Ir àquela casa, é um pesadelo.
Ir àquela casa é uma violência sem tamanho.
É como o devassar de um local meio mítico, meio sagrado ... inviolável ! Ir lá, é perturbar demasiado as memórias, as imagens, os espaços... É mexer com o que foi, mas também com o que é ...
E no entanto, por ali continuam ainda todos !
Eu bem os vejo, mal meto a chave à porta, mal penetro na penumbra de fim de tarde, mal confronto o cheiro a silêncio e a solidão ...
Andam todos por ali, apesar do desalinho, apesar da poeira, apesar das gavetas e dos armários esventrados, apesar do bafio crescer e se insinuar pelas frestas.
Andam todos por ali, e reclamam o direito ao sossego e à paz. Eu ... bem, eu entro quase pé ante-pé, quase me assusto com a minha própria sombra, quase não ouso respirar ...
Porque, na cozinha a minha mãe ultima o almoço.
Na mesa já posta que aguarda, o meu pai sentado de fente p'ra quem entra, dá a direita à minha mãe, que ma dará, que a darei às minhas duas filhas.
O cheirinho apetitoso dos bifes de cebolada, sobe do frigir da sertã. A salada de frutas refresca-se no frigorífico,
A Cláudia usa o guardanapo de quadrados azuis ... e a Catarina usa o guardanapo de quadrados vermelhos. Diferentes só na cor, p'ra não haver confusão.
As farófias em segredo, só se anunciarão no fim ... Isto, se as meninas fizerem jus a merecê-las.
Vamos chegando, vamos dando as novidades das manhãs de aulas.
A televisão, na sala, anuncia o telejornal da uma. O avô insiste no lavar das mãos, às pestinhas que tentam fazer-se esquecidas.
Todos os dias discutem, todos os dias brigam, todos os dias correm em maratonas malucas à volta da mesa, no espaço exíguo que periga as jarras da Vista Alegre sobre o aparador. Nunca ninguém percebeu por que o avô tanto se amofina com o partir eminente daquelas jarras ... Horríveis, dos nossos pontos de vista !
Todos os dias se trazem à mesa os testes recebidos nessas manhãs e todos os dias, se havia ralhetes a propósito, a água-benta do avô, era o primeiro socorro a acudir aos apertos de ocasião ...
Depois, um dia, o avô foi embora.
Foi o fechar da primeira porta naquela casa.
A avó já não punha a mesa senão em ocasiões especiais, as farófias e a salada de frutas deixaram de ter lugar de privilégio.
A meninada cresceu. As aulas já não ocupavam as manhãs. Eu passava por lá à noitinha, antes das sete, no caminho da escola.
A minha mãe estava à janela de trás, para me dar as boas noites, antes de se deitar, daí a pouco.
O Gaspar empoleirava-se com ela no parapeito, e festejava-me até ao dia seguinte.
Eu dobrava a esquina, num último adeus ... e seguia, a tempo ainda de ouvir o correr da persiana, na janela daquele rés-do-chão.
E tudo se repetia, dia após dia, mês após mês ... ano após ano !
E tudo se repetia na paz possível da memória dos ausentes, na vida dos presentes ...
E tudo se repetia, como se nada nunca pudesse mudar ... Como se não houvesse amanhã !...
Passou tempo, muito tempo !
Hoje, eu meto a chave à porta de mansinho, p'ra não assustar os que por ali andam.
Rego as flores que restam, e elas continuam a florir. Sento-me nos sofás e olho o nada e o tudo daqueles vultos que perambulam. Aquieto-me para poder ouvir as suas vozes. Concentro-me e vejo os olhos verdes, miudinhos do meu pai, como duas pequenas ranhuras no rosto esquálido e seco.
Já não lhe lembro a expressão, com definição aceitável ... Recorro às fotografias para que mo tragam, porque o tempo é impiedoso e carrasco !
A voz ... essa, julgo escutar com nitidez. E as mãos ... é verdade ... as mãos eu "vejo" ... como então !
O cheiro da casa ainda me perturba. Não é o frio e bafiento, de hoje. É aquele que ficou nas ranhuras, nos interstícios, nas almofadas, nos roupeiros ...
E os espelhos, quando os olho, devolvem-me tudo. Com absoluta lealdade e fidelidade !
Hoje, a persiana de trás, não me aguarda, subida, pelas sete horas.
Também, há muito que a roupa não se dependura dos estendais. O Gaspar ... ui ... esse já partiu há tempo e tempo !
Os olhinhos verdes e piscos que me fogem quase sempre, estão para lá, para a terra do sempre ...
As aulas já não me esperam, nem esperam mais as pestinhas, que cresceram, e têm outros pestinhas, que não pertencem a este filme ...
A Nossa Senhora de Fátima, não obstante, permanece empoleirada na peanha, na cabeceira da cama ainda feita ... De longe, acho que continua a ser interpelada e agradecida !...
Ir àquela casa, é um pesadelo.
Ir àquela casa é uma violência sem tamanho.
É como o devassar de um local meio mítico, meio sagrado ... inviolável ! Ir lá, é perturbar demasiado as memórias, as imagens, os espaços...
Até porque as portas ... todas ... em definitivo, estão prestes a cerrar-se !!!...
Anamar