quinta-feira, 2 de agosto de 2012

" O SORTILÉGIO DA LUA CHEIA "

 

No céu escuro da cidade, onde nunca temos o privilégio de ver estrelas, uma imensa  lua cheia anda "plantada" bem frente à minha janela ...

O feitiço e o fascínio que me povoa olhando-a, não sei descrever ...
Penso  sempre que todos os olhos do Mundo, ao elevarem-se, se encontram nela, como numa triangulação enigmática.
Achei-a recortada nos coqueiros de Santa Lucia, de Bali, de Negril, sobre o céu livre das Maldivas, ou nos palmeirais de Samaná.

A lua cheia é um  "atentado" aos sentimentos.  A sua sensualidade desafia os mais insensíveis, tenho a certeza.
Na minha casa acende-me dia na noite, e banha o meu corpo nu, quando o sono cessa, a cama ganha picos, o oxigénio no meu quarto escasseia, e as lágrimas sempre saem das cavernas que tenho no peito e escorrem, feito caudal de rio, da nascente até à foz ...

Os lobos homenageiam-na ... os amantes também ...

A mim, envolve-me, acaricia-me, fala-me ao ouvido histórias mentirosas que só as luas sabem contar.
Fala-me de futuros, de vidas, de sonhos, de esperanças, de creres ... daquelas coisas sem fundamento, que fazemos de conta acreditar, e nos alimentam o existir.

Existir ... pois, existir mesmo, e não fingir apenas ...

E o que fazemos quase todos, todos os dias, por cada dia das nossas vidas ?
Criamos metas, etapas, objectivos.  Delineamos, programamos, sonhamos afinal.
Há fasquias que superamos, sobretudo na idade em que há fôlego, há vontade, há força ... sobretudo ingenuidade !
Naquela fase em que acreditamos que de certeza temos desígnios a atingir, missões a desempenhar, obrigações a cumprir.
Há responsabilidades profissionais diárias, há exigências familiares diárias, há os filhos, há os pais, há a luta para que o futuro seja mais garantido, seja mais tranquilo.
Sonha-se ver os filhos a crescer, a ter sucesso, a independentizarem-se, também eles alicerçando vidas e caminhos, desenhando percursos seguros, de qualidade ...
Sonha-se com aquele espaço de campo ou mar, onde seria tão gratificante se tivéssemos uma casa ...
Se a tivermos, sonha-se como alindá-la, como dar-lhe a nossa "marca", como personalizá-la ao nosso jeito.
Florimo-la, plantamos e vemos desabrochar as nossas flores preferidas ...  Afinal é suposto ali irmos ser felizes !...

Depois vêm os netos, e a saga continua ... apenas nuns episódios mais à frente.  Mas tudo mais ou menos igual, apenas com responsabilidades minoradas ... preocupações, não !

Mas vamos sempre ficando mais órfãos ...

Começa a época das perdas.  A profissão cessa ( o tão alvitrado alívio chega ... mas parece já não ser tão alívio quanto isso.  Afinal ocupava-nos a mente, exigia-nos presença, não nos facilitava a "entrega" à reflexão, e à consciencialização da verdade da Vida ) .
Os pais partem, e com eles vão levando pedaços de nós ;  por vezes os percursos dos descendentes não são exactamente como sonhámos, e talvez a tranquilidade não nos encha o coração ;
os nossos próprios sonhos, as "construções" dos nossos quereres, muitas vezes também desmoronam ... partimos para outras realidades.
A casa das flores, do mar e dos pássaros, ficou na dobra da esquina, ficou na página anterior, que já virámos...
Experienciamos uma nova forma de  solidão, embora já a conhecêssemos antes.  Só que esta, será aquela com que provavelmente teremos que conviver até ao fim.
Convém que nos habituemos a ela.  Convém que a adoptemos como o nosso  "segundo eu", a sombra que caminha ao nosso lado sem que a vejamos, pelas estradas vazias da existência.

E cada dia, o espelho, o real e o que temos dentro de nós, nos mostra um ser a degradar-se, física e psicologicamente.
Mais uma marca no rosto, nas mãos, nas pernas ... no coração ...
Ouve-se menos, vê-se menos, comunica-se menos, embora estoicamente queiramos fazer de conta que não.
Entende-se  pior, a  memória  atraiçoa-nos, e até  nos  rimos com isso ( fazer o quê ? ), a concentração esvai-se, a vontade, queiramos ou não, fragiliza-se ( há coisas que já não justificam a "mão de obra" que requerem ... deixam de valer a pena, ou de terem força para nos fazer mover ... ) ; começamos a ter que ajudar a perna para entrar nas calças, começamos a necessitar de um suporte de apoio para trepar a um banco, o equilíbrio deixa muito a desejar, o riso escasseia e o semblante carrega-se ... a alma conturba-se.

As desilusões, a dureza e as frustrações que fomos acumulando, ainda conseguem surpreender-nos, espantosamente ... porque o Homem é por essência, um ser de esperança e fé.
Só que o sarar das feridas que nos conferem, é cada vez mais resistente, e as suas cicatrizes, nem com plásticas na alma se dissimulariam !...

E depois ficamos isto que eu estou hoje ...
Rica deste realismo doído, macabro, violento, mas seguramente real, sem panaceias ou profilaxias que lhe valham, sem maquilhagem que o componha, sem adição de açúcar que o adoce ...
Frente a frente com a verdade nua e crua, que quem tiver coragem percebe que é exactamente isso, a VERDADE despida da ilusão, do artificialismo ou do fazer de conta com que nos embalamos quase sempre, intencionalmente ou por defesa ( como canto de sereia em mar perdido ), para que suportemos ( para mim é o termo ), este tempo que temos, que nos dispensaram, de que dispomos ...  Até quando ??...

E haverá luas cheias depois de luas cheias, e vou continuar a vê-las da minha janela, sonhando que nelas os meus olhos se encontram com outros, perdidos lá para trás ...
Longe, longe, vão ficando os coqueirais de Santa Lucia, de Bali, de Samaná, de Negril ... as areias brancas sem horizontes das Maldivas, e o seu mar de prata, contra céus onde sempre se vêem estrelas ...

Mas  através dos  séculos, tenho  a  certeza, os  lobos vão continuar a homenageá-las ... e os amantes também !!!...

Anamar

2 comentários:

Anónimo disse...

Simplesmente, "That's it!"
Malmequer

anamar disse...

Olá Malmequer

Eu diria..."unhappyli"!!!

Beijinhos

Anamar