Se eu morresse amanhã, tenho a certeza que o céu estaria tão azul quanto hoje, por cima deste mar batido, que se desmancha em espuma na areia.
Os penedos da falésia, como equilibristas de arame sem rede, continuariam a ver as marés a subir e a descer todos os dias, de todos os anos, e haveria muitos Invernos e muitos Verões, para que o vento de tempestade os açoitasse, ou a brisa mansa os acariciasse ... ouvindo-lhes histórias de vidas ...
As gaivotas também poisariam no areal como malmequeres brancos a salpicar a areia plana, inviolada de pegadas ainda ...
O sol, estranhamente continuaria quente, a escaldar os corpos, excepto o meu que estaria gelado e indiferente.
Mania do Mundo seguir em frente, e atirar-nos à cara a insignificância do nosso existir !...
As pessoas transformar-me-iam em alguém bem louvável de recordar ... algumas horas, de alguns dias, talvez de escassos meses ... porque aquela mesa de café ficaria vazia de mim, e porque todos se tornam "heróis" na vida, só porque tiveram a sorte de morrer ...
Horas, dias, meses ... nacos mais ou menos generosos com que o Homem "fatia" a eternidade.
A eternidade é a estrada de sentido único, que nem rotundas tem.
Se as tivesse, sempre dava para rodopiar, rodopiar e "empalear" a caminhada.
Mas não!
A eternidade está lá ao fundo, e sempre espera por todos ...
É certo que aquela camisa continuaria dependurada no estendal onde ficara, mas também quem me mandou lavá-la na véspera??!!...
Se eu morresse amanhã, tenho a certeza que dos "meus", haveria quem soluçasse à luz do sol, mas também quem só soluçasse, na solidão mais recôndita de um quarto.
E também haveria quem quisesse, na hora, tomar a minha "boleia" ... que eu sei !
Os homens da minha vida, os meus amores, os meus afectos, espalhados pelo Mundo em cada pedaço que por lá fui perdendo, nem sequer saberiam se eu existia ainda, ou não !
O que se dá, dá-se com o coração, com o corpo e com a a alma, e não carece de retribuição ...
Havia um sítio, sim, onde eu ficaria para sempre e onde sempre me podiam encontrar ... Este mar imenso, que também ele copia a eternidade ... começa, mas não finda nunca !
Lá, naquele verde, azul, turquesa, cinzento, ou na mescla de todos os tons, conforme os olhos que o vejam, eu estarei, juro !
Darei guarida a todos os seres que me quiserem ;
Virei ao areal, zangada ou mansa, embalaria as gaivotas, as andorinhas do mar, os corvos marinhos, as fragatas, as garças da maré baixa ...
Mas também as conchas, as algas e os corais, e todos, mas todos mesmo, me poderiam escutar ... na melopeia embaladora de um búzio.
Bastaria pô-lo ao ouvido e saber ouvir ... não apenas escutar !...
Nele reconheceriam a minha história, sussurrada baixinho ...
Mas do alto das arribas, onde os rochedos se equilibram em malabarismos espantosos, também me poderiam ver ... Basta que saibam olhar e que conheçam o código da linguagem do coração !
Aos nasceres e aos pôres-de-sol, lá estaria ... morta, homenageando a VIDA !
E nas noites de lua cheia, quando a poalha prateada acende o mar, e as sereias entoam cânticos de chamamento, os meus cabelos serão algas largadas na areia, por cada onda que vai e que volta ... e ao largo, os pescadores saber-me-iam, porque também eles são filhos do mar !!...
Se eu morresse amanhã, só queria que me colocassem nas mãos, o saco das letras, aquelas todas com que construo os meus castelos de sonhos, com que invento as minhas histórias de ninar, com que confesso os meus desejos mais ardentes que não realizei, e ficaram, juntos com a camisa, pendurados no estendal !!!...
Anamar