sábado, 2 de agosto de 2008

"VIAJANTE DO DESTINO..."









O meu pai teria sido cremado.
Por opção, por vontade expressa...tenho a certeza.

Ao tempo que ele morreu pouco ou nada se ouvia falar de cremações. Teria hoje cento e seis anos, se vivesse. Mas o meu pai sempre foi pragmático, racional, despojado.
Estranhamente nunca vos falei muito dele. Aliás, a figura do meu pai é um pouco uma figura "nublada" e controversa na minha vida.

Quando eu nasci, filha que fui de um segundo casamento seu, o meu pai tinha mais idade para ser meu avô, do que meu pai. E como avô (posso dizer), me tratou toda a vida.
O mesmo desvelo, a mesma ternura, a preocupação exaltada com tudo o que me dizia respeito, a ausência de ralhetes, a contemporização com os pequenos "desvios" infanto-juvenis, a necessidade de me "paparicar" e proteger, com toda aquela carga de "pai com açúcar", típica dos avós.

O meu pai era viajante de uma firma comercial...e viajante, naquela época, significava sair de casa a uma segunda-feira e poder regressar quinze dias depois.
Viajava de comboio, de camioneta, às vezes de táxi e em tempos mais idos, sempre ouvi dizer, que de burro e carruagem. Não esqueçam que o meu pai nasceu em 1902.
Sempre vivi entregue aos cuidados da minha mãe, quase exclusivamente, dada a sua longa e sistemática ausência.

Era o filho mais velho de cinco irmãos, oriundo de uma família muito pobre do Baixo Alentejo. Terá feito a instrução primária (juro que não sei se a completou) e foi compelido a enveredar no mundo do trabalho porque tinha quase uma família para sustentar. O meu avô "delegou" muito cedo esse encargo no primogénito. Aos sete anos, já trabalhava como moço de recados ou marçano, para um patrão que lhe pagava com uma "bucha" e pouco mais.
Era uma época muito difícil, de conturbações sociais e políticas. O Alentejo, sofria de grande e profunda miséria...
Era o tempo em que nos Invernos rigorosos de frio e chuva, porque as terras não podiam ser trabalhadas, a fome grassava.
Havia "ranchos de homens sem trabalho, em desespero, a pedir esmola pelas ruas"...contava-me.
"As terras estavam encharcadas, porque chovia dia e noite, meses seguidos...não se podia lá entrar" e nem a açorda de pão dormido com coentros, alimentava os filhos em casa, porque era preciso que houvesse azeite na almotolia...e os lavradores, senhores das terras, nem sempre se compadeciam com uns decilitros...

Casou, teve um filho e enviuvou, tudo no espaço de quatro anos.
"Pôs casa" às três irmãs quando casaram. Quer isto dizer que providenciou, em substituição do pai, para que no "enxoval" de cada uma, houvesse o que "pertencia à mulher, levar no casamento"... (tudo tão estranho para nós nos tempos actuais!...)
Teve que entregar o filho a familiares, para que o criassem, visto os pais entretanto terem falecido.
Assistiu, impotente, à progressão de uma doença irreversível nesse filho, ao atingir a puberdade.
Envidou em vão, todos os esforços possíveis e impossíveis que o avanço da medicina lhe facultava, para poder curá-lo.

"Perdeu" muitos anos sem horizontes, senão os do sofrimento, da dificuldade, da amargura, do trabalho...e tornou-se pai-avô e voltou aos desvelos, à ternura esquecida, aos sacrifícios, às preocupações redobradas, quando eu surgi na sua vida... vida já então muito gasta, muito cansada, talvez já um pouco desencantada...

Reaprendeu (ou aprendeu) a mimar, a cobrir-me bem quentinha com os cobertores no Inverno, a dar-me conselhos de agasalho (não fosse eu apanhar gripe), a não dormir sem que me desse um beijo de boas-noites, a "entupir-me" de chocolatinhos nos Natais, de amêndoas de licor nas Páscoas e de "esquimós" da pastelaria Suiça...
Aprendeu a surpreender-me com duas ou três bonecas, uma delas em porcelana, com mola na barriga p'ra chorar (a Lolinha, resistente até hoje e que décadas e décadas mais tarde, "baixou" ao Hospital das Bonecas, na Praça da Figueira, onde ganhou uma cabeleira e roupas novas)

Recordo o meu pai como uma figura de poucas falas, alguém que não exteriorizava fácil os sentimentos, alguém hermético, aparentemente distante, objectivo, racional, pragmático...
Podia vergar...nunca o vi quebrar!
Era tenaz, lutador, resistente...uma fortaleza!...
Esquecia a data do próprio aniversário e não a valorizava. Acontecia com naturalidade, passar esse dia só, se por acaso estava a trabalhar longe de casa.
Natais e Páscoas..."invenções do Homem que sempre pretendia transformar dias iguais em dias diferentes"...
Não pôs luto pelos pais nem pela mulher, uma postura quase provocatória numa época e numa sociedade fechada, moralista e atávica. Para ele, isso era hipocrisia que não fazia qualquer sentido.
"Enterrar os mortos e tratar dos vivos", uma máxima para momentos de dificuldade...
Parafraseava o Marquês de Pombal, homem prático e clarividente, ao tempo do terramoto...

E assim passou pela vida, o meu pai.

Morreu com noventa anos, dizendo-me que se algum dia o ouvisse pedir um padre, não acreditasse.
Dias antes de morrer (da sua cama articulada onde agonizou dois anos, com uma cabeça a funcionar e um corpo que o traíu), dizia-me, pragmaticamente, com uma noção da inevitabilidade absolutamente clara : "Isto está por pouco...Quero morrer nesta cama...a roupa, está nesse armário..."
E às minhas lágrimas incontidas e teimosas disse : "Não chores, meu amor...a vida é assim mesmo!..."
Passou então a mão descarnada e trémula pelo meu rosto molhado e tentou recordar como era dar-me um último afago...

E foi...

E deixou-me na maior "orfandade" do mundo!...
O meu pai levou até hoje, consigo, um pedaço de mim que nunca mais consegui encontrar por aí...

Acompanhei-o, de acordo com a sua vontade, até ao "jardim das memórias"...onde já não está há muito, tenho a certeza, porque o meu pai era viajante...e não era de parar muito tempo num mesmo lugar...

Teria sido cremado (hoje estou convicta)...

E se o tivesse sido, as suas cinzas viajando no vento, seriam o maior hino de homenagem ao espírito de um homem livre, independente, aventureiro, solto...um viageiro sonhador do destino...


"O meu pai foi de Lisboa...
foi do Tejo e das colinas,
foi do pregão que amanhece,
que ecoa e engrandece pela boca das varinas...
Foi da Praça da Figueira, do Rossio, Restauradores,
da Suiça à Brasileira...
foi daquela vendedeira que ainda hoje vende flores!
Em cada pedra de rua, em cada esquina de praça,
em cada nesga de céu ou neste sol que abraça
a cidade de Lisboa,
eu o vejo, ele perpassa naquele pombo que voa...
por essa cidade fora...
a cidade de Lisboa!...
Já cá não está...mas está!
Eu sinto-o aqui e agora...
E a cidade que ele amou, vestiu de luto e chorou...
quando ele se foi embora!...


Homenagem póstuma (aquando da data de aniversário 95-06-05 )


(O meu pai fez no passado dia 30 de Julho dezasseis anos que faleceu...Este, hoje, o meu beijo para ele...)





Anamar

"AMBIENTE - UMA QUESTÃO DE CONSCIÊNCIA"

Hoje este post não é propriamente meu.
Ele corresponde a um mail que me chegou às mãos, e ao qual, como "condómina" deste planeta, nem eu, nem ninguém, me parece poder ficar indiferente.
Prende-se a uma realidade tão triste, que por inconsciência, negligência, comodismo...parece querermos ignorar.
Não esqueçamos que este é o legado que estamos a deixar em herança à geração dos nossos netos!....
Não queiramos que seja um planeta sem VIDA!...



Um Oceano de plástico

Durabilidade, estabilidade e resistência a desintegração.
As propriedades que fazem do plástico um dos produtos com maiores aplicações e utilidades ao consumidor final, também o tornam um dos maiores vilões ambientais. São produzidos anualmente cerca de 100 milhões de toneladas de plástico e cerca de 10% deste total acabam nos oceanos, sendo que 80% desta fração vem de terra firme.



Foto do vórtex
No Oceano Pacífico há uma enorme camada flutuante de plástico, que já é considerada a maior concentração de lixo do mundo, com cerca de 1000 km de extensão, vai da costa da Califórnia, atravessa o Havaí e chega a meio caminho do Japão e atinge uma profundidade de mais ou menos 10 metros . Acredita-se que haja neste vórtex de lixo cerca de 100 milhões de toneladas de plásticos de todos os tipos.
Pedaços de redes, garrafas, tampas, bolas , bonecas, patos de borracha, tênis, isqueiros, sacolas plásticas, caiaques, malas e todo exemplar possível de ser feito com plástico.
Segundo seus descobridores, a mancha de lixo, ou sopa plástica tem quase duas vezes o tamanho dos Estados Unidos.



Ocean Plastic


O oceanógrafo Curtis Ebbesmeyer, que pesquisa esta mancha há 15 anos compara este vórtex a uma entidade viva, um grande animal se movimentando livremente pelo Pacífico. E quando passa perto do continente, encontram-se praias cobertas de lixo plástico de ponta a ponta




Tartaruga deformada por aro plástico



A bolha plástica actualmente está em duas grandes áreas ligadas por uma parte estreita. Referem-se a elas, como bolha oriental e bolha ocidental.
Um marinheiro que navegou pela área no final dos anos 90, disse que ficou atordoado com a visão do oceano de lixo plástico à sua frente.
"Como foi possível fazermos isso? Naveguei por mais de uma semana sobre todo esse lixo"...
Pesquisadores alertam para o facto de que toda a peça plástica que foi manufacturada desde que descobrimos este material, e que não foi reciclada, ainda está em algum lugar.
E ainda há o problema das partículas decompostas deste plástico. Segundo dados de Curtis Ebbesmeyer, em algumas áreas do Oceano Pacifico, pode encontrar-se uma concentração de polímeros de até seis vezes mais do que o fitoplâncton, base da cadeia alimentar marinha.



Todas a peças plásticas à direita foram tiradas do estômago desta ave

Segundo PNUMA, o programa das Nações Unidas para o meio ambiente, este plástico é responsável pela morte de mais de um milhão de aves marinhas todos os anos, sem contar toda a outra fauna que vive nesta área, como tartarugas marinhas, tubarões e centenas de espécies de peixes.



Ave morta com o estômago cheio de pedaços de plástico


E para piorar, essa sopa plástica pode funcionar como uma esponja, que concentraria todo o tipo de poluentes persistentes, ou seja, qualquer animal que se alimentar nestas regiões estará ingerindo altos índices de venenos, que podem ser introduzidos através da pesca, na cadeia alimentar humana, fechando-se o ciclo, na mais pura verdade, de que o que fazemos à Terra retorna a nós, seres humanos.


Fontes: The Independent, Greenpeace e Mindfully
Ver estas coisas, sempre servem para que nós repensemos os nossos valores e principalmente o nosso papel frente ao meio ambiente, ou o ambiente em que vivemos.


Antes de Reciclar, reduza!


Anamar

sexta-feira, 1 de agosto de 2008

"CRIADORES DE SONHOS"




















Autor de imagens: Vonck


Anamar

quinta-feira, 31 de julho de 2008

"6000 MILHÕES DE MARIONETAS..."






Quando entrei no café ele já lá estava...

Numa mesa bem ao fundo... Só. Uma pasta na cadeira ao lado, papéis indistintos à frente, penso que uma chávena de café já vazia...
Não analisei melhor..Era um homem comum, de meia idade, óculos no rosto, roupa modesta... Parecia alguém que trabalhava, absorto, isolado, afastado da zona de maior confusão da sala.
Estava e não estava ali...ou melhor, estava entregue ao que aparentemente fazia.

Eu, conversava com um amigo, sobre tudo e sobre nada, enquanto comia a minha torrada e o meu galão, do meu "dois em um" das quatro da tarde, ou seja, do meu pequeno almoço que o não é e do meu almoço que também não...

Passou algum tempo, não sei quanto e o meu olhar foi repentinamente atraído para aquele homem que regressava dos lavabos...
Dirigiu-se a um lavatório que existe já na sala, molhou abundantemente o rosto, limpou-o a um lenço de mão, encostou-se ao balcão como que a tentar apoiar-se, experimentou respirar bem fundo, com aparente dificuldade. As lágrimas que o tinham levado, sem que eu desse por isso, à casa de banho, continuavam a traí-lo e tentavam despudoradamente reinundar-lhe a cara.
Aquele homem "sangrava"...aquele homem arrastava o mundo...

A expressão era totalmente ausente, como se nem percebesse haver gente por perto, ou como se a dor que o consumia não lhe deixasse espaço p'ra sentir que isso fosse importante.
Pegou nos papéis, pegou na pasta, repôs os óculos e (eu jurava que sem sequer ver por onde) saíu...

A minha perplexidade chamou por certo a atenção do meu amigo, que fez um enorme ponto de interrogação com o olhar.
Narrei-lhe, constrangida, o que acabara de assistir.

"Mais uma, das seis mil milhões de marionetas"...respondeu-me.



Costumamos com alguma frequência trocar ideias, exprimir inquietações, levantar dúvidas, especular sobre a existência humana...sobre o lugar que cada um de nós ocupa, sobre o papel que cada um de nós desempenha nesta "travessia". Analisamos, interrogamo-nos, extasiamo-nos, confrontamo-nos com a pequenez, com a aleatoriedade a que estamos votados... com a solidão que muitas vezes parece o nosso destino, com o ilogismo do que vai acontecendo.
São conversas metafísicas, meramente académicas, são dúvidas existenciais, de "pescadinha de rabo na boca", que nos aliviam mas não nos aquietam os espíritos...



Rebelamo-nos contra as desigualdades abissais (inexplicadas e inexplicáveis) instaladas, contra injustiças tão injustas que não há a mínima lógica que lhes presida.
Preocupamo-nos com a possibilidade de afinal, não existir mesmo significância para este arrastar de "correntes" por cada dia que passa...
Lançamos para a mesa teorias...

Cientificamente a existência do nosso "lugar", do nosso universo, do Homem enquanto Homem, parece-nos talvez aceitável, mas curta... Ao longo da sua vida, cada ser humano arregimenta um manancial de vivências, de conhecimentos, de espiritualidade, que o transforma só por si num Ser, de facto, superior, cuja essência não poderá ser desperdiçada.
Esse "capital" acumulado, esse "know-how" adquirido não pode ser perdido no fim da jornada, ou essa jornada não terá nenhum tipo de sentido.



Por outro lado, o sofrimento e as turbações que experimentamos, sempre são por conta do alcance duma vida extra-terrena compensadora e purificadora de toda a imperfeição, incompleição, inferioridade que vivenciamos enquanto seres manifestamente terrenos, num caminho de aprendizado para estádios divinos superiores, só atingíveis por alguns...os predestinados neste degredo...

Essa é a "história" das religiões, com a qual se tenta abafar convicções desconfortáveis de injustiças, raivas, inaceitações...
Esse é o "desiderato" com que nos acenam, para que levemos sem grandes "turbulências", os sofreres desta vida...

É por isso "outra" história...



Normalmente, eu e o meu amigo, costumamos provocatoriamente levantar uma terceira (insólita, perturbadora e irónica) via para a nossa existência e para a razão de por aqui penarmos, na grande generalidade sem sequer nos questionarmos, talvez...

É a teoria "das seis mil milhões de marionetas", seis mil milhões de peões num tabuleiro de xadrês, onde fomos largados, onde somos mexidos com cordelinhos invisíveis pelo grande "construtor", num ensaio inacabado, ou quiçá falhado, numa experiência em teste, numa proveta sem que se vislumbrem os "produtos da reacção"...

É a hipótese mais plausível para que aceitemos a aleatoriedade notória, o acaso pairante, a passagem diária "pelos intervalos da chuva"...perfeitamente em roleta russa, sob o olhar, (eu imagino) desconcertado, esfusiante, maquiavélico, talvez raiando o sadismo, de quem tão bem sabe mexer as "marionetas" com que se entretém a brincar...



Anamar

terça-feira, 29 de julho de 2008

"VIAGENS DE GENEROSIDADE..."




Fui hoje almoçar com a minha mãe.

A minha mãe, logicamente, é uma senhora idosa com uma "estrada" longa, sinuosa lá para trás...
Do tempo em que se abandonava a escola para criar irmãos mais novos em casa, do tempo em que se mourejava na casa paterna sem prorrogativas especiais pelo facto de se ser filha e não, empregada.

Os meus avós viviam no Alentejo interior; eram detentores de uma pequena residencial, o que significa só por si, casa com muita labuta, sem horários, sem parança, sem descansos.
A minha avó cozinhava (parece que muito bem), o meu avô, como chefe da família, encarregava-se da gestão do negócio, das compras e de finalizar por norma os seus dias, na taberna com os amigos a beber o seu copinho em paródias e petiscadas. Isso era privilégio exclusivo dos homens, numa sociedade machista, conservadora, fechada...



A minha mãe era a filha do meio, de cinco irmãos...Raparigas, apenas duas.
A minha tia casou muito jovem, tendo a minha mãe ficado na casa dos pais quase até aos trinta anos, o que significa que a sua vida (nascida nos anos vinte, no interior de um país arreigado a princípios sexualmente discriminatórios e desigualitários, com o acesso à instrução acentuadamente dificultado, pertencendo a uma classe social não abonada nem material nem intectualmente), não terá sido fácil.

Sempre foi uma mulher forjada em muito, muito trabalho.
Por isso, até hoje, para a minha mãe parar é preciso que esteja na "antecâmara da morte"...
Como ela diz, "o bichinho " está lá dentro instalado e por vezes, não sabemos bem como, lá anda ela de volta da vassoura, do pó, das panelas...da roupa.
Costumo dizer a brincar, que um dia a faço acompanhar para a última morada com alguns destes utensílios...

Fez a quarta classe já casada, para poder tirar a carta de condução; na altura era eu aluna no início do liceu e como gosta de afirmar, fui eu que a "preparei" para o exame.
Devo acrescentar, que a preparação consistia em fazer-lhe perguntas sobre a História de Portugal, os rios e as serras, da Geografia, algumas noções de matemática (forçosamente não poderiam ser muitas) e pouco mais...
Como diz até hoje : "...e depois, enquanto a minha filha estava no liceu, eu, na cozinha e cá na minha vida, levava o tempo a repetir as dinastias, as linhas férreas e a fazer contas de cabeça...e assim, aprendi tudo e passei com distinção"!...





Nunca conheci à minha mãe vida própria...Os seus desejos, gostos, objectivos, sempre se pautaram pelo interesse familiar. Reivindicações nunca lhe ouvi, descontentamentos também não. Crises existenciais...menos ainda!...Sonhos?...Não sei se os teve para além de desejar que a minha vida tivesse sido melhor que a sua própria...
Pelo menos, melhor no que para si era realmente importante : a segurança, a estabilidade económica, a realização profissional, o rigor, honestidade e seriedade nos valores e na postura pessoal, familiar e social.
Com todos esses "condimentos"eu teria tido o necessário para ter uma vida irrepreensível, plena, feliz!...

Os seus horizontes foram talhados por uma época, uma geração, uma educação, uma sociedade, enfim...

Deu o que tinha...Não podia dar mais, porque mais não sabia...





Olhando hoje para a velhinha alquebrada que estava na minha frente, fiquei feliz, porque pelo menos a minha mãe, com toda a pequenez/grandiosidade da sua vida, faz parte da última geração que ainda tem quem dela possa cuidar, devolvendo-se dessa forma um pouco da entrega, generosidade, abnegação e dádiva que devotou aos seus filhos.
Trata-se de uma espécie de "reposição de alguma justiça"...alguma "compensação" na alma e no coração...

Mercê da vida, dos percursos trilhados, das realidades com que nos dividimos, eu e as mulheres minhas contemporâneas, já não seremos seguramente bafejadas com essa sorte...

Sinal dos tempos!!...


Anamar

"OS MEUS LUGARES"




Outra madrugada instalada, sono dormido por "tranches" e a cama a dar "formiga" no corpo.
A pestana abre, consulta-se o mostrador do relógio digital ainda às escuras, na remota esperança de que o sono possível que resta não fuja, e finalmente, depois de termos rolado dez vezes para a direita e outras tantas para a esquerda... a "desistência".
O sono foi definitivamente "p'ro espaço".
Enya, por aqui, como companheira (graças a um amigo muito querido), e o silêncio tão meu conhecido da madrugada, bem ao alcance dos silêncios, neste momento instalados no meu coração...

A minha vida está virando uma "desregra" absoluta. Dou por mim com a anarquia instituída...Estou a tornar-me de facto, (graças ao descompromisso total com terceiros), uma pessoa com uma vida absolutamente sem normas.
Os sonos fazem-se por "etapas", as refeições pelas "horas do estômago", tão simplesmente...

Apercebi-me nos últimos posts que escrevi, que pareço privilegiar neste momento, alguma necessidade subjectiva de vos caracterizar ou referenciar os espaços físicos onde me mexo, que me rodeiam, por onde circulo há décadas.
Assim vos falei da minha praceta, assim vos falei do meu prédio e do seu "recheio humano"...Hoje, senti necessidade de vos falar, como costumo dizer a brincar, da minha "segunda casa"...o Escudeiro, café-restaurante, à distância de um apenas atravessar de rua.

O Escudeiro é quase um "ex-libris" da terra onde vivo.
Instala-se num edifício logicamente antigo, existe enquanto café-restaurante há tantos anos, quantos aqueles em que habito o meu prédio... mais de três décadas.

Os donos do Escudeiro são três...Começaram jovens no projecto, foram com ele envelhecendo e hoje gostariam de poder passar o Escudeiro para outras mãos, porque o Outono da vida já lhes acena há que séculos, com promessas de descanso.

O Escudeiro não mudou um milímetro ao longo dos tempos...
Não mudou as "caras", não mudou a decoração, não mudou sequer o cardápio.
É um daqueles locais de bairro onde as pessoas do costume não prescindem dos lugares do costume, do jornal do costume, da ementa do costume...até das conversas do costume...

Pelo Escudeiro passaram já várias gerações.
Abriu na minha, viu nascer e "criou" os filhos da redondeza, acolhe agora os netos. O sr. Gonçalves já dava bolinhos ou rebuçados às minhas filhas...agora presenteia-lhes os filhos.

Os lugares no Escudeiro são "cativos"...quais lugares de bancada para os sócios.
A D. Margarida, na cozinha (tão velha quanto o Escudeiro), continua a ser "tripeira" de clube e não perde oportunidade de dar os seus "bitates" a sportinguistas ou benfiquistas frequentadores. A D.Margarida, gorducha e bem disposta como convém a uma cozinheira que se preze, só ainda não morreu do coração, porque o "seu Porto" não lhe tem dado felizmente muitos desgostos...

A "sport-tv" que sempre exibe um jogo de circunstância, reúne no Escudeiro adeptos "de todas as cores e credos", e à volta de "loirinhas" estupidamente geladas se vai fazendo a Liga, os campeonatos, se ganham e perdem os troféus.
Toda a gente opina, toda a gente defende tácticas..."vira" "mister" de trazer por casa. Discutem-se acaloradamente as jogadas, os golos falhados, as facécias dos homens do apito...
Sempre assim...da mesma forma.
Os donos são ecléticos na cor clubística, como convém ao gosto de todos os clientes...O sr. Veloso aguenta as piadas sobre "os pastéis", o sr. Alexandre aguenta os sofreres do "glorioso" e o sr. Gonçalves, homem de esperança tal como as cores do seu clube, sempre diz : "soma e segue"...(nunca entendi que raio de matemática é a dele...)

A fidelidade dos frequentadores é canina...Só desistem os que mudaram de terra ou trocaram esta pela "outra".
De quando em vez, dou por um lugar persistentemente vazio e fico a saber que o sr. Jorge já está num lar (ainda há pouco dizia tonteiras no balcão...), que o sr. António se mudou p'ra "linha" porque a única filha vive lá e o sr. António aqui, sozinho...Fico a saber que o sr. coronel perdeu a mulher e agora "habita" o Escudeiro em regime "vitalício" (com o filho esquizofrénico de rosto parado e amarelo, tal como os dedos...pelos cigarros que o queimam...) Fico a saber que o sr. Abel recentemente viúvo e que definha a olhos vistos, enfia a cabeça no jornal para se ilhar de quem está à volta...Enfim...as histórias tristes dos "meus lugares"!

O Escudeiro é, como costumo dizer, a minha "segunda casa".
Quando entro para o pequeno almoço, na primeira visita do dia, o que aliás ocorre no timing de almoço das gentes normais como já vos expliquei, o meu lugarzinho do balcão já me espera. E se por acaso o não está, tenta dar-se um jeito para que eu vá para lá...
Aprenderam a conhecer-me e a "mimar-me" naquele local...Pelo meu rosto logo percebem se a noite foi de sono apaziguador, se a dentada do pão não "desce"...se o apetite se foi.
É vulgar adoçarem-me o espírito com pequenas "carícias", sejam meia dúzia de bagos de uva num pireszinho, seja um pedacinho de melão aos quadradinhos (porque "a sra. precisa comer")...seja o gesto simples de me deitarem as duas "bolinhas" de adoçante no galão, de me "obrigarem" a comer um pastelinho de bacalhau "ainda quentinho"... ou de me guardarem, para ler, aos sábados, a revista do JN...

O meu semblante é alvo de "análise", o meu sentir é perscrutado...a minha tristeza ou alegria no momento, percepcionada.
"Hoje está triste"!..."Não gosto de a ver assim"!...
E enquanto o cigarro ia ardendo, quantas e quantas vezes mascarei, por detrás dos óculos escuros que enfio à pressa, lágrimas descaradas que me escorrem...
No Escudeiro já chorei, já "galhofei", já relembrei...Já mantive diálogos pseudo-profundos sobretudo com o sr. Alexandre (homem que foi "embarcadiço" anos e anos... "fino" que só ele...) sobre tudo e sobre nada...Já fiz das suas mesas, escritório, na redacção de escritos a esmo...Já ouvi, em longos e amenos "bate-papos" as confidências e amarguras da minha filha, que em passagem por aqui, pasme-se...prefere ir ao Escudeiro a encontrarmo-nos aqui em casa(!!!)...Já tomei muito chá com a Bia, a Lena, a Fatinha...Já desci algumas vezes à noite (p'ra enganar a solidão e a mágoa), a beber "o melhor Irish Coffee" que conheço...Até a minha empregada, se eu não estou, sabe que a chave da porta está...no Escudeiro!

A minha "segunda casa"...

"Livrem-se de passar isto"!!! - digo eu, em jeito de desafio, a rostos quantas vezes já tão desistentes e cansados, por lá.

O Escudeiro faz, por todas as razões do mundo, parte absoluta da minha vida e acho que eu morreria por dentro se um dia descesse e visse aquelas portas fechadas, ou se aqueles senhores rabujentos e rezingões às vezes, não estivessem mais por detrás daquele balcão...

São as "histórias dos lugares"!...E os lugares fazem as pessoas...e as pessoas completam vidas nesses lugares...cada qual com as suas...transversais à eternidade!!...


Anamar

segunda-feira, 28 de julho de 2008

"EL VINO PUEDE SACAR COSAS QUE EL HOMBRE SE CALLA"...






Isabella voava a muitos pés de altitude, algures sobre os Alpes...

A viagem já decorria há algum tempo, mas ela, totalmente desligada do relógio, do local, das pessoas, continuava absorta, meio adormecida, meio entorpecida nos seus pensamentos.
Revia a sua vida nos últimos anos, retroespectivava o que ela fora globalmente...

Rumava à Itália, à Toscânia da sua juventude, ao verde dos campos, aos prados, às vinhas, à grandiosidade de Florença ou Siena, ao intimismo de Livorno.

Precisava limpar o sangue e a alma, precisava limpar o coração, precisava renovar a mente, se fosse capaz.
Precisava rever amigos, dividir com eles serões sem tempo, jogar "conversa fora" sem pressas, com a inconsequência de quem saboreia uma vida em que quer voltar a acreditar (como um doente milagrosamente saído de um período comatoso de doença quase incurável).
Precisava voltar ao aconchego genuíno do "ninho"...
Desejava ansiosamente mergulhar no calor dos corações, frente a calores de fogueiras acesas, saboreando sem culpas um cálice de Chianti pelas madrugadas...



Saíra de Itália quatro anos antes, atrás de um grande amor. Um amor fulminante, que lhe merecera tudo, um amor com o romantismo de quem o vive adolescentemente pela primeira vez.

Certo que a correspondência não era igual, certo que a partilha e a entrega eram mais unilaterais, certo até que o afecto não era totalmente gratificante...
Mas ela amava por dois, dava por dois, via por dois pares de olhos, acreditava no que precisava, para viver.
Um amor no fio da navalha, uma relação ciclópica, fatal, louca, de abismo...

Mas para Isabella, mulher adulta em coração de criança, mulher de um tudo ou nada, não valia a pena questionar-se, não valia a pena confrontar-se, porque uma coisa afinal ela nunca perdera: a lucidez, a objectividade, a análise correcta de tudo...
Apenas negava esse "tudo".

Experienciava algo duma intensidade que a assustava mas necessitava para viver, sem muito sentido, quase doentio talvez...raiando o grotesco de uma anulação crescente.

E foi vivendo como pôde, num país estranho, uma relação que aos poucos e poucos se tornava ainda mais hermética, ilógica para a sua compreensão, uma relação de parâmetros duvidosos e injustos.
Calou dores, aquietou penas, sufocou dúvidas e desconfianças, esmagou sofreres, engoliu lágrimas e lágrimas...

Quando as forças lhe faltavam, não era Chianti da sua Itália que a mitigava, que a adormecia, que a anestesiava, que a "travestia" de outra pessoa, em que esquecendo toda a angústia, se transformava...





Não era Chianti, mas era qualquer outra doce "morfina", que de novo a tornava aparentemente alegre, exuberante, feliz, solta, louca (como quando se conheceram), capaz de tudo para não perder o tão pouco que possuía.

Quando os pés de novo assentavam na terra real, quando a cabeça saía do doce torpor da inconsciência do "milagre" operado, o mundo desabava-lhe então em cima...
Aí a dor era mais dor, o confronto com a pessoa em que se tornara e com a vida que detinha, era devastador; o julgamento sobre si própria, absolutamente
destruidor!

Mas ainda assim, "karmicamente", como num hipnotismo que lhe retirava as forças, a decisão e o querer (qual libélula rodopiante entontecida e cega em torno de uma luz na noite escura), procurava que as horas felizes apagassem as outras, deixando-se mergulhar até ao inaceitável, quase indiferente, incapaz, como quem não encara o sofrimento e masoquistamente se precipita para o abismo...
Aquela paixão arrebatadora e destrutiva ao mesmo tempo, era o que a fazia viver...

Até àquele dia...

Nesse dia fatídico (ou libertador?), à frente dos seus olhos tudo ficou final e inapelavelmente claro.
Isabella afinal só recebera pedaços de amor, dividido que sempre o havia sido por outros "alguéns", por outras vidas, por outras camas, por outros corpos...

Um "raio" atravessou-a, fulminou-a, toldou-lhe a vista...matou-a subitamente...
A paixão, o amor, toda a nobreza dos sentimentos acalentados ludibriadamente...lhe caíram aos pés...
O mundo rodopiou num vórtice, que lhe parou o cérebro e lhe trouxe vómitos de fel à garganta...

Naquele momento, aquela mulher sucumbiu para a vida.
O sentido de injustiça, ódio, manipulação... a dor do punhal de uma traição ignóbil (como o são todas as traições), o sentir-se cruel e ingenuamente usada, o buraco imenso que se lhe abriu aos pés e a fez vacilar...tomaram-na e aterrorizaram-na, face a um futuro que não acreditava mais poder já existir.

O seu Chianti, nesse dia teria de ser a misericórdia que a "salvasse"...

E o seu Chianti, não degustado, saboreado, usufruído...mas engolido de um trago, sorvido, despejado para dentro de si num desespero louco e incontrolável, num sofrimento sem medida, foi de facto a "tábua" a que deitou mão, na eminência do naufrágio que já sentia na pele...

A madrugada encontrou-a gelada, inerte no chão de mármore, donde já não conseguira erguer-se.
Junto de si, apenas estilhaços do último copo e a garrafa totalmente vazia...


Isabella voava a muitos pés de altitude algures sobre os Alpes...

Isabella era uma mulher destruída...





Anamar

domingo, 27 de julho de 2008

"NUNCA É TARDE P'RA DIZER..."






Onde é que está escrito que a esta hora eu e o comum dos mortais deveriam dormir??!!...
Quando a cama começa a ser um "ringue" de confronto doído entre nós e o sono que teima em não dar uma mísera ajudinha, quando o "ninho" resulta num palco em que nos degladiamos com o que não queremos pensar, com o que não queremos sentir, com a teimosia do sofrimento a importunar e ficamos meros "croquetes" que rolam e rolam e rolam num "pão ralado" odioso......que se lixe o dito normal, lógico, aceitável...

Há algum tempo atrás, "alguém" me estendia um dedo credor de alguma "justiça" de afectos.
Com razão, aliás. Falta minha, talvez...ou talvez não...
Apenas aquilo que nunca foi abordado por escrito a nu, "ao vivo e a cores" aqui, num espaço que apesar de tudo é meu mas também de todos, talvez o não tenha sido, por fazer parte do domínio do meu legado mais íntimo, precioso e por isso intocável.

Falo hoje das minhas filhas...obviamente o tema mais sensível (por me ser o mais caro e íntimo), para o qual me sinto menos capaz, menos à vontade ao abordar... para o qual, por certo, não terei a fiabilidade necessária, a isenção desejável, o distanciamento preciso para o fazer...

Falo de duas "companheiras de jornada", mulheres inteiras, que, mercê das circunstâncias do percurso, velam e vigiam o meu, bem de perto...
São as minhas "mães", as minhas "irmãs"...mas também aquelas amigas tão íntimas que às vezes até dá raiva ; são as que me puxam as orelhas de quando em vez, as psicólogas com que exercito a catarse do desespero, quando ele aperta...

E de repente, a gente já não percebe nada, quando ouve aquela criaturinha (que ainda ontem nos "lixava" a noite com dor de ouvidos, febre a subir ou os pesadelos que não se compadeciam com o nosso horário de trabalho no dia seguinte), a dizer-nos : "Oh mãe...tu tem tem cuidado!"..."Oh mãe, tu vê lá em que te metes".... ou..."vem até cá...que voz é essa hoje??"

E nós percebemos então que fomos semeadores efectivos de alguma coisa lá para trás...
Nós percebemos que afinal a "corrente" fechou mesmo os elos e seja a "viagem" de cada uma de nós a que for...esses elos estão fechados e não cederão nunca e existe um não sei que fluxo de afectos, cumplicidades, partilhas...que jamais abrirá fileiras, jamais quebrará muralhas...

E é muito gratificante, muito "quente", sentir que, quando as pernas nos vergarem...lá estarão aquelas "bengalas"...Quando os olhos se opacizarem...lá estarão os delas de recurso...Quando as mãos já tremerem e os ouvidos não deixarem escutar mais histórias, cantarão para nós canções de "ninar"...

É muito gratificante perceber que, de protectoras contra borrascas e agruras, já temos agora, quem se agigantou na vida e nos protege, quem, de frágil passou a fortaleza...quem faz de tudo para nos fazer acreditar, (como nos ingénuos cartões do "dia da mãe" de há p'ra lá de uma eternidade)...acreditar, que "fomos a melhor mãe do mundo" ...que fomos uma verdadeira "mãezona"...


Anamar

quinta-feira, 24 de julho de 2008

MAIS HISTÓRIAS DO MEU PERCURSO - "O HALL DE ENTRADA"

Estava eu hoje no hall de entrada do meu prédio, quando a D. Preciosa desceu.
A D. Preciosa é a minha vizinha do 5º andar, vizinha de há longos anos, de toda uma vida, porque a D. Preciosa é das antigas, logo, das assimiladas no coração...
Eu digo "das antigas", porque quando vim viver para o meu apartamento, há já muitos anos, os restantes condóminos estreavam também as respectivas habitações e logo ali, naquela proximidade, se constituiu uma "família" de pessoas que sem se pertencerem, iam dividir o mesmo "barco", iam partilhar vivências próximas, iam criar laços...os tais laços que foram "de coração".

O edifício é relativamente pequeno, com dois apartamentos por piso, mais uma porteira que também remonta às origens...a D. Leonilde, perita em "apagar" sempre, generosamente, todos os "fogos" do nosso prédio.
É por isso herança nossa.

O prédio habitou-se na generalidade por casais novos, recém- constituídos, com filhos ainda em "borboto" ou com filhos ainda "em projecto"...o meu caso, que já contemplava uma filha de dez meses, na altura.

E os anos passaram e dividimos os problemas, as despesas, as arrecadações, o martelar de obras às oito da matina de quando em vez, as infiltrações, as avarias dos elevadores...mas também o percurso escolar ou profissional de filhos, a oferta de botinhas ou chupetas para os que nasciam...de coroas de flores para os que partiam...as espreitadelas, ou mesmo a visita de felicitações às primeiras noivas que saíram do meu prédio... (a nossa miudagem a crescer...).
Enfim, tudo o inerente a quem convive partilhadamente... e ainda, aos poucos e poucos, o desgosto pelo "desertar" de alguns...

Olhava eu hoje a D. Preciosa e fazia a minha contabilidade : já vai para mais de dez, aqueles que natural ou de uma forma mais ou menos "contra-natura", sumiram da "folha de presenças"...
Acidentes, doenças inesperadas, traiçoeiras e prematuras...divórcios...mas também velhice...anos...a criarem "deserções" forçadas.
Hoje o prédio já é em parte ocupado por uma "fauna" que nada tem a ver com aqueles que dividiram bom e mau, alegrias e lágrimas...Gente meio "difusa" que não fala já muito bem a linguagem dos "resistentes"...
Os nossos filhos já foram..já não ocupam mais, o número dois daquela praceta...

Começou a chegar a revoada dos netos...
Dos primeiros carrinhos de bébé, chegou-se às batas de escola...e por cá vamos ficando, a assistir de camarote ao seu crescimento, primeiras gracinhas, as histórias sempre adocicadas na boca de avós, confidenciadas por norma, exactamente no hall de entrada.

Verifiquei que a D.Preciosa, senhora que sempre foi pequenina, deve estar talvez...nem com metro e meio. A D. Preciosa está a "encolher"...se calhar não só ela!!...
Está quase cega e por isso tacteava, há pouco, "afanosamente", a fechadura da caixa do correio. Já desce à rua pelo braço de uma empregada (o marido já "foi" há muito) e anda bem devagarzinho, à procura, pé ante pé, das pedras da calçada...
Continua a "tentar" maquilhar-se...Apenas, claro, triste e grotescamente, o risco que lhe desenha as sobrancelhas não acerta...o baton dos lábios, cresce dos contornos.
Conheço prédios sem carisma, prédios sem alma, prédios sem coração...
O meu, tem sido amputado de alguns membros, é verdade, mas eu creio que continuará a pé firme p'ro que der e vier, naquela praceta...a tal, onde a D.Madalena e o seu caniche, espreitam diariamente o sol....lembram??


Anamar

"INTERLÚDIO"

"A ORDEM NO CAOS OU O SONHO NA VIDA..."

CALEIDOSCÓPIO





EQUILÍBRIO

RELAXAMENTO

MELOPEIA



SILÊNCIO

ALUCINAÇÃO

ÃMAGO



HARMONIA

CLÍMAX

ÊXTASE




VERTIGEM

UTOPIA

MIRAGEM





Anamar

quarta-feira, 23 de julho de 2008

"SEMPRE...PORQUÊ...??"





Estou hoje um pouco triste por dentro, por arrastamento, por cumplicidade, por inerência...Mas também por conclusão tão óbvia e tão dolorida que nunca a queremos considerar.

Encontrei uma amiga, há pouco, no café do pós-almoço, que era mas também não era "aquela" amiga. Aquela que eu conhecia, descontraída, brincalhona, com um senso de humor invejável, solta...em suma, feliz...
A mulher que vi hoje era simplesmente um arremedo de tudo isso...como se tudo isso ela tivesse esquecido ou não soubesse já como era...
Séria, excessivamente séria...com um rosto fechado, um olhar distante, uma parca ou nula vontade de falar. Via-se nitidamente que tinha ficado perdida lá atrás, algures em algum lugar que fora de sol...

As lágrimas soltas, fáceis, teimavam à sua revelia, em inundar-lhe os olhos que persistia em esconder por detrás de uns óculos escuros.
Lágrimas por tudo e nada, sem freio ou contenção, lágrimas por algo à sua volta que a mexia em desmando...certamente lágrimas apenas por si própria...percebi.

Tentei que soltasse aquele nó na garganta, tentei que aligeirasse aquele aperto no peito, que, via-se, estava a sufocá-la...tentei que tirasse os óculos, que olhasse o dia...tentei convencê-la que ele estava vestido de cores douradas e quentes...

Em vão...



Na minha frente estava uma mulher sem bússola, uma mulher sem "crer", uma desistente...eu diria ;
uma mulher ao acaso...perdida no mar do pensamento, traída pelas emoções dos flashes de vida, que me disse ter deixado espalhados...já não sabia por onde...
Falou-me de tempos em que se julgou feliz...falou-me de dias, em que ao sair da cama tudo tinha sentido, esperança, alegria, riso...porque eram dias com cores de arco-íris...as cores do seu próprio sonho.

Falou-me de vida com projecto, fosse ele qual fosse...não era preciso ser ambicioso ou longo...era simplesmente um projecto...o seu...aquele que lhe dava meta no caminho que deixava por isso de ser "cansado", para ser gostoso de percorrer...

Falou-me de fé que teve e já não tem...falou-me de "valer a pena" e tentou explicar-me que "isso" é miragem...

Falou-me de dar sem receber...falou-me de um peito rasgado por punhais implacáveis...

Falou-me de indiferença contra aposta...

Falou-me de recordar contra esquecer...

Falou-me de alvoradas contra noites escuras... de prender e soltar...

"If you love someone, set them free...If they come back to you, it means they are yours. If not...they NEVER were"...diz Sting...
Mas pareceu-me, (em jeito de cansaço instalado), não se ter deixado convencer...

E depois de mais um cigarro fumado face a um écran vazio que eu jurava ela ter à frente dos olhos...despediu-se e foi...




Porquê, o amor quando começa é normalmente a dois...mas quando acaba é injustamente a um??!!...


Anamar

terça-feira, 22 de julho de 2008

"THE STORY..."



Brandi Carlile...
Até a ouvir e sentir este inexplicável arrepio, esta melancolia que o seu olhar traduz e este "mistério" que sempre são as histórias de cada um...uma desconhecida para mim.
Agora "grudou-me" na pele, a dela, a minha, as histórias que todos teríamos p'ra contar, que ninguém sabe, ninguém conhece, ninguém desconfia...
Simplesmente histórias...as nossas...


Era madrugada, um calor que não abatera, um céu talvez estrelado, uma lua quase cheia ainda, como um fogaréu lá no alto.

Ana ainda estava impregnada do cheiro, da pele, do misto de veludo e áspero daquelas mãos sábias que sempre a percorriam.
Naquela cama desfeita permanecia o desenho dos corpos que nela se haviam perdido, estava a marca dos sonhos que ela por ali espalhara a esmo, acreditando que o não eram, que eram antes verdades que a madrugada e o sol da manhã não se atreveriam a desmantelar.

Ana era uma utópica sonhadora...
Sempre criava sonhos, sempre idealizava histórias... e sabendo que o eram... que apenas o eram, neles acreditava, deles vivia, com eles se alimentava.

"Criara-o" também..."talhara-o" como precisava que ele fosse..."pintara-o" a cores pastel de aguarelas indecifráveis, que só ela via, que só ela sabia, em que só ela teimava em perder-se.

Ana amava a sua própria "criação", apaixonara-se pela sua própria "obra", idealizava o que concebera.
E como uma adolescente desafiadora, como quem quer obrigar a vida a desviar o seu rumo (como se o rio invertesse a marcha apenas pela vontade de alguém)...sentada semi-nua na beira da cama sorriu quando a porta bateu e os passos se afastaram p'la calçada, perdendo-se no silêncio da noite...

Ele não partira...Aquele beijo de despedida fora apenas um "até amanhã" tinha a certeza;
a mala que levara consigo voltaria no dia seguinte, ou numa nova madrugada de calor e suor, em que se amariam outra vez perdidamente, feito loucos numa alucinação de entrega, dor e prazer... até caírem exaustos naquela cama;
as palavras definitivas não o podiam ser;
a dureza que se lhe estampara no rosto ao partir, o frio gélido que descera daqueles olhos de menino-homem, que a trespassou qual corrente de ar traiçoeira, açoitando-lhe o corpo como canavial em dia de tempestade, fora mais um pesadelo da madrugada...

Porque "esse", simplesmente, não fora o final da história que Ana escrevera...


Anamar

segunda-feira, 21 de julho de 2008

"WHEN THE STARS GO BLUE..."






De repente, nesta madrugada que se avizinha, resolvi "recolher" um pouco ao meu cantinho...

Tenho aposto ao meu cartão de apresentação no msn, uma frase que é título de uma canção de Enya, intérprete que privilegio, me "acompanha" frequentemente sobretudo nas minhas noites e sempre me transmite algo novo, mas indiscutivelmente doce e apaziguador. Já referi sobejamente, que a voz de Enya, para mim, tem acordes divinos ou celestiais...
Essa frase diz : "Paint the sky with stars".

É uma imagem linda, uma exortação à esperança, um hino ao ânimo, força...perseverança do ser humano...



Pintar o céu com estrelas é uma doce utopia que nos iluminaria os dias, para além das noites em cujo céu a sua poalha deixasse fogachos acesos...
Pintar o céu com estrelas seria ter a certeza que por aí no Universo, sempre estaria aceso algures um farol, mesmo que ténue, que nos guiasse ; seria estar seguro que um arco-íris, mesmo sem sol, coloriria também o céu escuro...
Pintar o céu com estrelas, é inventar constelações, estrelas polares que norteassem os nossos destinos, é acreditar, que ainda que as nuvens tendam a acastelar-se, amanhã haverá sempre outra madrugada, é não desistir de ver o sol raiar no dia seguinte...



Para quem tem uma fé, uma religião, seja ela qual for, esse céu iluminado traduzir-se-á certamente na presença dessa "entidade superior" omnipotente e omnipresente, mas seguramente protectora quando esse céu escurece...seguramente porto de abrigo em época de marés vivas...
Mas, para quem a não tem e tem como alavanca única do seu existir, a sua capacidade, a sua determinação, a sua herança e força interiores de mente e de coração...para quem entende que terá de "governar-se" unicamente com as mãos que tem, a cabeça de que dispõe, o potencial de coragem, valores, crença em si mesmo e nos seus pares...para esses, em cujo grupo me incluo, às vezes incontrolavelmente "the stars go blue"...



Desculpem mais uma catarse existencial...desculpem as minhas estrelas um pouco "apagadas" hoje e o "blue" que teimou em fechar comigo um dia, que em pleno Verão, até foi de um céu carregado de nuvens...

É que eu...não tenho já "conserto" mesmo...


Anamar

sábado, 19 de julho de 2008

"A PEDRADA NO CHARCO..."




Chamei de "pedrada no charco" ao post de hoje.
E o post de hoje resume-se intencionalmente a esta imagem retirada de um jornal indiano, onde se fazia acompanhar da seguinte legenda :

"Só quem é pobre procede com tanta generosidade.
Que pena o HOMEM não ser sempre assim!..."

Na sociedade balofa de abundância e miséria onde dividimos assimetricamente todos os bens e valores, a saúde, a felicidade...a VIDA...o tempo para parar, olhar e ver em redor, escasseia, na proporção da insatisfação, da ganância, da luta titânica e inescrupulosa para chegar a mais e mais patamares sociais, de qualquer forma e a qualquer preço...

Pare-se...e olhe-se por minutos (roubados à nossa corrida diária), para a foto aqui exposta e depois... é impossível que os corações não dêem um sinal...
No mínimo, não nos iremos sentir muito confortáveis...penso.


Anamar

quarta-feira, 16 de julho de 2008

"AQUELE AMANHECER"





Talvez já não estivesse "no programa" vir aqui hoje...e talvez não estivesse, porque as horas são as que são e eu gostava de me sentir "gente normal"...ou seja...estar recolhida "a penates" como "mandaria o figurino", que é como quem diz, a razoabilidade...até porque hoje me sinto particularmente cansada.

Mas eis senão que, em conversa com um amigo, me ocorreu num daqueles "repentes" "desaustinados" e incontroláveis, a recordação de uma madrugada inesquecível na Tailândia...tão inesquecível, que há pouco, ao narrar-lha, ela me "desfilou" com a definição de plasma topo de gama...

Foi uma madrugada de Agosto, um Agosto quente e húmido, como os Agostos tropicais o são...exactamente com o calor a "espraiar-se" pela noite afora, com a humidade a tomar conta da madrugada...
Chiang Rai, norte da Tailândia e um quarto de hotel num sétimo piso bem sobranceiro ao Rio Kok.
Uma insónia desbragada, um quarto, que p'la solidão que sempre faz parte da minha bagagem, de repente se tornou sufocante, apesar do ar condicionado, da cama macia e confortável, do requinte emprestado por aquelas cinco estrelas de hotel...
Pulei da cama, bem de mansinho, corri a portada da varanda e sentei-me ali, deixando que o silêncio, a escuridão e a brisa leve me devassassem...
Abri as narinas e sorvi os cheiros adocicados que sempre emanam de um Equador bem presente, olhei o veludo que ainda era o firmamento àquela hora, ouvi o resfolegar manso da correnteza, lá em baixo, ainda mal divisada pelo apenas anúncio da madrugada...

E fui ficando...quieta, com medo de estragar aquela harmonia por ali semeada...e fui vendo o laranja subir no céu, o sol começar a espreguiçar-se e a incendiar o Kok de plúmbeo a fogo...
Os sons dos primeiros pássaros matinais chegavam, anunciando que tudo estava a recomeçar...

"Empanturrei-me" da emoção que aquele equilíbrio me transmitia...deixei-me inundar até ao âmago pela paz anunciada do dia que se avizinhava...
O fresco da manhã violava-me o corpo semi despido e a alma...totalmente nua...
O nascer e o por do sol são dois acontecimentos que sempre me emocionam, que sempre me são e fazem sentir diferente, embora possam parecer iguais...Dois momentos que sempre me parecem de recomeço e términus...Dois momentos que por grandiosos, me são sublimes pela perfeição, pelo equilíbrio, pela noção da minha insignificância e pequenez que me traduzem...
E aquele, em particular, (por todas as razões do mundo), foi-me tactuagem na alma...está cá até hoje e acredito que até sempre, com a nitidez total da bruma, dos cheiros, dos sons, das cores...até com a sensação nítida daquele arrepiozinho que me atravessava, com a brisa da manhã a despontar...

Hoje, como então...

E hoje como então, com as lágrimas a rolarem-me pelo rosto...quando o sol era já sol sobre o Rio Kok e me encontrou absorta e meio adormecida na contemplação daquela varanda...





Anamar

terça-feira, 15 de julho de 2008

"PROCURA-SE UM AMIGO..."

Olá amigos
Exactamente...amigos...talvez só conhecidos, alguns...Invisíveis por detrás do mistério deste "mundo", outros...Totalmente desconhecidos...aqueles que só "espreitam" e não me falam...mas que ainda assim, quase lhes sinto a presença aí...e ali...os passos, o sussurro da respiração... Quase lhes adivinho o esboço de um sorriso, o esgar dum desagrado ou a concordância com ideia exposta...
Amigos, porque me tiveram curiosidade...amigos, porque se partilharam, ao ler-me...amigos porque dividiram tempo e tempo, é vida...ou seja cruzámos, assim, por mero determinismo do destino, as nossas "viagens".

Nunca se falou tanto em como se deve e precisa viver... como hoje.

Nunca se veicularam tantas frases feitas, tantos princípios mais ou menos profundos, tantos conselhos e ensinamentos existencialistas de como se deve encarar, fruir, percorrer os trilhos, por forma a ter-se êxito enquanto pessoa...
"Como ter sucesso...", "como ter segurança nas escolhas...", "como melhorar a auto-estima..."......."como ser feliz..." em suma...
E diz-se o que se deve ou não fazer, o que se deve ou não valorizar, o que vale ou não a pena, como afastar os escolhos do nosso caminho, como e onde arranjar "mezinhas" adequadas para as "doenças" e dificuldades da alma e do coração...Como se os seres humanos fossem programáveis, como se, introduzido o "chip" tudo se alcançasse por "passe de mágica", tudo se conseguisse, qual coelho a sair da cartola!!

Já pensei longamente sobre este "bombardeio" existencial e concluí que é mais um sinal da solidão e do isolamento do ser humano. É um sinal acrescido, da fragilidade e do desapoio com que vivemos, cada vez mais ostracizados nas nossas pequeninas "células" sociais, quase anónimos no meio da multidão!

E por isso buscamos sôfregamente "gente", desejamos avidamente conhecidos, colegas, vizinhos, amigos e amores (reais ou imaginados)... olhos, pele, calor, carne...que sintamos estarem algures... Que nos sorriam, que nos tropecem, que connosco partilhem qualquer coisa, (não importa o quê), que encontrem o nosso olhar se olharem a lua bem cheia lá no alto, que nos destratem, ao supor que lhes ocupámos o lugar na fila do super...ou que se emocionem simplesmente connosco, perante a mesma notícia do jornal...

Isto, é o ser humano na sua pequenez, face à sociedade actual...Esta é a "busca" incessante e diária, por vezes inconsciente e raiando a sobrevivência...Esta é a procura, na tentativa de se colmatar a "transparência" ou "invisibilidade" que aos poucos vamos adquirindo p'la nossa estrada fora!!

Deixo, (em homenagem a todos quantos, lado a lado vão na viagem comigo), nestas três da manhã, neste silêncio intimista, nesta calma e paz que por aqui pairam, um poema de um homem imortal, de uma voz que não se calará jamais...Vinícius de Moraes (19/10/1913 - 9/7/1980 )...


"PROCURA-SE UM AMIGO..."





Anamar

segunda-feira, 14 de julho de 2008

"O VIRAR DA PÁGINA"



Nada me é mais penoso que "virar uma página"...

Ao longo da minha vida já virei algumas...demais.....eu creio ; cada uma como quem arrasta o mundo, umas mais, outras menos, mas todas igualmente devastadoras...pesadas, que só visto!

Quando uma página se vira, ainda que queiramos vir atrás e "reler"... o raio das "letras" já lá não estão...
"Emigraram" ou então, provocadoramente, brincaram de "esconde-esconde" e gozando com a nossa cara, já não formam frases que façam sentido...
E pronto...perdeu-se aquele "texto", ou melhor...aquele texto ficou numa das gavetas da nossa memória ou coração, para sempre...
Uma gaveta que se abre nos Outonos, quando a luz lá fora é de um bronze adocicado, quando a nostalgia cá dentro é mais que muita e quando a solidão nos convida ao recolhimento, à interioridade...ao silêncio uterino protector... e os dias-noites nos aconchegam em édredons imaginários...
E isto vai-se repetindo, ano após ano...e aquela gaveta vai ficando mais ténue, mais esbatida, mais desfocada, como a visão de alguém cujas dioptrias aumentem despudoradamente...

E há um dia em que nós pensamos se aquela página foi mesmo nossa, pertenceu mesmo à nossa estória ou se foi uma cena de um filme por aí visto há tempo e tempo atrás??!!
E quase ficamos na dúvida. Estendemos os braços, "encompridamos" os olhos...mas já lá não chegamos...como alguém na amurada de um navio que se despede do cais e deixa em terra, cruelmente, os seus "pertences"...

Acho que também é muito neste contexto, que se insere aquela minha "mania" de coleccionar e arquivar tudo, de que vos falava num texto meu anterior...
Tudo não...menos o tempo (desgraçadamente, ainda não consegui arranjar um recipiente absolutamente estanque que o não deixasse fugir...)!

É para achar que afinal, "as letras da página anterior", ainda estão ali e não foram definitivamente embora...

Mas não é verdade...que eu bem sei !!

Bom, a queda das folhas nos Outonos de todos os anos, é um pouco parecido.
É um fechar de ciclo, é um epílogo, é a última nota de uma partitura, é um virar também de página...
Sempre achamos que é uma renovação...sempre acham!
Eu, vejo mais como um ponto final...(perdoem este olhar, sempre escuro e negativista, das coisas...
Juro que não sou gratuitamente "do contra"...apenas não consigo, por vezes, pintá-las com mais cor...)
É que as folhas da próxima Primavera não são mais as mesmas. São outras...
E aquelas, castanhas, amarelinhas, vermelhas de fogo, ficaram lá atrás, jogadas impiedosamente no chão daqueles jardins, por onde tanto gosto de caminhar...

Amigos...isto hoje está "um pouco mau"...

Querem um conselho?
Não leiam...virem a página...mas pelo menos tentem ser felizes!...


Anamar

"LÁGRIMAS DE JACARANDÁ SOBRE LISBOA"




Todos os anos me extasio, quando de repente, como acabada de pintar, me deparo com a tela roxa, pujante, espectacular dos jacarandás floridos nas avenidas, praças, pequenos largos de chafariz, desta nossa Lisboa...
É como se acabassem de ter chegado, como se tivessem acabado de irromper, esses cachos de cor fulgurante, de uma leveza diáfana, que emolduram jardins de referência ou pequenas pracinhas da nossa cidade de bairros típicos, antigos, íntimos, familiares, onde pelas tardinhas, os moradores partilham soleiras de portas, degraus de escadinhas, águas furtadas projectadas acima do casario.



Os becos e as vielas, com estendais que se entrecruzam, de proximidade, com mansardas de sardinheiras e manjericos, generosos em cor e perfume, com cheiros de "jaquinzinhos" acabados de fritar, com bolas e gargalhadas de criançada que se espalha no esconde-esconde, no pião, ou no improviso de futebol...os becos e vielas, dizia, desembocam inesperadamente numa mancha roxa que sombreia, no marulhar de uma bica de fonte apaziguadora de sedes estivais, na vizinhança de pombos modorrentos em sesta apetecida...e num tapete fofo, que cobre a calçada... de "lágrimas de jacarandá" na cidade de Lisboa...







Sempre...por cada ano que acontece!...


Anamar

sexta-feira, 11 de julho de 2008

"NAS ARCAS DO TEMPO..."




"Nas minhas arcas do tempo" há de tudo...

Há de tudo em forma de papel, em forma de flores secas, em forma de pedras, em forma de conchas, de poemas, de fotos, de escritos, de pequenos sabonetes, lápis, velas exauridas, guardanapos de papel, contas pagas à saída de locais que me pertenceram...nem que o tivessem sido apenas por horas!...
As minhas "arcas do tempo" já quase não fecham as tampas...de "tanto tempo" que lá têm dentro.
Elas encerram de tudo o que pertenceu e vai pertencendo aos "meus momentos"...
Aos meus momentos afectivos, aos meus momentos do coração, porque esses serão os que de algum modo quererei perpetuar...

Nelas, tenho as conchinhas da praia trazidas pelo António para mim...tenho azevinho que já foi da Regaleira...nelas, estão flores amarelecidas e quase inexistentes, de dias de "sol" que já "contam" algumas estórias...nelas, estão palavras ditas ou que o não chegaram a ser, mas que pertencem também ao "meu" tempo. Nelas, estão "pessoas"...muitas pessoas que tenho "em cativeiro"...

"O tempo é algo muito estranho"...dizia-me alguém neste fim de semana.

O tempo, para mim, é o "parceiro desigual e injusto"...aquele cujas "armas" nunca conseguiremos terçar!...Aquele, atrás do qual sempre corremos ingloriamente e que sempre vimos dobrar a próxima esquina antes de nós...
O tempo tem cem mil "caras"...
O que foi de ontem, não vale a pena voltar a procurá-lo...será absolutamente em vão..."Já foi"...e isso, é tudo!
O de amanhã, não adianta questioná-lo...nem mesmo sabemos se ele se "cruzará" connosco!
O de agora, é o único que temos e ainda assim, embora ele seja o "legado" real da "viagem" de cada dia, quantas e quantas vezes é "pouco demais"...quantas e quantas vezes nos deixa "no arame" sem "rede" que nos apare...

Dei comigo uma outra vez a questionar-me sobre o porquê de eu ter esta compulsão meio desatinada, de possuir as minhas "arcas do tempo", "tesouros" inestimáveis e muito mais valiosos emocionalmente, do que aquilo que materialmente de mais valioso possuo...
Elas, são relicários absolutos e íntimos...
Para além delas, também arquivo religiosamente pequenos e insignificantes "marcos" de locais por onde passei, naquilo a que chamo a "vitrine das viagens". Lá, estão um "micro pedaço" de coral da Tailândia, areia de Punta Cana, uma falhinha do xisto do Piódão, uma "máscara" de Negril, uma caixinha de música Suiça, um adufe de Monsanto...objectos de artesanato de pedaços do mundo...como num museu, em que o visitante deambula por realidades, épocas, momentos vividos.
"Viajo" por lá muitas vezes, e do passado, faço presente as vezes que eu quiser...

É por isso que acho que esta foi a forma meio enviesada de "trapacear" o tempo, a forma meio dissimulada de me "apropriar" dele...à sua revelia...a forma bem "sinuosa" de o parar, por momentos, como a cassete de vídeo quando colocada na pausa...
É uma forma "ludibriosa", "auto-ludibriosa"...eu sei...Doentia...dirão os mais pragmáticos e objectivos (ou então aqueles que não querem sequer lembrar do tempo, ou que ainda o não têm em quantidade que faça história...)

Mas, de algum modo, é-me um acariciar da "alma" por dentro, uma "masturbação" do coração, uma "vitória"...bem ao jeito de uma "partida" ou "pirraça" de criança, que eu, a esfregar as mãos de contente... consigo "pregar" ao tempo!!!...





Anamar

"DEMOCRACIA ERA NO SÉC XV !!!!......."(eheheh)

Como curiosidade e sem demais comentários...deixo-vos este artigo assaz interessante!!!


Do Arquivo Nacional da Torre do Tombo -
(autêntico)




SENTENÇA PROFERIDA EM 1487 NO PROCESSO CONTRA O PRIOR DE TRANCOSO

(Autos arquivados na Torre do Tombo, armário 5, maço 7)

'Padre Francisco da Costa, prior de Trancoso, de idade de sessenta e
dois anos, será degredado de suas ordens e arrastado pelas ruas
públicas nos rabos dos cavalos, esquartejado o seu corpo e postos os
quartos, cabeça e mãos em diferentes distritos, pelo crime de que foi
arguido e que ele mesmo não contrariou, sendo acusado de ter dormido
com vinte e nove afilhadas e tendo delas noventa e sete filhas e
trinta e sete filhos; de cinco irmãs teve dezoito filhas; de nove
comadres trinta e oito filhos e dezoito filhas; de sete amas teve
vinte e nove filhos e cinco filhas; de duas escravas teve vinte e um
filhos e sete filhas; dormiu com uma tia, chamada Ana da Cunha, de
quem teve três filhas, da própria mãe teve dois filhos. Total:
duzentos e noventa e nove, sendo duzentos e catorze do sexo feminino e
oitenta e cinco do sexo masculino, tendo concebido em cinquenta e três
mulheres'.

[e agora vem o melhor:]

'El-Rei D. João II lhe perdoou a morte e o mandou por em liberdade aos
dezassete dias do mês de Março de 1487, com o fundamento de ajudar a
povoar aquela região da Beira Alta, tão despovoada ao tempo e guardar
no Real Arquivo esta sentença, devassa e mais papéis que formaram o
processo'.


Anamar