quinta-feira, 31 de julho de 2008

"6000 MILHÕES DE MARIONETAS..."






Quando entrei no café ele já lá estava...

Numa mesa bem ao fundo... Só. Uma pasta na cadeira ao lado, papéis indistintos à frente, penso que uma chávena de café já vazia...
Não analisei melhor..Era um homem comum, de meia idade, óculos no rosto, roupa modesta... Parecia alguém que trabalhava, absorto, isolado, afastado da zona de maior confusão da sala.
Estava e não estava ali...ou melhor, estava entregue ao que aparentemente fazia.

Eu, conversava com um amigo, sobre tudo e sobre nada, enquanto comia a minha torrada e o meu galão, do meu "dois em um" das quatro da tarde, ou seja, do meu pequeno almoço que o não é e do meu almoço que também não...

Passou algum tempo, não sei quanto e o meu olhar foi repentinamente atraído para aquele homem que regressava dos lavabos...
Dirigiu-se a um lavatório que existe já na sala, molhou abundantemente o rosto, limpou-o a um lenço de mão, encostou-se ao balcão como que a tentar apoiar-se, experimentou respirar bem fundo, com aparente dificuldade. As lágrimas que o tinham levado, sem que eu desse por isso, à casa de banho, continuavam a traí-lo e tentavam despudoradamente reinundar-lhe a cara.
Aquele homem "sangrava"...aquele homem arrastava o mundo...

A expressão era totalmente ausente, como se nem percebesse haver gente por perto, ou como se a dor que o consumia não lhe deixasse espaço p'ra sentir que isso fosse importante.
Pegou nos papéis, pegou na pasta, repôs os óculos e (eu jurava que sem sequer ver por onde) saíu...

A minha perplexidade chamou por certo a atenção do meu amigo, que fez um enorme ponto de interrogação com o olhar.
Narrei-lhe, constrangida, o que acabara de assistir.

"Mais uma, das seis mil milhões de marionetas"...respondeu-me.



Costumamos com alguma frequência trocar ideias, exprimir inquietações, levantar dúvidas, especular sobre a existência humana...sobre o lugar que cada um de nós ocupa, sobre o papel que cada um de nós desempenha nesta "travessia". Analisamos, interrogamo-nos, extasiamo-nos, confrontamo-nos com a pequenez, com a aleatoriedade a que estamos votados... com a solidão que muitas vezes parece o nosso destino, com o ilogismo do que vai acontecendo.
São conversas metafísicas, meramente académicas, são dúvidas existenciais, de "pescadinha de rabo na boca", que nos aliviam mas não nos aquietam os espíritos...



Rebelamo-nos contra as desigualdades abissais (inexplicadas e inexplicáveis) instaladas, contra injustiças tão injustas que não há a mínima lógica que lhes presida.
Preocupamo-nos com a possibilidade de afinal, não existir mesmo significância para este arrastar de "correntes" por cada dia que passa...
Lançamos para a mesa teorias...

Cientificamente a existência do nosso "lugar", do nosso universo, do Homem enquanto Homem, parece-nos talvez aceitável, mas curta... Ao longo da sua vida, cada ser humano arregimenta um manancial de vivências, de conhecimentos, de espiritualidade, que o transforma só por si num Ser, de facto, superior, cuja essência não poderá ser desperdiçada.
Esse "capital" acumulado, esse "know-how" adquirido não pode ser perdido no fim da jornada, ou essa jornada não terá nenhum tipo de sentido.



Por outro lado, o sofrimento e as turbações que experimentamos, sempre são por conta do alcance duma vida extra-terrena compensadora e purificadora de toda a imperfeição, incompleição, inferioridade que vivenciamos enquanto seres manifestamente terrenos, num caminho de aprendizado para estádios divinos superiores, só atingíveis por alguns...os predestinados neste degredo...

Essa é a "história" das religiões, com a qual se tenta abafar convicções desconfortáveis de injustiças, raivas, inaceitações...
Esse é o "desiderato" com que nos acenam, para que levemos sem grandes "turbulências", os sofreres desta vida...

É por isso "outra" história...



Normalmente, eu e o meu amigo, costumamos provocatoriamente levantar uma terceira (insólita, perturbadora e irónica) via para a nossa existência e para a razão de por aqui penarmos, na grande generalidade sem sequer nos questionarmos, talvez...

É a teoria "das seis mil milhões de marionetas", seis mil milhões de peões num tabuleiro de xadrês, onde fomos largados, onde somos mexidos com cordelinhos invisíveis pelo grande "construtor", num ensaio inacabado, ou quiçá falhado, numa experiência em teste, numa proveta sem que se vislumbrem os "produtos da reacção"...

É a hipótese mais plausível para que aceitemos a aleatoriedade notória, o acaso pairante, a passagem diária "pelos intervalos da chuva"...perfeitamente em roleta russa, sob o olhar, (eu imagino) desconcertado, esfusiante, maquiavélico, talvez raiando o sadismo, de quem tão bem sabe mexer as "marionetas" com que se entretém a brincar...



Anamar

2 comentários:

Anónimo disse...

Anamar,
depois de ler esta tua diatribe...fiquei sem mais nada para dizer, o meu olhar ficou estranhamente parado e o coração apertadinho, dinho.
Nada que eu não pensasse, nada que eu não pressinta, sinta, todos os dias.
Mas, não sei, fiquei...olha, deixa.
beijos
Lenaspace

anamar disse...

Presumo que ambas teremos então o coração apertadinho....dinho mesmo!!
Só se o cérebro parar de pensar poderemos parar de equacionar tudo isto...e isso é impossível...Somos seres pensantes e AINDA não alienados, julgo..
Bjinho
Anamar