quinta-feira, 21 de maio de 2009

"AS VERDADEIRAS CAIXINHAS DE SURPRESAS"



Um dos maiores quebra-cabeças na minha vida é a arrumação, ou o simples "passeio" por uma gaveta.

Quer vá no intuito de procurar algo que o tempo já só me aponta como lógico estar naquela gaveta, quer deambule em "romagem" de alma e coração por aquele interior, onde sempre coube mais alguma coisa para mais tarde recordar, é sempre uma real odisseia!

Sim, porque acredito que cada pequena coisa que um dia ali foi parar, não é mais do que um pedaço de mim mesma, um pedaço da minha estória, bem ou mal contada, arquivada ou pendurada por resolver, com cheiro a alfazema dos campos ou cheiro fétido à podridão do não enterrado...

Aconteceu isso hoje, e de entre tudo o que de lá "saltou", ainda que sem pedir licença, feita uma "caixinha de surpresas", houve uma pequena tira com não mais de doze por dois centímetros, recortada de um jornal, revista, sei lá...amarelecida do tempo, onde cabiam apenas cinco linhas escritas, quando, como e por quem, não sei...que transcrevo aqui, e me pararam longamente uma outra vez, me puseram a pensar e a achar que o que naquele papel tinha sido colocado, o tinha sido por alguém, com uma forma de sentir e se exprimir, coladinha à minha...

"Nada sei sobre os mecanismos da memória. Não sei onde se registam os acontecimentos que nos impressionaram. Acho que o coração determina os arquivos onde se guardam as vivências. Algures, numa vasta zona nebulosa da galáxia dos afectos. Eventualmente para os trazer de volta vivos e obrigatórios ou os desfocar suavemente até se perderem em remotas imagens no correr do tempo. Uma questão de defesa e sobrevivência da alma afectiva ou um imperativo de consciência."

Por isso é que, cheias as arcas e baús, cheias as gavetas e as malas, eu tenho que possuir de facto, um coração e uma memória, onde as "galáxias dos afectos", onde os ficheiros e os arquivos da vida, ganhem ninho de eternidade.

Porque dia após dia, o tempo implacável e insensível, leva-nos por pirraça, a deixá-los entreabertos, para que tudo se esfume, e um dia, quando a nossa "caixinha de surpresas" for aberta, sentimos aquele soco no estômago, como quando constatamos que um ficheiro que amávamos e guardávamos religiosamente como um tesouro, está afinal vazio no nosso computador...

Anamar

sábado, 16 de maio de 2009

"O RAMALHETE RUBRO DAS PAPOILAS"




"Eu canto o mês de Maio , ó meu amigo..." - assim dizia Adriano.

Raiava o sol e a minha avó irrompia pelo quarto dentro. No bolso do avental, tantas amêndoas da Páscoa recente, quantos os netos que nessa madrugada do romper de Maio haviam dormido naquela casa-mãe.

Gente gaiata, de brincadeiras tardias, sono a carregar sobre a madrugada, dormia a sono solto.
"Que mania aquela!" - pensava eu. "Por mais que viva não vou entender nunca!"

E a sua voz, de quem já tem à vontade meio dia de trabalho em cima do pêlo, não dava chances, por mais súplicas ou pedidos de apelo que houvesse.
"Vá meninos...vamos lá comer a amêndoa, senão ficam com o Maio o ano inteiro. Não se pode deixar entrar o Maio!!"

Entrar o Maio, era sinal de preguiça. Quem o deixasse entrar, seria tomado de uma preguiça incontrolável por todo o ano, e por isso havia que "rolhar" as "entradas" ou "saídas" (como queiram), do corpo, para que tal "maldição" não se apossasse da gente nova, já de si tão dada a preguiças naturais...
Esse era o papel da amêndoa...
Ainda hoje, morta a minha avó há quarenta anos, a minha mãe não deixa passar um só primeiro de Maio que não me pergunte, no primeiro telefonema da manhã: "Então, deixaste entrar o Maio?"...
Oh mulherzinha aquela! Vá lá ter uma memória destas aos oitenta e oito anos!!!
E sempre lhe cheira a heresia, se por acaso, pressente que aí p'las onze ainda estou em vale de lençóis!...

Os meus avós já foram há muito, a casa-mãe daquele Alentejo que albergava os muitos que então éramos, também já não é nossa...mas o Maio sempre se me associa a memórias doces.

Na próxima quinta-feira, 21 este ano, Dia da Ascenção no calendário litúrgico, é um desses dias em que recupero um pouco a minha infância.
"Quinta-feira da Espiga"...e logo me revejo a sépia descolorida, de tranças, soquetes, vestidinho de roda e toda a charneca florida à minha frente...

Maio, tradicionalmente, e para mais no sul, significava já, temperaturas veranis, cheiros adocicados nos campos, vestidos de branco, amarelo, roxos e vermelhos.
Maio, era o mês, em que, junto com a espiga, se traziam para enfeitar as casas, braçadas de giestas, douradas e cheirosas, despretensiosas e singelas, mas rainhas num aroma intenso - as maias.
Quinta feira da espiga era dia de agitação entre a criançada, que só visto! Era dia de pic-nic nos campos, debaixo das oliveiras ou sobreiros, com todo aquele "jardim" em que se torna a charneca em flor do meu Alentejo.

E lá íamos, apetrechados de coisas para brincar, a corda para saltar, o arco do hula-hoop, com os avós, os pais, os tios, mas sobretudo a "canalha" que éramos nós, primos de idades próximas, danados p'ra brincadeira e para nos deliciarmos com o farnel meticulosamente carregado de mimos, que os adultos transportavam.
E lá íamos apanhar a "espiga", que duraria na cozinha ou na dispensa de um ano a outro, como bom presságio de abundância, felicidade e alegria.



E era ver quem fazia o ramalhete mais bonito e criativo.
Tinha ele três espigas de trigo, tiradas da seara ali aos nossos pés, sinal de que não faltaria o pão na mesa, um ramo de oliveira que simbolizava o azeite, três malmequeres amarelos (ouro), três malmequeres brancos (prata), e para lá de todas as florzinhas singelas que encontrássemos pelos campos, que levariam a alegria que iria abençoar aquela casa, como o alecrim que transporta em si saúde e força...um ramalhete rubro de papoilas, que são o amor e a vida...

E sempre foi assim, enquanto o Maio foi Maio, enquanto eu fui criança, quando havia ainda a preocupação de fazer passar adiante as pequenas coisas que faziam a vida simples das pessoas...

Anamar

sexta-feira, 15 de maio de 2009

"A QUEDA DE UM ANJO"



E dizia-me ela de soslaio, entre dois tragos de café, na remota esperança que o sol desse as caras:
"Há fases na vida em que não bastando tudo aquilo a que temos "direito", ainda mais uns acrescimozitos nos povoam as mentes.
E mesmo lutando por vezes contra a indisponibilidade temporal, lutando contra a correria ou a má distribuição dos "que fazeres", chegam, instalam-se e não desgrudam"...

Levantei os olhos de uns pardais desafiadores que "penicavam" migalhas, cada vez mais perto, e olhei-a...curiosa já.

"Eu nisso, sou perita. Acho mesmo, que especialista!
Seja Inverno, porque chove e está carregado, seja Outono porque os dias são introspectivos e pesados, seja Verão...já não sei bem porquê...não consigo achar a mínima piada a "isto", e como tal, alegria, satisfação, plenitude, não são o meu "bilhete premiado!!!
Devo ser um espécime insuportável, intragável, "indigerível", sem solução à vista, sem terapia previsível, sem cura provável...uma "chata de galochas"...isso sim, como dizem os brazucas"!

Não entendia ainda aquele discurso de rajada, mas pressentia que vinha lá "chumbo grosso", pois os olhos dela vidravam de lágrimas próximas.

"Desta vez, trata-se da queda de um anjo...estás a ver??"

Embora cada vez visse menos, dei-me um ar sério e disse:"hum hum...claro" - e esperei.

"Um anjo, como o nome indica, é algo etéreo, algo perfeito, algo sem mácula, algo acima, muito acima de tudo o que esperaríamos, desejaríamos, sonharíamos...
Um anjo, como o nome indica, é uma figura irreal, conceptualizada normalmente por alguém sofredor, uma mente carente, por um ser que está na vida..."de menos"...entendes?
Um anjo realmente não passará de um sonho, quantas vezes criado, alimentado, inventado por quem o criou...
Assim uma espécie de um Pinóquio criado por um Gepeto crédulo, que o tornou gente e o amou, sabes?"...

Apurei os instintos, esqueci os pardais, esfriei o café e prendi-me àquela "torrente" que não parecia poder parar.

"Todos mais ou menos, por necessidade, dependência, afecto, desejo, paixão, razão de vida...sobrevivência, criamos os nossos próprios "anjos", que descem de um qualquer paraíso, e se tornam gente no meio em que vivemos (ainda por cima, querendo fazê-lo de uma forma normal e lógica), a quem passamos a amar, e pior, a quem passamos a imputar uma responsabilidade que não têm, nem podem ter...que é, serem efectivamente "anjos" perfeitos, completos, tal como os concebemos, os acreditámos, tal como a "obra" é olhada desveladamente pelo criador...

Aqui, já se descortinava na totalidade, o nó que lhe sufocava a garganta e as lágrimas também desciam sem nenhuma contenção por aquele rosto misto amargura, raiva, cansaço, desânimo...sendo ao mesmo tempo um rosto infantil de criança, surpresa por algo que não entendia...
Aqui, já eu tinha a cabeça em rodopio, já me "embrulhava" toda, em busca do que dissesse, do que pudesse dizer e a não saber dizer nada...
Nos meus ouvidos ecoavam - "entendes?" "percebes?" "sabes como é?"...
Fungando, soluçando, esquecida de tudo o que girava em torno de nós, esquecida da rua, das gentes, dos carros, da cidade...terminou:

"E quando constatamos a utopia que foi, ver a ficção que criámos, quando apercebemos a revolta que sentimos (sem razão), quando sentimos a fraude que experimentámos (que o não foi, mas acabou connosco), quando sentimos uma injustiça atroz, até por injustiçar quem não nos pediu para ser anjo nas nossas vidas, quando sentimos a agonia que é acordar finalmente, e perceber que o sonho não era sonho, mas se aproximou mais de um pesadelo...e que daquele "anjo", nem as "asas" sobraram...aí sim, é que percebemos que só podemos estar profundamente doentes"!!!...

O meu silêncio era sepulcral...
Como eu entendia!! Como eu percebia!! Como eu sabia como era, essa coisa de quedas de anjos!!...

Anamar

sexta-feira, 8 de maio de 2009

"...para uma emergência tua!..."

O meu afastamento definitivo, profissionalmente falando (reparem que não pronuncio "aposentação"), continua a mexer-me, a desestabilizar-me, a entristecer-me, a deixar-me doente, sobretudo mas não só, na alma.

Sim, porque eu acredito que os males da alma induzem males do corpo...

Por isso hoje rumei uma vez mais à CGA, a fim de esclarecer o inesclarecível, ou me certificar afinal de nada de novo, a não ser, confirmar quão parcos são os proventos com que terei de viver no resto dos dias que me forem concedidos (isto, se atentarmos ao que se lê nos jornais todos os dias, que tão escandalosamente nos deixam boquiabertos com o chorudo e a multiplicidade de pensões atribuídas, só porque...sim....)

Tirei senha, sentei-me, olhei à volta em pormenor, as pessoas, os seus semblantes, os seus ares desanimados na grande generalidade...
Sim, porque poderiam ser ares esperançosos, ares de alívio, ares auspiciosos, como quem afinal irá encetar uma nova vida que não terá/deverá ser menos meritória, menos válida, menos feliz, menos gratificante.
Ao contrário, em condições normais, este "abrir de porta" deveria conduzir o ser humano a merecidas e desejadas vivências, nunca consumadas por falta de tempo, a experiências até então apenas sonhadas, a um tempo de liberdade acrescida, que propicia criatividade, possibilidade de fruição de alguma "desresponsabilização" de tarefas que o ocuparam grande parte da vida...criados que estão os filhos, e netos com quem cuide deles preferencialmente.

Mas não...aqueles rostos, incluindo o meu, certamente (não me via ao espelho mas sabia-me tensa), eram efectivamente de cansaço e desânimo.
Havia ali tristeza naquela sala enorme, como se fosse uma antecâmara de algo muito desagradável e incerto...
E não me digam (porque não acredito), que era mágoa pela profissão a deixar, apreensão pelo que se estava largando para trás, já saudade de tudo de que se prescindira em função "daquele" sacerdócio...saudade da alegria partilhada, da esperança acompanhada, da felicidade pelos êxitos e tristeza pelos inêxitos das gerações e gerações a quem fomos dando ao longo dos tempos, uma "mãozinha" na busca do caminho que procuravam...

Esqueci de dizer que a "população" daquela sala, era, senão total, maioritariamente de docentes...percebia-se, via-se, ouvia-se...

Na fila por detrás de mim, estavam duas senhoras, colegas de profissão.
Não as olhei porque não fui capaz.
Conversavam baixinho, aguardando que o número do visor as chamasse a um dos atendimentos.
Vou tentar repetir o mais fielmente possível, o teor do diálogo, pois apesar de ser em surdina, era audível aos meus ouvidos e era devastador no eco que me foi fazendo no coração.

Dizia uma: "Ora bem, tanto para a luz, tanto para a água e gás... NET, tu não tens, portanto não tens isso para pagar (e iam aparentemente somando parcelas num qualquer papel). Mais ou menos, quanto gastas por dia em alimentação?..."Sim, mas junta aí...tanto para a empregada..." "Este aqui, fica assim para uma emergência tua, estás a ver?"...

Fui salva pelo "gongo" que é como quem diz, pelo "pi" que anunciava o meu número 181, e pulei dali para fora, sentindo ter levado uma marretada na cabeça, num misto de alívio súbito, com um confusionismo mental que advém sempre de qualquer estado de choque, e penso que caminhei tipo "autómato" até ao guichet 10, onde, eu acho, quase já não saber o que ia perguntar, tal era a "branca" que se me estava a instalar...

Estou incomodada até agora, estou triste até agora, tenho vontade de chorar, estou amarfanhada, estou defraudada, um pouco morta por dentro.

E pergunto-me: "É isto que merece alguém, qualquer um afinal, ao fim de uma vida, ao fim de uma entrega (em detrimento, quantas vezes, da sua vida pessoal e familiar), ao fim de tanta aposta, tanto esforço, tanto sonho (sim, porque um professor sonhou e muito, enquanto o foi)...é isto??!!...
Ter de contar os parcos tostões, assim, a este nível, da conta da luz à do gás, passando pelo hipotético sobrante para "uma emergência"??!!...


Eu falei em "afastamento definitivo da minha vida profissional" e não em aposentação, como dizia no início...
É que, "aposentação" parece encerrar de facto, em si, por todas as razões, uma carga tão negativa, tão aviltante, tão humilhante, decepcionante, indigna e triste...que até parece uma aposentação, não de uma profissão...mas sim, uma aposentação da própria VIDA!!!...

Anamar

sexta-feira, 1 de maio de 2009

A "CHATICE" QUE É ATURAR-ME...ou a história do copo meio-cheio ou meio-vazio



Hoje, um radioso dia com que Maio nos presenteou, um sol luminoso, um céu de um azul espectacular, meio dia...e eu na cama a aninhar-me e a pensar (sim...porque o sono já não era logicamente muito...): "Quem dera estivesse a chover. Apetecia-me tanto que o dia lá fora estivesse cinza plúmbeo, chovesse e só nos apetecesse ficar por aqui mesmo!!!!..."

Logo eu, que vivo do sol e que me "digo" girassol e não margarida, porque o persigo até que ele durma!...

Bom, aí ocorreu-me uma amiga muito engraçada que eu tenho, e me costuma dizer: "Eu farto-me de mim....e hiberno. Mas aí, há um dia em que eu digo: chega! Já não me aguento!!...e pronto, desse dia em frente, o "astral" vira"!!!...

Lembrei depois um outro amigo que me diz: "Quem tem vagar...faz colheres! Tens demasiado tempo para "criares", "inventares", fazeres os filmes e sofreres com eles!!"

A seguir, lembrei alguém, que muitos anos ao longo da vida me "buzinou" aos ouvidos: "Tu estás é mal habituada...mimam-te, resolvem-te as dificuldades, atapetam-te a vida!!"

Mais à frente pensei na minha filha mais velha que me diz: " Quais são os teus reais problemas? Deverias experimentar era ter isto...e mais aquilo...a passar por aqui, e por ali....bla-bla-bla...para saberes como é!!"

A seguir, "desfilou" o meu colega Orlando, que me dizia num destes dias (enquanto aguardávamos entediosamente que preceitos do meu computador se cumprissem), verificar que os jovens de hoje não lutam, não se esforçam, não valorizam...(nada que eu não saiba, não veja todos os dias, não critique..."Bem prega Frei Tomás....")

Que por isso mesmo a crise instalada, é muito mais de rumos, de nortes, de vidas, de metas a atingir... criada por uma sociedade cujos valores estão muito acima do razoável, do lógico, do admissível...o que lhes torna tudo excessivamente enjoativo...
Uma crise, de que os próprios pais parecem não se dar conta, gigantescamente maior que a outra, que nos assombra...

Obviamente, "vieram" também os meus pais, que, de acordo com os seus horizontes, limitados a todos os níveis infelizmente, de acordo com as suas melhores convicções, de acordo com a época, a cultura, até a idade de que dispunham, aquilo de que foram capazes, sempre acreditaram estar a fazer o seu melhor, no sacerdócio que é a educação e a orientação de um filho para a vida, quando de facto, me rodearam de tudo e de muito mais do que eu precisava para vivê-la...
E por isso desaprendi, ou nem sequer aprendi, como fazê-lo!

Por fim, veio-me aquela máxima, que nos diz que sempre se pode ver tudo por dois lados: "um copo pode estar sempre meio cheio, ou meio vazio", depende de como o vejamos, depende da "garra" com que o agarramos, depende da nossa força interior, do nosso crer, da nossa auto-estima, até...da nossa necessidade!

E foi aí que saltei da cama (não direi eufórica...nem lá perto...),abri a janela de par em par, encarei o sol e achei que afinal era bom ele estar lá e não haver nuvens no céu, resolvi ir ao cabeleireiro, e comecei a treinar a tolerância comigo mesma, e apesar dos pesares, a não me achar uma "bosta" tão grande, quanto nos piores dias me acho!...

Anamar

sexta-feira, 24 de abril de 2009

"QUANDO O RUBRO VESTE A NEGRO"



Quase 25 de Abril outra vez...
Outra vez, não!... 25 de Abril só foi aquele...
Não sei se o vivi, não sei se o sonhei, não sei se vista negro por ele...

Palavras?...trinta e cinco anos depois...secaram na garganta...
Fé e esperança, aquelas que nos levaram loucos às ruas, e em que todos eram um e um tinha a alma de todos...terão mesmo existido??!!

A "fraude" não merece referências, de triste que é...e hoje eu sinto o meu país defraudado, aviltado, espezinhado, amarfanhado...e eu, junta com ele!...

Por isso tudo, pela mágoa e pela decepção que me invadem... por aquela alvorada ter escurecido tão rápido... por aquele sonho ter estiolado, como os cravos rubros às braçadas, secam pisados no chão...apenas vos deixo o meu 25 de Abril de HOJE...sentido por mim, pelas palavras de alguns......(bem-hajas Lena)

"Na primeira noite, eles se aproximam e colhem uma flor de nosso jardim.
E não dizemos nada.
Na segunda noite, já não se escondem, pisam as flores, matam nosso cão.
E não dizemos nada.
Até que um dia, o mais frágil deles, entra sozinho em nossa casa, rouba-nos a lua, e, conhecendo nosso medo, arranca-nos a voz da garganta.
E porque não dissemos nada, já não podemos dizer nada."


Maiakovski
Poeta russo "suicidado" após a revolução de Lenin… escreveu isto, ainda no início  do século XX


Primeiro levaram os negros
Mas não me importei com isso.
Eu não era negro
Em seguida levaram alguns operários
Mas não me importei com isso
Eu também não era operário
Depois prenderam os miseráveis
Mas não me importei com isso
Porque eu não sou miserável
Depois agarraram uns desempregados
Mas como tenho meu emprego
Também não me importei
Agora estão me levando
Mas já é tarde.
Como eu não me importei com ninguém
Ninguém se importa comigo.

Bertold Brecht (1898-1956)

Um dia vieram e levaram meu vizinho que era judeu.
Como não sou judeu, não me incomodei.
No dia seguinte, vieram e levaram meu outro vizinho que era comunista.
Como não sou comunista, não me incomodei .
No terceiro dia vieram e levaram meu vizinho católico.
Como não sou católico, não me incomodei.
No quarto dia, vieram e me levaram;
já não havia mais ninguém para reclamar...

Martin Niemöller, 1933 - símbolo da resistência aos nazistas.

Primeiro eles roubaram nos sinais, mas não fui eu a vítima,
Depois incendiaram os ônibus, mas eu não estava neles;
Depois fecharam ruas, onde não moro;
Fecharam então o portão da favela, que não habito;
Em seguida arrastaram até a morte uma criança, que não era meu filho...


Cláudio Humberto, em 09 FEV 2007


O que os outros disseram, foi depois de ler Maiakovski.
Incrível é que, após mais de cem anos, ainda nos encontremos tão desamparados, inertes, e submetidos aos caprichos da ruína moral dos poderes governantes, que vampirizam o erário, aniquilam as instituições, e deixam aos cidadãos os ossos roídos e o direito ao silêncio : porque a palavra, há muito se tornou inútil…

- até quando?...

Anamar

terça-feira, 21 de abril de 2009

"DOÇURA... ou necessidade dela"

Apenas porque me apeteceu!!...








Anamar

"O LADO LUNAR"



Todos os sábados de manhã...
(de manhã é "apelido", já que os meus pequenos almoços diariamente tomam os lugares de almoços, tal a desgovernação horária, que faz parte duma desgovernação bem mais ampla, que é de facto, a desgovernação da minha vida...)
Na verdade, desde que os encargos, as responsabilidades, as "obrigações" (como diria a minha mãe), com terceiros, cessaram, anarquizei e subverti completa e até negativamente, reconheço, os meus hábitos...todos eles.
Durmo ao sabor do sono, como ao sabor da fome, cortei amarras com regras socialmente estabelecidas com que as pessoas se regem.

É por um lado uma libertação, mas por outro, para lá da tal anarquia que se impregna por debaixo da pele, resulta num prejuízo em termos qualitativos para a saúde e se calhar para o equilíbrio...
É que, de repente, tudo fica talvez aleatório demais...

Bom, mas eu dizia que todos os sábados, o sr. Gonçalves do Escudeiro, me põe à frente da sandocha e do galão, uma daquelas revistas que acompanham quase sempre ao fim de semana, os diários publicados.

Invariavelmente "vasculho-a" com alguma calma, privilegiando este que outro, artigo ou crónica.
É uma leitura "soft", já que, das notícias pegajosas da crise, às não menos enfadonhas notícias de outras quantas desgraças ou calamidades, estamos todos nós saturados, creio, ao longo da semana.

E antes que queime o último neurónio de serviço com as politiquices irresolúveis, os descalabros da economia, a mediocridade fétida das desonestidades, compadrios, imoralidades que por aí grassam e incertezas sufocantes de futuro...eu quero mesmo é uma leitura tipo "Carochinha e João Ratão" que é como quem diz....que não me chateie, que eu já tenho a minha dose!!!!

Sendo assim,sempre tenho debaixo de olho alguns artigos, escritos igualmente por autores também já por mim referenciados.

Uma frase, numa dessas crónicas que intencionalmente não refiro, saltou-me aos olhos e fixou-se-me na mente, num destes fins de semana recentes : "Dormir numa cama que range é tão diferente de ter um passado a meias!"

Ora bem, essa frase, que tem obviamente uma conotação algo simbólica, fez-me reflectir na facilidade com que hoje em dia (e não pretendo ser moralista ou puritana, mas tão somente objectiva), se "pula" de facto, de cama que range para cama que range...ou seja, se descarta com toda a facilidade o conteúdo, muito mais que o continente...

Confunde-me atrozmente o imediatismo, o descompromisso, o descartável, a mácula que nunca fica e já nem mácula é...a insignificância do que deveria ser partilha, a redução a zero e a desvalorização total, gratuita, desobrigada...por vezes nem em nome de um prazer que desafia...a maioria das vezes por um acaso, porque calhou, porque já nem se sabia bem...porque..."qual é o mal?" porque amanhã é outro dia, outros rostos, outros fins de semana, outros copos, outras camas a ranger....

Ter um passado a meias, ainda que um "passado-presente" curto, ter meia dúzia de tretas em comum, capazes de fazer estória...uma estória que um dia vire passado a sério...

Ter linguagens que se toquem, cumplicidades que se completem, gostar de "ouvir a mesma canção" (como o Rui diz), olhar com olhos próximos o mesmo pôr-de-sol, saber explicar o que nos vai dentro, sem abrir a boca, apenas porque os olhares se flagraram...

Acreditar, mesmo que saibamos não passar de ingenuidade serôdia, num futuro qualquer, num projecto qualquer, numa realização qualquer ainda que estejamos fartos de saber ser tão somente um resquício de uma adolescência que não se quer deixar partir...

aí sim ...seria um tesouro inestimável (que ainda acredito ansiarmos dentro de nós), seria o desiderato mais merecedor para qualquer ser humano...embora cada vez mais, pareça ser algo utópico, algo inalcançável, algo que mais e mais vai ficando a anos-luz de um vazio quase generalizado, cuja falta, hoje em dia, a maior parte das pessoas parece já nem se dar conta...

Que me corrijam se estou errada, cruelmente enganada ou exageradamente julgadora.
Também isto eu acho ser mais um sinal deste tempo de correntes sem rumo, de vidas ao Deus dará, de vazios gélidos que nos vão irreversivelmente petrificando!!

Anamar

sábado, 18 de abril de 2009

"ESTA ESTRANHA RELAÇÃO..."



Mais um sábado de Abril a honrar Abril...
O virtual deixou de o ser e tornou-se desconfortavelmente real mesmo, ou dito de outro modo, o Verão virtual que nos surpreendeu e quase convenceu há algumas semanas atrás, tornou-se no real "Abril, águas mil"...e aí temos o cinzento plúmbeo e indiferenciado, instalado, e a chuva a brincar de fantasminha na minha vidraça...

E eu cá estou de "janela" aberta, à espera que o "verão" entre por ela.

Isto parece linguagem codificada e hermética, mas passo a explicar:
Cada vez mais, diariamente, assim que entro em casa, quase como associado a algo parecido a abrir uma luz, despir o casaco da rua ou coisas deste género, ligo de imediato, o PC.

Ele lá está ao fundo do quarto, junto à janela real... a minha janela virtual de vida...
Dou por mim, a abrir-lhe as "portadas", a perscrutar-lhe os sons, a vasculhar-lhe as mensagens, os mails, as notícias, ou seja, a franquear a entrada àquela fila de gente que adoraria já me esperasse...

Vou com alguma ansiedade ao "correio", espero com muita ansiedade que alguém desse sinal de vida aqui mesmo, neste espaço, nem que fosse p'ra me "bater"...corro a "cuscar" os "bonequinhos" verdes do messenger...enfim, frustro-me ou animo-me.

Tal como se o computador estivesse a "virar" gente.

E fico "desasada", "desocupada", "órfã", triste, assim um pouco "sem eira nem beira", se o virtual não dá uma "corzinha" ao meu real, tão cinzento quanto o dia de hoje.
Parece que um "mundão" tão grande lá fora nem sabe que eu existo, logo eu, que gosto tanto de conversar, trocar ideias, "tertuliar", convergir ou divergir em posições, opiniões...sei lá!...

Os meus gatos, sonolentos, placidamente instalados no sofá, ainda não aprenderam a minha linguagem, estas paredes agigantam-se, as fotos das molduras espalhadas a esmo pela casa, já só referem tempos idos, gentes que não estão...Sobra o quê??

Sobra um computador que está a tornar-se vida e gente, como disse, som ou silêncio, companhia ou nada....conforme os dias, conforme lhe "apetece" ou não!...

E esta "estranha relação" (que me parece ser cada vez menos só minha), está a tornar-se obsessão, dependência, profilaxia ou até terapia de falta de vontade, de cansaço, de desistências...

E penso que é mau (tal como este nosso recente Verão prematuro), quando o anti-natural começa a roubar o lugar ao normal, quando, sabendo que não temos gentes, temos caras, corpos, personalidades virtuais que concebemos e as substituem, quando a companhia e o interlocutor passa a ser uma máquina...quando a simbiose entre nós e ela, começa a ser indispensável à existência.

Complicado tempo este...bizarra vida, esta...aberrantes seres a que nos moldamos e configuramos!!!...

Sinal dos tempos??!!...Isto tem um nome: solidão!

Anamar

quinta-feira, 16 de abril de 2009

"DIVAGANDO...a las cinco de la tarde!..."

Pelas cinco definiu o resto do dia...
Enconchar-se, hibernar...fazer-se morta!
Quando o céu cinzento, indefinido, é mais aconchegante do que um sol castigador que traz ao de cima tudo...as olheiras, o rosto de expressão baça e distante, as toneladas que lhe passeiam pelo corpo e lhe pisam a alma...bom, então algo está realmente mal!

Olhou para a tela que há dias já, se lhe despejara à frente.
Numa tela branca sempre se projecta tudo...a cores, a preto e branco, o enfoque no que se quer esquecer e a desfocagem dos sonhos que o foram...
Uma tela branca por vezes incomoda, cola-se-nos à pele, e as sombras chinesas, insistentes, adoram as telas brancas.

A tarde virou cinzenta, da cor do cansaço. Virou rubra da cor da raiva e nunca mais foi verde da cor da esperança que fugidiamente a preenchera.
Apercebeu-se que não é mais a mesma. Apercebeu-se que a crisálida nunca mais soltou ao mundo, as cores, a liberdade, o sonho... das asas da borboleta.
Apercebeu-se que o arame não tem nunca rede por baixo, que a lotaria da vida não há mesmo forma de a presentear...

Apercebeu-se com mágoa que começa a moldar-se aos tempos de passagem.
Apercebeu-se que a inocência pagou juros demasiado altos, e foi embora.
Apercebeu-se que o acreditar no que seja, já não enriquece o seu léxico.

E "a las cinco de la tarde"...desistiu de se sentir viva...

Anamar

terça-feira, 14 de abril de 2009

"QUEM CANTAVA, SEU MAL ESPANTAVA !!..."

Não se canta mais, hoje em dia!!!...

Numa manhã de um destes domingos, acordei com a sensação de alguém num apartamento por cima, por baixo, ou ao lado, cantar, enquanto aspirava a casa...

Arrebitei a orelha, e constatei que devia estar a sonhar.

Sabem como são estes apartamentos nestas colmeias, que são os prédios onde vivemos...
Tudo se ouve através daquelas paredes, que mais parecem de cartolina do que de tijolos...
Ele é o choro das criancinhas, às horas mais inapropriadas da noite, ele é o chichi da vizinha, ele é a cama que range sincopadamente e sem pudor, o autoclismo a despejar, os palavrões e as réplicas dos palavrões, daquele casal moderninho que até parecia serem "unha e carne"...Enfim, um sem número de sons, nos quais podia muito bem estar incluído o canto, a aligeirar as lidas domésticas.

Mas não.
De facto eu enganara-me, e já nem no duche se ouve aquela ária de ópera, que o "marmanjo" do andar de cima, considerava ser terapia adequada ao começo de cada dia!

Veio-me então à ideia, naquele dorme-acorda desatinado, que há décadas e décadas que não oiço a minha mãe cantar.
Lembro os tempos da minha criancice, da minha adolescência, em que, com a voz límpida que tinha, sempre acompanhava as tarefas de casa, com um espírito leve, solto... despreocupado.
A minha mãe e toda a sua família, eram conhecidas por cantarem muito bem. Por essa razão, há anos e anos atrás, alguém ligado à música, fez com eles, uma recolha de "Cantares ao menino Jesus", naquele Alentejo profundo.
Ainda não existia o "karaoke" e não se "fabricavam" vozes. Ou se era realmente dotado ou não. Ou se era genuíno, ou não...

Cantava a minha mãe temas da Revista à Portuguesa, em voga na altura...ou canções dos artistas do seu tempo...Tony de Matos, Tristão da Silva, Max, Beatriz Costa, Amália, Trio Odemira...sei lá, já não consigo recordar...

Depois, lembrei a D. Henriqueta, agora uma "empregada auxiliar", designação "modernaça", para a "contínua" que sempre foi, na minha escola.
Mudaram os "palavrões", mas a D. Henriqueta (recentemente aposentada), sempre foi a mesma;
Ela, e a voz cristalina que se ouvia naquele liceu, quer quando trabalhava na cozinha (nos tempos em que lá se confeccionava a comida servida), quer quando passou a atender no bar, por a escola ter contratado, em má hora, uma empresa de "catering".

Sempre cantava e bem, as "modas" de que gostava...e a sua voz, ficou de facto, nos ouvidos de todos nós que com ela convivemos.

A minha mãe realmente deixou de cantar, sequer trautear as modinhas do seu tempo, ou porque já as esqueceu, ou porque os anos com o desencanto da vida, a foram "aposentando" deste Mundo, também nesse ramo...

Hoje em dia não se canta mais...mas também não se ouve mais música.
Escutam-se "berros"...ou melhor, ensurdece-se precocemente com gritos, que não permitem seguramente o extraordinário privilégio, que é sorver até à alma qualquer tema musical que nos preenche, que é absorver até ao âmago, a harmonia de sons que nos invadem, e que por isso, quantas e quantas vezes nos trazem espontaneamente as lágrimas aos olhos...

A vida está a encarregar-se, injustamente, de nos emudecer!!...

Anamar

sábado, 11 de abril de 2009

"INEVITAVELMENTE...PÁSCOA"



Não era bem este o tema que conceptualizara abordar esta madrugada.
Logo o farei noutro dia...

Acontece que há pouco, numa localidade aqui bem perto de mim, me deparei inesperadamente com algo que me transportou obrigatoriamente ao tema "Páscoa" uma vez mais, e à minha meninice: a procissão do "Enterro do Senhor".
Foi algo inesperado, porque creio, ser inusitado e quase inexistente já, este tipo de eventos na grande cidade...ou pelo menos, tão incaracterística ela se tornou, que nem damos por eles.

Este ano a Páscoa veio com a Primavera já começada há dias...e embora tenhamos acreditado que ela estava definitivamente instalada, bem nos enganámos, ao sermos confrontados de novo, com temperaturas quase gélidas, com neve em profusão nas terras altas, e com parte do país em alerta amarelo, devido aos fortes nevões, uma vez mais...

Que a Primavera há muito se anunciava, era bem verdade. O tempo fortemente ensolarado, as temperaturas mais do que amenas, a quase ausência de chuvas, os verdes a despontar nos campos e o brotar em pujança dos coloridos das flores que já espreitam por todo o lado desbragadamente, lembram que a renovação está aí a fazer-se, felizmente à revelia das nossas vontades e determinações.
Os brotos ainda fechados, brevemente darão cascatas coloridas, os cheiros dos campos e jardins começam a surpreender-nos e a fazerem-nos sorrir uma vez mais.

Os frios deverão ir embora, a luz de um sol claro e radioso voltará a dar brilho, calor e tonalidades revigorantes a tudo; os corpos "acordam" da letargia imobilista do Inverno, as espécies iniciam os rituais de fecundidade (os trinados, o pipilar, o arrulhar dos pássaros confundem-se com sons de cumplicidade dos humanos), porque... afinal tudo recomeça, a hibernação completou-se, os "degelos" da alma iniciam-se e os fluxos de esperança, de fé, de energia, aquecem-nos o coração...

Sim, porque ainda que a "invernia" tenha sido escura e tenebrosa, sempre acreditamos no ciclo da vida, em qualquer coisa nova, em qualquer milagre que se irá operar, em qualquer renascimento ou ressurreição...só porque a Primavera voltou uma vez mais...
Isso, se somos jovens, menos jovens, ou bem "maduros"...
Sempre nos deixamos contagiar por essa bendita "doença"...

"Páscoa", do hebraico "Pessach" - passagem, é a mais importante festa da cristandade.
A Páscoa entre os cristãos, celebra a ressurreição de Cristo, a Sua vitória sobre a morte depois da cricificação (cerca de 33anos d.C).
Páscoa deriva então do nome hebraico da festa judaica comum às celebrações pagãs (passagem do Inverno para a Primavera) e judaicas (comemoração da libertação e fuga do povo judeu escravizado, do Egipto para a Terra Prometida).
Os termos "Easter" (Ishtar) e "Ostern" (em inglês e alemão respectivamente), parecem não ter qualquer relação etimológica com o "Pessach". Relacionam-se estes termos com Eostremonat (nome de um antigo mês germânico), ou com Eostre, deusa germânica relacionada com a Primavera e homenageada no referido mês (segundo um historiador inglês do sé. VII).

Alguns historiadores sugerem que muitos dos actuais símbolos ligados à Páscoa (especialmente os ovos de chocolate, ovos coloridos ou os coelhinhos da Páscoa), são exactamente resquícios culturais da festividade da Primavera, em honra de Eostre, assimilados depois pelas celebrações cristãs, após a cristianização dos pagãos germânicos.
Contudo, sabe-se que já os persas, romanos, judeus e arménios, tinham o hábito de oferecer e receber ovos coloridos, por esta época.
No equinócio da primavera, ocorria o ritual de se pintarem e decorarem ovos (símbolos da fertilidade) e esconderem-se e enterrarem-se nos campos.
Este ritual foi adaptado e assimilado pela Igreja Católica, no princípio do primeiro milénio depois de Cristo...e assim surgiram os "ovos de Páscoa".

O hábito de dar ovos de verdade, vem da tradição pagã e o de trocar ovos de chocolate, surgiu em França. Antes disso e muito remotamente, usavam-se ovos de galinha para celebrar a data.

Na Ucrânia, séculos antes da era cristã, já se trocavam também ovos pintados, com motivos alusivos à natureza, em celebração da chegada da Primavera.
Os chineses e os povos mediterrânicos também os ofereciam, como comemoração da estação do ano. Eram meros presentes, simbolizavam o início da vida e não se destinavam a ser consumidos.
A tradição perpetuou-se durante a Idade Média, entre os povos pagãos da Europa.
Celebravam Ostera, deusa da Primavera, simbolizada por uma mulher que segurava um ovo na mão, enquanto contemplava um coelho (símbolo da fertilidade), que saltitava alegremente à sua volta.

Os cristãos apropriaram-se também da imagem do ovo, para festejar a Páscoa. Pintavam-se os ovos (de galinha, gansa ou codorna), com motivos religiosos, tais como Jesus ou Maria.

Na Páscoa, na Inglaterra (séc. X), os ovos tornaram-se ainda mais sofisticados. O rei Eduardo I presenteava a realeza e os seus súbditos, com ovos banhados a ouro ou decorados com pedras preciosas.

Cerca de oitocentos anos depois, já no séc. XVIII, confeiteiros franceses tiveram a ideia, de pela primeira vez, fazerem ovos em chocolate (iguaria conhecida apenas dois séculos antes na Europa, trazida da recém-descoberta América, onde era considerada sagrada, pelos Maias e Astecas).

Por sua vez, a imagem do coelho surgiu associada à "criação", por ser um animal de fecundidade notória, como se sabe.

Na Rússia dos Czares, a Páscoa era também uma data muito especial; todos se beijavam e festejavam a ressurreição de Cristo, a nova vida que surgia, o renascer da esperança.
O povo trocava entre si ovos pintados, como saudação.
A família real e os nobres da corte, davam-se ovos de ouro e prata, decorados com esmalte e pedras preciosas.

Em 1884, o Czar Alexandre III encomendou ao joalheiro oficial da Corte Imperial russa, Fabergé, um ovo, como presente para a sua esposa, a Imperatriz Maria Feodorovna, contendo uma surpresa, ao critério do joalheiro. Esse primeiro ovo representava uma galinha pondo uma safira. O sucesso na Corte foi estrondoso e assim se iniciou a tradição dos ovos de Fabergé.
A cada ano, o Czar encomendava um novo ovo na Páscoa, para oferecer à Czarina e Fabergé concebia-o com total e incomparável criatividade e arte.

Com a morte do Imperador, seu filho, Nicolau II, prosseguiu a tradição, encomendando por ano dois ovos, um para sua mãe e outro para a sua esposa, Alexandra.
O ovo anual constituía sempre uma enorme surpresa para a família imperial e para toda a corte.
Alguns celebravam temas íntimos da família, outros honravam eventos importantes do Estado; todos eram pequenos, delicados, graciosos, com minúcia...preciosos!
O ovo da coroação (1897), com diamantes, rubis, platina, ouro e cristal de rocha, tinha dentro a réplica da carruagem que transportara a Czarina Alexandra, pelas ruas de Moscovo, aquando das festividades da coroação de Nicolau II.

Por serem exclusivos e caprichosamente elaborados, estes ovos tornaram-se peças valiosíssimas. Com cerca de 13 cm, cada ovo levava o ano inteiro a ser confeccionado, desde o desenho original, o corte, lapidação das pedras e todos os detalhes. Tudo feito em rigoroso e absoluto sigilo.
Produziram-se ao todo, cinquenta e seis obras-primas, entre 1885 e 1917.
Com a Revolução Russa em 1917, o tesouro foi confiscado pelos bolcheviques e disperso.
Hoje não se conhece o paradeiro de todos os ovos de Fabergé, feitos para a família imperial. Até 1998, haviam sido localizados 44 destes exemplares.
Em 2002, notícias internacionais davam conta que um ovo imperial fora arrematado num leilão da Christie's por 9,6 milhões de dólares...

E pronto, já me alonguei que chegasse.

Esperando que troquem entre vós muitos ovos desta Páscoa, florida por uma Primavera que em perfeita comunhão, resolveu inundar de cheiros, cores e alegria estes nossos dias, resta-me desejar-vos uma vez mais...

BOA PÁSCOA
OSTERN (alemão)
BAZKO (basco)
PASKHA (búlgaro)
PASQUA (catalão)
PASCUA (espanhol)
PÂQUES (francês)
EASTER (inglês)
PASKA (islandês)
CÁISG (irlandês)
PASQUA (italiano)
PASKHA (russo)......................etc, etc...

OVOS DE FABERGÉ:

































Anamar

sábado, 4 de abril de 2009

"CÂNTICO NEGRO"


José Régio 1901 - 1969

Nesta madrugada de silêncios, de solidão, de ausências, em que a vida parece que ficou toda lá fora, para lá desta redoma, refúgio, útero, que são as quatro paredes "protectoras" do meu quarto, a minha única e última ligação ao Mundo, parece ser este computador, objecto virtual que tenta criar para mim, uma realidade ficcionada, falsa, mentirosa, inexistente, obviamente virtual também.

Porque, virtual é tudo o que eu imagino que a vida seria e não é...
Porque virtuais eram as pessoas que inventei na minha cabeça, e não são...
Virtual era a paz que imaginei alcançar, a sabedoria que julguei adquirir, as realizações que me pareceram atingíveis, os sonhos que acreditei poderem não ser virtuais...e esses sim, eram na realidade virtuais mesmo...

Não sei se sou utópica, se não aprendi a viver, se estou doente na alma e no corpo, se estou exausta e me sinto sem forças para chegar à praia ali tão perto...não sei!!
"Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos...
Eu tenho a minha Loucura ! A minha vida é um vendaval que se soltou.
É uma onda que se alevantou.
É um átomo a mais que se animou"...

Como diz José Régio neste Cântico Negro que aqui vos deixo..."Não sei por onde vou, não sei para onde vou...
- Sei que não vou por aí!!"

Um amigo (obrigada Filipe), fez o favor de me enviar este maravilhoso poema, grito no escuro, de alguém que tomo como um "outsider" assumido, alguém marginalizado de parâmetros instituídos, alguém que refuta o estereotipado...José Régio.

Como declamadora do poema escolhi Bethânia, para mim, incontestada referência como mulher, como "diseuse", como uma fortaleza, um "animal" de palco.
Bethânia é, da cabeça aos pés, um "amontoado" de nervos e músculos, que à flor da pele transpiram autenticidade, beleza, sensibilidade, garra, força e alma, capazes de pegarem o Mundo pelos cornos.
É neste misto força-fragilidade, suavidade num vozeirão que nos arrepia, que aquela cabeça provocadoramente erguida se impõe, e deixa jorrar o vulcão de sentimentos, com que vive o sentimento de cada frase que declama ou canta...

E por tudo isto, estando a noite lá fora bem negra, estando a vida aqui dentro mais negra ainda...fica o "Cântico Negro" de José Régio...para se beber até à exaustão...

Que ao menos se salve Maria Bethânia!!...



Anamar

quinta-feira, 2 de abril de 2009

"A VIDA E AS SOMBRAS"



O sol pôs-se há pouco, lá longe, por detrás da torre incaracterística da igreja deste amontoado de casario, que só não me sufoca, porque, também ele fica lá longe e não atinge a altura do meu sétimo andar.

O sol pôs-se num clarão entre o ouro e o laranja, nesta quinta feira sem história, por falta de história nestes dias de pausa escolar.
Era uma "fogueira" no céu já pálido, deste fim de dia, quase já lusco-fusco.
Era uma "explosão" de amarelo-ouro, e o ouro-amarelo do sol, transportou-me à aguarela pincelada por quem sabe, de uma beira de estrada, ou de uma encosta embrulhada nas mimosas em flor, deste início de Primavera, nestes Abris que nunca nos defraudam.

E pensei em duas coisas que se associam, neste esgar destemperado de ideias:

Lembrei, como ao longo dos anos lutei em vão, para deter uma mimosa, uma só chegaria, em quaisquer três palmos de terra que então eram meus.
"A mimosa é uma "praga", a mimosa liquida toda a água dos terrenos onde vive...a mimosa "mata" outras espécies"...

E dessa forma, passei a parar muitas e muitas vezes em bermas de estrada, para colher braçadas de flores, de mimosas que não são de ninguém, para sorver até ao coração (que é a minha tela disponível para desenhar sonhos), o aroma inigualável da generosa natureza, para me "esbaldar" até ficar prenhe, daquele "mar" dourado, que homem nenhum ousou copiar.

A segunda coisa em que pensei, prende-se exactamente com esta tão auspiciosa quanto vazia solidão, gerada nestes fins de tarde, nestes luscos-fuscos que me impregnam a alma duma melancolia mansa, com que não sei lidar...

O sol a descer, aquele azul-violeta pálido a instalar-se, a minha gaivota a apagar a silhueta esfíngica, procurando guarida noutras paragens... até que a escuridão começa a baixar... eu sentada frente a uma janela (que até parece ter grades), deixam-me assim... vazia, incapaz, desairosa, inerte...
Como será então daqui a algum (já não muito) tempo, quando os dias terminarem sempre e só, em penumbra letal, com os telhados a desaparecerem no fechar do céu??!!...

A propósito de lusco-fusco, deixo aqui um texto ficcionado na madrugada passada, (eu, que parece que estou "entupida" de palavras e que ultimamente não consigo soltar a torrente, e apenas escrevo banalidades como estas)...

"O lusco-fusco é a varanda da noite e a noite a ante-câmara da madrugada...
Essa, então, a mansarda dos sonhos, onde vagueio com braçadas de sardinheiras por entre os dedos.
A gaivota que plana leva-me até lá, onde de nada se vive...ou de nada se morre...
Ao lusco-fusco as toupeiras têm olhos...Eu corro até ti, olho-te...somos dois estranhos já...
Quero dar-te uma flor, mas já as fui perdendo no voo alvoroçado...
Julguei que viveria...
mas por nada se morre...ao lusco-fusco!"


Anamar

segunda-feira, 30 de março de 2009

"AS MINHAS PÁSCOAS"

 


      NOTA:  APERCEBI-ME QUE ESTE POST, ESCRITO A 30 DE MARÇO DE 2009 NÃO FOI PUBLICADO, PENSO QUE POR DISTRACÇÃO.  SENDO ASSIM, E AINDA QUE FORA DE ORDEM, MUITO FORA DE ORDEM MESMO, AQUI VAI, UM POUCO DESINSERIDO....


«Ladainha dos póstumos Natais»

«Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que se veja à mesa o meu lugar vazio

Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que hão-de me lembrar de modo menos nítido

Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que só uma voz me evoque a sós consigo

Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que não viva já ninguém meu conhecido

Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que nem vivo esteja um verso deste livro

Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que terei de novo o Nada a sós comigo

Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que nem o Natal terá qualquer sentido

Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que o Nada retome a cor do Infinito»


David Mourão-Ferreira, in "Cancioneiro de Natal"

David assaltou-me o espírito e perturbou-me a paz..."Porque há-de vir uma Páscoa e será a primeira em que terei de novo o Nada a sós comigo..."

As minhas Páscoas, que já se diluem pelas curvas das estradas lá para trás, passam por Alentejo, onde há dois resistentes apenas, da ampulheta dos tempos; passam por casa de avós de paredes roliças, chão de tijoleira, mesa a perder de vista (para albergar os tantos que então éramos)...casa alienada, em que a porta, as janelas e o portão incólumes, nos reavivam a mente ao relembrar tudo o que estava por detrás e não está mais...

As minhas Páscoas passavam por ovos, amêndoas, merendeiras, bolos de folha, queijadas, folares em forma de "pintainhos" para a pequenada, numa azáfama de alegria espalhada pela chegada dos ausentes, pela Primavera anunciada, pelo reencontro da célula familiar...

As minhas Páscoas, passavam por vestimenta nova na missa da ressurreição, pelo recolhimento sepulcral e fúnebre, na procissão escura e carregada do "Enterro", pela luz, pela cor, pela ingenuidade carregada nas braçadas de flores dos querubins, que com asinhas e coroinhas, ladeavam os andores engrinaldados de glicínias e flor da Páscoa...no Domingo.
Passavam pela Banda Filarmónica, a rigor, pelas ruas da vila, pelas melhores colchas de seda e damasco dependuradas das janelas, pelos cânticos dos cordões humanos que pedindo ou agradecendo, deixavam consumir uma após uma, as velas de cera, no atapetado de pétalas do empedrado, entre cânticos e louvores...

As minhas Páscoas eram uma avó de lenço na cabeça, e avental em torno da cintura (vestida de negro contrastante com a alvura dos cabelos, presos desde sempre, em carrapito), com um regaço generoso e farto, capaz de ser ninho de todos os netos que a rodeavam; eram uma tia-avó solteirona, com alma de criança entre a criançada... eram pais, eram tios, eram primos...era o ensopado de borrego, os pezinhos, cabrito assado ou favas em profusão de coentrada, num ritual inalterável ano após ano, geração após geração, vida após vida...

As minhas Páscoas hoje, são de figuras pardas, bonequinhos de caixa de música que estacaram lá muito longe, como se lhes tivesse falhado a corda, imobilizados pelo decurso dos tempos, cheirando ao rosmaninho, à esteva ou ao alecrim, que aromatiza os campos nestes tempos de "Ramos", em fim de Quaresma...

As minhas Páscoas foram...as minhas Páscoas pouco são...as minhas Páscoas um dia deixarão de ser...

Tal como David Mourão Ferreira..."Há-de vir uma Páscoa e será a primeira em que se veja à mesa o meu lugar vazio"...

Anamar

quinta-feira, 26 de março de 2009

"AQUELE PITOSPORO..."




«Reparou que o pitosporo estava de novo em flor. Brevemente viriam aquelas noites de Fevereiro em que a brisa lhe traria o aroma inebriante a flor de laranjeira.
É verdade, era de novo quase Primavera...outra vez...mais um ano!...

Fevereiro amanhecera com dias lindos, com dias "gloriosos", de um céu azul transparente e com um sol luminoso e aconchegante. O sol sempre lhe dava que pensar, ou melhor, a ausência deste...sem ele, não poderia viver, sequer vegetar...;
o ciclo biológico repetia-se, a renovação da vida voltava a dar-se, o milagre do recomeço eclodia, sempre espectacular, sempre abismal!...
E o tempo a escoar-se na ampulheta da vida, do destino, e os dias "lá dentro" sempre tão escuros (contrastando com o prodígio da luz no exterior à sua volta...), sempre fastidiosamente iguais.
"Isto está cada vez pior..." pensou...»


A minha praceta tinha um pitosporo, uma palmeira residente há uma vida, e algumas outra árvores...Não muito frondosas, é certo, mas tinha!
Isto foi antes de terem "inventado" um parque subterrâneo, para obviar algumas dificuldades de estacionamento e garantirem (dois em um), votos a multiplicarem-se nas urnas, numas Autárquicas quaisquer. O habitual, claro.

Isto remonta ao tempo em que eu sempre vinha a pé, fossem que horas fossem, do liceu para casa (ainda não tinha sido assaltada).

E era sempre assim...Numa qualquer noite, quando a Primavera ainda só se anunciava, quando a brisa ténue inundava a praceta deserta àquela hora, o pitosporo, promissor nas suas grinaldas de pequenas flores brancas, inebriantes no perfume de flor de laranjeira, de "supetão", "obrigava-me" a parar, a contemplar, a sorver despudoradamente aquele perfume inebriante.

E quase sempre as lágrimas me afloravam os olhos...
Era uma emoção estranha, um misto de surpresa, de gratidão, de encantamento, como se fosse a primeira vez que me dera conta do "milagre"...concluindo nostálgica, que mais um ano passara...

O pitosporo já cá não está, a palmeira velhinha também não...
Arrancaram, sem dó nem piedade, os "ex-libris" da minha praceta...
Nesse dia chorei. Senti-me amputada. Pus no papel o pequeno texto de data incerta, com que iniciei este post, e numa casa que eu tive, num jardim que foi meu, plantei um pitosporo...
Esse, ainda lá está!...

Era meia noite dada, a escola já estava difusa de luzes, deserta de gentes.
Saímos juntas, eu, uma colega e uma aluna com quem ela conversava.
Numa pausa, diz-me a jovem :"Mais um dia, não é verdade"?
Eu silenciei segundos e disse-lhe: "Ou menos um dia...depende da óptica..."
Ela sorriu, como que interiorizando o que eu verbalizara, e disse-me:"Para a senhora talvez menos um, para mim talvez mais um"!
Novamente silenciei mais alguns segundos...Sorri, olhei para ela e respondi-lhe: "Não, menos um dia, tanto para si, como para mim...Desde o dia em que nascemos, que entrámos em contagem decrescente. Começámos a morrer nesse dia!"...

A minha colega, que se tinha afastado um pouco, chegou então. A aluna deve ter pensado para com os seus botões: "Há malucos para tudo!!!..."

E não sabe ela da história do pitosporo!!!...

Anamar