lamentação que o não fizemos.
Estou numa fase da vida em que os grandes sonhos já foram sonhados, e concretizados ou não.
Uma fase em que procuro simplesmente viver, momento a momento, com a paz possível, com a percepção clara de que raramente o idealizado se atinge ... como o idealizámos.  Seja connosco, seja com os que nos rodeiam.
E assim, é grato relembrar o que foi, se nos aqueceu o coração.  E não deixar que o que não foi, nos azede a alma  e contamine o espírito.  Tudo foi o que tinha que ser e não mais do que o que tinha que ser.  E não adianta rebelarmo-nos contra essa entidade abstracta que é o destino !
Por isso, tomo-o como colheradas de um xarope cicatrizante, curativo e regenerador.  Sem utopias ou veleidades extemporâneas.
Percebo que deverei andar, se não posso correr.  Que deverei sorrir se não consigo gargalhar.  Que deverei tentar estar bem com o que tenho ... com o que vou tendo.
Porque tenho muito, sem dúvida.  Vou acordando todas as manhãs, vendo com os meus olhos, ouvindo com os meus ouvidos e andando ... caminhando com as minhas próprias pernas, gerindo-as, seja lá qual for o ritmo.
O tempo, agora, é o meu tempo, e devo aceitá-lo como ele é.
Os sonhos, agora, já não são grandes metragens.  Já não me sufocam a garganta ou aceleram o peito, além da conta.  Já não podem vestir-se de utopias inalcançáveis.  São amenos, serenos, lúcidos e dimensionados.  São chuvas frescas no Verão, ou quietude de sombra em canícula castigadora. E por isso devem adoçar-me o coração.  E não, magoar-me o espírito.

E isto será o equilíbrio.  O equilíbrio possível, sem deslumbramentos, presunções ou alienações ...
Isto será  a vida possível, quando o sol talvez  já demande o ocaso ...

Anamar













segunda-feira, 4 de fevereiro de 2019

" NÃO SEI BEM PORQUÊ OU PARA QUÊ !... "



As mimosas já se adornam no manto dourado que as envolve.  São uma mancha de luz que ladeia os caminhos. 
Na mata, a única mimosa que a habita, também deverá ter as ramagens de Inverno, generosamente engalanadas com as bagas amarelas como pequenos sóis dependurados.  Irei ver, um dia destes.
É uma época do ano em que o amarelo tem o privilégio de preponderar.  As azedas multiplicam-se e atapetam os campos.  As macelas competem com as margaridas selvagens, e as cantarinas seguramente já treparão as encostas da Aguda .  Não demora, os narcisos festejarão a nova estação que virá ...
É como se o sol descesse à terra e aguarelasse os nossos horizontes.

Ontem fui verificar a caixa do correio da casa da minha mãe.  Não sei bem porquê, ou para quê...
Que carta ou que notícias espero lá encontrar ?!
Fiquei com as chaves, ainda.  Não sei bem porquê ou para quê...
De lá, só retiro publicidade que entope um receptáculo sem vida.  Para ali já ninguém comunica, já não há contas de água, de luz, de telefone, a aguardarem a devida liquidação.  Para ali, já não há comunicação personalizada, só papelada anónima sem destinatários ou receptores que a aguardem.
Retiro tudo, para esvaziar a caixa.  Subo os dois degraus que separam o hall de entrada dos andares térreos.  A porta lá está, silenciosa, cerrada, muda, inerte.  Morta ... também ! O mesmo tapete no chão.  A mesma ausência de gente, a mesma solidão ... o mesmo vazio.
Há tempos atrás, metia a chave à porta e entrava.  Como se quisesse verificar que estava tudo como foi deixado. Que continuava tudo exactamente como ficou.  Que a luz que atravessa a vidraça da cozinha, ainda ilumina da mesma forma o espaço que alcança.  Agora, vazio.  Devoluto.  Frio.  Gélido.  Sozinho.  Absolutamente abandonado. Serenamente abandonado.
Como se quisesse verificar, se dúvidas tivesse, que as flores já lá não estão, que os móveis também não, que não há sons, vozes, risos, passos ou correrias das miúdas.  Como se me esperançasse que, metendo a chave àquela porta, ela se abrisse e lá estivesse a minha mãe, na salinha, com o Gaspar aos pés, com a televisão ligada no programa do "Gordo" ... aguardando a hora de eu passar para as aulas, no último adeus do dia ...
Como se esperasse ... alguma coisa ... alguém ...

Agora, já não consigo fazê-lo.
Subo os dois degraus, é verdade.  Olho para a porta, silente e imperturbável.  O tapete permanece, indiferente. Por ele, contudo, nem eu já sou capaz de passar ...
Repouso o olhar naquela porta, sem precisar mais de entrar, porque sei de cor o que está além dela, centímetro a centímetro, oiço-lhe as vozes, sinto-lhe os cheiros, dia depois de dia do que foi mais de meio século de vida !
Cá fora, bate o sol dourado da tarde no parapeito das janelas ...
"Vamos p'ra dentro ? - dizia-me, quando depois do almoço espreitávamos o vai-vem da avenida, enquanto o sol baixo de Inverno nos presenteava.  " Ainda bate aqui o sol, mãe.  Já vamos !"

Estava lá ontem, que eu sei. Quando fui verificar a caixa do correio ...
Não sei bem porquê ou para quê !...

A vida !... 
Um dia fica assim. Parada. Inerte.  Insensível.
Um dia fica assim ... uma memória que rasga a indiferença dos tempos, uma imagem a sépia, a esbater-se na luminosidade de Fevereiro ... 
A mesma rua, as mesmas janelas ... a mesma porta ... até o mesmo tapete no chão ... ainda.  Tudo igual e tudo espantosamente diferente.  O mesmo sol a bater no parapeito ... Só que o sol nunca se repete ... nada se repete.  A vida segue adiante. As histórias reescrevem-se com outras personagens, outros rostos, outros corações a pulsar ... com outros figurantes ...
A vida segue adiante ... simplesmente !

Anamar

segunda-feira, 14 de janeiro de 2019

" DUAS ROSAS AMARELAS ... "




O sol descia a passos largos rumo à linha do horizonte.  Afinal, estamos em Janeiro e dentro de uma hora será a hora do repouso do rei.
Eram quatro e meia de uma tarde lindíssima, com um céu absolutamente translúcido, de um azul intenso e uma luminosidade penetrante.
As sombras já se projectavam longas no chão, uma brisa fresca corria ... e o mar continuava batendo lá em baixo, nos rochedos e no areal aos pés da falésia.
A vegetação rasteira, de carrasquinhos, camarinhas, canaviais, cravos romanos e azedas já em floração, revestiam a encosta, atapetavam os declives e forravam as escarpas.
Estranhamente, não planavam gaivotas sobre as arribas. 

Havia silêncio. Um silêncio perturbadoramente doce de chão adormecido.  Só o mar, em avanços e recuos, oscilante entre marés, mantinha o seu vai e vem de eternidade.
Eu estava e não estava por ali.  Na minha mão, duas rosas amarelas, de luz, de encaminhamento, de saudade ...

O pórtico lá estava.  O afloramento rochoso que ali se ergue, por entre a vegetação brava e rasteira, jamais permitirá esquecimento, dúvida ou hesitação.
Aquela passagem mágica entre terra e mar, aquela conexão simbólica entre o terreno e o etéreo, entre o fim e o princípio, entre o tudo e o nada, entre o som e o silêncio ... ali continua a pé firme, e continuará a desafiar as vidas, os tempos e os amanhãs ...
Aqueles amanhãs não divisáveis das curvas dos caminhos, das estradas dos homens, aquelas vidas que se vão fazendo no desfiar de gerações que se sucedem, aqueles tempos que não começam nem acabam, simplesmente porque o Homem com eles e neles se confunde ... até ao infinito !

Não foi premeditado. Não foi agendado.  Não foi culto de nada.
Foi necessidade.  Foi busca. 
Fui reencontrar o colo dos meus pais.  Fui procurar o regaço protector da minha mãe.  Fui ouvi-los, sentindo-os apenas.  Fui sussurrar-lhes da minha orfandade, sabendo que estão por ali, naquela poeira do caminho, naquela seiva dos caules despontados, naquela aragem que os levará pelos céus fora, para as águas que não regateiam destino, que abraçam e envolvem a Terra, que nunca começam nem nunca acabam ... até ao fim dos tempos !

Nove meses desde que a minha mãe me deixou.  Nove meses, o tempo que me albergou no seu ser, até me tornar gente... Os primeiros nove meses de um vazio e de uma solidão, que nada nem ninguém, nunca preencherão ...
Sentei-me nas rochas, perdi o olhar naquela imensidão sem horizonte que a limite, ouvi os silêncios, escutei as ondas, percebi o vento que passava, abençoei aquele sol dourado que descia ...
Espetei as rosas, por entre os carrasquinhos, e deixei-as iluminadas pelos últimos raios de uma tarde que cessava ... e regressei ... desalentada, sem forças ou vontade ...

Um dia, também eu estarei por ali !...

Anamar

domingo, 30 de dezembro de 2018

" SAUDADES "



O ano que termina foi um ano com marcas inevitáveis na minha vida.

Mariza, no poema do seu fado  "A chuva", diz que "as coisas vulgares que há na vida não deixam saudades ... só as lembranças que doem ou fazem sorrir ..."
Hoje, para mim,  foi um dia mais, de lembranças que doem ou fazem sorrir ...  2018 esmerou-se até ao fim, recheado delas...

A minha tarde foi passada à cabeceira de uma cama de hospital, lá longe, no meu Alentejo, que guarda da nossa família quase  já só lembranças.  Das tais ...
O meu último familiar vivo, daquele clã  cujas raízes me prendiam à terra, sofreu um AVC em pleno dia de Natal. É uma prima direita ... é uma irmã para mim. Aquela que nunca tive.
É uma mulher razoavelmente mais velha que eu, é uma mulher só, a quem o destino sempre enteou.
Com uma história de vida muito sofrida, em que os escolhos e as dificuldades lhe atravancaram o caminho, foi uma lutadora, uma resiliente, uma mulher-coragem ... talhada lá, onde nascem os fortes ...
As vidas afastaram-nos fisicamente, pela geografia, pelas histórias, pelos percursos ... pelos destinos ...
Apenas fisicamente, porque a seiva circulante é a mesma, as memórias e as partilhas também.
Chorámos juntas, rimos juntas, lembrámos juntas tanto do tanto que ficou há muito, na curva da estrada !
E fizemo-lo enquanto deu.

Hoje, a minha prima desligou.  Rompeu com a realidade.  Assumiu o papel que acredito todo o ser humano assume, quando a recta é a final, e uma espécie de compaixão biológica nos toma.
Como que fechou cortinas, como que apagou luzes ... como que esticou o olhar para um indefinido ponto, de uma indefinida estrada !...
O quadro de Alzheimer, cuja patologia a vem progressivamente afectando, enfatiza ainda mais o desligamento de tudo o que a rodeia.
E a pessoa que hoje se encarquilhava naquela cama de hospital, só, rodeada dos fios, dos tubos, dos aparelhos que apitam, que piscam, que desenham as linhas de um coração que vai batendo ainda, sem que se saiba  porquê, não era já a minha "irmã" ...
Em tom sumido, balbuciando as palavras por entre o ofegar da respiração, sorrindo esmaecidamente, falou-me naturalmente da minha mãe, da própria mãe, de nós, quando crianças em casa dos avós, como se por ali estivéssemos todos, como se o ontem fosse o hoje, como se aquela árvore ancestral cujos ramos se estenderam, cuja folhagem foi esta que caducou aos poucos, ainda vicejasse e desse frutos ...
E eu, mantive como pude o ar de menina levada, igualzinho ao que fazia quando alguma diabrura me fazia acoitar no seu regaço ... Só uma que outra lágrima me atraiçoou ...

Voltei.  Voltei com o coração espremidinho e tão pequeno que caberia na cova da minha mão ...

E já sinto infinitas saudades.  Só as coisas que doem ou fazem sorrir, no-las plantam no coração ... tenho a certeza !

Anamar

domingo, 23 de dezembro de 2018

" E ENTÃO ... ERA NATAL ! "






Lembrei hoje.  Hoje, porque chega uma altura da vida em que são as lembranças que comandam.
A balança desequilibra-se, é muito maior o caminho andado do que o que temos para andar e por isso, refugiamo-nos no que foi.  Essa, a sabedoria dos velhos.

Era Natal, as férias haviam começado e eu, menina, com pai e mãe ... os dois, vivos.
Sempre, o Natal que aí vinha era passado no Alentejo, em casa-mãe.  Os meus avós albergavam em torno da mesma mesa, várias gerações.  Desde a minha bisavó de que ainda lembro, tios-avós que também por ali andavam, até à geração dos meus pais com os irmãos e os respectivos filhos.
Lá nos esperava o presépio com as figurinhas de barro, todos os anos renovado e acrescentado por conta das que se iam entretanto, partindo.  Eram sempre compradas no mercado, em Évora, que nesta época tinha de tudo.
A azáfama sentia-se naquela casa.  Cheirava ao musgo do presépio, que era obviamente legítimo, cheirava às iguarias que os mais velhos iam confeccionando, aos temperos das carnes, ao frito dos doces, à canela do arroz-doce ... aos bolos a saírem do forno ...
A avó, roliça, avental à cintura sobre a saia rodada e comprida, cabelo apanhado em coque na nuca, era a abelha-mestra daquele clã.  Orientava, supervisionava, fazia, com uma maestria que ninguém igualava, com as mãos de fada que só as avós têm ...
Algumas ... ( rsrsrs )

Para a miudagem, aquilo tudo era uma festa.  O clima de alegria, união fraterna, paz e partilha ... o clima de amor ... o clima de família, pairavam. E família era sinónimo de segurança, de ninho, de pertença !
Grande era a ansiedade que trazia aos rostos, a expectativa da noite que se aproximava.  A bota na chaminé, deixada na noite da consoada, prometia pela madrugada, alguns poucos, presentinhos, trazidos pelas mãos do Menino Jesus, se nos tivéssemos portado bem no ano que findava.
Não existia Pai Natal, nem renas, nem Lapónia, nem trenó.  E os presentes sempre eram aqueles ... nem mais nem menos.  Os suficientes, porque desperdícios não eram contemplados. Excessos não existiam.
Lápis em chocolate, da Regina, sombrinhas envolvidas em papel prateado colorido, um macinho de cigarros também em chocolate, uma rima de 5 ou 6 pequenas tabletes atadas com uma fitinha de seda, a juntar a umas peúgas,  um gorro de lã ou um cachecol quentinho ... já estava de bom tamanho.
E que felicidade era, na manhã seguinte, ser acordada pela mãe que dizia : "Vai ver, vai, o que o Menino Jesus te deixou !... "

A noite da consoada, culminava com a Missa do Galo, em que era a avó que levava a criançada.
Em casa ficavam os outros adultos, na afobação do por da mesa, na preparação do que haveria de ir para o braseiro na chaminé imensa, que ocupava de parede a parede, o fundo da cozinha.
Por cima, os estendais dos chouriços, das morcelas, dos paios, das farinheiras, no fumeiro feito de varas colocadas pelo avô, exalavam em permanência um cheiro convidativo.
As tias, das solteironas que adoptavam a casa como sua, às mais novas, acabavam de confeccionar os fritos.  E havia de tudo ... as azevias de grão, as filhós, as rabanadas ou fatias paridas, os sonhos, os mexericos, a pinhoada.

A avó vestia a sua melhor roupa, envolvia-se num xaile bem quente, colocava um lenço na cabeça ( o lenço das festas, que detenho até hoje ), dava as mãos à miudagem e lá seguíamos para a Igreja de Nossa Senhora da Saúde.
O frio da noite, normalmente estrelada em céu limpo e escuro, não chegava para nos arrefecer o entusiasmo.  Afinal, a igreja sempre estava engalanada, o presépio singelo mas lindo, junto ao altar, as luzes das velas e os cânticos que já se ouviam, lembravam a todos que a união e a humildade haviam descido sobre a Terra, pelo coração daquele Menino, tão risonho e bochechudo, deitado nas palhinhas.  No final da missa, todos Lhe beijaríamos o pezinho ou a perna pequenina e nua, que o prior segurava entre as mãos, no meio de uma toalha de linho.

Depois, era o regresso a casa e a alegria que nos aquecia a alma.
O madeiro de azinho, o maior que o avô guardara ao longo do ano e que só chegara à lareira rebolando desde o quintal, já que ninguém tinha força para o pegar, ardia com chamas que aqueciam e iluminavam toda a cozinha.  As cadeiras de buinho e os "mochos" para os mais pequenos, faziam círculo a distância bem razoável, porque o calor era muito e não permitia aproximação.
Mais atrás, a mesa com a alvura do linho, recheava-se de tudo quanto a tradição sempre mandou.
E comia-se e cantava-se ao Menino Jesus, puxando cada um, o cântico que lembrava.

Oh meu Menino Jesus
Da lapa do coração
Dai-me da Vossa merendinha
Que a minha mãe não tem pão

O Menino chora chora
Porque anda descalcinho
Dá-Lhe tu as meiazinhas
Que eu Lhe dou, os sapatinhos

Nossa Senhora lavava
E S. José estendia
E o Menino chorava
Com o frio que fazia

Não chore meu Menino
Não chore, meu amor
Porque são navalhinhas
Que cortam sem dor

Entrai, pastores entrai
Por este portal sagrado
Vinde adorar o Menino
Numas palhinhas, deitado


E todos ... éramos então "todos"  ainda, por ali ficávamos, rindo, conversando, cantando ... varando a noite, madrugada adiante, até que o João Pestana levava as crianças para a cama, sonhando talvez que o Mundo tinha o tamanho da cozinha da avó e que a felicidade e a paz que sentiam, seria para toda a vida !

Anamar