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segunda-feira, 31 de janeiro de 2022

" PARALELO 66º 33' 44 '' N "

 





Ainda não falei do branco.  Do branco que não o é apenas ... mas que é laranja, róseo, cinza, verde, mas sobretudo azul !...
E aquele branco também não é apenas a cor que reúne e funde todas as outras, de uma vez só .  Aquele branco é cheiro, é luz e é lua, é silêncio, é agreste como o gelo que o reflecte e é tão fofo e macio quanto a neve que se amontoa.  É frio que corta por fora e é calor que conforta por dentro.  É real e é sonho.  É íntimo, é mítico e é místico ... é uma melodia esvoaçante ...
Aquele branco é uma história sem princípio nem fim que se desfia na penumbra dos abetos, na solidão de um lago gelado, ou no mar que se faz estrada, para que passemos.  É ausência e é presença, na luz que se acende na floresta ... Aquele branco é um convite ao irreal, sendo embora real e se sinta.  É um véu de noiva estendido na escuridão, pelos seres imaginários que adivinhamos ... só adivinhamos !
Não sei descrevê-lo, não quero descrevê-lo ... tudo o que eu ensaie dizer fica completamente aquém do que se experimenta.

Tinha uma enorme expectativa sobre esta minha viagem a terras do Círculo Polar Ártico;  era imensa a curiosidade que me invadia.  Afinal a minha relação com a neve é praticamente inexistente.  Não sou habituée de férias em estâncias de sky como tantos fazem anualmente, cumprindo, parece, uma espécie de liturgia ou ritual formal que os acompanha ao longo da vida.  Uma única vez me abalei até à Serra Nevada aqui na vizinha Espanha, e ainda assim não guardo memórias a contento. 
Ao contrário, privilegio destinos quentes, de sol inebriante, com pores e nasceres de cores envolventes.  Destinos de mares espreguiçados em areias mansas, de coqueiros e cheiros doces de trópicos ou equador por perto.  Destinos que convidem à nudez, ao primitivo, à imersão numa Natureza autêntica, onde a mão do Homem não molde ou defina.
Mas desta feita havia uma espécie de apelo à introspecção e ao silêncio, uma busca por um desconhecido promissor de outras sensações, que passavam muito por uma interioridade imaginada, um silêncio provindo de paisagens inóspitas e solidões apaziguantes.  
E lá fui !

A Lapónia é, de facto, qualquer coisa indefinível e simultaneamente mágica.  Há muito, muito tempo  que eu não via com tanta definição e precisão de imagem, um céu totalmente límpido, pontilhado de infinitas estrelas acesas sobre um breu absoluto. Um firmamento iluminado pelo clarão de uma lua cheia imensa, branca de prata, que reflectida pela neve tornava dia, a escuridão da floresta.
Duas horas de dia, no meio da penumbra e da escuridão que se abate depois das treze horas no relógio.
Um por-de-sol olhado longamente, como uma preciosidade imperdível ... venerado como religioso !...
Tudo foi silêncio, tudo foi mistério ... tudo foi irreal ! E o frio gélido que atravessava tudo mesmo, até às fímbrias das nossas almas, era algo puro, purificado ... quase apetecível !
Só sombras contrastavam nas clareiras desenhadas.  Só silêncio se perscrutava no estalido das agulhas dos abetos, pingando cristais de gelo como pequenas luminárias natalícias ...
Tudo tinha uma dimensão inalcançável, porque tudo o que é etéreo foge à mensuração humana ...

E por entremeio deste quadro silente e adormecido, quais fantasminhas irrequietos, as "luzes do norte", as buscadas e ansiadas auroras boreais, dançavam, indiferentes, um baile de máscaras, espreitando e fugindo, pincelando o escuro da noite, como se brincassem de esconde-esconde perante os olhos siderados de quem, estupefacto as aguardava !...




Anamar

domingo, 2 de janeiro de 2022

" O ANO TERMINA E NASCE OUTRA VEZ ... "


 

... diz Simone na maravilhosa e tão conhecida canção de Natal ...

O malogrado ano de 2021 terminou de facto, e no imparável rumo da Vida, outro se lhe substituíu, novinho em folha, promissor, mentiroso como todos, insinuando-se com aqueles olhinhos de sonhos, sorrindo como o rosto da criança marota que quer convencer-nos ...
Hoje, nestes dias primeiros, tudo é doce, tudo é tão azul como aquela paisagem silenciosa de neve, da Lapónia lá longe ...
Até porque hoje, nós precisamos que o seja, p'ra não soçobrarmos, não desistirmos e podermos voltar a abraçar os desejos, os planos, as metas, os horizontes esfumados que deixaram há muito de ser definidos !

Este meu escrito ganhou título e lugar, nos últimos dias ainda de 2021.  Mas morreu antes mesmo de nascer, sem força anímica para se fazer gente ou tornar realidade.
Vou querer, contudo, que incorpore ainda assim o meu espólio do ano cessante. Uma espécie de porta a cerrar-se sobre um período inexplicável na minha produção literária.  Um período que não entendo, em que não me entendo, tão escurecido na minha existência.  Um período de um esvaziamento intelectual, de um cansaço anímico, de uma calcinação no coração e na mente.  Um período em que simplesmente deixei de escrever, de conseguir escrever o que quer que fosse, por nada ter que dizer sobre nada, por não nutrir já, nenhum apreço em relação a tantas coisas que sempre me alimentaram o espírito, me erguiam e me davam força p'ra caminhar.
Doente, é como me vejo.  Porque quem não sonha, não se emociona, não dá asas à esperança e à fé para continuar, e se move indiferentemente dia após dia, noite após noite como um autómato, como um robô, como um pássaro apeado, de asas cortadas ... só pode estar doente !

Mas talvez porque outro ano nasceu, e tudo o que chega, tudo o que começa sempre parece transportar-nos um outro acreditar, sempre parece dizer-nos ( como uma criança que pela primeira vez abre os olhos ao mundo ), que é outra vez tempo de viver um tempo novo ... senti em mim um revigor, uma espécie de alegria esquecida, uma espécie de promessa no coração, uma espécie de ânsia de abraçar de novo o sonho, sentindo que talvez volte a ser capaz de sorrir, volte a ser capaz de me sentir viva !

O dia é de muita paz por aqui. 
Amanheceu cinzento, toldado, com um céu plúmbeo uniforme, com um nevoeiro que abafava bem perto, a paisagem circundante, como se tivesse engolido o horizonte.
Também as "nieblas" teimosas acabaram cedendo, a definição do casario foi tomando forma à medida que um sol fraquinho e bem envergonhado se anunciava.  As gaivotas dançando aqui por cima, faziam um bailado lânguido e preguiçoso, ao sabor de uma aragem mais adivinhada que real.  Os seus conhecidos grasnidos ecoam no silêncio da tarde, porque afinal hoje é domingo e o "brouhaha" de sempre, é inexistente.
Apeteceu-me Enya.  De novo, ao fim de tanto tempo sem a ouvir, ela que me apaziguava o espírito, ela que sempre me foi uma referência dos dias de maior solidão, voltou à minha companhia.  
"Winter came" ... tudo a ver com os dias que atravessamos ...

E porque acabei de chegar das terras das neves, dos gelos, das paisagens cinzentas ou azuladas, das terras do silêncio e da escuridão, em que o sol se ergue por duas horas em cada dia ... com Enya voltei a escrever.
Fui, numa viagem que parecia pouco enquadrar-se no meu perfil de mulher do sol, do calor, dos sentimentos impetuosos e quentes, talvez na busca inconsciente duma interioridade que se calhar me fazia falta, dum reencontro  comigo mesma na natureza inóspita e genuína, dum silêncio equilibrante, duma verdade sussurrada, duma identificação de coração e de alma ...
E vi tudo, e bebi tudo e sufoquei-me com as sensações que não se descrevem, e embriaguei-me com as emoções que as coisas simples despertam, e empanturrei-me com a autenticidade de cada imagem, com a surpresa de cada clareira, com o reflexo esmagador que a lua cheia desperta no branco imaculado do gelo, na escuridão das noites onde as constelações se desenham sem esforço ...
Adivinhei a vida errante e dura dos lapões.  Conheci-lhes as histórias, embrenhei-me na floresta de abetos mais brancos que verdes, claudicantes do peso da neve neles poisada, guiei-me em trenós puxados por huskies ou renas, sentada nas peles quentes, frente a fogueiras bruxuleantes, comendo salsichas grelhadas num espeto inventado, acompanhadas de chá de bagas do bosque, bem quente, para aquecer o corpo, já que a alma parecia confortada !...
Varri a superfície do Ártico gelado, no Golfo de Bótnia, em trenós velozes, e deslizei em motos de neve na superfície de lagos igualmente gelados.  E de novo comi bolachas e chá de frutos vermelhos bem quente, para retemperar a hipotermia dos dedos gélidos e insensíveis, enquanto ouvia as histórias deste mundo mítico e onírico ... e esperava o sortilégio de olhar as auroras boreais !

E afinal as "luzes do norte" não me defraudaram !!!...






Anamar

domingo, 21 de novembro de 2021

" UNS E OUTROS ... "

 


Por vezes flagramo-nos encompridando a mente sobre o que foi, como foi a nossa vida pregressa.  Por vezes surpreendemo-nos deambulando sem rumo definido sobre tudo o que já vivemos, como o vivemos, porque o foi dessa forma.
Quase sempre, esse "passeio" não programado, se faz acompanhar de um saudosismo e de uma nostalgia que inevitavelmente nos fazem recuar no espaço e no tempo, ao que fomos e ao que éramos então.

É domingo, dia já fechado, no silêncio da minha casa os gatos dormem-me aos pés.  Mais uma semana a começar, o vórtice do tempo a acelerar para o Natal, para o fim do ano, para o virar outra vez da ampulheta dos dias ...
Continuamos com uma cansativa realidade de tempos estranhos, pesados, assustadores, entrando inapelavelmente numa quinta vaga da pandemia deflagrada há quase dois anos.
Uma sensação de insegurança e de instabilidade instaladas, lembram-nos diariamente que continuamos a viver uma roleta russa por cada dia das nossas vidas. 
E o que se vive e o que se sente, além dum cansaço instalado, além dum desgaste psicológico irreversível a acentuar-se, é, de certa forma também já, uma espécie de quase indiferença e saturação face às notícias e aos acontecimentos circulantes.  Dou por mim, na maioria dos dias totalmente desinteressada da actualidade que me cerca, não abrindo sequer o televisor sobretudo nos serviços informativos.
Parece que sinto uma conformação absurda, uma acomodação triste e indiferente sobre o que me rodeia, uma impotência e uma inércia de quem já jogou a toalha ao chão.

Há pouco, arranjando-me para sair, peguei numa bijuteria adormecida numa gaveta e coloquei-a, distraidamente, mecanicamente, meio absorta ... meio cá, meio lá.  Um gesto automatizado, distante, sem intencionalidade consistente. E pensei : como me arranjava ao pormenor há alguns anos atrás !  Como nunca saía de casa sem me maquilhar, sem escolher diariamente a roupa a vestir, o calçado e os restantes adornos adequados ... Os saltos ... o salto alto era parte intrínseca da toilette, a bota, de salto fino ou não, de bico se a moda o ditasse ...
Daí os pares de calçado existirem por aqui, p'ra todos os gostos em cor e forma, as malas em consonância também ... e os cachecóis, agora que o frio começa a despontar, e os fios, brincos e mesmo chapéus ... porque tudo valia a pena, porque havia destinos a ir, sítios a frequentar, lugares e pessoas a encontrar ...

Hoje, os ténis reinam no vestuário usado, não só porque integram o equipamento das caminhadas, como porque são mais cómodos e seguros nas calçadas irregulares.  Já dei uns quantos trambolhões na rua, perdi o jeito de me equilibrar no sapatinho delicado, ganhei medo no caminhar ... desabituei-me quase de olhar o espelho, porque afinal perdi mais juventude, sonhos e ilusões nestes últimos tempos do que nas últimas décadas da minha vida !
Casa - compras - casa e pouco mais, são a história do meu quotidiano.  Pouca paciência, não recebo nem faço visitas.  Genericamente, as conversas cansam-me.  As pessoas também.  E dou por mim, agreste, deixando mesmo transparecer alguma impaciência além da conta ...
Sinto uma espécie de não valer a pena, estranho e complexo que me toma e angustia.
A silhueta que hoje detenho desagrada-me e entristece-me.  Ganhei peso, perdi formas e a frescura da pele foi-se também, com o transcurso dos tempos.  Sem retrocesso, sem volta, duramente implacável ... como uma irreversível e injusta condenação ...

Acho que nunca me pareci com a minha mãe.  Em quase nada, como costuma dizer-se, saí a ela.  Quase sempre, com pena e perda minhas.  Mas numa coisa somos iguaizinhas, estamos a tornar-nos iguaizinhas: no desgosto e na inaceitação da degradação inevitável do envelhecimento, na mágoa que tinha, como ela dizia, de envelhecer ...
A inconformação da perda das capacidades, as limitações objectivas nas faculdades físicas e mentais, sentidas e avolumadas diariamente, foram-na entristecendo e moldando negativamente nos derradeiros anos da sua existência. 
Eu sigo o mesmo trilho ... azedo, escuro, sem horizonte ou sequer um colorido arco-íris que adoce os meus dias ...

Eu sei que é inútil, é uma luta sem glória, é uma pura perda de tempo, eu rebelar-me contra tudo isto;  é mesmo uma idiotice, uma infantilidade, por certo um sinal de insanidade ... mas é assim que me sinto, este é o registo do meu permanente estado de espírito.
Por isso não entendo a leveza, a bonomia, quiçá mesmo a euforia com que uma amiga ufanamente me dizia há pouco :"sou cota ... ora bem ... e então ?  Sou bem feliz assim !..."
Como as pessoas são diferentes !!!...

Anamar

quinta-feira, 11 de novembro de 2021

" FIM DE LINHA "

 


Acho que não existirá nada mais destrutivo para um coração de mãe, do que ter que desistir de um filho.
Porque afinal, isso sempre será alguma coisa absolutamente contra-natura, monstruoso e inequacionável !
E para se chegar a esse extremo, para ter que se fazer uma opção dessas na vida, é porque se esgotaram seguramente todas as tentativas, todas as aproximações, todos os esforços ... mas também todas as esperanças, todos os caminhos a percorrer, todas as expectativas credíveis ainda, de um possível retrocesso numa relação mortalmente inquinada.
Quando o diálogo entre as pessoas não passa de uma conversa de surdos, quando as costas se voltam, quando já não se descortina um lampejo de fé num volte-face, e se percebe que já não existe sequer uma linguagem minimamente perceptível ( não digo obviamente convergente ) ... quando nenhuma mensagem passa para o outro lado e sempre encontra um muro intransponível ... percebe-se que o cordão umbilical, o tal que uma mãe acredita nunca ser totalmente cortado ao longo da vida ... o foi, sim, e o foi em definitivo !

Parece impossível isto poder acontecer, quando o mesmo sangue corre nas veias, quando para o bem e para o mal, uma mãe tenta fazer o melhor que sabe e é capaz ( ainda que com todas as imperfeições, todas as omissões, incoerências, faltas e incapacidades ... porque de humanos falo ).
Parece incompreensível que numa relação mãe-filhos possa no extremo, chegar-se a uma desistência, uma desaposta, um caminho sem retorno.  

As pessoas não nascem ensinadas.  Costuma dizer-se, e é verdade, que os filhos não vêm acompanhados de livro de instruções.  Ter e educar um filho ao longo da vida, não é apenas isso.  É uma tarefa hercúlea, submetida em permanência a milhares de factores condicionantes, milhares de vectores que se prendem com a realidade pessoal, personalística, familiar, social e todas as outras turbulências que quantas vezes de imprevisto, se instalam na vida das pessoas, as surpreendem e lhes determinam os percursos.
Mas as crianças crescem e, da dependência vital que mantiveram com os pais, surgem então, indivíduos autónomos, com personalidades instaladas, com capacidade de observação, análise e crítica de tudo o que os rodeia.  E é salutar e desejável que isso aconteça.  Afinal trata-se de seres em formação face a uma existência desafiadora, que os testa e põe à prova em permanência, já sem a rede parental a dar-lhes total cobertura ou protecção. 
Criaram-se afinal adultos que têm o mundo à frente.  
E a sã convivência então, entre pais e filhos, compreendendo-se e aceitando-se mutuamente, mormente entre mães e filhas ( em que a igualdade de género facilitaria teoricamente pelo menos, a compreensão do estar e do sentir da realidade ), aliada a uma maturidade exigível a uma fase da vida já muito mais responsável, geraria uma cumplicidade que então levaria a uma maior tolerância mútua, uma maior aproximação, partilha e simbiose.

Sem recriminações, sem dedos acusadores de erros ou falhas ( porque TODOS os temos e cometemos ), sem ofensas e agressões gratuitas, geradoras de mágoas quase sempre irreversíveis, sem ressentimentos e raivas ou ódios acumulados nos núcleos familiares, com tolerância, afecto e compreensão, iniciar-se-ia então uma outra fase da vida mais construtiva, estando já os progenitores numa faixa etária carente  de outro tipo de apoios, de estruturas, de amparo e aceitação ... Deveria encarar-se o futuro com adultícia, tolerância e paz.
Isto, o desejável ! 

Ao contrário, quando pais e filhos deixaram de ser "amigos", quando sentimentos destrutivos se instalam, quando animosidades muito sérias tomam irreversivelmente conta das pessoas, cegando-as, criando fossos intransponíveis entre elas ... quando o filho se sente "ameaçado" em vez de protegido e querido, e no seu íntimo só existe desconfiança, pensamentos persecutórios e uma turbulenta desestabilização que o faz agredir gratuitamente os pais ... quando o diálogo possível e desejável deixou de existir sem retorno ... e as pessoas se tornaram ressentidas, no mínimo estranhas e já não pertencentes ao "sagrado" núcleo familiar ... então, de facto, percebemos magoadamente, que se atingiu um fim de linha !!!

Anamar

domingo, 12 de setembro de 2021

" IGUAL A MIM MESMA ... "

 


O tempo parece ter dado a volta.
É verdade que estamos a 12 de Setembro e o Outono espreita.  É verdade que a luminosidade do sol não é de todo igual, e percebe-se tão bem a doçura e o intimismo dos dias que já aparecem sonolentos em rota de hibernação, não demora !
Nada já tem o mesmo rosto de há dias atrás, tudo parece tocar a recolher ... da natureza, aos seres vivos.
E no entanto ainda ontem terminámos um período anual de azáfama, de vida corrida, de cansaços acumulados, e olhávamos gulosamente o sempre almejado Verão, o sempre auspicioso período de férias, de descanso, de liberdade, de descompressão e realização de projectos elaborados.
Ainda ontem, e no entanto tudo não passou de um parêntesis temporal que esvoaçou num piscar de olhos, como uma nuvem que se tivesse dissipado no firmamento ...

Este início de mudança que mexe com tudo o que nos cerca, este convite sentido ao silêncio introspectivo duma natureza que também se despede da pujança dos dias quentes de céu azul e límpido ... e começa a bocejar, a encasular-se, a recolher-se sobre si mesma, lembra e retrata a curva descendente também, de mais um ocaso nas nossas vidas.
Nunca tão depressa o tempo nos escorregou das mãos.  Nunca tão ligeiro, ele, indiferente às nossas angústias, dúvidas e interrogações, se nos esboroou por entre os dedos, como um menino traquinas, brincando com os nossos medos e aflições.
O ano vai a três quartos.  Não demora é Natal outra vez.  Não demora, o calendário vira a página, e nós, impotentes, olhamos para trás e já pouco encontramos do que fomos deixando.  Os lugares, os hábitos, as rotinas ... as pessoas ...
Partiu muita gente, no nosso círculo de relações, partiu gente demais na sociedade de que fazemos parte, muitos rostos que compunham o nosso dia a dia já não estão ... Tudo se descaracterizou e há um desconforto sentido dentro de nós, por todas estas ausências, por toda esta irreversibilidade da vida... por toda esta perda incontornável ...
Entretanto, demasiadas catástrofes naturais foram acontecendo, num planeta sofredor dos atropelos sentidos.  Várias convulsões sociais, guerras, ataques, conflitos ... Morte, sofrimento, desesperança.  Dor, luto, intolerância ... 
Tudo nos dói.  O que foi e nunca deveria ter sido.  O que é e nunca deveria ser !...
Sempre, o Homem no seu pior !

E já é noite outra vez.
Comecei a escrever, frente à minha janela, como sempre, com o computador sobre os joelhos, num lugar de silêncio, de tranquilidade e de paz.  Ia a tarde a meio, o sol, fraco e envergonhado, duma luminosidade de adormecimento, vestia de patines douradas um firmamento indeciso entre permanecer adocicado ou deixar que as nuvens que se desenham lá na linha do horizonte, subam e tragam a chuva prometida já para esta madrugada ...

Fico-me por aqui.
Um aperto bem no meio do peito retrata a angústia que sinto.  O olhar "molhado" que me aflora, retrata a sensação nostálgica e doída que me acompanha, dia após dia e que não consigo afastar de mim.
Uma tristeza profunda ... não me perguntem do quê, ou porquê ... Não saberia, honestamente responder !...

Anamar

domingo, 5 de setembro de 2021

" RESTOS DE UM VERÃO ... "



"Restos de um Verão" foi o título aposto ao meu escrito de hoje que volta a pecar pelo atraso, pela desmotivação, pelo desinteresse.  De facto, mediarem duas semanas entre a minha última abordagem a este espaço e hoje mesmo, é facto que cada vez menos encaixa na minha personalidade, que cada vez faz menos sentido, que não tem justificativa ou razão.

Necessidade de escrever sempre foi, por assim dizer, um sinal que eu sabia ler.  Sempre foi a busca de uma terapia para a alma, o esvaziar de um coração atormentado, a abordagem de uma escapatória em estrada conturbada.
E por isso, sem olhar para os lados, sem grandes exercícios censuratórios ou reflexivos, aqui vinha numa busca de remédio eficaz para a insatisfação, para o reencontro comigo mesma, para este deambular perdido em labirinto de sentimentos.
Aqui, quase sempre me encontrava;  aqui, quase sempre me abrigava, como de temporal fugida;  aqui, quase sempre reunia os cacarecos perdidos e espalhados, de mim mesma !
Porque enquanto escrevia, praticava também uma espécie de catarse, depurava os amargores dos dias desenxabidos e defraudantes, arejava angústias teimosas em me afrontarem.  E, operava em mim o milagre do esvaziamento, o varrimento das dúvidas existenciais em solilóquio amigo, o desapego dos "monstros" impositivos e massacrantes que me assombravam as madrugadas silentes.
E já valia, por isso, a pena !

Hoje, não encontro, de facto, resquícios de mim mesma, perdidos por aí.
Hoje, silenciei por dentro, sossobrante a um vazio sem remédio.  Pareço levada pela avalanche de um qualquer tornado trucidante do meu eu, no corpo e na alma.  Pareço subjugada a uma indiferença doída, pareço sucumbida à inexistência de luz no caminho, de horizonte desenhado nas alvoradas, de portas ou janelas franqueantes de auroras frescas e coloridas.
Hoje não encontro objectivo, rumo de valer a pena, força para sacudir as penas encharcadas deste pântano pestilento que arrasto indiferente, há tempo de mais.  
E desisto, e não escrevo, e vou simplesmente desfiando dias ...

À minha volta, nos conhecidos, nos amigos, também as realidades são semelhantes.  Doenças inesperadas e fatídicas mesmo em faixas etárias improváveis, digamos ...  saturação, falta de paciência, demência a acentuar-se em alguns, mesmo naqueles que nos habituámos a ver como muralhas que pareciam inexpugnáveis na vida, desinteresse generalizado por tudo o que nos rodeia ... em suma, uma mesmice e um cinzentismo em existências onde parece estar a apagar-se a claridade.
Tudo isto, sem outras perspectivas, sem outros rumos, sem outros sonhos !!

E assim vai fechando mais um Verão.  Assim os dias vão encurtando.  Daqui a pouco, daqui apenas a poucos dias, mais um Outono se apruma para chegar com a melancolia que lhe é característica, com a doçura também, dum intimismo e duma solidão que aninha mas também dói ...
Daqui a pouco as folhas douradas tombam, o vento arremessa-as em rodopios ... Daqui a pouco, os areais esvaziam e o domínio é já só das gaivotas que os habitam ... Daqui a pouco, o mar perde o azul e o verde e o prateado de dias promissores ... e acinzenta com o borrascoso dos céus nele reflectidos ...

E mais dois anos das nossas vidas se esvaíram, e esvaziaram da ampulheta que persiste em despejar ... inevitavelmente ...
Cansaço !!!

Anamar

sexta-feira, 13 de agosto de 2021

" O MEU MUNDO DE PERNAS PARA O AR "

 



Estou a superar-me nos meus recordes.  Contudo, pela negativa, infelizmente !
Verifico que desde o dia 11 do passado mês de Julho, não escrevo nada.  Verifico que nesse mês escrevi dois posts apenas e que em Junho, um único.
Verifico que se hoje me não "obrigasse" a vir aqui dedilhar duas linhas, passaria tranquilamente mais um dia, sem que o fizesse.
Verifico também que ultrapassei já com alguma expressão, as cem mil entradas de leitores a este blogue, sem que sequer tivesse dado por isso, eu que sempre sinalizei com júbilo e satisfação pessoal, a passagem de cada dezena de milhar.  Com alegria, mas também com reconhecimento e gratidão por poder sinalizá-la ...
Verifico que escolhi como foto do mês e também do post de hoje, uma imagem que talvez fale por mil palavras, tendo-a legendado com uma frase que só por si já diz tudo : " o meu mundo de pernas para o ar "...

Na verdade, não sei se será justo epitetar desta forma a vida que detenho e vivo hoje em dia.  Objectivamente, não consigo descodificar a origem do mau estar que preenche os meus dias, a insatisfação, o cansaço e o desinteresse por tudo o que me cerca.  Analisando globalmente a realidade que atravesso, não encontraria motivos reais, palpáveis, concretos ... daqueles de tirar o sono, daqueles de nos porem o coração à boca, de nos puxarem as lágrimas, de nos levarem a arrancar cabelos, ou a desistir de prosseguir.  Efectivamente não vivo preocupações excessivas, dúvidas ou ansiedades esmagadoras, mágoas ou desgostos profundos com nada... 
Tenho saúde, ou julgo tê-la, dentro daqueles parâmetros rotineiros  de aferição da mesma.  Os meus, filhas e netos, também não me inspiram preocupação acrescida nessa área.  Financeiramente não vivo com sustos, angústias ou apertos exorbitantes.  Ao contrário, posso dizer viver uma vida com algum equilíbrio nesse campo, sem larguezas, mas também sem "roer as unhas", como "soi dizer-se".  
Acabei, inclusive, de chegar há poucos dias de uma viagem de uma semana às sempre maravilhosas ilhas açorianas, àquelas onde nunca tinha ido, Terceira, Faial e Pico, cumprindo assim um itinerário possível no âmbito das viagens, em panorama Covid.

A maioria, ou grande parte da população portuguesa não pode dar-se a esse "luxo", já que com todas as dificuldades sociais experimentadas, com um futuro de incerteza e dúvida a todos os níveis, em consequência da pandemia, a qual lançou o mundo para futuros negros, tem que encarar em termos de prioridade e quase exclusividade, o garante da subsistência diária, sua e dos seus, infelizmente num contexto pouco mais amplo do que o de mera sobrevivência.
Pois paradoxalmente, nem estes dias conseguiram tirar-me deste torpor, e darem-me mais ânimo ou positividade em relação à vida ...
E como eu, afinal, adoro viajar !  Como me sentia solta, leve, feliz, livre e com um entusiasmo renovado, sempre que há anos atrás realizava uma viagem !...

Neste momento a minha existência está parada. Pareço ancorada e fundeada num mar de distância, em águas de não valer a pena, como se o vento que me enfunava as velas tivesse sucumbido a uma volta de tempo ...
Tenho dentro de mim uma apatia, um desinteresse, um desinvestimento em relação a tudo o que me cerca. Parece que o sangue deixou de correr e o coração cessou de me pulsar dentro do peito.  Parece que experimento a sensação estranha de já nada valer a pena.  Nada que justifique empenhamento, mão de obra, sonho ... 
A sensação estranha de sala de espera de não sei que esperar. A sensação de efemeridade temporal e curteza de caminho ... Consequentemente, a sensação estranha de já só viver a prazo, no cumprimento de calendário e não mais !

Sei que tenho um feitio difícil e uma maneira de ser muito particular e complicada.  Sei que em recorrência sou deprimida e profundamente depressiva.  Mas sei que neste momento, psicologicamente preciso de ajuda médica. Não estou a conseguir endireitar-me de nenhuma forma.
Nada me anima ou estimula. A caminhada é feita com um esforço exasperante.  Ontem a Teresa passou a tarde comigo, a trabalho da mãe.  Pois foi um cansaço diabólico, e no entanto os seus quatro anos de criança cordata, simpática, fantástica e nada chata, com toda a meiguice do mundo sempre pronta a distribuir-ma, deveriam resultar em encantamento e compensação para os meus dias ...
Mas não ! 
Parei de sonhar. E quando um Homem já não tem sonhos, objectivos ou metas, não tem por que lutar, não tem o que realizar, e à sua frente só enxerga uma estrada pedregosa, escura e desinteressante !  Desnecessária !  Um vazio cruel assola-lhe a alma ...

Como eu adoraria voltar a trepar a um arco-íris de esperança, vontade e luz !...



Anamar

terça-feira, 6 de julho de 2021

" VIDAS ..."



Escrevo ao som de Fausto Papetti.  Temas imortais, relaxantes, com a fantástica capacidade de me  apaziguarem a alma e o coração.
"Herdei" este CD, muitos outros, livros, roupas.  Herdei de alguém que conheci pouco, com quem privei um número de vezes que seguramente se contariam pelos dedos das duas mãos.  Herdei, duma casa a desfazer-se, quando talvez não fosse ainda previsível vir a sê-lo.
É uma sensação doída, a que experimento.  A sensação estranha de estar a usufruir indevidamente de algo que me não era legítimo usufruir, como se estivesse a invadir a privacidade de outrém, as sensações de outrém, as suas emoções e os seus sonhos ... a sua história, enfim ...  
Afinal, tenho para mim que cada pertence nosso, com ou nenhum valor material, sempre é uma parcela do nosso eu, nele depositado.  Sempre é um pedaço de história, um pedaço de vida ... um momento, um instante, um sonho concretizado, um gosto realizado.
Ali estará sempre um pouco de nós próprios.

O desfazer duma casa é um processo contra-natura, como o desfazer dum ninho é um adeus àqueles que nele habitaram depois do construírem.  É um bater de porta, um fechar de janelas, um apagar de luzes.
É uma agressão sem tamanho, sobretudo se quem tem que a desfazer, está emocional e afectivamente ligada a ela, se de alguma forma a ela pertence ou pertenceu, se teve também a sua existência com ela interligada.
É doloroso, é destruidor, é mortal !

Lembro vagamente o desfazer da casa dos meus avós, após a partida da minha avó, seis anos depois do meu avô. Já lá vão mais de cinquenta anos.
Eu era então uma adolescente ainda, e naturalmente, não estava directamente envolvida nessa tarefa. Ela cabia aos filhos, a minha mãe e os meus tios.  Mas até hoje, quando regresso àquele Alentejo que já é já só de silêncios e solidão, aquele nó que me estrangula a garganta, e aquele aperto no peito que me atormenta a respiração, sobem e fazem-se presentes e sentidos.  Fico estática, perscruto as janelas já não minhas, deixo o olhar perambular lentamente, descendo da chaminé ao portão, por cada divisão do que era, por cada memória do que foi ... 
E volto a rever o poço de água fresca no quintal, com as rochas ornadas de avencas, volto a rever as galinhas e os pintos ciscando no terreiro e até as andorinhas nos voos rasantes nos beirais.  Até me volto a ver, a mim, menina de bibes e bonecas, mais tarde jovem de corpo fresco apetecendo os primeiros amores ...

Depois foi o desfazer da casa de Évora, onde vivi mais de dez anos.  Casa que se manteve estranhamente fechada e desabitada após a nossa saída rumo à capital.  
E de novo, as sensações e as emoções de desconforto e tristeza me invadem, quando a olho, como em romagem obrigatória, sempre que volto à cidade.
Também aí "repasso" a mente e o olhar perdido, por cada divisão, por cada objecto, por cada móvel.  E com eles, vêm o meu pai e a minha mãe, vêm as vivências recuadas dos anos escolares ainda despreocupados e leves ...
E uma vontade imensa de bater naquele número quarenta, naquela porta fechada esperando que ma abram, uma vontade imensa de subir a escada, desvendar o corredor, percorrer as divisões, olhar a chaminé de tijolo, em frente, onde a esta hora as cegonhas já haviam nidificado, ano após ano, todos os anos para alegria da menina que eu era ... me empurra em vão, sem que contudo eu saia do outro lado da rua ... porque tudo aquilo afinal ficou lá e não é mais meu, nunca mais será meu.  Porque o tempo já passou, porque os dias se fizeram e porque o destino se escreve, irreversivelmente, dia após dia.

A casa da Beira Alta foi "encerrada" na minha vida, anos mais tarde.  Por razões pessoais e familiares, foi chão que deixou de me pertencer.
Essa foi a casa dos verdes anos das minhas filhas, a casa dos dias ociosos das férias, o campo em volta, o rio ao fundo, a figueira de "pingo mel" guloso e irresistível ... a casa dos jogos de cartas em horas intermináveis, na mesa de pedra sob a tileira de copa farta. Casa de jogos, de correrias, de bicicletas, de gargalhadas, de espigas de milho roubadas nos milheirais vizinhos e assadas na fogueira ...

A casa da Verdizela, comparativamente mais recente e estreada em 93, também deixou de estar nas minhas mãos, embora permaneça na família em boas mãos também.  Hoje, a minha neta de quatro anos que não conheceu mais nenhuma, chama-lhe por direito "a sua casa" ...
Nunca lhe contaram ainda, que por ali paira o dedo da avó, o desenho da avó, muitos dos sonhos da avó.
Uma casa estudada ao pormenor, do interior ao jardim, foi decorada canto a canto e cresceu com a ternura e o desvelo com que se cria um filho.
Nela e no seu conforto, a minha mãe deu o último suspiro ... ela que lá vivera os últimos anos da vida, com uma ligação profunda de coração a todo aquele espaço, na preocupação de perpetuar a minha pegada por ali.
Mas a "casa", aquela que foi a minha, também já não existe, obviamente ...

Finalmente, a casa que mais me doeu a desfazer, a casa cuja porta mais me doeu a encerrar, aquela a que não gosto de passar ou mesmo de olhar, foi a casa dos meus pais, de quase toda a vida, por mais de cinquenta anos.
A ela cheguei ainda não tinha treze anos, e dela me desliguei com bem mais de sessenta.
Filha única que fui, coube-me exclusivamente a dor do desmanchar desse ninho, com o destino do recheio material, o alienar dos pertences, o violar dos recantos ... a disseminação das coisas impossíveis já de guardar ... 
Porque as memórias, essas vieram comigo, imortais que são, não ocupam espaço.  Guardá-las-ei nos arquivos do coração e da alma para todo o sempre !

Hoje, olhando para trás, vejo que a minha vida foi atravessada por dobrar de esquinas, viragens de ruas, desfolhar de páginas, encerrar de portas ... se calhar, como a vida de toda a gente, afinal.  
Mas, porque dolorosos normalmente são esses acontecimentos, pelo que eles representam no desencavar das memórias, no rewind dos percursos, no devassar das existências, eles representam um fim inglório e injusto para qualquer ser humano.  
Olho sem querer olhar, vejo sem querer ver, a minha casa de hoje, as minhas coisas cujo valor, para mim, é cada vez mais religiosamente considerado como uma extensão da pessoa que eu sou, da história que eu vou vivendo, dos sonhos que eu vou arquitectando, das flores e das pedras que me atravessaram o caminho e que guardei, todas elas sem enjeitar nenhuma.
Sei que o sol continuará a inundá-la sempre que na torre da igreja derem as quatro badaladas, sei que a luz da lua a incendiará, quando cheia, a devassar sem pudor ou contenção ... como agora, como sempre ... Sei que as divisões continuarão habitadas por mim, que por ali andarei a olhar os livros, os móveis, as molduras pejadas de rostos, que por ali andarei escutando os sons do silêncio, sorrindo ao Jonas, ao Chico, ao Óscar e à Rita que hão-de passear-se comigo do quarto à sala, do hoje ao ontem, numa história de eternidade resgatada.

E a porta também se cerrará.  Dessa feita, não serei eu a fazê-lo ...😢😢😢

Anamar

quinta-feira, 3 de junho de 2021

" O QUE RESTA ... "


Não escrevo nada ... nem em quantidade nem em qualidade !

Olho a página em branco à minha frente, e nada, não consigo parir uma ideia, um tema, um assunto que me motive, e que, abanando os neurónios me gratificasse com qualquer coisinha que pudesse animar-me.  Nada ... absolutamente nada !
Espremida a mioleira, não desencavo uma só coisa que justifique o esforço ainda sensível nos olhos recém-operados.
A minha crise existencial neste momento, o espírito deprimido que me assola, o cansaço e o desinteresse generalizado que me pressinto em relação a tudo e a todos, levam-me a crer estar em estrada sem retorno, estar estrangulada por nó de marinhagem, estar nas areias sem horizonte, sem bússola ou norte.
Não descortino incentivos para retomar caminho, não descubro razões para ir além, não pressinto forças para virar a página da vida onde estacionei ...
Começar os dias é tão só uma espécie de destino a cumprir-se, não mais,  um caderno de encargos que apesar de tudo tenho que honrar.  Automatizo as rotinas, pois é a única forma de não alienar algumas, e renego todo e qualquer esforço para preencher este imenso e pesado vazio que se agiganta diante de mim.
E no entanto, ele sufoca-me e mata-me gradualmente.
Não consigo tornar o hoje diferente do que foi o ontem, não consigo conceber um amanhã mais aliciante e preenchedor do que está a ser o hoje.  Vivo a mesmice dia após dia, todos os dias !...

Estou a viver a "pós-depressão" traumática de um estado de calamidade emocional arrastado há tempo de mais.  Uma anormal experiência de vida que teve a capacidade de virar o ser humano do direito para o avesso, o mérito de retirar a energia, a alegria, e até a emoção de vivermos a vida colorida, como o deverá ser. 
Estou  a viver  um  estado  letárgico  e amórfico  capaz  de embotar sensações, emoções, interesses, vontades e sonhos.
Estou a sobreviver amputada da expressão dos afectos.  Seca, árida, áspera e vazia.
Estou num ponto de não retorno. Sinto-me sem capacidade de reversão de tudo isto, porque não sinto em mim nem vontade nem fôlego para empreender novos caminhos.  
Vivo uma espécie de desaposta, dormência ou auto-abandono.  
Arrasto os dias e encolho-os, em detrimento das noites, essas, intencionalmente longas e cultuadas ... momentos abençoados de apagão na mente e no coração ...
Não vivo ... resisto apenas !!!

Não sei o que fazer, como fazer, atolada num pântano fétido, entontada no vaivém da montanha russa atordoante que são estes dias enjoados, sem horizonte à vista !

Perdoem o vazamento, perdoem a escorrência das palavras ... mas às vezes, no meio da solidão e do silêncio, são elas que restam ... pouco mais !

Anamar

sexta-feira, 28 de maio de 2021

" DAS TREVAS À LUZ "



" Das trevas à luz ", literalmente falando...

"Troquei" de olhos, ou melhor, até parece que troquei !
No passado dia cinco, intervencionei a catarata e a miopia no olho direito e três semanas depois, submeti o esquerdo à mesma situação.  Tinha miopia desde a adolescência, usei lentes de contacto mais de trinta anos, pois sempre abominei o uso de óculos, até que por intolerância às mesmas, acabei por não ter alternativa.
Com o avanço dos anos, todas estas situações são de absoluta normalidade, e deitando mão de actualizações sucessivas de graduação, lá fui andando, até ao momento em que, frente à televisão instalada pouco mais longe do que os pés da cama, comecei a ter uma desfocagem acentuada das imagens.  Uma espécie de cortina parecia opacizar-me a visão direita.  
As legendas, se brancas sobre fundo claro, inviabilizavam a sua leitura, as fotografias tiradas, depois de visualizadas no computador, acabavam revelando que o que eu julgara focado e perfeito, não o era ... e a qualidade de vida mostrou-se claramente insatisfatória.

Se a passagem do tempo me assusta, me entristece e me revolta, sentir-me objectivamente limitada pelo mesmo, mata-me por dentro.

Procurado um oftalmologista referenciado, revelou-se necessário implementar todo o processo de intervenção cirúrgica às cataratas. 
A minha mãe já o fora a um dos olhos, e hoje lamento não lhe ter proporcionado a realização da sua vontade de o ser ao outro, conforme o verbalizava algumas vezes.  Não o fiz estupidamente, pois tendo ficado praticamente imobilizada, restringida a uma cadeira de rodas, entendi não dever submetê-la a mais uma operação, atendendo à idade que já tinha.
Hoje e agora, a partir da experiência que acabo de vivenciar, penso tanto na injustiça que cometi e da qual tanto me penitencio !... 😥😥😥

Assim, iniciei todos os exames necessários para ser operada já em Fevereiro de 2020  (o que veio a gorar-se ),  já que a Covid19 chegou e jogou todos os planos das pessoas por água abaixo.
O medo que então se vivia, o receio da exposição ao risco no período em que ainda pouco se conhecia sobre a pandemia, sua transmissibilidade, contágio e propagação, as sucessivas quarentenas a que o país se submeteu, todo o figurino de vida que passámos a viver, inviabilizaram totalmente o percurso normal das existências.
Os médicos deixaram de operar, excepto em situações graves e inadiáveis, os hospitais e todo o pessoal de saúde com ela relacionado foi mobilizado, bem assim todos os espaços físicos a nível público e privado foram reclamados a disponibilizarem-se, como áreas de Covid.
Tudo ficou portanto, suspenso.

Agora, mais de um ano depois, e com alguma normalidade relativa nas nossas vidas, retomei o processo interrompido, inevitavelmente agravado pelo tempo entretanto transcorrido.
Felizmente tudo se tem processado dentro do previsível, as intervenções foram bem sucedidas e a recuperação está a fazer-se satisfatoriamente.

Como uma máquina perfeita que é, o nosso organismo vem habilitado com muitas e variadas valências, desempenha muitas e variadas funções, está apetrechado para responder a muitas e variadas exigências. 
Mas também, como todas as máquinas, sofre o desgaste dos tempos, as vicissitudes do desempenho, as falhas inerentes a um trabalho exaustivo, inimaginavelmente complicado.
Vamos percebendo que, mesmo nas situações de grande sucesso, tudo é efectivamente relativo, e os "prazos de validade" inapelavelmente sempre são anunciados e se aproximam.
Nesse contexto, acredito que o sentido da visão seja talvez um dos elegíveis, como prioritários no percurso do ser humano, pois embora não seja vital, confere-lhe uma qualidade de vida que eu diria aproximar-se do domínio do miraculoso.
Tal como em tudo, o Homem só valoriza quando perde... 

Alcançar a luz que talvez já não me lembrasse bem como era, abrir os olhos e rever com nitidez, precisão,  clareza, acuidade de definição, tudo o que me cerca ... poder extasiar-me com a magnanimidade das cores, o fascínio da paleta que pinta a nossa realidade ... ter o privilégio de me sentir mergulhada numa perfeição e numa harmonia que não se descrevem e são algo místico, irrepetível e  único ... sentir-me verdadeiramente abençoada pela Vida, pelo Destino e pelo Universo, por poder ser protagonistas desse fantástico regresso à CLARIDADE ... foi, sem sombra de dúvida, um dos presentes mais fantásticos e incríveis, que pude receber na minha vida !!!

Anamar

sexta-feira, 21 de maio de 2021

" NÃO SEI ! "

 


Não escrevo, não saio, não convivo ... não tenho nenhum tipo de paciência nem com as coisas nem com as pessoas.  Agasto-me, encurto conversas ... evito, se der.
Deixei de poder fazer a caminhada, que sempre funcionava como um escape, um momento de lazer e um recarregar de "baterias", à conta das intervenções cirúrgicas aos olhos, com o consequente desequilíbrio e desajuste da visão.
Com chuva ou com sol, refilando ou não, elas constituíam uma justificativa para dar um mínimo de sentido ao meu dia.  Eram uma fuga às quatro paredes que me sufocam, e um contacto com a natureza renovadora, equilibrante e potenciadora da saúde física e mental.
Agora, e ainda vai demorar algum tempo, a reposição dessa rotina continua interrompida.

Entretanto, sinto-me péssima neste momento.  Tenho uma clara noção de que, agora sim, o meu frágil equilíbrio emocional que se foi esfiapando ao longo de infinitos e intermináveis meses duma vida absolutamente anormal e estranha, a que temos sido relegados mercê da Covid e das sucessivas restrições e quarentenas a que fomos submetidos, está irreversivelmente danificado.
Não sinto em mim nenhuma capacidade de reacção, de ânimo, de força, de energia para lhe reverter o estado e o percurso... para o reconverter.
Os dias sucedem-se iguais. Com mais sol ou mais chuva, com mais Primavera ou Inverno, os horizontes repetem-se, e a sensação de estar atolada num lodo que me suga e não desprende, avoluma-se com eles.
Tenho em mim uma tristeza sentida, uma solidão que dói, um desânimo que me devasta.

Penso muito na morte, na partida, como se ela se anunciasse numa esquina contígua.  É um pensamento recorrente que domina os meus dias, como se apenas me coubesse esperá-la, e não houvesse já nada mais a vivenciar por aqui. Como se, sonhos, projectos, concretizações, ideais fundamentais para nortear a nossa existência, não coubessem já nos trilhos destinados, não fizessem já sentido no figurino de vida a viver. 
Como dizia uma amiga, parecendo estar a vivenciar e a sentir algo semelhante ... "vivo para morrer !..." ( não sei se consigo ser clara nesta afirmação )

Há alguns anos atrás, eu tinha focos, interesses, acreditava em futuros, fossem lá eles o que fossem.  Mas criava-os, desenhava-os, entusiasmava-me com eles.  Sentia valer a pena apostar em metas, colocava etapas na vida, fasquias a atingir - agora isto, depois aquilo - razões que dessem sentido ao caminhar.
Agora, estou absolutamente esvaziada de vontades, de interesses, de energia ou creres.  Só um cansaço mórbido me domina e isso tem um nome ... eu sei !

Bulho comigo mesma, digo-me que isto não é viver ... mas, onde encontro em mim o ânimo para sacudir as penas e voar outra vez ?!

Desvalorizo as "receitas" pedagógicas que generosamente me dão.  Não tenho paciência p'ra frases feitas, pensamentos de "plástico", teorias de auto-ajuda que me aconselham.  Não me fazem sentido !
Escombros ... escombros é uma espécie do que está a sobrar de mim ... simplesmente !

Depois penalizo-me, e se racionalizo, acho-me de facto frivolamente tonta. Futilmente sensível.
Porquê esta visualização da vida ?!  Porquê esta abordagem imatura da realidade ?!  Porquê esta exigência absurda da existência ?!
O mundo não gira à minha volta!  Os problemas reais e objectivos que dominam e angustiam milhões e milhões de pessoas, não me atormentam.  Tenho o que comer, tenho o que vestir, tenho um tecto sob que me proteger, tenho saúde, tenho uma família minimamente estruturada e a viver com as dificuldades normais que perturbam, grosso modo, toda a gente. Não mais.  Tenho resolvidas folgadamente as questões  triviais que atormentam violentamente, tantas faixas da sociedade.  Tenho uma terra, tenho um país, sou pertença de valores e lugares que me garantem nichos de conforto. Tenho segurança.  Mais ou menos, tenho certezas no dia a dia.
Não preciso de fazer uma trouxa e palmilhar mares e destinos ignotos, para assegurar os meus, na busca tão só de um amanhã ...  Não vivo sob o ribombar de bombas, estilhaços de balas, sirenes, gritos e lágrimas, em meio de vivos e mortos ... confrontando todo o tipo de ameaças, violência e atrocidades gratuitas ... sabendo que adormeço e nunca sabendo se desperto no dia seguinte ...
Vivo na Europa, garante só por si, de dignidade, princípios, respeito e protecção, e não em nenhum país sub-mundista, numa América Latina, numa Índia ou países miseráveis do oriente.

Então, se é assim, por que vivo nesta infelicidade atroz ?!
Por que não vivo, e diria que apenas vegeto ?!
Por que são apenas vários os tons de cinzento que pincelam as cores dos meus dias ?

Não sei ! Apenas o cansaço é palpável, apenas o nevoeiro cerra os meus horizontes, apenas a desesperança e uma apatia que me tolhe, domina a minha existência !
Mais ... não sei !!!

Anamar

sexta-feira, 14 de maio de 2021

" E JÁ FORAM TANTOS !... "



Vermos partir os nossos ascendentes é um processo doloroso, violento, mas que vivenciamos com alguma naturalidade, eu diria.  A vida prepara-nos para isso mesmo, forja-nos uma aceitação e confere-nos um olhar quase pacífico face á inevitabilidade.

É certo que nos debatemos, que sentimos em nós alguma injustiça, que nos rebelamos, como se alguém pudesse conter o percurso inevitável de todo o ser humano !...
Mas acabamos por apaziguar o espírito, dizemo-nos que essa separação será só até um "destes dias", que todos afinal, começamos a morrer um pouco desde o instante em que pousamos o pé na vida, e que o destino de todo o ser vivo é esse mesmo.  
O que difere, é o tempo que genericamente é distribuído a cada espécie, a sua robustez física, e claro, algum inexpectável acidente de percurso.
Assim, se tudo ocorrer dentro do teoricamente previsível, se nada precipitar o desfecho final e o mesmo ocorrer já em idades provectas, consolamo-nos dizendo que aquela avó ou avô, tio ou mesmo mãe e pai, acabaram tendo uma vida plena e que o seu caminho aqui na Terra, afinal foi de bom tamanho e usufruído generosamente.
E depois, sempre acrescentamos para nós mesmos, que essa despedida sê-lo-á apenas por algum tempo, já que "qualquer dia", talvez mais breve do que o suposto, voltaremos a encontrar-nos !...

Acho que é uma defesa que buscamos para aliviar um pouco a dor da alma que sentimos.  É uma espécie de mitigação e refrigério que nos damos, para que a continuação da nossa caminhada não seja tão penosa e insuportável, em meio da orfandade terrível que se nos abate.
Quem aceita a continuidade da vida além da morte, noutra dimensão e noutro contexto, quem encara como coisa assumida que, estando atentos aos sinais, perceberemos que aqueles seres de luz não se afastam totalmente dos terráqueos que por aqui ficaram, acaba minorando a rudeza do percurso, acaba aligeirando a dureza da existência, e prodigaliza um amparo e um conforto para os corações, que desta forma se sentem mais aconchegados em cada provação do destino.
E assim vamos, talvez inocentemente, caminhando !

Não interessa!
Afinal é como escudarmo-nos numa entidade superior, é como protegermo-nos nos braços de um qualquer deus, ou como aquietarmo-nos no cólo de uma qualquer santa ou virgem em que acreditemos.
Afinal, tudo não vai além, simplesmente, da convicção pessoal e não mais.  Tudo depende apenas da nossa capacidade de Fé ... independentemente do objecto dessa nossa Fé !

Mas, afasto-me daquilo que me ocupou a mente no início deste meu escrito ...

Ontem, faleceu mais uma colega.  Daquelas de toda a vida, nos trinta e muitos anos que leccionei na mesma escola.
As pessoas cruzam as suas vidas com as nossas, partilham os seus caminhos com os que trilhamos, dividem experiências, preocupações, alegrias, cumplicidades ... ao longo dos tempos ...
As pessoas trocaram aprendizagens, vivências, ensinamentos ... demo-nos afecto e carinho também ...
E depois, não bastando o trilho de afastamento que a vida nos acaba impondo, as pessoas vão partindo.

E porque sempre as lembramos como foram, como eram então ... porque continuamos também a imaginar-nos como fomos, como éramos então ... vivenciamos uma realidade fictícia da não passagem do tempo, e consequentemente, a despedida dos colegas e amigos surpreende-nos violentamente como um processo quase "contranatura", como não natural, como abusivo ... como uma pirraça malfeitora do decurso impiedoso das nossas existências !

E se os nossos ascendentes nos deixam com uma dor "calculada", digamos ... a partida daqueles que geracionalmente estão aqui ao mesmo tempo que nós, entreabre-nos repentinamente, quase inesperadamente, uma nesga do futuro que talvez não quiséssemos equacionar.  Mostram-nos, com dura clareza, que afinal nós também, já colocados na "calha", aguardamos a nossa vez, talvez mais próxima do que consciencializamos, pensamento esse que sempre quisemos afastar ! 
E têm partido muitos ! Têm partido tantos !... E têm-nos deixado cada vez mais pobres, mais órfãos, mais sozinhos !

Desta feita, Vitória, que o caminho te seja leve, que a paz te inunde e que as bênçãos em que acreditaste te bafejem e te assistam !
Eu, lembrarei sempre o teu ar decidido, lúcido, resoluto, pragmático e bem disposto !
Descansa em paz !

Anamar

quinta-feira, 13 de maio de 2021

" SONHO CUMPRIDO ! "



Afinal, mãe, em que é que ficamos ??

Havia dito que não queria morrer antes do seu Sporting ser campeão ...
Que nas suas orações tentava sempre sensibilizar a Nossa Sra.de Ao pé da Cruz, para dar uma mãozinha, ano após ano ( e foram muitos ), por forma a que as bolas acertassem em balizas adversárias que pareciam teimosamente estreitar-se, por cada jogada ... 
Tudo isto na mais descarada promiscuidade nunca vista, entre futebol e religião ! 😏😏😏
Havia dito que o enguiço era de tal ordem, que para não o agravar, agoirando o resultado, não veria jogos, nem ouviria relatos ... já que o sofrimento era devastador.  Ligava o rádio no início das partidas, conferia a constituição da equipa, e encerrava. Dez minutos antes do intervalo, meio a medo, meio em angústia, reabria e conferia a matemática do placard.  Repetia-se o filme na segunda parte e novamente dez minutos antes do apito final, era chamada à realidade.  
Das duas uma, ou o marcador nos era favorável ( folgadamente favorável, deve dizer-se ), e usufruía então a felicidade de uma vitória quase garantida até ao apito final, ou ( muito comum ), as coisas não haviam corrido de feição, e a tristeza não lhe permitia continuar a padecer por mais tempo, e retirava o pio ao rádio.
"Será para a próxima !  Eles coitados, até jogaram bem ... mas têm muitos jogadores lesionados, sabes ?!"
E eu irritada com tanta complacência e tanta capacidade de aceitação e justificação ... "Bolas, ganham rios de dinheiro para isto !..."
E lá vinha mais um desfiar de "acidentes" e incompreensões do árbitro, faltas mal marcadas, favores, penáltis indevidos, mais um azar perseguidor ... fazer o quê?!
Nessa noite, aposto que as orações eram reforçadas !...😁😁
Certo certo, é que na manhã seguinte, e infalivelmente em todas as outras, pelas sete, a "Bola Branca" na Renascença, era religiosamente escutada, e todo o historial e debates dos jogos, eram escalpelizados.

E depois, na ponta da língua, eram as histórias das transferências, das chicotadas psicológicas, com os treinadores a dançarem na corda bamba, eram as dispensas, eram os jogadores no banco, por castigos ... era a pontuação no calendário dos campeonatos, das taças e jogos internacionais ...
Era o caderninho feito à mão, jornada a jornada, dos jogos que iriam ocorrer, e ao lado, a seriação pontual de todos os clubes.  Até ao Natal a coisa ia ... depois é que eram elas ...
E tudo sofrido  e levado a sério, a camisola também suada !...

A história já vinha de trás, muito de trás, eu diria que quase de nascença. Afinal, ser "leão" não é p'ra qualquer um. Requer características muito próprias, de fé, sacrifício, perseverança, resiliência e muito amor ao clube.
Numa casa de cinco filhos, lá no Alentejo profundo, em que a única nota dissonante era um pai benfiquista ferrenho no meio de um verde que já nascia com todos, o coração e a mente eram forjados no sonho da vitória. Mesmo sendo mulher, eu sei que o apego ao acreditar, a garra naquela mística que não se explica, nunca apagou a chama ...

Mãe, lembra-se quando íamos as duas aos jogos do Lusitano de Évora, em domingos em que o nosso clube o visitava ??  Íamos só as duas, porque o pai a fizera sócia do clube da casa. Ele, que nunca gostou de futebol, sabia que a mãe o tinha nas veias.  Bancada de sócios, e os meus sete, oito anos permitiam que mesmo dali eu festejasse os "nossos" golos. Eu era uma criança afinal, já a mãe tinha que comportar-se !😁😁

Anos que foram passando, histórias que eram contadas, os cinco violinos e tantos nomes míticos da história sportinguista nas mais variadas modalidades, que já eu também dominava, como se as tivesse vivido...  
Depois, a agenda com os autógrafos dos pupilos de Augusto Inácio e dele próprio, num período mais próspero, quando a sua neta a levou, já com oitenta anos feitos, a assistir a um treino da equipa, foi mais uma peça do espólio guardado religiosamente, até ao fim ... herança dos bisnetos ...
E aos noventa, uma visita circunstanciada ao Museu do Sporting, uma subida ao topo de Alvalade com direito a fotografia sobre o relvado, no que foi um presente inesquecível ... o melhor que lhe podiam ter dado !!
Em suma, toda uma vida de devoção, partilhando com denodo os êxitos e os fracassos, os sonhos e os objectivos ... as alegrias e as aflições ... tudo muito a sério, matriarca que era  duma família onde já se nascia "verde" !

Afinal, mãe, em que é que ficamos ??
Tinham sido só mais três anos de espera ... Acho que se a mãe soubesse, teria mesmo esperado ... 
Não lhe deram essa alegria !
Quando partiu, levou o seu clube no coração, e junto ao rosto o cachecol que sempre a acompanhou !

Somos CAMPEÕES, mãe ... 
Alvalade ontem, era uma nuvem verde, duma esperança que se tornou realidade.  A festa fez-se, os fogos subiram no céu escuro, os cânticos ecoaram por essa Lisboa fora.
Afinal todos sabemos porque foi impossível ficar em casa !... 

E como estaria transbordante de felicidade se o tivesse presenciado !...

Anamar

sábado, 24 de abril de 2021

" BREVE RADIOGRAFIA "


Um dia cinzentão com cara copiada da minha, e da minha vida.
A "Lola", mais uma tempestade das invencionices da meteorologia, parece atravessar o país.
Por aqui, de tempestade nem bem o cheiro, pois além do céu de cenho carregado com a abóboda uniforme e borrascosa, nem chuva nem vento, nem ameaços ! 

Tempestade, a bem dizer, despenca diariamente aqui no meu prédio, desde as nove da manhã, até perto das seis tarde, com as famigeradas obras a decorrerem dois andares abaixo do meu. 
Casa vendida depois do falecimento da proprietária, nossa condómina para mais de quarenta anos, abre-nos uma nesguinha do que serão também, inevitavelmente, os destinos da nossa história, passados que forem os tempos ...
Não quero pensar muito nisso. Afinal, espero que quando tudo venha a acontecer, previsivelmente eu já cá não esteja.
Gostaria de partir aqui mesmo da minha casa, casa onde entrei, por estreia da fracção, no dia 1 de Junho de 1974.  Casa de alegrias, de desgostos, de sonhos, de realizações, de desânimos experimentados ... casa de silêncios, agora. Porque já o foi de risos, de gritarias inconsequentes da miudagem, de emoções, confraternizações e comemorações, como sempre acontece em todas as famílias ainda estruturadas, como a minha o foi, até há já largos tempos atrás.

Esta solidão que divido hoje com os meus gatos, encaminha o meu pensamento para becos tão escuros quanto o dia, para estradas tão sem sentido e destino, quantos os que tem um caminheiro no deserto, sem bússola ou estrela ...

O desconfinamento pandémico abriu, e caminha-se para um possível levantamento do estado de emergência no fim do mês.
Abriram os cafés, deixando de servir exclusivamente ao postigo, abriu a restauração com condicionalismos penalizantes ainda, espectáculos, cinemas, teatros, museus, exposições e outros eventos culturais descerraram portas, os ensinos secundário e superior retomaram.
Contudo, sinto em mim a magnitude do estrago infligido pelos tempos.  Foi-se-me embora o medo, ou melhor, foi-se-me embora o susto, o pavor, o desnorte que no princípio me deixou barata tonta.  Interiorizei a doença, agreguei no meu ADN a existência da mesma e a necessidade de com ela conviver com alguma "normalidade" possível.  
Fui vacinada sem grande convicção. Mas fui. Não que isso tivesse sido um acréscimo de tranquilidade significativo, no meu espírito ... só que ---

Só que hoje sou formalmente uma pessoa diferente, sou uma pessoa amargurada, torturada por esta avalanche de acontecimentos que nos submergiram, cansaram e tiraram a disponibilidade emocional.
Sou o pássaro a quem abriram a gaiola mas a quem não apetece saltar, sair, voltar para o verde e o azul lá fora.  Sou a ave que vive triste, sem se atrever outra vez ao infinito ... porque perdeu a vontade e o gosto.    
Nada é igual, nada está igual.  As pessoas envelheceram de cansaço e desânimo.  Vejo isso nos espelhos ... vejo isso nos rostos com que me cruzo.  Não serei excepção.  
Já poderia dar alguns curtos voos ... já poderia ir além do limiar da porta, do fim da estrada, p'ra lá do horizonte ... Mas a força anímica, o empenhamento na aposta, a energia para o arranque ... onde estão ??  Não os encontro dentro de mim !
Esse imobilismo é que me assusta, esse amorfismo é que me atormenta, essa aparente indiferença é que me incomoda ... essa angústia é que me mata !  Afinal, são sinais de morte e não de vida.  São manifestações de um tédio patológico, de um desinteresse doentio, de uma tristeza insalubre !
Não sei, não vislumbro como reaprender os passos, como reconhecer o caminho, como reinventar o sonho !
Que precisarei fazer para me reencontrar ??

Anamar

terça-feira, 13 de abril de 2021

" SÓ TEMPO ..."

 

11 de  Abril de 1921 -  11 de Abril de 2021

A estranheza de nos sentirmos nada, ou melhor, de nos sentirmos apenas aquele grão de poeira da terra onde se volta, onde sempre se volta um dia ... aquela sensação de pequenez, de insignificância, da indiferença de um mundo que continua impassível, igual a si mesmo, que nos desconhece e nos ignora, apesar de estarmos de partida ...voltei a experimentar.
Voltei a experimentar estes sentimentos de perfeição, fora de nós, imperfeitos que somos no todo que nos forma !
Voltei a experimentá-los, no meu regresso à Aguda, àquele pórtico simbólico de passagem entre o cá e o lá, entre esta e a outra dimensão ... derradeiro destino.  
Afinal, havia que pôr em repouso, "ad eternum", os restos físicos do meu irmão, circunscrevendo um pouco mais, o círculo de sangue e afectos, do que resta duma família que se uniu, nas raízes daqueles arbustos, prova de vida, de ressurreição e continuidade.

As falésias adormentadas, silenciosamente místicas, maravilhosamente adornadas nesta Primavera em desponte, atestam em eternidade que o Tempo é apenas uma estrada que segue adiante sem horizonte que o limite !
A brisa que soprava, o céu translúcido, azul e luminoso, o mar que marulha incessante e dolente numa melopeia embaladora ... as gaivotas que cortam mansamente o firmamento ... e o silêncio ( não me canso de nele me perder ), repetem na minha alma que é ali, tem que ser ali, sem nenhuma dúvida ou omissão, que terei que me quedar também, um dia !
Aquele chão chama-me, aquele verde rasteiro, pertença dos rochedos alcantilados, apela-me e sussurra-me que  só ali, poderei ter paz.  A paz da liberdade, a paz da pertença à terra donde vim e para onde estarei indo !
Aquele zimbro despontado e perene, a doçura da certeza da continuidade, no morrer e renascer por cada estação que começa, não se explica, apenas se sente e nos trepa no sangue borbulhante das veias.
Ali moram todos e não mora ninguém. Porque ali, é lugar apenas de memórias ...

Hoje, domingo de um Abril, mês icónico no meu calendário dos afectos ... hoje, dia 11, a minha mãe completaria um século de vida, na contagem indiferente e fria dos Homens.  Partiu há três.  
Há três, que num dia com o mesmo rosto do hoje, luminoso e claro, num céu salpicado também ele, de novelos brancos viajantes, foi embora.
Eu sei e sinto que ela continua por aqui, e apenas se cansou de arrastar por mais tempo o precário invólucro que lhe destinaram.  Não que ela quisesse ir, não que ela não sonhasse em ir vendo os destinos dos seus que por aqui se cumpriam ... Apenas, o cansaço, aquele cansaço que nos tolhe o passo e a mente, a empurrou adiante.
Assim, tomou o trilho, abriu o caminho e foi apenas, antecipando-se ( como em dia de festa "adiantava" os preparativos para a chegada dos outros ), aguardar pelos que hão-de ir ...

Hoje, mãe, no dia em que nasceste e morreste, no dia em que fechaste absoluta e totalmente o ciclo da tua existência, reserva aí o lugar, prepara o reencontro, guarda o abraço ... porque tudo não é mais do que uma questão de Tempo !...

Anamar

domingo, 28 de março de 2021

" O PESO DO SILÊNCIO "


Um dia destes desaprendo de falar. 

É domingo, é um dia dos finais de Março, é um dia dos finais do primeiro trimestre de 2021, o que configura um quarto do ano em "lockdown" ... também ele ...
A Primavera começou quando e como devia, os dias sorriem radiosos, o céu azulou, cristalino e límpido.  As temperaturas são aconchegantes, as flores e os pássaros cumprem calendário na perfeição, voam livres e soltos, cantam em afinação total, e as flores, essas abrem as corolas num milagre que se renova de dia para dia.  
Eu, continuo por aqui.
Sentada atrás da vidraça, banhada por este sol de final de tarde, escuto o silêncio de uma cidade em adormecimento.  Aqui, os gatos dormem, um na espreita dos últimos raios que se atrevem a entrar, o outro, aos meus pés, sobre a carpete.
Não falam, os meus gatos ... e sê-lo-ia bom !

Excepto quando refilo com o despautério de disparates feitos, excepto quando refilo com o alheamento que me toma em relação a tudo, e vocifero contra mim mesma, os sons desta casa são apenas "não sons".
Parece um lugar tumular, parece a antecâmara de um lugar sem vida, um lugar de silêncios e imobilidade.
Ao longo dos dias, totalmente ritualizados, os movimentos, os gestos, os hábitos repetem-se copiados integralmente.   E todos eles se acompanham de silêncio, um profundo e pesado silêncio !

Acho que à medida que o tempo avança neste figurino de vida, vou sendo moldada mais e mais no sentido desse isolamento.  Vou sendo redefinida mais e mais para a indiferença, a insensibilidade, a falta de gosto e de vontade.
Vou-me encarquilhando e virando para dentro. 
Estou mais para avesso que para direito.  
Estou mais pra concha que para mar aberto. 
Desaprendo de falar, mas também desaprendo de sentir e irmano-me mais  com uma pedra, que com uma árvore ... 
Endureço-me como ela, tolda-se-me a vista e embotam-se-me os sentires.  
Esboroa-se-me o querer e o valer a pena. 
A natureza é bênção que me pinga aos poucos, quando caminho.  As plantas e os bichos ainda me emocionam ... e o céu pertinho e o mar adivinhado, mas sempre vizinho no meu coração, transportam-me a tempos, para tudo o que foi e não é mais ...
A fadiga assola-me.  A fadiga de alma e um desgosto profundo por me ver amputada, como um pássaro de asas cortadas.
Não gosto de me ver num espelho, e não gosto que me vejam aqueles que me viram, quando os dias eram outros, quando os anos eram mentirosos promissores ... e quando a vida se fazia parecendo que ainda se podia tudo !

Hoje, resta-me a solidão.  A solidão e o peso do silêncio, meu companheiro de travesseiro desde os nasceres da lua, até o sol a empurrar para além do horizonte.
Resta-me o silêncio pesado e sufocante e desaprendo de falar ... e desaprendo de sentir ...

Anamar