quinta-feira, 16 de agosto de 2012

" SE EU MORRESSE AMANHÃ..."

 


Se eu morresse amanhã, tenho a certeza que o céu estaria tão azul quanto hoje, por cima deste mar batido, que se desmancha em espuma na areia.

Os penedos da falésia, como equilibristas de arame sem rede, continuariam a ver as marés a subir e a descer todos os dias, de todos os anos, e haveria muitos Invernos e muitos Verões, para que o vento de tempestade os açoitasse, ou a brisa mansa os acariciasse ... ouvindo-lhes histórias de vidas ...

As gaivotas também poisariam no areal como malmequeres brancos a salpicar a areia plana, inviolada de pegadas ainda ...

O sol, estranhamente continuaria quente, a escaldar os corpos, excepto o meu que estaria gelado e indiferente.
Mania do Mundo seguir em frente,  e atirar-nos à cara a insignificância do nosso existir !...

As pessoas transformar-me-iam em alguém bem louvável de recordar ... algumas horas, de alguns dias, talvez de escassos meses ... porque aquela mesa de café ficaria vazia de mim, e porque todos se tornam "heróis" na vida, só porque tiveram a sorte de morrer ...
Horas, dias, meses ... nacos mais ou menos generosos com que o Homem "fatia" a eternidade.
A eternidade é a estrada de sentido único, que nem rotundas tem.
Se as tivesse, sempre dava para rodopiar, rodopiar e "empalear" a caminhada.
Mas não!
A eternidade está lá ao fundo, e sempre espera por todos ...

É certo que aquela camisa continuaria dependurada no estendal onde ficara, mas também quem me mandou lavá-la na véspera??!!...

Se eu morresse amanhã, tenho a certeza que dos "meus", haveria quem soluçasse à luz do sol, mas também quem só soluçasse, na solidão mais recôndita de um quarto.
E também haveria quem quisesse, na hora, tomar a minha "boleia" ... que eu sei !

Os homens da minha vida, os meus amores, os meus afectos, espalhados pelo Mundo em cada pedaço que por lá fui perdendo, nem sequer saberiam se eu existia ainda, ou não !
O que se dá, dá-se com o coração, com o corpo e com a a alma, e não carece de retribuição ...

Havia um sítio, sim, onde eu ficaria para sempre e onde sempre me podiam encontrar ... Este mar imenso, que também ele copia a eternidade ... começa, mas não finda nunca !
Lá, naquele verde, azul, turquesa, cinzento, ou na mescla de todos os tons, conforme os olhos que o vejam, eu estarei, juro !
Darei guarida a todos os seres que me quiserem ;
Virei ao areal, zangada ou mansa, embalaria as gaivotas, as andorinhas do mar, os corvos marinhos, as fragatas, as garças da maré baixa ...
Mas também as conchas, as algas e os corais, e todos, mas todos mesmo, me poderiam escutar ... na melopeia embaladora de um búzio.
Bastaria pô-lo ao ouvido e saber ouvir ... não apenas escutar !...
Nele reconheceriam a minha história, sussurrada baixinho ...

Mas do alto das arribas, onde os rochedos se equilibram em malabarismos espantosos, também me poderiam ver ...  Basta que saibam olhar e que conheçam o código da linguagem do coração !
Aos nasceres e aos pôres-de-sol, lá estaria ... morta, homenageando a VIDA !

E nas noites de lua cheia, quando a poalha prateada acende o mar, e as sereias entoam cânticos de chamamento, os meus cabelos serão algas largadas na areia, por cada onda que vai e que volta ... e ao largo, os pescadores saber-me-iam, porque também eles são filhos do mar !!...

Se eu morresse amanhã, só queria que me colocassem nas mãos, o saco das letras, aquelas todas com que construo os meus castelos de sonhos, com que invento as minhas histórias de ninar, com que confesso os meus desejos mais ardentes que não realizei, e ficaram, juntos com a camisa, pendurados no estendal !!!...

Anamar

quarta-feira, 15 de agosto de 2012

" AS CHUVAS DE AGOSTO "


As chuvas de Verão são amenidades trazidas dos céus, como bençãos, nas intempéries da Vida.

São como os amores também de Verão ... fortes, curtas e desafiadoras ...

Vêm mas não ficam.   Acariciam mas não acarinham.   Pacificam mas não instalam a paz.
São parêntesis que se abrem na canícula entorpecente ;  são oásis vislumbrados, que não passam de miragens ;  são as reticências no meio duma frase, para o leitor interpretar ;  são aquela palavra que se solta no ar, e que só os atentos captam ...

Convidam-nos a dançar nos seus acordes ;  aliciam-nos a que encharquemos o corpo e a alma, em danças alucinadas, inconsequentes e expurgadoras.
Atraem-nos  e  penetram-nos  sem  remédio, como  numa  noite  de  amor ...
Molham-nos, como o suor que escorre dos corpos na loucura indistinta de dois seres ...

As chuvas de Verão têm a doçura de um embalo, ou o afago duma mão que nos desalinha os cabelos ...
São quentes, embriagantes, como o trago de um licor que nos desce no peito, mas que nos faz festas na alma ...
São chuvas que esquecemos no momento seguinte, e só os charcos deixados na calçada, nos garantem que elas vieram mesmo.
São águas que nos despem e nos descalçam, para que chapinhemos numa dança de roda enlouquecida, que começa de súbito, e termina de súbito também ...

São chuvas fora de época, como há amores que também o são !
E esses, são sugados até às entranhas, são vividos sôfregamente até ao último fôlego, têm o sabor picante do desajustado ... têm o desafio do "provocador", têm o privilégio de espicaçar os sentidos, têm a clandestinidade do secreto !...

São mergulhos incontroláveis, do alto da falésia para as águas que parecem mansas, mas em que sempre acreditamos, que pelo caminho ganhamos asas, e continuamos a voar pelos céus.
São amores inteiros, porque já não há peias para eles ... e afinal a seguir ao Verão, o Outono chega rápido, e urge vivê-los e esgotá-los, antes que, como os riachos que rompem caminho de pedra em pedra, sequem ... sequem, porque na verdade ainda é Verão !...

Deixam na alma a paz, e no corpo o cansaço saboroso do caminheiro, o sossobrar do viajante após a jornada ... são o poisar da gaivota no areal, para o repouso merecido.
Têm na boca o "travo" agridoce do queijo misturado com compota de cereja, da pitada de sal numa sobremesa, do salgado no rebordo de um copo de "Margarita" ...

São tudo e são nada ;
São frescos e escaldam ;
São efémeros mas eternos ;
Invadem-nos o coração, mas inundam-nos de lágrimas ;
São verdades e mentiras ;
São apostas em jogo viciado !...

Tal qual as desejadas e odiadas chuvas de Agosto ... docemente enganadoras ... são a penumbra inesquecível de uma lenda, que atravessa as nossas Vidas !...

Anamar

segunda-feira, 13 de agosto de 2012

" A VIDA "


A vida no seu percurso imparável !...

Dias maus, dias difíceis, dias de mágoas, dias em que as trevas da madrugada nunca abrem para um sol radioso ... Fica sempre noite !
E depois há aqueles, em que percebemos que afinal vale a pena estarmos cá, vale a pena dançarmos na chuva, para conhecermos o prazer do azul do céu.

E hoje é um desses, em que sinto que estar viva, só por si, já é uma bênção, e ser afortunada como sou, uma bênção maior ainda.

O ser humano, eu em particular, sempre lamenta isto ou aquilo ;  centra-se excessivamente em si mesmo, e ainda que tudo fosse perfeito à sua volta, sempre se queixaria de alguma coisa.
De facto, somos seres eminentemente imperfeitos e com insatisfação instalada, que acredito, estaremos em provação permanente, para consciencializarmos e distinguirmos o certo do errado, valorizarmos o tanto que detemos, discernirmos os reais valores que devem nortear os nossos destinos, e sermos gratos pela oportunidade que nos é concedida ... simplesmente de EXISTIR ...

E existir, é de facto alguma coisa de uma dimensão e de uma grandiosidade tal, com que somos bafejados, da qual frequentemente nos distraímos, numa postura errática, injusta e ingrata.

Existir é podermos acordar, extasiarmo-nos com as pequenas coisas que nos rodeiam ;  podermos sentir no coração emoções e sentimentos que não se descrevem ;  ter a liberdade de talhar diariamente os nossos caminhos, livremente, numa aprendizagem crescente no sentido de um aperfeiçoamento, de um enriquecimento, da compreensão, tolerância, disponibilidade, capacidade de perdão e compaixão, de uma melhoria integral, como  "GENTE" aqui largada, com todas as responsabilidades de o sermos.

E ser "GENTE", só por si, já é um privilégio que nunca nos perguntamos se merecemos ...

Ser  GENTE  é  sentir  a  emoção  de  partilhar  um nascer e  um  pôr-do-sol ;
é poder aspirar o aroma das flores ;  aquelas que despontam até no meio das pedras, e aquelas com que o Homem embeleza os seus espaços ;
é deixar-se encharcar pelas chuvadas, para depois perceber que o calor do astro-rei está lá,  para o envolver de novo ;
é tomar uma pomba nas mãos, e vê-la seguir pelo espaço, adquirida a liberdade ;
é extasiar-se pelo planar sonolento do condor, sobre os rochedos do Grand Canyon ;
é admirar a liberdade despudorada da gaivota, de asas estendidas por sobre a aragem ;
é escutar o som dos pássaros na alvorada, e das águas nos rochedos, em dias de mar zangado, ou o seu sussurrar em areias mansas ...
é olhar com ternura e respeito as mãos descarnadas de um velho, que tem Vida para contar ;
é sentir o milagre estampado no rosto de uma criança de riso fácil, atrás daquela borboleta "fujona" ;

Ser GENTE é esbanjar amor, é ter amigos, amores, amantes, gente nossa, e também os que nos sorriem sem sequer nos conhecerem ...
ser GENTE é também chorar, e muito, é cair para nos levantarmos a seguir, sabendo que se não o conseguirmos, haverá sempre uma mão lá estendida, para nos erguer ...
é acreditar que não somos capazes, e que não vale a pena ... mas no instante seguinte, percebermos que a Vida é "demasiado", para se desperdiçar !...

Ser GENTE, sobretudo, é aprender a viver !...

O meu "clã"  hoje aniversaria em dobro.
Mãe e filho mais velho, nascidos no mesmo dia, com vinte e oito anos de diferença !

Sempre me emociono a pensar como foi, o que é ... como será ?!   Os tais desígnios insondáveis, que são os caminhos do Homem ...

E o facto de ver aquela menininha loira, de caracóis, franzina, de "porcelana", com ar de boneca de brincar, a  beirar os  quarenta  anos, parece-me uma  história  mal contada, uma "treta" do correr desenfreado do tempo !...
Como pode ser, ter passado tanto, desde que ao porem-ma pela primeira vez nos braços, a olhei ... e foi luz, muita luz, claridade e sol, que lhe vi no rosto ??!!...
"Cláudia" o nome que lhe escolhi na hora ;  sem erro, sem dúvida, sem indecisão, porque "Cláudia" me transmite até hoje, isso mesmo ... um caminho de luz, um caminho em direcção ao sol e por isso, um caminho de paz !...

O António nasceu vinte e oito anos depois ;  o rosto, bem próximo do da mãe ;
o ar sereno e compenetrado de quase um pré-adolescente, lembra-me constantemente tudo aquilo que escrevi  neste  post :

A vida é "demasiado", para se desperdiçar, e todos os dias vale a pena ser vivida !!!...

Anamar 

sexta-feira, 10 de agosto de 2012

" QUANDO ... "



Deixamos de sofrer, quando deixamos de esperar ...
Deixamos de sofrer, quando deixamos de sonhar ...
Deixamos de sofrer, quando deixamos de acreditar ...
Deixamos de sofrer, quando paramos de lutar, e desistimos ...
... quando as lágrimas salgadas e as doces se misturam, e já não sabemos para onde correm umas, e para onde correm outras, e por que correm umas, e por que correm outras ...
... quando a noite se confunde com o dia dentro de nós, e não há por que acordar em cada madrugada, simplesmente porque parece não haver dia para viver !
E que nem sequer há madrugada !...

É então que uma letargia doce se instala, e nos adormece, nos insensibiliza, nos distancia ...
Uma espécie de analgésico de Vida !

É quando parece que nunca vivemos coisas que vivemos ;  é quando pensamos que nunca amámos quem amámos, porque simplesmente a distância de um passo, se transformou numa vida ...
É quando passamos a ter uma imagem já só vaga, daquele sol a pôr-se, daquela mata de flores rasteiras, do som daquelas vozes doces nos ouvidos ( que se impessoalizaram ), do calor daquelas mãos e daqueles corpos protectores e envolventes ... é quando juramos que nunca escutámos aquela música, e ouvi-la já não nos faz chorar nem nos desperta ódio ...

E é quando perguntamos se estaremos mesmo loucos, ou se tudo não terá acontecido  na verdade, apenas numa  outra vida  lá para trás.
Porque a luz desligou-se na sala, o filme parou na tela ( e não se pode fazer reprise ), a cena suspendeu-se antes de ter terminado o último acto, e ficámos meros espectadores do nada e do vazio !...

"Esperar", desespera porque angustia, porque aperta o coração, porque nos anseia ...
Esperar sem esperança, claro.  Aliás devia ser obrigatório "esperar-se" sempre com esperança ;  as duas palavras miscigenam-se, e uma devia sempre implicar a outra.
Porque a felicidade quase sempre é maior enquanto se espera, do que enquanto se realiza alguma coisa ...
Esse preâmbulo, esse prefácio, nessa página em branco que é o tempo doce da espera com esperança, cabe tudo o que lá quisermos escrever, abrange tudo o que o nosso coração e a mente, construírem ;
a antecipação do viver, é quase sempre melhor que o viver ... e dura seguramente mais !...

"Sonhar" defrauda-nos, porque os sonhos só se concretizam nos contos de fadas, com que nos adormeceram em pequeninos.
E fadas, duendes e criaturas simpáticas, só povoam mesmo essas histórias ... e é algo que a adultícia, ardilosamente sempre destrói !...

"Acreditar" é um masoquismo idiota com que o ser humano se engana diariamente, para fazer de conta que são a cores, as realidades que tão somente são cinzentas ( a tal cor que eu odeio, porque não se decide se pende mais para o lado do preto, se do branco ...  E eu odeio indecisões !... )

Mas depois, há a droga das coisas que inventámos de guardar, como o Pequeno Polegar (abandonado na floresta com os irmãos ), deixou as pedrinhas do rio, que lhes marcaria o caminho de volta ...
Como se os caminhos tivessem volta !!...

Há tudo aquilo que quisémos perpetuar para a nossa posteridade.
Precisamos ter a certeza, de que naquela tarde se trocaram aquelas palavras no guardanapo de papel, frente a uma mesa de café já frio, por esquecimento de o beber, por tanta coisa mais importante nos ter preenchido a mente ...
Precisamos ter a certeza que as mãos que se acariciaram, os olhares cúmplices e prometedores que se trocaram, os beijos que nos afloraram, incontroláveis, aos lábios ... não foram sonhos que inventámos ...

Depois, há os incontáveis raminhos de flores secas, apanhadas nas moitas e nas encostas despenteadas, das falésias de mar ao fundo ... e amor nos rochedos ...

Há os botões de rosa em profusão e religiosamente guardados.
Já não têm aroma, e nunca passaram de botões ...  Mas para nós, foram um roseiral secreto, de que só nós desvendámos os caminhos ...

E afinal, o guardado passa a ser intocável !...
Mexer-lhe, queima as mãos, olhá-lo cega os olhos, acariciá-lo, mata-nos por dentro ...
Porque tudo foi gravado a ferro e fogo, e o que se grava a ferro e fogo, normalmente é perene ... caminha para a Eternidade !... 
E a Eternidade é um sacrário, é um campo inviolável, improfanável !

E por tudo isto, quando paramos de "esperar", de "sonhar", de "acreditar" ... e pouco a pouco de lembrar ... paramos também de lutar, e desistimos ...

Desistimos de teimar ler aquele livro ao deitar, para adormecer.
Simplesmente porque as suas páginas vão ficando amarelecidas, e mesmo as letras vão sumindo, esmaecendo ... desaparecendo nos tempos ... e o discurso já não faz sentido !
Então aí, talvez tenhamos deixado de sofrer !!!...

 Anamar

quarta-feira, 8 de agosto de 2012

" TARDE DEMAIS "



Uma tarde de praia absolutamente espectacular.  Sol quente, uma brisa acariciadora, que torna o calor do sol suportável.  Mar de maré vazia desde manhã, quando cheguei, e só há pouco começou a encher.

Estou "encarrapitada"  no alto de um dos rochedos que por aqui se espreguiçam, não vá a maré pregar-me alguma partida, e desta tribuna onde estou, tenho o privilégio de ter o mar aos meus pés, as ondas ponteadas aqui e ali, por surfistas ( já não está mais ninguém no banho ) e uma estrada de luz que se acende e torna este mar de azuis e verdes, absolutamente iluminado em prata !

São pouco mais de seis da tarde, o sol ainda vai alto, mas decidi que provavelmente vou ficar neste camarote, até que ele beije o horizonte lá ao fundo.
Afinal hoje ninguém me espera em casa ;  e entre anoitecer-me no meio de quatro paredes, ou por aqui ... não tenho dúvida !

As vantagens ou as desvantagens de viver só !...

Há pouco, falando ao telefone com um amigo, carpia-lhe as minhas mágoas ... sim, porque o ser humano sempre encontra espantosamente mágoas para carpir, ou não fosse por natureza um ser de insatisfação e incompletude.
Ele só me perguntou : " Diz-me uma coisa : tens saúde, não tens ?  Tens meios de subsistência, não tens ?  Então és simplesmente uma privilegiada !..."

As palavras bateram forte e feio, como se costuma dizer, tipo "pedrada no charco" !
Claro que eu sei exactamente isso, e sempre o refiro neste espaço, numa espécie de contrição continuada.
Claro que eu sei ser um privilégio estar aqui, sem horas, no alto dum penedo, absorvendo a brisa salgada da tarde, deixando-me envolver pelo calor ainda intenso do sol, ouvindo o vai-vém das ondas ... deixando-me embalar por elas ... e apenas viver !!

Quando reflicto sobre estas coisas considero-me, obviamente uma mal-agradecida, não reconhecida, injusta para com a Vida, e quase um crime, ainda assim achar que possa ter mágoas ...

Apenas, entre muitos, eu tenho um grave defeito : sempre faço depender de terceiros, de factores exógenos, de altos e baixos da existência, a minha felicidade, de tal forma que nunca a vivencio em plenitude.
Devia sim, procurá-la dentro de mim, deixá-la crescer no meu coração e na minha mente, independentemente e ao invés, dela sempre e só se concretizar de fora para dentro, na dependência de outras pessoas.
E as pessoas são gente, com todas as imperfeições, condicionalismos, indisponibilidades, incapacidades, impotências ...
E defraudam-me muitas vezes.  Certamente eu também as defraudarei em muitas outras.

Só que talvez elas tenham uma inteligência de Vida, uma maior capacidade de defesa, um pragmatismo e uma sabedoria na gestão dos sentimentos, que eu se calhar não vou aprender nunca !

É como se eu só respirasse até ao fundo, se só  respirassem comigo ;
é como se aquela paisagem à minha frente, só ficasse prodigamente colorida, e só fizesse sentido, se outros olhos a admirassem comigo ;
como se aquela música só ganhasse expressão, se representasse algo para mim e para alguém que eu ame ... como se a brisa que corre, só devesse desalinhar-me o cabelo, quando aninhada em braços de afecto ...

Parece que desvalorizo os momentos, as coisas, os cheiros, os sons, a luz e a cor, "de per si" ... parece que eu não sou suficiente para lhes dar significância, parece que eu sou "pouco" demais para ser "alguém" autónomo, um "ser", uma "individualidade" ... por o ser tão incompletamente ...

Isto é um desvio personalístico, é um profundo desequilíbrio emocional, é um erro crasso de "programação" do coração e da alma, ou tão só uma tremenda e irresolúvel carência afectiva ... mas ... não consigo alterar nada disto !...

E "criminosamente" vou deixando passar por mim, muito de VIDA ;
vou vivendo "de menos" muitas emoções, muitos momentos, enfim, vou desperdiçando muita "lotaria premiada" que me vai fugindo pelas mãos ... e um dia, tenho a certeza, vou acordar tarde demais !!!...

Anamar

segunda-feira, 6 de agosto de 2012

" JÁ ... "



Uma leve neblina perpassa, como se fosse um nevoeiro com pés, por cima das rochas semeadas no areal.
O mar desassoreou espantosamente em três dias, este local.
O meu nicho preferido mudou de "design".  Custei a encontrá-lo, e ao encontrá-lo, verifiquei como o mar, nas sucessivas marés, deixou a descoberto mais rochedos, e como roubou pelo menos mais de meio metro de  areia em altura, a esta praia.
A força incontrolável e sem freio do vai-vem das ondas, na modelagem do que foi, já não é, mas poderá voltar a ser.

Na falésia, desenhados a régua e esquadro, os sucessivos estratos que a erosão definiu na costa, ao longo dos séculos, por certo.
Estratos sobrepostos como páginas de um livro escrito, com uma longa história, uma história imemorial, transversal a destinos e gerações ...

A memória das pedras ...  O que contariam, se pudessem contar, ao comum dos mortais, sobre o percurso dos Homens, sobre a memória do Tempo, sobre os caminhos das Vidas??!!
Sim,  há  homens  que  as sabem  ler,  lhes  conhecem  a  linguagem ...

Eu, só imagino a perenidade do que vai ficando, enquanto os Homens partem !
A memória das pedras mede-se em Tempo, mas o Homem só consegue medir a sua existência em dias ... e dias e Tempo, não são a mesma coisa ...

Aqui por cima uma gaivota voa, batendo as asas.  A brisa que corre não dá para simplesmente planar, como tanto gostam.
Ver o Mundo do céu, ver a pequenez do que se estende aqui por baixo, transportando liberdade nas asas ... coisa que os Homens não têm !
Voar, só o meu pensamento o faz.
Ele é livre ... o pensamento sempre é livre, o Homem não, embora tenha pavor de perder o que imagina ser liberdade ... Uma coisa que afinal não detém ! ...  Paradoxal !...

Uma vegetação escassa e rasteira trepa pelas escarpas, e floresce ... há tufos de flores amarelas espalhadas a esmo, adocicando a aridez da falésia.
A vida esbanja-se em todo o lado, e sempre é pródiga.  Existe, mesmo quando se esconde dos olhos, mas não dos sentidos.

Estou num período da minha vida ( que se iniciou na solidão de Samaná, e mercê de muitos factores, se prolonga ), de muita maturação, reflexão lúcida, definição das minhas verdades.
Neste momento penso que com alguma clareza, consigo discernir com mais equilíbrio, e com a paz que tento instalar no coração, o que quero e o que não quero da minha vida.
Consigo olhá-la olhos nos olhos, e perceber mas sobretudo aceitar, que ela não é mais do que um fluxo de água, que corre da nascente à foz ;  segue, já a mais de dois terços do percurso, eventualmente.
É imparável, não desviará o trilho que lhe está destinado, encontra e continuará a encontrar a inevitabilidade dos escolhos no caminho, e usando a sabedoria da água, terá que os contornar, porque nada nem ninguém tem força que vença os rochedos e as penedias ...

Como toda a gente que cruzamos, penso, já ri, já chorei, já fui amada e não amei, já amei e não me amaram, já escolhi e não me escolheram e o inverso também ...
Já tive sonhos, sacos de sonhos, que se transformaram em pequenas sacolas, com o transcorrer do tempo.
Já semeei esperança e esperança, no coração ... esperando que florisse, e algumas vezes a sementeira foi abençoada.
Já acreditei com as forças todas que tinha e não tinha ... e depois, às vezes, percebi que me havia enganado muito.
Já me senti perdida em dúvidas e na cerração dos nevoeiros, que faziam crer nada valer a pena ...
Já deitei muitas vezes a "toalha ao chão", porque achei que era o fim do torneio, mas depois vi que afinal me enganara, e que ainda conseguia pôr-me de novo em pé.
Outras vezes sossobrei, e entrei em túneis sombrios e compridos que pareciam não ter fim ; escuros, húmidos e gelados, e neles estive tempos, se calhar tempos demais, até que conseguisse distinguir uma pequena luz norteadora.
Já tive que reunir forças, que fui buscar a baús que nem sabia que existiam na minha alma.
Já cerrei os dentes e mordi os lábios, para conseguir avançar simplesmente mais um passo.
Já  deixei  de  enxergar caminhos, porque as lágrimas me turvavam a vista, ou apenas ... porque não os havia ...
Já tive ao meu lado quem mas enxugasse do rosto, quem me desse um ombro, um cólo ou uns braços de repouso, quando o cansaço me matava de desespero.
Já topei com encruzilhadas, muitas encruzilhadas, sem que tivesse bússola, norte, sem estrelas no céu que me guiassem ... e tive que escolher caminhos ...
Enfim, já vivi muito, muito ... outras vezes só vegetei adormecida, entorpecida por mágoas, cansaços, desilusões ... outras vezes nem sequer vivi ...

Em suma ... fui simplesmente normal, creio, como o são as pessoas comuns;  e talvez não queira ser nunca, mais que isso !

Afinal, somos todos matéria, chegámos da mesma forma, tivémos vivências iguais ( tenho a certeza ), experimentámos todos, todas as coisa que existiam por aqui,  soubémos melhor ou pior gerir e conduzir este nosso "bote", tentando abrigá-lo das tempestades ...

Vamos estando por cá, e amanhã partiremos, simplesmente com uma única bagagem :  as páginas que conseguimos escrever do nosso "livro", e aquilo que não esquecemos, de tudo quanto aprendemos nesta nossa Viagem !!!...

Anamar

sexta-feira, 3 de agosto de 2012

" RÊVERIES "...

"É preciso amor para poder pulsar

  É preciso paz para poder sorrir

  É preciso chuva para florir ..."

As rosas de Sta. Teresinha daquele muro perdido na serra, estão ainda desfolhadas no meu carro.
Com as suas pétalas tentam deixar no espaço, o perfume particular e inebriante que carregam.
Estão no meu carro e estão à cabeceira da minha cama, para que as madrugadas possam florir nos meus sonhos.

Mas as madrugadas não dão mais flores,  porque a paz foi embora, e o sorriso, com ela ...
Acabaram secando, como secaram todas as rosas vermelhas, que o "Homem das Rosas" ofereceu à Maribel, no portão, onde, infatigável, ela o esperou o tempo que foi preciso ...
Secaram como secam os corações sem amor, como estiolam as pessoas sem esperança ...

E os sonhos também não são mais sonhos, porque agora mascararam-se de pesadelos, e eu tive que tornar-me amiga das personagens que os povoam. 
E essas personagens são grotescas, são escarninhas, são sádicas.
Vêm das profundezas do meu Inferno ( porque toda a gente tem um Inferno lá no porão das almas ).
Vêm e teimam em assombrar-me os sonos, e sempre teimam em carregar-me com elas ...

Breve, o sol vai esconder-se atrás daquele castelo de algodão ;  breve, os pôres-de-sol de fogo, e os azuis que se confundem entre céu e mar, vão partir, partir junto com as gaivotas e as andorinhas do mar.
Breve será Inverno outra vez !...

Vão restar os penedos e as rochas, perenes, fiéis e imutáveis.

E eu tenho que renascer para entender o carroussel que é a minha Vida, porque nesta, não estou "formatada" para o conseguir.
Nesta, pouco entendo, do que se calhar também não se explica, do que se calhar não tem entendimento mesmo !... 

"Circunda-te de rosas ... O mais é nada ! " ...diz o Mestre.

Só que as rosas sempre trazem espinhos, e as rosas murcham, mas os espinhos permanecem.
Os espinhos sempre ficam para a eternidade.
As rosas perfumam-nos as mãos e o coração ...  Apenas, o seu aroma é efémero, e a sua lembrança vai ficando ténue, distante, longínqua ... efémera também ...

E haverá um dia, que ao contemplá-las nos perguntamos de que roseira, de que muro, de que serra, em que dia, de que ano, de que Vida, elas vieram até nós.
Nos perguntamos que mãos no-las colheram, e porquê ?
E estava sol, ou chovia dentro de nós, nesse dia ?
E   que  palavras  nos  disseram quando as depositaram no nosso regaço ?...
E  com  que  voz ?  Também com a do coração, a do amor, a do carinho ??

Será que lembramos os sonhos que então sonhávamos, os desejos ardentes que nos possuíam, o amor que pulsava em dois corações que batiam a compasso ??
Será que lembramos o tamanho da fogueira que nos ardia no peito ??
Será que lembramos como era despertar por cada manhã e ter sol a inundar-nos a alma ??

Será que lembramos ???

"O mais é nada" !!!...

A injustiça implacável do transcurso do tempo !...
A fuga das memórias, que endiabradas sempre teimam em partir para outros destinos ...
O buraco deixado pela insensibilidade incontornável, instalada nas existências, que as esbate nas curvas dos caminhos, arrastadas pelos golpes de vento ...

Sem bebedeira de Vida, sem embriaguês de sentires, sem excesso de plenitude na alma ... a mim, o que sobra, de facto, é  NADA ...  nem  as  rosas  de   Sta. Teresinha  à   minha  cabeceira,  nas  noites  vazias !!!...

Fernando Pessoa

Navega, descobre tesouros,
mas não os tires do fundo do mar,
o lugar deles é lá.
Admira a Lua,
sonha com ela,
mas não queiras trazê-la para Terra.
Goza a luz do Sol,
deixa-te acariciar por ele.
O calor é para todos.
Sonha com as estrelas,
apenas sonha,
elas só podem brilhar no céu.
Não tentes deter o vento,
ele precisa correr por toda a parte,
ele tem pressa de chegar sabe-se lá onde.
As lágrimas?
Não as seques,
elas precisam correr na minha, na tua, em todas as faces.
O sorriso!
Esse deves segurar,
não o deixes ir embora, agarra-o!
Quem amas?
Guarda dentro de um porta jóias, tranca, perde a chave!
Quem amas é a maior jóia que possuis, a mais valiosa.
Não importa se a estação do ano muda,
se o século vira, conserva a vontade de viver,
não se chega a parte alguma sem ela.
Abre todas as janelas que encontrares e as portas também.
Persegue o sonho, mas não o deixes viver sozinho.
Alimenta a tua alma com amor, cura as tuas feridas com carinho.
Descobre-te todos os dias,
deixa-te levar pelas tuas vontades,
mas não enlouqueças por elas.
Procura!
Procura sempre o fim de uma história,
seja ela qual for.
Dá um sorriso àqueles que esqueceram como se faz isso.
Olha para o lado, há alguém que precisa de ti.
Abastece o teu coração de fé, não a percas nunca.
Mergulha de cabeça nos teus desejos e satisfá-los.
Agoniza de dor por um amigo,
só sairás dessa agonia se conseguires tirá-lo também.
Procura os teus caminhos, mas não magoes ninguém nessa procura.
Arrepende-te, volta atrás,
pede perdão!
Não te acostumes com o que não te faz feliz,
revolta-te quando julgares necessário.
Enche o teu coração de esperança, mas não deixes que ele se afogue nela.
Se achares que precisas de voltar atrás, volta!
Se perceberes que precisas seguir, segue!
Se estiver tudo errado, começa novamente.
Se estiver tudo certo, continua.
Se sentires saudades, mata-as.
Se perderes um amor, não te percas!
Se o achares, segura-o!
Circunda-te de rosas, ama, bebe e cala.
“O mais é nada”.


Anamar

quinta-feira, 2 de agosto de 2012

" O SORTILÉGIO DA LUA CHEIA "

 

No céu escuro da cidade, onde nunca temos o privilégio de ver estrelas, uma imensa  lua cheia anda "plantada" bem frente à minha janela ...

O feitiço e o fascínio que me povoa olhando-a, não sei descrever ...
Penso  sempre que todos os olhos do Mundo, ao elevarem-se, se encontram nela, como numa triangulação enigmática.
Achei-a recortada nos coqueiros de Santa Lucia, de Bali, de Negril, sobre o céu livre das Maldivas, ou nos palmeirais de Samaná.

A lua cheia é um  "atentado" aos sentimentos.  A sua sensualidade desafia os mais insensíveis, tenho a certeza.
Na minha casa acende-me dia na noite, e banha o meu corpo nu, quando o sono cessa, a cama ganha picos, o oxigénio no meu quarto escasseia, e as lágrimas sempre saem das cavernas que tenho no peito e escorrem, feito caudal de rio, da nascente até à foz ...

Os lobos homenageiam-na ... os amantes também ...

A mim, envolve-me, acaricia-me, fala-me ao ouvido histórias mentirosas que só as luas sabem contar.
Fala-me de futuros, de vidas, de sonhos, de esperanças, de creres ... daquelas coisas sem fundamento, que fazemos de conta acreditar, e nos alimentam o existir.

Existir ... pois, existir mesmo, e não fingir apenas ...

E o que fazemos quase todos, todos os dias, por cada dia das nossas vidas ?
Criamos metas, etapas, objectivos.  Delineamos, programamos, sonhamos afinal.
Há fasquias que superamos, sobretudo na idade em que há fôlego, há vontade, há força ... sobretudo ingenuidade !
Naquela fase em que acreditamos que de certeza temos desígnios a atingir, missões a desempenhar, obrigações a cumprir.
Há responsabilidades profissionais diárias, há exigências familiares diárias, há os filhos, há os pais, há a luta para que o futuro seja mais garantido, seja mais tranquilo.
Sonha-se ver os filhos a crescer, a ter sucesso, a independentizarem-se, também eles alicerçando vidas e caminhos, desenhando percursos seguros, de qualidade ...
Sonha-se com aquele espaço de campo ou mar, onde seria tão gratificante se tivéssemos uma casa ...
Se a tivermos, sonha-se como alindá-la, como dar-lhe a nossa "marca", como personalizá-la ao nosso jeito.
Florimo-la, plantamos e vemos desabrochar as nossas flores preferidas ...  Afinal é suposto ali irmos ser felizes !...

Depois vêm os netos, e a saga continua ... apenas nuns episódios mais à frente.  Mas tudo mais ou menos igual, apenas com responsabilidades minoradas ... preocupações, não !

Mas vamos sempre ficando mais órfãos ...

Começa a época das perdas.  A profissão cessa ( o tão alvitrado alívio chega ... mas parece já não ser tão alívio quanto isso.  Afinal ocupava-nos a mente, exigia-nos presença, não nos facilitava a "entrega" à reflexão, e à consciencialização da verdade da Vida ) .
Os pais partem, e com eles vão levando pedaços de nós ;  por vezes os percursos dos descendentes não são exactamente como sonhámos, e talvez a tranquilidade não nos encha o coração ;
os nossos próprios sonhos, as "construções" dos nossos quereres, muitas vezes também desmoronam ... partimos para outras realidades.
A casa das flores, do mar e dos pássaros, ficou na dobra da esquina, ficou na página anterior, que já virámos...
Experienciamos uma nova forma de  solidão, embora já a conhecêssemos antes.  Só que esta, será aquela com que provavelmente teremos que conviver até ao fim.
Convém que nos habituemos a ela.  Convém que a adoptemos como o nosso  "segundo eu", a sombra que caminha ao nosso lado sem que a vejamos, pelas estradas vazias da existência.

E cada dia, o espelho, o real e o que temos dentro de nós, nos mostra um ser a degradar-se, física e psicologicamente.
Mais uma marca no rosto, nas mãos, nas pernas ... no coração ...
Ouve-se menos, vê-se menos, comunica-se menos, embora estoicamente queiramos fazer de conta que não.
Entende-se  pior, a  memória  atraiçoa-nos, e até  nos  rimos com isso ( fazer o quê ? ), a concentração esvai-se, a vontade, queiramos ou não, fragiliza-se ( há coisas que já não justificam a "mão de obra" que requerem ... deixam de valer a pena, ou de terem força para nos fazer mover ... ) ; começamos a ter que ajudar a perna para entrar nas calças, começamos a necessitar de um suporte de apoio para trepar a um banco, o equilíbrio deixa muito a desejar, o riso escasseia e o semblante carrega-se ... a alma conturba-se.

As desilusões, a dureza e as frustrações que fomos acumulando, ainda conseguem surpreender-nos, espantosamente ... porque o Homem é por essência, um ser de esperança e fé.
Só que o sarar das feridas que nos conferem, é cada vez mais resistente, e as suas cicatrizes, nem com plásticas na alma se dissimulariam !...

E depois ficamos isto que eu estou hoje ...
Rica deste realismo doído, macabro, violento, mas seguramente real, sem panaceias ou profilaxias que lhe valham, sem maquilhagem que o componha, sem adição de açúcar que o adoce ...
Frente a frente com a verdade nua e crua, que quem tiver coragem percebe que é exactamente isso, a VERDADE despida da ilusão, do artificialismo ou do fazer de conta com que nos embalamos quase sempre, intencionalmente ou por defesa ( como canto de sereia em mar perdido ), para que suportemos ( para mim é o termo ), este tempo que temos, que nos dispensaram, de que dispomos ...  Até quando ??...

E haverá luas cheias depois de luas cheias, e vou continuar a vê-las da minha janela, sonhando que nelas os meus olhos se encontram com outros, perdidos lá para trás ...
Longe, longe, vão ficando os coqueirais de Santa Lucia, de Bali, de Samaná, de Negril ... as areias brancas sem horizontes das Maldivas, e o seu mar de prata, contra céus onde sempre se vêem estrelas ...

Mas  através dos  séculos, tenho  a  certeza, os  lobos vão continuar a homenageá-las ... e os amantes também !!!...

Anamar

quarta-feira, 1 de agosto de 2012

" O MAR "


Vim até ao mar ...

Eu sou filha do mar.  Não deste que tenho à minha frente, mas do mar da minha terra, que é feito de ondas de trigo, onduladas pelo vento, com papoilas a salpicá-lo aqui e ali .

Eu sou uma mulher de sorte.  Tenho três mares na minha Vida :  este, verde, turquesa e cinzento, que lá longe se confunde com um céu que se esbate em todos os tons de azul ;  este, que tece uma renda de espuma na areia ...
Tenho o mar de ouro do meu Alentejo tão distante, mas tão perto no coração, e também tenho o bruxulear das chamas numa lareira, que crepitam num marulhar entendível.
Esse, é o meu "mar de Inverno" ...
A água, a terra e o fogo ... dentro de mim !...

Há coisas que parecem mas não são, e coisas que não parecem e afinal eram ...
A Vida não é muito mais.  É feita de equívocos silenciosos, feita de esperança, que é como estes castelos de areia que se constroem na rebentação.
É feita de sonhos, que como farrapos de nuvens, a brisa transporta para longe, e com elas a paz também vai, porque a paz sempre acompanha o sonho !
A paz ... esta que eu estou sôfrega de encontrar ... Que respiro entre dois penedos neste areal, feitos para mim, à minha medida, onde construo o meu nicho de silêncio, local do meu encontro comigo mesma, por cada dia que desço , e em que me sinto por momentos, dona do Mundo.

A minha música, lânguida e doce, magoada e embaladora ;  um livro que me leva para o outro lado do Mundo, na fantasia das letras ;  a aragem que perpassa e nem sequer gaivotas transporta, e a profundidade intimista, incessante, deste vai-vem de maré baixa ...

Eu já não lembrava a força do mar !
Eu já não lembrava a rudeza com que nos pega e nos mostra quem "manda".
Eu já não lembrava o frio de uma água que abençoa e aplaca o calor deste sol, que nos acaricia doutra forma.
Falésias à esquerda, à direita ... penhascos orgulhosos e desafiadores, cantos de amor e cumplicidades entre rochedos ...

Outra Vida para além desta, injustamente para além desta.
A real.  Aquela que se faz entre quatro paredes de um quarto, que é o Mundo, e não mais.  Quatro paredes que sufocam, porque teimam em se aproximarem umas das outras, em madrugadas de insónias; 
e estreitando, estreitam-me e cortam-me o respirar, e sufocam-me a garganta e espremem-me o coração !...

É então, no escuro da noite, no breu que cerra sempre tudo à minha volta, que todos os fantasmas me visitam, me aterram, trazem nas costas o saco com toda a amargura da Vida, e teimam em ficar,  mesmo que em lágrimas, lhes suplique que partam ... que partam e me esqueçam ... esqueçam que eu ainda existo!

Maré que vai, maré que vem ... sal que expurga, purifica, limpa até à alma ...
Como eu queria que ele me pudesse apagar a mente e o coração !!!...

O meu signo é de água, o meu ascendente é de água ... os horizontes vastos e ilimitados ... razão de vida.
Não tenho baias ou barreiras ;  vedações ou muros não me confrontam, a minha alma não aceita redes ou malhas, grilhetas ou grades, quartos com paredes que se estreitam ...
A minha alma é devassa, é pecadora, é desafiadora, todos os dias.  Os meus limites não têm limites.  Aceitam apenas os que o coração lhes dita ... de resto são livres, são soltos, como barco sem âncora ou fateixa, em mar alto !

A onda vem, a onda vai ...  A onda que vai já não vem.  O mar que traz, é o mar que leva !...

Tal como o amor ...  Quando vai não volta mais, feito onda da maré cheia !
Apenas deixa na areia os búzios, as conchas, as algas, as luas e as sereias que fizeram parte de outras histórias ... que navegaram connosco, por outras costas de mistério !!!


Anamar

terça-feira, 31 de julho de 2012

" PENSAMENTOS À SOLTA "



As pessoas só morrem de verdade, quando as matamos no nosso coração ... Ao contrário, há muitas que já partiram e continuam bem vivas, exactamente por isso ... porque estão dentro de nós.

Ontem falava-vos em perdas.
Às vezes nem sei por que busco determinados temas, ou por que eles vêm ter comigo para que sobre eles reflicta.
Falava-vos a propósito de Julho, que para mim parece ser recorrente tratar-se de um mês de perdas, um mês de mágoas, também de saudade,  também por tudo, de reflexão ( as minhas intermináveis reflexões ), porque cada vez mais acho que na Vida nada acontece de facto, por acaso ou circunstância.

Tem dias em que penso que tudo é mera aleatoriedade, puro jogo, em que se ganha agora, para se perder amanhã, em que pouca coisa parece ter lógica ou faz sentido ...  vai simplesmente ocorrendo.
Mas há acontecimentos, momentos que me "abanam" de tal forma, que, porque me oscilam as bases, me retiram o equilíbrio, me descontrolam o norte, me retiram o chão firme e seguro ...  me obrigam a estacar e a sentir que parecem ser momentos de viragem, parecem ser intencionalmente, momentos em que a "roda livre" em que vamos andando, dia após dia, deverá parar, deverá pausar ...

São momentos em que parece  importante "fechar para balanço", regressar à "concha", recolher à "toca", voltar ao "útero materno "...
Normalmente são momentos de expurgação, de meditação, de crescimento, de reequilíbrio, da tal "aferição" que tantas vezes refiro nos meus escritos.

No dia a dia, o ser humano caminha em "piloto automático", quase na generalidade ;  penso que o posso afirmar sem grande margem de erro.
Uns de uma forma, outros de outra, por esta ou aquela razão ou esquema de vida, cria-se uma espécie de insensibilização às realidades, de que já nem damos conta, e vamos caminhando sempre, porque urge fazê-lo, por sobrevivência, porque os dias se sucedem aos dias, e há que ir acordando em todos eles.

Gera-se um "adormecimento" no ser humano, em que parece realmente que todos, uns atrás dos outros, não somos mais que o hamster na sua roda ensandecida, ou o atleta no tapete rolante.
Fazemos quilómetros de percurso, e não saímos do mesmo ponto ...

É então que inesperada e subitamente muitas vezes, algum desígnio ( não sei qual ), desencadeia um qualquer terramoto, um qualquer acontecimento crucial e determinante, como se alguém se colocasse bem na nossa frente, desligasse a passadeira, ou imobilizasse a roda, e nos dissesse : "Pára !  É hora de tréguas de Vida !..."

E surpreendidos a princípio, porque muitas vezes colhidos de surpresa, começamos então a reduzir o ritmo, a afastar as cortinas do nevoeiro que nos uniformizara o caminho, o qual já não questionávamos, porque nos adaptáramos a ele.
Sentamo-nos então na beira da estrada, na sombra de um pinheiro manso, cuja copa é doce e acolhedora, porque até pela forma que exibe, é uma abóbada celestial ... e com o azul até ao horizonte, com o silêncio a esbanjar-se à nossa volta, com as borboletas e os pássaros a voejar aqui e ali ... tentamos começar a respirar até ao âmago, o oxigénio que escasseava e não tínhamos dado por isso ...
Semi-cerramos os olhos, despertamos os ouvidos, para que o coração comece então a pulsar em alívio e paz.

E choramos, se calhar choramos muito, aliás é desejável que choremos tudo de uma vez, e desesperamo-nos naquela quietude de  beira de estrada ;  se calhar gritamos interrogações bem em voz alta ( porque também ninguém nos ouve ), se calhar revisionamos tudo o que foi e já não é, como foi possível que o fosse e não seja mais, e sempre nos fazemos aquela pergunta, inerente à presunção arrogante do ser humano se sentir realmente importante : " Porquê eu ?  Porquê a mim ?... "

O pinheiro manso não responde, o azul do céu não se compadece, o som do mar não nos apazigua, as borboletas e os pássaros continuam indiferentes, nos seus caminhos a trilhar, as lágrimas acabam secando ... e finalmente estamos nós frente a nós mesmos, como a solidão do soldado no campo de batalha ... meros sobreviventes ... AINDA !!!...

Percebemos então que há sinais, sinais que temos que aprender a interpretar, para os quais teremos que estar despertos ,  percebemos que talvez tenha sido assim, porque simplesmente tinha que ter sido assim ... e que talvez haja uma lógica e uma verdade, subjacentes a isto a que chamam " VIVER " !!!...

Anamar

segunda-feira, 30 de julho de 2012

" A HERANÇA "




Ainda estamos em Julho ... para mim, cada vez mais, um mês muito marcado.

Hoje faz vinte anos que o meu pai partiu, três que o Óscar me deixou ... mês de partidas, e as partidas são sempre demolidoras.
As partidas nunca nos deixam incólumes. O tempo abate-lhes a destruição, mas nunca, nunca as apaga ... sejam que partidas forem.

Todas correspondem a ausências, voluntárias ou não, de seres que fizeram parte integrante das nossas vidas, e se o fizeram, é porque foram importantes para nós e determinantes no nosso percurso.

E se o fizeram e deixaram de o fazer, subtrairam parte de nós, que sempre carregam com eles.
E sem um pedaço, por pequeno que seja, não estaremos nunca mais, inteiros !

Detesto que este meu espaço seja um lugar de correio ou aferição.
O que é facto, é que sendo um canto intimista onde fundamental e inevitavelmente veiculo emoções, estados de alma, sentimentos, acaba por o ser, digamos que à minha revelia.
Isso advém obviamente também, da transparência do que escrevo, do que digo, de como sempre me posiciono, da frontalidade, verdade e pouca inteligência que acabo por usar na exposição que faço da minha pessoa ( imprudentemente, reconheço às vezes ), defendendo-me pouco, e talvez perdendo, por isso.

O povo diz que "o mal e o bem, à cara vem" ...
A escrita é uma forma aproximada de "dar a cara", e como tal, é fácil que a minha, seja um barómetro do muito que se passa dentro de mim.
Às vezes arrependo-me e reflicto sobre isso ... outras, "borrifo-me" simplesmente, e "pairo" sobre essa sensação desconfortável, é verdade.
Contudo, escrever só por escrever, sobre temas avulsos, como que "por encomenda", como que "a metro", não é seguramente a "minha praia".
Por essa razão, nunca aceitei nenhum furo jornalístico, em colunas de opinião ou outras, que já me propuseram, ou sequer publiquei o que quer que fosse.
Em boa verdade, as palavras que por aqui largo, são meras folhas largadas ao vento, que exactamente por isso, não têm uma direcção definida, não são obrigadas a ir por aqui ou por ali ;  são livres, não se encaminham para nenhum lado, e destinam-se a ser destruídas e  perdidas no remoinho dessa mesma aragem ...

Tocam aqui e ali ;  farão sorrir alguns desprevenidos ( como aquele golpe de vento que nos levanta a saia, quando menos esperamos ) ; talvez levem alguns a apanhá-las, e curiosos queiram ver o que aquela folhinha que lhes esbarrou nas pernas, ou que poisava na relva ou no banco daquele jardim, continha ...

Não são mais que aquela folha de jornal esmaecida, fora de dia e de mês ... que o "sem abrigo" lê, naquele tempo sem pressa, que é a sua vida ...

Não são mais que aquela revista serôdia, que as pessoas largam junto aos contentores, depois de lida e esmiuçada ...  Pode ser que alguém ainda aproveite ... felizmente as letras não se gastam !...

Todos conhecemos aquela imagem ou frase feita, de "abrir um buraco na areia e falar lá para dentro", como forma de extravasar o que nos "entope", e que ninguém tem obrigação de escutar, aturar, sequer entender ...
E também, poucos teriam tempo para isso, porque hoje já não há tempo para grandes coisas ...
E depois, a areia cobre rapidamente qualquer buraco que nela se escave.  É "volátil", escorregadia, macia, movediça, instável ... e o buraco aberto, rapidamente se encerra, encerrando consigo os desabafos de quem os fez ...
Outras vezes, dar um grito no escuro também resolve o sufoco no coração.
E porquê no escuro??
Porque no escuro, ninguém vê donde vem, para onde vai ...  Perde-se anonimamente pelo "éter", transportando em si, toda a carga que nos perturba ou atormenta ...

Eu, escrevo ...

Às vezes resolve, outras não ;  umas vezes é terapêutico, outras simplesmente profiláctico ... outras, nem uma coisa nem outra ...
Contudo, tenho uma veleidade ou  ambição, devo  confessar, embora nunca venha a saber se se concretizará ...

Uma vez que todos os meus conteúdos coexistem em suporte de papel também, constituindo uma espécie de "colecção" muito pessoal, deixá-los-ei depois de mim, para os meus netos, que talvez possam um dia, quando tiverem idade madura, ter curiosidade em conhecer a avó que tiveram ;
uma avó meio estranha, reconheço, fora dos arquétipos ou padrões tradicionais, meio ensandecida e pouco convencional ;  rebelde sempre, contra-corrente também ...
Sempre no pico da alegria ou no maior fosso de sofrimento, com uma insatisfação permanente de Vida, uma exigência e uma busca imparável de felicidade ;  uma ingenuidade de criança ou uma ânsia adolescente, num corpo e numa mente de mulher madura ...

Digamos que será mesmo a única "herança" que verdadeiramente lhes deixarei, por genuína, "despida", autêntica, sem preço ou valor material ...

Exactamente e só, EU mesma, a nu, como se em cada post estivesse frente a um espelho mágico, que tivesse em todos os momentos, a capacidade de me ler até à alma !!!...

Anamar

sábado, 28 de julho de 2012

" TEMPO "


O tempo sem tempo ...
...  é aquele que passa e parece que não passa, porque não passa nunca !
É feito de dias e noites, e dias que são quase sempre noites.  É sempre um tempo de desespero, de desesperança, de esperar sem ter o quê.
Não é o tempo das Vidas, porque esse, ao contrário, corre tão rápido que nem temos tempo de o agarrar.
É o tempo da morte, porque essa é certa e chega depressa.
Aliás sempre está lá no virar de uma qualquer esquina de que nem nos tínhamos apercebido ...
e há também o tempo, que não dá tempo para viver o que quer que seja.
É enganador, faz-nos acreditar em dias de sol, e no máximo, há dias de arco-íris, porque sempre chove ao mesmo tempo.

O tempo em que rimos é tão curto, que não cabe no tempo sem tempo.  Esse, é aquele em que choramos ... e bolas, choramos quase sempre !...

Aquele que passa, espantosamente é um tempo de esquecimento.  Tem mata-borrão, ou melhor, tem mesmo borracha, e vai esbatendo, esbatendo, até que o que passa, já passou de vez, sempre contra a nossa vontade.
Só nos deixa restinhos, rabiscos, flores secas, pedrinhas que nunca secam, ou então as músicas, que numa vitrola partida, tocam, tocam exaustivamente, sempre as mesmas, como se a vitrola  se tivesse engasgado, ou então sadicamente é para nos magoarem bem, bem até ao fundo ...

O tempo que passa é um tempo sem piedade, que se ri de nós, promete Primaveras e Verões, e depois, quando já estamos quase convencidos, traz-nos Outonos e Invernos, e vai-se tornando no tal tempo sem tempo.
Mas depois é tão safado, que nunca nos deixa ficar os mesmos, por cada minuto do seu precioso existir ...  Não !... 
No minuto seguinte, conseguimos sempre estar mais amargos e doídos que no minuto anterior, e a droga é que os minutos fazem horas e dias e meses e anos ...
E, bom ... depois também já não temos vontade sequer de usar relógio, ou de olhar para as flores que já secaram mais ainda, nem para as pedras que não secaram, mas que estão cobertas do pó que nunca limpámos.

Os ouvidos endureceram de tal forma, que apesar dos decibéis acima do certo, não os alcançam, e a vitrola emudece de vez ...
E olhamos os sítios, os espaços, os objectos, e verificamos que eles já não fazem sentido, e até duvidamos que alguma vez o tivessem feito ...
E é quando começamos a pensar se não estivémos mesmo enlouquecidos, ou se foi o tempo sem tempo que nos deixou assim ...

E o que foi e parecia nunca poder deixar de o ser , deixa mesmo, e damos por nós desvairados, à procura na gaveta da mente, do que a gaveta do coração nos garante que estava lá ...
Lá, onde??!!...
Abanamos a mente, como num "shaker",  bem batida, a ver se o que está em baixo vem para cima e vice-versa, mas não !...
E a certa altura acreditamos que nunca houve gaivotas, nem céus azuis, nem pores-de-sol, nem mimosas em flor, nem mar de carneirinhos ...
Nós é que pensámos, e vimos tudo nun filme em 3D, em que Énya vinha ao nosso encontro pela sala fora, e nos cantava ao ouvido "Only time" !...

Estão a ver ??
Até Énya sabe que "só o tempo" sabe das coisas, e nós somos meros "aprendizes de feiticeiro" ...

E a estrada a percorrer é longa, o caminho muito, muito comprido, pelas matas, pelos mares, pelas florestas, com chuva impiedosa a açoitar-nos.
E vamos indo, mesmo que não pintemos o céu com estrelas, como ela também nos diz ...  e o tempo sem tempo, em caminho paralelo ali bem ao nosso lado !...
Se paramos, de cansaço, ele segue, e custamos a alcançá-lo, porque sempre nos leva a dianteira.
Nós tropeçamos muitas vezes, caímos vezes sem conta, mas ele não se compadece ... segue escorreito, porque não padece de pernas, alma e coração enfraquecidos ... simplesmente porque não os tem.

Até um determinado segundo, de um qualquer dia ( sempre quando ele quer, e porque tudo ocorre num escasso segundo ), em que nos barra a caminhada, nos espeta com um sinal de stop, até mesmo de sentido proibido ou de estrada sem saída, bem na nossa cara ;
e pronto, somos obrigados a estacar, porque dali para a frente não há mais saída ...
É tal qual aquela praia deserta que os meus pés descalços percorriam, percorriam pelo nascer do sol, e que os manglares cortavam lá ao fundo.
Dali para a frente ficava só o meu olhar perdido, que encompridava, encompridava ( a esmiuçar se para lá, ainda haveria tempo ), e o tic-tac que não era de nenhum relógio, mas simplesmente do pica-pau no tronco do coqueiro, que se reclinava para as águas mansas ... a fazer ninho ...

E pronto ...  Hoje estou assim ...

Talvez porque o tempo, o outro, esteja cinzento, chuvoso, dormente, desalentador, e eu pressinta que o tempo sem tempo que caminha ainda no trilho paralelo aqui mesmo ao meu lado, está aqui está a barrar-me a caminhada, e então, sem apelo nem agravo, vou ser obrigada a parar ...

Mas talvez então, eu já esteja tão entorpecida, tão abençoadamente exausta, tão inerte, que estará na altura certa para que o meu tempo deixe de verdade de ser TEMPO !!!...


Anamar

sexta-feira, 27 de julho de 2012

" A VITÓRIA "


   NOTA : Esta foto não é actual


A Vitória esteve comigo quase uma semana, estadia que por tão longa, foi de algum modo, inusitada.
Desta feita, colégios terminados, actividades de férias também, e o drama de muitos pais que ainda trabalham :  onde colocar os filhos?
No caso da minha filha, com três crianças, em que o mais velho tem onze anos e o mais novo, cinco, pior ainda.

Eu relaciono-me melhor com raparigas do que com rapazes, talvez por ter criado apenas filhas ;  como tal, amando os três por igual, sinto-me mais confortável no relacionamento com a miúda, que neste momento tem oito anos.

A Vitória, na sua pouca idade, é uma mulherzinha na postura, nas atitudes, mesmo nas conversas.
É cordata, pelo menos comigo não tem teimosias ou birras ( que talvez ainda fossem previsíveis e aceitáveis para os poucos anos que tem ), colabora se solicitada, conversa e também se entretém sem muitas exigências.
A minha casa é desprovida de grandes entretenimentos para crianças.
Existir, eles existem.  Foram guardados há muitos anos em arcas, estão na arrecadação, e nunca lhes mexi mais, a partir do momento em que deixaram de ter serventia, pela inexistência de crianças em casa ;
assim, existe apenas um armário com livros infantis, da mãe e da tia, lápis de cor, canetas de feltro, papéis para desenhar, claro e obviamente televisão, com aquelas séries intermináveis de que os miúdos se tornam dependentes.
Para além disso, arranjei um programa de cinema fora de casa, com as inevitáveis pipocas ( que compartilhámos a meias até que ambas ficámos "atafulhadas", e nos ríamos já do enjoo que sentíamos ), arranjei uma ida à piscina para uma tarde de brincadeira interminável ( só o frio nos correu de lá ), e também estava prevista a "minha" caminhada, coisa que a Vitória, desportista que é, teria adorado ... mas, deu-me uma famigerada preguiça, e acabei por a não encaixar no nosso "calendário de actividades" ...
Na sua próxima estadia comigo, proponho-me fazê-la !...

A Vitória é uma compincha ,  é desinibida, "enturma-se" facilmente, e interage extremamente bem, quer com crianças, quer com adultos.
O convívio com mais dois irmãos e respectivos amigos, a frequência do colégio, as actividades no Sporting, de todos eles também, e uma preocupação sistemática e atenta que os pais têm de os "despertar" para iniciativas culturais, e eventos interessantes que possam motivá-los, de acordo com as respectivas idades, juntando certamente, como é lógico, àquilo que de genético ela transporta, fazem dela uma criança extrovertida, faladora, obviamente simpática.

Tenho com ela, ou melhor, sinto dentro de mim uma ligação meio inexplicável e imperceptível, de empatia, que talvez não seja abusivo dizer, de "mulher para mulher" ou de "mulher para futura mulher", uma espécie de conivência de sentires, de cumplicidades, que até pode não vir a verificar-se ( porque sem dúvida é prematuro afirmá-lo, e futurologia não faço ), mas que objectivamente percepciono.

Não sendo a mãe, e ocupando portanto na "hierarquia familiar e afectiva", um lugar privilegiado, sinto uma disponibilidade de mente e de coração, mais descomprometida, menos cerceada, que é propiciadora sem dúvida, de uma aproximação bem real ao adulto que vai desabrochando dentro dela.

Percebo perfeitamente agora, como é diferente o estatuto de pais e de avós, e percebo perfeitamente a razão por que na Vida, e de uma forma geral, quase todos sempre estamos indelevelmente marcados por estes ...
O relacionamento é de facto específico, especial, bem diverso do que foi enquanto pais, e é real aquela afirmação meio complacente e humorística, de que o papel dos pais é educar ... o dos avós, "estragar" !...

Claro que este "estragar", refere-se à adição de "melaço" que os "pais com açúcar" ( como alguém com brilhantismo definiu os avós ) conferem a uma ligação, que mercê das circunstâncias inerentes à Vida, é mais liberta, mais descomprometida, mais indulgente, mais tolerante, de maior entrega, menos espartilhada e possuidora da experiência, da sabedoria, da dádiva, do desejo de deixar em boas mãos e passar adiante, tudo o que de bom e mau, a Vida nos ensinou.

É uma relação que beneficia de algo extraordinário, que enquanto pais, logicamente não pudémos deter ... que é Tempo.
Efectivamente, Tempo é o que não faltará aos avós ... Tempo é o que os avós terão de sobra, e o facto de o serem numa fase da Vida em que há "espaço" em demasia, por vezes, nas respectivas Vidas, os netos são também por isso, um factor equilibrante de que ambos, avós e netos, usufruirão !

Bom ... sei que a Vitória, ao que parece, gostou muito da estadia em casa desta avó que começará a conhecer melhor, espero, com todas as suas incoerências, incompletudes, defeitos e virtudes, senso e loucura, com preocupações logicamente pedagógicas e de formação, mas também permissiva e aberta aos pequenos disparates, que não são mais que prevaricações saudáveis ...

E isso, deixou-me profundamente feliz.

Vou tentar cultivar ao meu jeito, esta ponte de afecto entre nós, porque sinto que não estou a enganar-me ao expectar depositar nas suas mãos, a corporização daquele futuro que não tive, daquela Vida que não fui capaz de viver, daquela desejada "vingança" de existência ... em suma ... daquela "VITÓRIA" nos sonhos que eu só sonhei !!!...

Anamar

quinta-feira, 26 de julho de 2012

" DE NOVO ... "


Retomo aqui neste "canto", o psiquiatra  Pedro Afonso, de que coloquei um texto assaz interessante, há escassos dias.

Tive acesso a uma outra reflexão do mesmo profissional de saúde, sobre um tema que já abordei e explorei com alguma exaustão : As redes sociais na Net,  o papel que cada vez mais desempenham, e o espaço que ocupam  na vida dos cibernautas, de todas as idades e estratos sociais.

E porque é de facto um assunto que me mexe, e porque achei interessante a análise feita, que de algum modo corrobora a minha opinião a propósito ... deixo aqui o texto publicado pelo referido médico , para vosso conhecimento e reflexão.

Redes sociais não, obrigado


Pedro Afonso, Médico psiquiatra, Público,15-03-2010


Ninguém pode ficar indiferente ao enorme sucesso das redes sociais da Internet,
contando já com milhões de utilizadores. Mas que riscos e consequências estarão
ligadas a esta nova forma de relacionamento social virtual? Sem cair em
estereótipos, e em fundamentalismos redutores, julgo que há uma tendência neste
recente instrumento de relacionamento humano introduzido pela Internet.
Neste caso parece existir uma busca pela auto-valorização e uma necessidade
exibicionista de atenção e admiração. Esta última característica torna-se bem
visível pela forma como se arrecada "amigos", aos milhares, como se fossem
troféus de caça social. Portanto, na amizade, desvalorizou-se a qualidade para se
dar a primazia à quantidade, o que não é mais do que um reflexo da sociedade de
consumo nas relações sociais.
As relações sociais virtuais da Internet são bastante diferentes das relações sociais
reais. Alimentam-se fantasias e cada um mostra aquilo que tem de melhor: a
beleza, o êxito, as férias fantásticas, os momentos de felicidade, etc. Habitualmente
o indivíduo promove-se na rede social como uma pessoa de sucesso, expondo as
suas vitórias e ocultando propositadamente os seus fracassos. É nesta imensa
revista cor-de-rosa, irreal e fantasiosa, que as pessoas se relacionam umas com as
outras, evitando as regras da verdadeira rede social, bem mais complexa e difícil.
Seja como for, parece não existirem dúvidas de que se criou um certo consumismo
social, sem esforço, e acessível a alguns toques no teclado do computador. Porém,
as redes sociais da Internet, no sentido em que são redes virtuais e menos
complexas, podem surgir como uma forma de resistência à aquisição de uma
verdadeira aprendizagem social, promovendo a regressão e a imaturidade.
A amizade criada no mundo real demora tempo a consolidar-se e passa por
diversas provas que nada têm a ver com as pseudo-amizades do mundo virtual. Por
essa razão, nenhum relacionamento através do computador substituiu a
experiência da presença humana: a troca de olhares, a expressão facial, os gestos,
o tom de voz, etc.
As redes sociais favorecem o empobrecimento do relacionamento social - criandose
novas formas de solidão - porque as relações pessoais reais são mais ricas e
profundas.
Não se pode discutir as redes sociais da Internet sem falar em segurança. Por
diversas vezes, as polícias têm alertado para os perigos de se divulgarem
informações pessoais na rede. Por exemplo, uma vez colocada uma fotografia
pessoal na rede social, ela poderá ficar na Internet para sempre, perdendo-se por
completo o seu controlo. Curiosamente, este fenómeno reflecte um paradoxo.
Numa altura em que se investe cada vez mais em segurança, através da
videovigilância, alarmes, etc., na Internet as pessoas expõem-se cada vez mais,
abrindo as portas da sua vida privada, sem reflectir nos perigos que isso
representa.
Importa sublinhar que as redes sociais reflectem o que há de melhor e pior na
natureza humana, com a diferença de possibilitar aos indivíduos perturbados
psiquicamente - que existem em largo número em todas as sociedades - actuarem
facilmente dissimulados, diminuindo a possibilidade de serem detectados. As redes
sociais tornam-se assim uma ferramenta útil para as mais vis maquinações. Um
magnífico caldo de cultura para que várias mentes perigosas possam florescer e
movimentar-se facilmente na cobardia do anonimato, encorajados pela diminuição
dos vários mecanismos de prevenção e segurança de que a sociedade dispõe.
Espantosamente, milhões de pessoas passam cada vez mais tempo nesse mundo
virtual agarrados obsessivamente ao computador. Este é um sinal preocupante de
desumanização da nossa sociedade uma vez que esta emigração maciça para o
mundo virtual pode revelar-se como um início de psicose colectiva: como esta
realidade não é conveniente, as pessoas refugiam-se noutra imaginária.
O crescimento vertiginoso das redes sociais demonstra que o Homem, outrora
sonhador, com ideias e valores, está a capitular. Desistiu de lutar por uma
sociedade melhor, cedeu ao facilitismo, e renunciou viver neste mundo. Por tudo
isto, adaptando um slogan antigo, talvez valesse a pena dizer: redes sociais não,
obrigado.

Anamar

quarta-feira, 25 de julho de 2012

" LEVAR A CARTA A GARCIA "

Há pessoas que parece nunca terem crescido.

Confrontamo-nos por vezes, no nosso caminho, com cabelos embranquecidos que não tinham por que o estar, com posturas tão absolutamente "naïves", que nos pasmam.
São pessoas muitas e muitas vezes traquejadas na Vida, às vezes com uma escola de existência muito sofrida, com traumatismos existenciais que funcionaram da forma inversa, ou seja, em vez de conferirem uma maturidade "protegida", digamos assim, parece que a retiraram.

São eternos meninos grandes que parecem recusar-se a ficar adultos.
Indivíduos que sofreram uma regressão personalística, e não um avanço.
Creio que complicam em vez de simplificar, enchem-se de tarefas, avolumam outras ... tarefas sem fim, que nunca se dão feitas, mas que lhes "alimentam" a inquietude de espírito.
Mergulham em imbróglios complicados de resolver, mas se os não tiverem também não vivem ...
Os problemas nas suas cabeças, agigantam-se, porque se instala um imobilismo, um cansaço atroz e uma estagnação psicológica, que os tolhem mentalmente, os emperram psicologicamente, os indisponibilizam emocionalmente, os paralisam, convencendo-os contudo, que as soluções sempre aparecerão ... só que no dia seguinte ...

E esse dia seguinte, é um dia seguinte não se sabe de que semana, de que mês, de que ano !...
No entanto, essa convicção instala-lhes alguma paz no coração, enquanto nela vão acreditando.
Para eles sempre estará só numa questão de tempo, a resolução de determinados aspectos da Vida, quando, para quem está de fora e distanciado, é absolutamente claro, que essas posturas são absolutas "fugas para a frente", auto-justificações inconsistentes, conclusões e convicções infantis, contudo necessárias para viverem e minimamente se sustentarem, em termos de alguma estabilidade, e se se pode dizer, tranquilidade, ainda que a prazo ...

Em tempos, na minha escola, existiu um presidente do Conselho Directivo, que vivia a correr daqui para ali, carregando papéis nas mãos, numa afobação extrema.
Quando abordado, todos já sabíamos de cór, qual a frase resposta : "Agora não posso ... mais tarde ! Desculpa !"
A eficácia do seu desempenho enquanto por lá esteve, ficou muito a desejar ;  contudo, a personagem em causa envelheceu a olhos vistos, durante o seu período de vigência, e ninguém terá dúvidas que aquele homem sofria a bom sofrer, com as responsabilidades que lhe pesavam, que aquele homem se esforçava para um excelente desempenho, se embrulhava desesperadamente nos problemas ... e pior ... convencia-se que os resolvia ...

Eu entendo estas posturas de ingenuidade, como uma procura de auto-satisfação, ou  mesmo de uma "carícia" pessoal imprescindível ao próprio "ego", porque, sem nenhuma prosápia, esse indivíduo está convicto estar a fazer um bom trabalho, a desenvolver o esforço adequado a conferir-lhe sucesso no que faz ... em suma, que apresenta competência nos desempenhos.

Nada disto que afirmo vem imbuído de juízos de valor negativos, pejorativos, desabonatórios, sobre as pessoas em causa .

Falo em tese, da percepção que me fica das coisas, tão só !...
Aliás, quem seria eu para o fazer ??!!...

Penso que se trata de distúrbios de personalidade, quiçá instalados pelos traumatismos psicológicos a que a Vida os submeteu.
Penso que essas pessoas têm necessidade de se auto-convencer que são insubstitíveis, convencer-se o quão imprescindíveis são, enquanto apoios e pilares, na família, na sociedade, no Mundo, e de que este talvez "parasse", se elas desaparecessem ...

São pessoas de uma generosidade extrema.
São pessoas que colocam sempre os outros, e os problemas reais ou imaginários, à frente de si mesmos.
São pessoas que para aliviarem a carga dos demais, têm um espírito de entrega, esforço, dedicação, missão e dever, absolutamente exacerbados.
São pessoas que se anulam, são de uma abnegação incomensurável em prol de causas, de valores, de princípios, que convictamente defendem e por que pugnam

Para mim, tudo isto seria louvável, não o considerasse já patológico, perturbador, destruidor mesmo do próprio indivíduo, sendo que cada vez mais, o aliena em relação à realidade.

Conheço  de muito perto, casos que encaixam na perfeição neste "boneco" que aqui desenho.
Dividi a minha vida, de certo modo, exactamente com uma pessoa, cujo perfil se insere em parte neste modelo.
São indivíduos que sem dar conta, repito, sem  nenhuma  intencionalidade ou  má fé, subalternizam as capacidades dos que lhes estão perto ;  infantilizam mesmo os seus dependentes.
Por vezes cerceiam-lhes asas, porque afinal, na Vida, a necessidade impulsiona as pessoas, obriga-as a reagir, responsabiliza-as, valoriza-lhes capacidades.

Mas insisto, não presumo estar certa nesta minha forma de observação e análise ; não tenho a veleidade sequer, que corresponda a uma análise com grande correcção.
Não tenho formação científica neste âmbito.
Admito por isso, que estas conclusões talvez sejam atrevidas, possam mesmo constituir erros grosseiros ... espero que ofensivas ... não !!!
Elas resultam simplesmente, da sensibilidade que tenho das situações e do conhecimento das pessoas.

Para mim, trata-se dos tais seres, que existem na Vida, como costumo dizer, apenas para levarem a "Carta a Garcia" !!!...

Anamar

terça-feira, 24 de julho de 2012

PARA REFLECTIR ...

Mais uma vez este espaço se abre a um artigo digno de divulgação, tão lata quanto possível, e despoletador de profunda reflexão, penso.

Analisar, repensar, interpretar a "saúde mental dos portugueses" nos tempos que correm, com todos os considerandos que lhe são inerentes, e particularmente feita por um profissional de gabarito na área em causa ... urge !

Assim sendo, limito-me a colocar à vossa disposição este texto, que por certo alguns conhecerão, mas cujo conteúdo nunca será demais considerar..



Artigo de Pedro Afonso - Médico psiquiatra no Hospital Júlio de Matos


Transcrição do artigo do médico psiquiatra Pedro Afonso, publicado no
Público
.

"Alguns dedicam-se obsessivamente aos números e às estatísticas
esquecendo que a sociedade é feita de pessoas.

Recentemente, ficámos a saber, através do primeiro estudo
epidemiológico nacional de Saúde Mental, que Portugal é o país da
Europa com a maior prevalência de doenças mentais na população. No
último ano, um em cada cinco portugueses sofreu de uma doença
psiquiátrica (23%) e quase metade (43%) já teve uma destas
perturbações durante a vida.

Interessa-me a saúde mental dos portugueses porque assisto com
impotência a uma sociedade perturbada e doente em que violência,
urdida nos jogos e na televisão, faz parte da ração diária das
crianças e adolescentes. Neste redil de insanidade, vejo jovens
infantilizados incapazes de construírem um projecto de vida, escravos
dos seus insaciáveis desejos e adulados por pais que satisfazem todos
os seus caprichos, expiando uma culpa muitas vezes imaginária. Na
escola, estes jovens adquiriram um estatuto de semideus, pois todos
terão de fazer um esforço sobrenatural para lhes imprimirem a vontade
de adquirir conhecimentos, ainda que estes não o desejem. É natural
que assim seja, dado que a actual sociedade os inebria de direitos,
criando-lhes a ilusão absurda de que podem ser mestres de si próprios.

Interessa-me a saúde mental dos portugueses porque, nos últimos quinze
anos, o divórcio quintuplicou, alcançando 60 divórcios por cada 100
casamentos (dados de 2008). As crises conjugais são também um reflexo
das crises sociais. Se não houver vínculos estáveis entre seres
humanos não existe uma sociedade forte, capaz de criar empresas
sólidas e fomentar a prosperidade. Enquanto o legislador se entretém
maquinalmente a produzir leis que entronizam o divórcio sem culpa,
deparo-me com mulheres compungidas, reféns do estado de alma dos
ex-cônjuges para lhes garantirem o pagamento da miserável pensão de
alimentos.

Interessa-me a saúde mental dos portugueses porque se torna cada vez
mais difícil, para quem tem filhos, conciliar o trabalho e a família.
Nas empresas, os directores insanos consideram que a presença
prolongada no trabalho é sinónimo de maior compromisso e
produtividade. Portanto é fácil perceber que, para quem perde cerca de
três horas nas deslocações diárias entre o trabalho, a escola e a
casa, seja difícil ter tempo para os filhos. Recordo o rosto de uma
mãe marejado de lágrimas e com o coração dilacerado por andar tão
cansada que quase se tornou impossível brincar com o seu filho de três
anos.

Interessa-me a saúde mental dos portugueses porque a taxa de
desemprego em Portugal afecta mais de meio milhão de cidadãos. Tenho
presenciado muitos casos de homens e mulheres que, humilhados pela
falta de trabalho, se sentem rendidos e impotentes perante a maldição
da pobreza. Observo as suas mãos, calejadas pelo trabalho manual,
tornadas inúteis, segurando um papel encardido da Segurança Social.

Interessa-me a saúde mental dos portugueses porque é difícil aceitar
que alguém sobreviva dignamente com pouco mais de 600 euros por mês,
enquanto outros, sem mérito e trabalho, se dedicam impunemente à
actividade da pilhagem do erário público. Fito com assombro e
complacência os olhos de revolta daqueles que estão cansados de
escutar repetidamente que é necessário fazer mais sacrifícios quando
já há muito foram dizimados pela praga da miséria.

Finalmente, interessa-me a saúde mental de alguns portugueses com
responsabilidades governativas porque se dedicam obsessivamente aos
números e às estatísticas esquecendo que a sociedade é feita de
pessoas. Entretanto, com a sua displicência e inépcia, construíram um
mecanismo oleado que vai inexoravelmente triturando as mentes sãs de
um povo, criando condições sociais que favorecem uma decadência
neuronal colectiva, multiplicando, deste modo, as doenças mentais.

E hesito em prescrever antidepressivos e ansiolíticos a quem tem o
estômago vazio e a cabeça cheia de promessas de uma justiça que se
há-de concretizar; e luto contra o demónio do desespero, mas sinto uma
inquietação culposa diante destes rostos que me visitam diariamente."

Pedro Afonso
Médico psiquiatra

Anamar

segunda-feira, 23 de julho de 2012

" COISAS QUE NÃO SE EXPLICAM "

"Afasta-te, para que sintam a tua falta ... Não tanto, que esqueçam que tu existes..."

"Só faz falta, quem está ..."

ou ... "Quem desaparece, esquece" ... diria a minha mãe !

Frases que significam a mesma coisa, ideias que estão imbuídas do mesmo espírito.
Baseiam-se na velha máxima que só sentimos falta do que não temos, que só valorizamos o que, e quando alguma coisa nos falta ...

O ser humano é um "bicho" absolutamente estranho, utópico e muitas vezes ininteligível nas suas posturas, incoerente nos seus sentimentos.
Por que temos tanta dificuldade, parece, em aferir o nosso coração, em auscultar o nosso próprio interior ?!

Por que precisamos que se distancie de nós o objecto desejado, para percebermos como é desejado mesmo, para avaliarmos como não podemos prescindir dele, para entendermos a sua real importância nas nossas vidas?!

Parece um contra-senso ...

Ou fará parte da eterna insatisfação ou dúvida metódica do Homem?!

Ou será que a sua insegurança é de tal ordem, que precise sistematicamente pôr à prova os afectos, a capacidade de resistência à sua ausência, como se quisesse testar o seu lado asceta, e dessa forma recusasse para si próprio, o lado humano ?!

Ou será como se quisesse provar a si mesmo, ser um ser "superior", e não vulnerável ou manipulável pelos sentimentos, achando que estes o enfraquecem e lhe tiram defesas ?!

Tudo isto é estranho.  Tudo isto faz parte de um hermetismo do domínio do psicológico, dos diferentes níveis do consciente, ou tão só de um conhecimento da sua própria entidade, e portanto do que na realidade sente e experimenta ...
Parece um masoquismo esquisito, uma auto-punição procurada, um desequilíbrio inexplicável, uma aferição dispensável, e do meu ponto de vista, suicida !...

Os brasileiros, que utilizam um português "ajeitado", às vezes bem mais expressivo, têm uma frase que traduz isto mesmo : "Vamos dar um tempo !..."

Só que tempo é tempo, e o transcurso do mesmo, não só altera as pessoas, como os sentimentos, como as vivências ... porque afinal, ninguém se consegue pôr entre parêntesis, enquanto esse mesmo tempo vai seguindo o seu caminho.
Ninguém se fossiliza ou se coloca em "banho-maria" ... e o que somos hoje, não é mais o que fomos ontem, e também não o que seremos amanhã.
E esse interregno forjado, acarreta o sério risco de que, quando as pessoas se reencontrarem, nenhuma delas esteja mais lá, porque não sendo mais as mesmas, serão dois desconhecidos cara a cara, com todas as  consequências inerentes.

Um distanciamento físico acarreta forçosamente um distanciamento psicológico, afectivo e emocional, e instala maus estares, mágoas, dúvidas, dores, ressentimentos, inseguranças, que muitas vezes nunca mais são passíveis de serem ultrapassados ...

Do meu ponto de vista, é como brincar com o fogo !...

Tenho para mim, que "dar o tal tempo", é um risco extremamento sério, que pode redundar em "desgraça" irreversível ...
Deveríamos estar bem conscientes disso, creio, assumindo obviamente, se o defendermos e praticarmos, o ónus total da opção tomada !...

Anamar